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Guias e Dicas
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Everardo Rocha - O Que e Mito, Notas de estudo de Ciências Biologicas

Livro sobre o que é mito

Tipologia: Notas de estudo

2013

Compartilhado em 23/07/2013

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andreia-aparecida-ribeiro-4 🇧🇷

4.6

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Baixe Everardo Rocha - O Que e Mito e outras Notas de estudo em PDF para Ciências Biologicas, somente na Docsity! Para ter acesso a outros títulos libertos das míticas convenções do mercado, acesse: https://www.sabotagem.revolt.org Esta obra foi liberta de quaisquer direitos autorais pode e deve ser reproduzida no todo ou em parte, além de ser liberada a sua distribuição, preservando seu conteúdo e o nome de seu autor. Autor: Everardo Rocha Título: O que é Mito Data Publicação Original: 1996 Digitalização: www.portaldetonando.com.br Data da Digitalização: 2006 teria ali acontecido são conjecturas, especulações e hipóteses de difícil comprovação. Em segundo lugar, e aqui está o principal, a origem de uma coisa não garante a explicação do seu estado atual. A origem do homem, por exemplo, vindo do macaco, de outro planeta ou do paraíso, dificilmente serviria para explicá-lo nas suas múltiplas possibilidades existenciais. O segundo ponto ao qual nos levou a definição do dicionário é quanto ao fato de o mito possuir uma mensagem cifrada. Mais diretamente isto quer dizer que o mito atrai a interpretação. E interpre- tações é o que não falta ao mundo dos mitos. A Antropologia, por exemplo, possui uma vastíssima coleção de interpretações de mitos, Esses trabalhos dos antropólogos, via de regra, têm por finalidade interpretar o mito para descobrir o que este pode revelar sobre as sociedades, de onde o mito provém. É a interpretação do mito como forma de compreender uma determinada estrutura social. Nesta linha, a Antropologia usualmente assume a existência de uma relação entre o mito e o contexto social. O mito é, pois, capaz de revelar o pensamento de uma sociedade, a sua concepção da existência e das relações que os homens devem manter entre si e com o mundo que os cerca. Isto é possível de ser investigado tanto pela análise de um único mito quanto de grupos de mitos e até mesmo da mitologia completa de uma sociedade. Não existe aqui uma única regra, e as soluções analíticas são bastante variáveis. Acredito, sem dúvida, que a Antropologia Social é a disciplina que foi mais longe e faz a mais proveitosa viagem ao entendimento do universo mítico. A Psicanálise também interpretou mitos. Freud fez uma brilhante e famosa interpretação do mito de Édipo. De quebra, ainda inventou alguns mitos importantes. A Psicanálise de Carl Gustav Jung, conhecida como Psicologia Analítica ou junguiana, não se cansa de interpretar mitos. Grosso modo, para eles, os mitos estão todos numa região da mente humana, a que chamam inconsciente coletivo, uma espécie de repositório que todos possuímos da experiência coletiva. Neste lugar, os mitos se encontram. O inconsciente coletivo é, como o nome diz, algo compartilhado pela humanidade toda, é um patrimônio comum. Ao mesmo tempo existe em cada um de nós. Assim eles explicam como os mitos do Sol podem aparecer desde o Egito Antigo até os incas da América do Sul, passando, quem sabe, pela praia de Ipanema a cada verão. A hipótese junguiana dos "conteúdos" que guardamos dos mitos é um tanto problemática, se bem que, para muitos, é também, altamente sedutora. Vamos vê-la melhor no próximo capítulo. A estas interpretações várias que o mito desafia podemos somar outras tantas. Os historiadores das religiões, os estudiosos de mitologias, os teólogos, etc. possuem todos suas linhas, métodos e hipóteses interpretativas. O que subsiste de comum nestes muitos e alternativos discursos sobre o mito é a idéia constante de que o mito está, efetivamente, ligado à possibilidade de ser interpretado.O terceiro ponto a que chamei a atenção na definição do dicionário é quanto à relação entre mito e verdade. Aqui o aspecto principal é que, embora o mito possa não ser a verdade, isto não quer dizer que seja sem valor. A eficácia do mito e não a verdade é que deve ser o critério para pensá-lo. O mito pode ser efetivo e, portanto, verdadeiro como estímulo forte para conduzir tanto o pensamento quanto o comportamento do ser humano ao lidar com realidades existenciais importantes. Em última instância, a própria idéia de verdade é um conceito discutível. Muitos pensadores acreditam que ela não exista e que o que chamamos verdade não passe, no fundo, de uma versão bem-sucedida sobre um determinado acontecimento. Nesse sentido, procurar saber se o mito diz estritamente a verdade torna-se uma tarefa, na melhor das hipóteses, inútil. Qualquer verdade que por acaso se encontre no mito será relativa, seja porque a própria definição de verdade é problemática, seja porque o mito não parece estar muito preocupado com ela. Creio que já fomos longe demais com a definição do dicionário. Ela nos levou a tocar em pontos importantes para o quebra-cabeça do mito. Vimos um pouco da questão da origem, da questão da verdade e da questão da interpretação. Estes três temas que navegam em torno do mito são fundamentais na discussão das suas razões de ser. Assim, da verdade que o mito não se propõe ter, ficam a eficácia e o valor social. Da origem que ele não se propõe possuir, fica a sua sempre presença, seus desconhecidos autores, sua improvável localização no tempo. Da interpretação que ele nos propõe como enigma, ficam as mais diversas tentativas do pensamento humano tanto de criá-lo quanto de analisá-lo. O que vamos juntos fazer agora é uma viagem por alguns dos caminhos do labirinto dos mitos. Não quero que esta viagem assuma ares de uma excursão cheia de paradas obrigatórias, pontos altos, ônibus sonolentos e enjôos. Não pretendo ser um guia de excursões organizadas, metódicas e chatas. Vamos procurar viajar num clima de descobrir nossas próprias paisagens míticas. Deixar que o mito nos trace o percurso. Navegar no labirinto dos mitos e seus significados é muito mais estar no submarino amarelo que num navio convencional. As viagens, suas rotas e procuras é que são, de fato, um grande mito. O ENCONTRO Preparativos, projetos, malas feitas. Da confusão das partidas se despede o viajante. Pela porta principal se convida a entrar no labirinto dos mitos. Sem saídas, ficamos com a pergunta: o que é mito? Já vimos o que ele é para o dicionário. Já refletimos sobre essa definição. Já investigamos algumas questões que se colocam em torno do mito. Já andamos, falamos e pensamos mitos. Já sentimos, enfim, que a "barra é pesada". Esta é a graça do mito. Ele há de ser sempre desafio, abertura, enigma. É livre e sábio o suficiente para não temer a morte, não se deixar escravizar por conceitos que o obriguem a ser isso ou aquilo e só. O mito está na existência. Resiste a tudo, fazendo no fundo com que suas interpretações sejam, quase sempre, matéria-prima para novos mitos. Por isso, a pergunta "o que é mito?" muito provavelmente não tem resposta. Por isso, nossos constantes apelos à imagens de labirintos, quebra- cabeças, viagens. Creio que isso é o melhor que se pode fazer. É mais ou menos como aquelas famosas redações com tema livre das aulas de português. O que se pode fazer de melhor com um tema livre do que mantê-lo liberto? mito é assim. É melhor não tentar entendê-lo como uma regra, uma questão de múltipla escolha, uma prova final. É melhor viajar nele como numa emoção, num pensamento furtivo, num novo desejo ou num velho prazer. Não vamos saber o que é mito. Nem ele próprio o saberia. Mas, poderíamos saber agora, senão o que é mito, pelo menos quem é o mito. Seria mais uma peça do quebra-cabeças, uma curva no labirinto, uma pausa na viagem. Vamos contemplar um mito e ver no que dá. Você, leitor, face a face com ele, talvez possa intuir seu significado, dar sua própria interpretação. Experimentá-lo na plenitude de um encontro. Vale a pena. Vou, então, transcrever aqui um mito. Organizar as palavras numa forma tal que adquira os contornos indiscutíveis de um discurso mítico. Qualquer estudioso de mitologia não teria dúvidas em afirmar a "natureza" da narrativa que vai se seguir. Estamos diante dele: é um mito. Com toda a força de suas características. Todas as marcas do seu gênero de narrativa. Assim, entre as inúmeras escolhas possíveis, optei por um muito famoso. Já foi tema de importantes estudos, possui muitas versões. É um clássico da literatura mitológica dos índios de língua jê. Aparece entre os gaviões, os canelas, os krikatis, os krahós, os apinajés, os caiapós, os xerentes, os xavantes, os bororós. Vamos então a este mito que, de uma forma ou de outra, nos aproxima dos nossos índios. Atenção! Se liguem no "clima" e entrem no "astral" do momento. Comecem a ouvir os barulhos da selva ao redor, do crepitar da fogueira, do riacho. Som e silêncio à nossa volta. No céu e na terra as cores do crepúsculo, em tons fortes e escuros, propiciam uma estranha luminosidade. é quase noite, faz frio. Um velho índio, ao pé do fogo no pátio da aldeia, em alguma mata perdida na vastidão do Brasil Central, se ergue lentamente. Nosso olhar acompanha o rosto de bronze e para além dele o horizonte. Estamos calmos, sentados, aquecidos e felizes. Num gesto vigoroso e preciso, rápido demais para sua fazer outro livro. Até que eles tivessem entrado em campo, muita bola já havia rolado. Eles são o possível da análise mitológica hoje. A estes e outros estudiosos contemporâneos se deve o crédito pelo entendimento de diversas significações que os mitos podem adquirir para o ser humano. Várias foram as tentativas teóricas levadas a efeito na busca de entender o significado do mito. Nesta permanente perseguição no intuito de saber o que é o mito, várias escolas, correntes de pensa- mento e linhas de pesquisa foram esboçadas em torno dessa pergunta. O mito foi um grande desafio intelectual e ainda se coloca como um fenômeno de difícil apreensão para todos aqueles que se empenharam na sua discussão. São conhecidas as teorias de tipo "naturalista", "historicista", "animista", "estruturalista", "psico- lógica", etc, etc. Todas elas bastante divergentes entre si e apresentando metodologias, objetivos e resultados teóricos com os mais variados graus de eficácia. Mas, dois pontos me parecem importantes e marcam, de certa forma, os estudos do mito. Ambos estão ligados a determinados movimentos acontecidos na Antropologia Social. primeiro deles é quando se introduz definitivamente nesta disciplina o "trabalho de campo". segundo é quando do aparecimento na área do mito dos estudos iniciais de Léví-Strauss. É quando ele demonstra a utilidade e o alcance do seu método de análise estrutural aplicado à mitologia. São dois momentos marcantes. Vamos começar com o "trabalho de campo". O "trabalho de campo" foi uma importante conquista na Antropologia Social e afetou, por tabela, o estudo dos mitos. Esta conquista teve implicações que alteraram a postura da disciplina seja em termos de sua metodologia seja em termos de possíveis desdobramentos teóricos. Chegou, até mesmo, a supor mudanças — no limite — filosóficas na forma de a Antropologia entender o ser humano. Não pretendo me estender muito sobre a noção de "trabalho de campo", pois ela, por si só, justificaria todo um volume da Coleção Primeiros Passos. Tentando explicar de maneira bastante sintética, o "trabalho de campo" significou a hora em que o antropólogo assumiu a posição de estudar as sociedades diferentes da sua vivendo com elas o seu dia-a-dia. O trabalho de campo" é o nome que se dá a esse momento exatamente. Esse momento da saída do antropólogo de sua sociedade, entrada e permanência na sociedade do "outro". Esse processo caracteriza, grosso modo, um conhecimento não mais calcado numa antropologia "de gabinete", fechada e distante do seu objeto, e inaugura uma antropologia que vai testar seus próprios limites no confronto direto com a diferença. Em outras palavras, o "trabalho de campo" significa uma resolução de largo alcance na disciplina. Através dele, a Antropologia permitiu a emergência de um conhecimento capaz de respeitar, pelo próprio sentido da convivência, as mais variadas formas da existência humana nos mais variados pontos do planeta. Foi um salto de qualidade na produção teórica da Antropologia. Não que se tenha aumentado sensivelmente o volume de informação antropológica. Isto não é o mais fundamental, haveria outros métodos para tanto. O que aconteceu, de fato, foi uma mudança da "natureza" dessas informações. Um salto qualitativo, mais que quantitativo. antropólogo passava a viver, a ver, a estar e estudar as sociedades em presença. Como um teatro social, um drama existencial vivo e a exigir participação. Com o "trabalho de campo", o estudo do mito ganhou a dimensão fundamental de se poder acompanhá-lo em funcionamento, sendo usado e vivido, exercendo sua plenitude de força cultural atuante. Com o aprofundamento, pelo "trabalho de campo", do nosso saber sobre as sociedades tribais, torna-se transparente uma nova área de significações para o mito. O segundo ponto importante foi o aparecimento do estruturalismo de Lévi-Strauss. É uma questão complexa. O chamado estruturalismo não foi "inventado" por ninguém. É um movimento de reflexão que, como todos eles, possui as mais variadas raízes e os mais amplos desdobramentos. O nome de Lévi-Strauss está ligado ao estruturalismo pelo fato de ter sido aplicado por ele à questões como as relações de parentesco, o totemismo e o próprio mito. Esta forma de abordagem do mito rendeu inúmeras e fundamentais conseqüências. Ela tem seu primeiro momento num artigo pequeno — "A Estrutura dos Mitos" — que Lévi-Strauss escreveu em 1955 e atinge seu ponto alto nos quatro volumes das Mitológicas, aos quais já me referi e que foram publicados entre 1964 e 1971. Nos capítulos seguintes vamos conhecer o método estruturalista de Lévi-Strauss acompanhando detidamente o artigo de 1955. Antes, porém, vamos ver como fica o nosso mito do fogo quando visto pela ótica de algumas das mais tradicionais escolas de análise mitológica. Vamos, de passagem, conhecer um pouco destes tipos de estudos. Não é necessário examinarmos todas as escolas exaustivamente, até porque não queremos ficar exaustos. Estamos viajando e não é necessário, para nós, conhecer em detalhe todos os monumentos do percurso só para dizer que fomos lá. O clima de nossa viagem é outro e, depois de encontrarmos o mito, vamos apenas olhá-lo tal como ficaria refletida sua imagem no espelho destas várias interpretações. TENTANDO MONTAR O QUEBRA-CABEÇAS Acho que posso marcar a visão naturalista do mito como ponto de partida. Quanto mais não seja, pelo sucesso desta teoria ao nível do senso comum. É a teoria mais freqüente nos livros didáticos, por exemplo. A figura clássica do homem "primitivo" adorando os astros e corpos celestes e transformando- os em mitos como forma de compreendê-los e controlá-los. Esta teoria, pela sua simplicidade, transforma os mitos em uma espécie de tradução narrativa das mais variadas peripécies das forças da natureza. Numa exposição sucinta, a teoria naturalista parte da idéia de que nos momentos primitivos, na "aurora" da humanidade, os fenômenos naturais marcavam fortemente os interesses deste homem "primitivo" dada a sua fragilidade frente ao espetáculo, ao quadro, destas forças em ação. Este interesse tinha um cunho poético, teórico e contemplativo. As regularidades, as variedades, as alternâncias dos quadros propiciados pelos fenômenos da natureza eram a fonte para os exercícios simbólicos que se constituíam em mitos. No meio deste conjunto de corpos celestes e forças da natureza, o Sol assume uma posição de destaque como fonte de inspiração mitopoética. Pela sua própria situação central em relação à Terra, os satélites e planetas, era para ele que se voltavam os interesses principais da atividade mítica. Os mitos solares desempenhavam um papel primordial. Assim pensavam determinados autores naturalistas do fim do século XIX e assim pensava Max Müller, que destacou-se pelos seus importantes estudos da mitologia ariana. Para ele, os arianos construíam seu universo mítico em torno do Sol. Pelo olhar do nascer e do pôr-do-sol. Pela constante e permanente recorrência dos dias e das noites como um drama de luzes e escuridão. Pela alternância aparecem oposições como a da "palavra" e do "ato", e da "variedade" e da "permanência", a da "estória" e da "prática". Todas estas diferenças possuem em comum dois aspectos. Em primeiro lugar, são bastante óbvias. Em segundo, apontam a prioridade do ritual sobre o mito. Esta hierarquia da importância de cada um como fenômeno social desemboca num beco sem saída, pois não traz maiores rendimentos procurar tomar dois fenômenos em conjunto para anular, em seguida, um dos dois. Em todo caso, valeu pensar o vínculo entre eles e é importante frisar que a Escola do Mito e do Ritual, com não muitas variações, assumia três hipóteses básicas. A primeira delas era que o mito nascia do ritual numa proporção bem maior que o inverso. A segunda é que o mito era a dimensão falada do ritual, e este caracterizar-se-ia por ser muito mais constante. Finalmente, era nesta relação com o rito que residia a origem do mito. Evidentemente, acabariam achando um ritual que explicasse a origem e o sentido do nosso mito do fogo. Na verdade, nosso mito terminaria por ser não mais que a versão falada de seu ritual correspondente. Antes de tocar adiante nesta viagem, acho que devemos parar, olhar e dar uma situada geral. É muita coisa e forte o risco de se perder no labirinto. Ou perder muitas peças do quebra- cabeças e não mais poder montar imagem alguma. Já falamos de três visões do mito: "naturalista", "animista" e "mito e ritual". É inevitável que se tenha a sensação de que elas são insuficientes para entender o mito. Elas o são, mesmo, apesar de todo o brilho dos seus autores. Algumas me parecem insuficientes pelo excesso de arbitra- riedade. Outras por levarem a becos sem saída ou a falsas questões. De qualquer maneira, elas são um esforço de compreensão de um imenso desafio intelectual a que o mito conduz. Outra coisa difícil de evitar é a sensação de que estas visões se sucederam no tempo. Das mais antigas às mais recentes. A rigor, não é bem assim. Elas eram contemporâneas. Todas mais ou menos da virada do século XIX para o século XX. Eram alternativas de se pensar o mito naquele momento. O naturalismo, por exemplo, teve dois piques importantes. O primeiro, com Max Müller, na metade do século XIX. O segundo, com a "Sociedade para o Estudo Comparativo do Mito", em torno de 1906, ano da sua fundação. Tylor, por outro lado, desenvolve as idéias da teoria animista num importante l ivro , Culturas Primit ivas, d e 1871. Ali o animismo se coloca como alternativa às idéias de Max Müller. Este "primeiro" naturalismo estava marcado sensivelmente pela idéia de que a mitologia derivava de um "engano de linguagem". Entendia ele que o fato de um nome numa língua poder indicar diversos objetos e, inversamente, um objeto poder ser designado por uma pluralidade de nomes, permitia a operação de transformação de um deus separado em vários, ou vários compostos em um. Desta operação derivava a mitologia e inferia dela que o Sol podia aparecer nos mitos de muitas maneiras. O "segundo" naturalismo, ode 1906, já buscava equacionar a idéia da difusão histórica na teoria, e passava do Sol à Lua na preferência. Neste bate-bola mitológico, a Escola Mito e Ritual também tem seus primeiros indícios ainda no século XIX, com os trabalhos sobre a religião semita de Robertson Smith publicados em 1894. É com o estado das coisas neste pé, que vai aparecer uma nova contribuição extremamente significativa para a Antropologia Social como um todo e para a interpretação do mito em particular. No capítulo anterior eu havia falado de dois fatos que vieram a marcar profundamente o estudo da mitologia. Um deles era o estruturalismo de Lévi-Strauss, que veremos no próximo capítulo. Outro era o aparecimento, dentro da Antropologia Social, de uma nova prática metodológica, o "trabalho de campo". Com ele uma possibilidade até então não pensada de estudar o mito vivo e atuante na prática social. O "trabalho de campo" tem, na Antropologia, uma espécie de marco clássico ligado a um pesquisador e a uma sociedade pesquisada. pesquisador é Malinowski. Os pesquisados são os habitantes das ilhas Trobriand. Malinowski vai viver nessas ilhas, em períodos diversos, um total de quase três anos (31 meses, exatamente), entre 1914 e 1918. Ali conhece o cotidiano dos trobriandeses, suas festas, sua religião, sua estrutura social e, o principal para nós, seus mitos. Pelo "trabalho de campo" e, a partir dele, muda-se essencialmente a perspectiva de estudo da vida social. Numa palavra, o antropólogo "está" nela irremediavelmente. Isto propicia uma visão deslocada dos preconceitos que carrega e imersa na existência da "outra" sociedade. Como já disse no capítulo anterior, a questão do "trabalho de campo", ela só, daria um outro livro. De fato, existe muita literatura sobre o assunto. O que é profundamente marcante para nós neste livro é que, com a sua prática daí em diante e continuadamente, ele vai passar a ser algo que dará ao mito dimensões até então insuspeitadas. "trabalho de campo" nos dá o mito na sua concretude social. Vivo como força cultural, vivido como prática entre os que nele acreditam. Pleno de significações, usos, comentários, possibi- lidades, pensamentos e práticas a ele atreladas no seu destino de ser entre os homens. O mito e a existência numa relação dinâmica que se inaugura aí como perspectiva analítica. O mito e o contexto social do qual emerge numa relação carregada de mútua interpretação. A partir daí, para a Antro- pologia Social, será cada vez mais difícil falar do mito sem consagrar a importância do conhecimento "etnográfico". Ou seja, do conhecimento levantado nos "trabalhos de campo" feitos com a sociedade de onde se retirou um determinado mito. O "trabalho de campo" ou a "etnografia" de uma sociedade definitivamente colou, para a Antropologia, com a possibilidade de interpretação do mito. Passa a ser um de seus elementos, uma de suas "chaves" interpretativas. Mas, naqueles anos 20, quando publica muitos de seus trabalhos, Malinowski adotou uma perspectiva um tanto "funcional" demais em relação ao mito. Acabou, talvez, mais real que o próprio rei e reduziu a mitologia a um certo tipo de "dieta" existencial. Em outras palavras, assumiu o mito como guia do cotidiano radicalmente pronto a ser usado como "bíblia" para o funcio- namento social. Em que pese esta visão do "mito funcional", que será mais matizada, refinada, transformada, por outros antropólogos nos anos posteriores, Malinowski definitivamente nos deixou uma herança valiosa para desvendar o enigma do mito. Naquele momento ele mostrou que o mito servia, "funcionava", socialmente. Ora funcionava como explicação que saciava a ânsia de conhecimento, ora funcionava como satisfação de profundos desejos religiosos. Ora era a função de salvaguarda da moralidade, ora a função de possuir regras práticas para guiar o homem. De fato, a dose foi forte, pois o mito não é tão funcional assim. Nem o mito nem nada, a bem da verdade, é tão funcional assim. Mas também, a bem da verdade, malgrado a inflação funcionalista, o seu excesso, não mais se pode, na Antropologia, interpretar mitos desprezando os contextos existenciais, as "etnografias", das sociedades de onde eles provêm. Mas, a questão do mito ainda será enriquecida nesse período. Completando o quadro de inter- pretações, é importante conhecer alguns aspectos centrais da linha psicanalítica de estudos de mito. Com ela uma transformação na ênfase do jogo interpretativo. Com ela a questão se desloca, assume novos contornos, modifica suas fronteiras. A interpretação psicanalítica da mitologia coloca outros fios condutores, aponta caminhos até então não trilhados. Numa palavra, o mito se interioriza. Quero dizer com isto que o mito ganha um espaço dentro do ser humano. Ele passa a ser reflexo de múltiplos movimentos de interiores. Próximo do sonho, da fantasia, do devaneio. O mito é o produto do inconsciente. Neste lugar se origina, neste lugar se processa. Nele, também, se realiza. Ainda mais, é do inconsciente uma forma de expressão. A narrativa das desventuras do príncipe Édipo tomou a forma de um excepcional texto de teatro pela mão de Sófocles, um ultraclássico autor da Grécia Antiga. Sófocles escreveu muito teatro. Entre suas várias peças, duas são sobre Édipo. Édipo Rei e Édipo em Colona. Ainda escreveu uma sobre Antígona, a primogênita, filha mais velha de Édipo. Outros autores, na Grécia Antiga e fora dela, escreveram também textos teatrais sobre Édipo. Pintores o pintaram, escultores o esculpiram. Romancistas, poetas, historiadores, literatos, críticos, cientistas, etc, etc. escreveram, falaram e pensaram Édipo. A popularidade e o desafio intelectual e emocional da tragédia deste príncipe é de extrema significação. Sua estória é, talvez, um dos mais estranhos retratos da alma humana. Édipo e seu destino às vezes faz lembrar uma multiplicidade de espelhos onde se refletem universos existenciais radicalmente próximos. Nele, são projetados desejos, imagens, sentidos de largo alcance. Édipo espalha qualquer coisa de muito fundamental. Édipo é um mito exemplar por onde quer que se olhe. Exemplar pela sua força, exemplar pelas suas mensagens. Exemplar pelo que coloca em jogo e pelos diferentes jogos propiciados pelas suas interpretações. Neste capítulo, vou mostrar exatamente essas possibilidades interpretativas que o mito de Édipo abre. O intuito deste tipo de exercício é duplo. Em primeiro lugar, tomaremos contato com a possibilidade de infinitas interpretações que qualquer mito desafia. No limite, o que veremos é que o mito se deixa eternamente interpretar, e esta interpretação torna-se, ela mesma, um novo mito. Em outras palavras, as interpretações não esgotam o mito. Antes, de outra maneira, a ele se agregam como novas formas de o mito expor suas mensagens. Numa cápsula, poderia ser dito: novas interpretações, outros mitos. Isto é, talvez, aquilo que de mais sedutor se encontra no mito. O segundo, e nem por isso menos importante intuito deste capítulo, é introduzir o método de análise de Lévi-Strauss. 0 chamado estruturalismo foi exposto como método interpretativo pelo próprio Lévi-Strauss justamente em cima do mito de Édipo. Vamos acompanhar esta exposição em seus pontos básicos. Estes pontos são os que irão fundamentar o método estrutural que será, daí em diante, empregado por diversos estudiosos de mitologia. Ainda existe um outro objetivo a ser cumprido com estas interpretações do Édipo. Vamos poder ver como um mito, ao ser interpretado, vai apresentar sua face como refletida no espelho de cada interpretação. Quero dizer com isso que Édipo será, em larga medida, aquilo que a interpretação quiser que ele seja. Tantas interpretações, tantos reflexos. Uma interpretação, um mito, uma imagem no espelho. Vou aqui trabalhar com três interpretações que me parecem inteligentes, clássicas e levando a discussões surpreendentes. A primeira será a de Michel Foucault, a segunda de Freud, a terceira de Lévi-Strauss. Esta ordem não é nem cronológica nem de importância. Na verdade, cronologicamente, Freud, Lévi-Strauss e Foucault. A ordem de importância acho que ninguém se atreveria a estabelecê-la. Eu não me atrevo nem acho que seja muito relevante. Esta ordem que escolhi me parece apenas mais fácil, mais operacional e, como forma de apresentação, melhor para o leitor no entendimento do que vai ser discutido. Mas vamos, antes, conhecer um pouco estes intérpretes. Michel Foucault é um nome de peso no estudo daquelas questões que povoam o campo do que chamamos ciências humanas. Seu nome atravessa vários domínios e seus trabalhos interessam a todos aqueles que pensam sobre Antropologia, Filosofia, Psicanálise, História. Muito provavelmente, neste momento, ele está sendo apresentado e estudado por alunos de graduação em quaisquer dessas disciplinas. Foucault esteve diversas vezes no Brasil. Numa delas, em 1973, falou na PUC do Rio de Janeiro sobre as formas pelas quais as sociedades ao longo da história definiam aquilo que seria chamado de "verdade". Estas conferências resultaram numa pequena publicação intitulada A Verdade e as Formas Jurídicas. Édipo foi por ele utilizado na discussão em torno de uma forma específica da verdade. Édipo aparece, então, equacionado à questão da "verdade", como veremos. Sigmund Freud dispensa apresentações ... ele explica. Édipo aparece, para o criador da Psica- nálise, como um modelo do drama existencial humano. Édipo é equacionado à questão da ambivalência dos sentimentos, da difícil vivência de amores e ódios inconscientes no interior da tríade familiar. Claude Lévi-Strauss é, muito provavelmente, o grande nome na história da Antropologia Social. Sua obra, no entanto, foi mais longe, bem além do específico da Antropologia. Ela suscitou questões que atravessam muitos campos de conhecimento. O estruturalismo de Lévi-Strauss é extenso, complexo, polêmico e . . . magistral. Suas idéias têm rebatimentos em lingüística, teoria da literatura, teoria da Comunicação, Psicanálise e por aí vai. Lévi-Strauss ainda vive e também esteve no Brasil. Nos anos trinta foi professor da USP. Com os índios brasileiros aprendeu muito do que sabe. Sobre nós, índios e outros da terra, escreveu Tristes Trópicos, um belo livro onde narra suas vivências e descobertas aqui. Édipo, como já disse, aparece em sua obra como o mito que ilustra as bases do método estruturalista. De sua interpretação, Lévi-Strauss extrai a demonstração da dúvida de uma sociedade quanto à natureza de sua própria origem. Édipo é o mito que representa uma espécie de paradoxo sobre se nascemos de um único ou de dois. É claro que, por ora, a afirmação acima parece indecifrável, mas daqui há pouco ficará completamente clara, espero. Sigmund Freud, Claude Lévi-Strauss e Michel Foucault são o que se pode, sem nenhuma dúvida, chamar de "pesos pesados" do saber ocidental. São clássicos. que produziram está para além, muito além, de consumismos rápidos e modismos intelectuais. trabalho deles ficou, no mínimo, como marca indelével de um profundo respeito pela existência humana. Entre outras coisas, todos têm em comum o fato de que, em algum momento de suas reflexões e com motivações até talvez diversas, eles pensaram Édipo. E viram na tragédia do príncipe, na sua desdita, três faces distintas. Édipo viajou nestas interpretações roteiros diversos. Foi desde o mito da "verdade" para Foucault até o mito da "origem" para Lévi-Strauss, passando por ser ainda (ironias à parte) uma espécie de drástica versão do mito da "mulher amada" para Freud. Mas quem foi, afinal, Édipo? Qual o destino que o determinou assim tão punjente? Um desventurado príncipe cuja realeza maior foi o sofrimento. Por quê ? Qual a sua estória ? Muitas são as versões do mito de Édipo. Sua estória pode ser contada com mais ou menos detalhes, maior ou menor ênfase num ou noutro episódio, mais ou menos romanceada, simplificada ou sofisticada. De qualquer forma, sempre será o mito de Édipo reconhecido enquanto tal, à revelia das características de cada uma de suas versões concretas. Isto é uma marca, uma faceta, dos mitos. Continuam sendo mitos independente de suas versões. Estas são entre si equivalentes e de igual significado. Não existe versão privilegiada, ou melhor, se existir não altera a "miticidade", digamos assim, do mito. Não altera o seu sentido, lugar, espaço, característica ou forma de mito. Ê o próprio Lévi-Strauss, por exemplo, quem diz que "o valor do mito como mito persiste a despeito da pior tradução". Para ele, a conhecida fórmula traduttore, traditore (tradutor, traidor) tende a ter quase validade zero no caso do mito. O mito e a poesia, vistos deste ângulo, são dois tipos de discurso frontalmente opostos. Na poesia, o difícil é a tradução não trair. Assumindo esta posição de Lévi-Strauss quanto ao estatuto das versões do mito de Édipo, vou seu destino marcado. Ele era aquele assinalado pelo oráculo como causador da peste. O matador de seu próprio pai. O marido de sua mãe. Jocasta mata-se imediatamente. Édipo se pune arrancando os próprios olhos, pois não se julga mais merecedor de contemplar a luz do Sol. É expulso do reino por seus filhos, que assumem o comando de Tebas. Apenas Antígona não o abandona e, no exílio, acompanha seu desgraçado pai. Os dois juntos acabam por se deter perto de uma pequena localidade, Colona, nas vizinhanças de Atenas. Ali entram num bosque consagrado aos Eumênidas cujo acesso era proibido a todo e qualquer profano. Alguns habitantes da área, horrorizados pelo sacrilégio, querem matá-lo. Antígona implora por seu pai e consegue que ambos sejam levados à presença de Teseu. Este os recebe com hospitalidade. Dá a Édipo seu poder como apoio e seus estados como refúgio. Teseu o protege. Édipo lembra que um oráculo de Apoio predisse sua morte em Colona e que seu túmulo seria o penhor da vitória dos atenienses sobre todos os povos seus inimigos. Édipo, tempos depois, ao ouvir um trovão crê que é hora de sua morte. Dirige-se com Teseu à beira de um penhasco, troca sua roupa de guerra por vestes especiais, recomenda suas filhas ao seu protetor e espera a morte. Em seguida. como o solitário testemunho de Teseu, a terra treme. Se entreabre suavemente. Sem violência e sem dor Édipo é recebido, agora finalmente em paz, para a morte." Sim. Aqui está a triste estória de Édipo. príncipe da dor. A vítima maior de tramas que ele não urdiu. Preso nas teias cruéis que para ele um desconhecido poder teceu. Édipo, espelho onde poetas viram a face do destino, onde Freud viu a face cotidiana da vida familiar, Lévi-Strauss, a face da origem, Foucault, a da verdade. Édipo de perto seguindo as palavras do oráculo, testemunho perene da profecia realizada. E o oráculo disse: "Dele nasceria uma raça odiosa." Também esta vai se cumprir, para além de Édipo, em seus filhos. Etéocles e Polinice entram em guerra pelo poder em Tebas. Haviam combinado governar cada um por determinado período, Etéocles, mais velho, começa. Nega-se a passar o poder a Polinice no seu devido tempo. Polinice, apoiado pelos exércitos de seu sogro, entra em luta contra a Tebas que queria sua. A morte campeia nos dois exércitos. Para impedir a matança contínua, os dois irmãos decidem disputar uma luta direta, corpo a corpo. Morrem ambos nesse enfrentamento. Creon, o já velho irmão de Jocasta, assume outra vez o poder. Proíbe que se enterre o corpo de Polinice, por achar que este atacou Tebas. Antígona, violando a interdição, faz as exéquias de seu irmão. É presa, condenada a ser enterrada viva. No seu antro de morte a corajosa princesa não espera passivamente o seu fim; a ele se antecipa, estrangulando-se. Assim, a profecia se cumpre integralmente. Se quisermos visualizar o percurso traçado pelo caminho de Édipo, fugindo do destino e reencontrando-o para dolorosamente cumpri-lo, podemos perceber que Édipo acaba por dar uma volta completa num círculo. Sua vida pode ser expressa num esquema circular que demonstre o paradoxo de sua existência: quanto maior a tentativa de fuga, mais próximo está o encontro. Acho que um desenho do caminho de Édipo pode demonstrar claramente este paradoxo da fuga e do encontro. Vamos visualizar todo o percurso de Édipo, assinalando os principais "lugares" onde ele esteve e os episódios ali ocorridos. Basta seguir o sentido das setas, na figura adiante, e teremos a indicação precisa da seqüência temporal dos principais episódios vividos por Édipo. Por este esquema simples podemos perceber o paradoxo vivido por Édipo. Suas tentativas de fuga ao destino efetivavam exatamente aqueles movimentos que o levariam ao pleno encontro deste mesmo destino. Podemos ver também que este destino só permite uma verdadeira fuga quando já se cumpriu integralmente. Ainda assim esta fuga só acontece, só se faz possível, pela morte. A imagem de um círculo é perfeita para essa visualização, pois o círculo fecha-se sobre si mesmo. É só com a volta a Tebas, para realizar completamente o destino, que se abre um espaço de saída do círculo rumo a Atenas, rumo à morte. O Caminho de Édipo É interessante notar ainda que existe um sentido comum a muitas das atitudes dos personagens presentes no mito. Quase todos eles fazem alguma coisa, querendo, de fato, fazer outra, é comum vermos aqui que as "intenções" das ações são determinadas para um fim qualquer e concorrem efetivamente para algo muito diferente. Assim, todos procuram evitar algo e, nessa intenção, fazem exatamente uma aproximação com aquilo que querem evitar. Se não vejamos: Laio e Jocasta, sabendo da profecia, não a evitam diretamente matando o filho, entregam-no a um dos servos para que o faça. O servo, obrigado a matar a criança, não o faz, entregando-a à própria sorte amarrada numa árvore. O pastor não a deixa à própria sorte e a entrega aos reis de Corinto. Estes, querendo proteger Édipo, dizem que são seus verdadeiros pais, quando, de fato, não o são. O próprio Édipo, seguindo os conselhos do oráculo, quer fugir de onde pensa ser seu país e daqueles que pensa serem seus pais, quando, na verdade, não está fugindo nem de um nem de outro, mas procurando-os. Ainda, uma vez mais, Édipo, querendo proteger Tebas da peste, manda descobrir o assassino de Laio e acaba por descobrir-se a si próprio como essência e causa da peste de seu povo. Essa estranha cadeia fatal é, no fundo, a marca da tragédia para a antiga Grécia. Homens, como deuses da dor, lutando inutilmente contra desígnios de deuses que, como homens sem dor, forjam destinos onde ambos — homens e deuses — se revezam implacavelmente. Em outras palavras, na tragédia de Édipo, o antagonismo entre a ordem divina e a ordem humana está principalmente expresso na idéia de que os homens são os sujeitos de suas vontades, mas o que estas vontades realizam concretamente são as vontades dos deuses e não as dos homens. No limite, vemos que os homens fazem o que querem, contanto que este querer seja o dos deuses. O trágico desta existência reside exatamente nessa experiência de um beco sem saída. Quando penso que estou fazendo a minha vontade, estou, de fato, cumprindo a vontade alheia. A vontade dos deuses. Um jogo de vontades com as cartas marcadas, sem apelação ou escapatória. Mas, como afinal — nesta explosão de possibilidades, paradoxos, confusões, riquezas, destinos e articulações que o mito de Édipo nos propõe — é possível tentar entendê-lo e interpretá-lo? Esta é a pergunta crucial que você, leitor, já deve estar fazendo. Como chegar lá no âmago do mito de Édipo? Por onde começar? Que elementos privilegiar? De que ângulo olhar, enfim, esta intrincada aventura? O mito da verdade Foucault interpreta Édipo no contexto de uma discussão histórica ampla sobre as formas jurídicas para se fazer surgir a verdade. Claro, por trás dessa discussão encontra-se a idéia de que a verdade não é algo que possua uma essência e que levante-se e diga: "Eu sou a verdade." Muito diferentemente, ela adquire formas diversas, maneiras várias de ser pesquisada, possui múltiplas existências e, princi- Novamente o jogo das metades. Jocasta tenta convencer Édipo de sua inocência e lembra que Laio foi morto por alguém no cruzamento de três caminhos. Mas isto só agrava as lembranças de Édipo e ele recorda que, antes de chegar a Tebas, havia justamente matado alguém no entron- camento de três caminhos. Assim, mais duas metades se completam. Uma oferecida por Jocasta, outra por Édipo. Mas, ainda falta alguma coisa. Pela profecia, Édipo não seria o assassino de Laio mas sim o assassino de seu pai e o marido de sua mãe. Isso ainda dá a Édipo alguma esperança. Como será, finalmente, estabelecida a terrível e completa verdade? Ela vai acontecer no final da peça, onde mais duas metades da verdade vão-se encaixar. Um escravo vem de Corinto com a notícia de que o rei Políbio havia morrido. Édipo até se alegra: "pelo menos não o matei", diz ele. Ao que o escravo responde: "Políbio não era seu pai". Diante deste novo elemento, resolvem interrogar um último escravo que havia há muito fugido de todo o drama. Quando o encontram, ele diz que, de fato, recebeu e deixou no monte Cíteron uma criança que vinha do palácio e que lhe haviam dito ser filho de Jocasta e Laio. Agora o ciclo das metades parece definitivamente completado. O ciclo se fecha. E procede assim pelo ajustamento das metades da verdade. No plano dos deuses, ao nível do futuro. No plano dos humanos — sejam reis ou sejam escravos — ao nível do passado e do presente. Para Foucault, esta forma de estabelecimento da verdade traduz um instrumento de poder. Quando alguém possui uma mensagem ou um objeto e, para reconhecer como autêntico, quebra em dois o objeto ou reparte a mensagem de forma tal que só pelo encaixe de seus fragmentos se complete seu poder ou sua verdade. poder mantém sua unidade através desse jogo de fragmentos de um mesmo conjunto que só quando tiver a configuração total reunida revelará suas ordens, sua verdade ou sua força. Isto equivale a uma técnica, a um só tempo, jurídica, política e religiosa que os gregos chamavam "o símbolo". É esta técnica de poder que está expressa nas metades que se encaixam e revelam a verdade da estória de Édipo. O ponto central aqui, para Foucault, é que a estória de Édipo é justamente a estória da perda do poder. As metades da verdade se encaixam para destituir Édipo. A primeira cena da peça, lembra ele, mostra o povo chamando Édipo de "soberano", "poderoso", "rei". Na última, inversamente, o povo saúda Édipo dizendo "você era o rei", "estava no alto do poder". Da mesma maneira, quando Édipo é retirado do palácio, Creonte, irmão de Jocasta, lhe diz para não procurar nunca mais ser o senhor. Assim, a configuração completa da verdade pelo ajustamento dos seus fragmentos, das suas metades, termina por expulsar Édipo do poder. A cada encaixe, a verdadeira estória emerge e se reforça. Com a totalidade está o poder e a totalidade o expulsa do poder. Na visão de Foucault, a estória de Édipo exprime uma complexa e interessante correlação entre "saber", "verdade" e "poder". Por não possuir e controlar os fragmentos de "verdade" e "saber", Édipo termina por perder o "poder". A estória parece dizer que não se tendo o primeiro não se terá o segundo. Aqui está, pois, num resumo, o mito de Édipo atravessado por uma criativa interpretação que faz dele espelho de questões como "verdade" e "poder". A riqueza da interpretação foucaultiana reside, exatamente, em tomar a estória de Édipo como um modelo dos conceitos de "poder" e "verdade", bem como de suas relações, no contexto da sociedade grega naquele momento histórico. Mais do que uma análise dos termos do "poder" e da "verdade" tomados isoladamente, Foucault empreende uma instigante aventura interpretativa onde a trajetória de Édipo aponta para uma forma específica de relação entre estes termos. "Poder" de um lado, "verdade" e/ou "saber", de outro, andam quase sempre juntos. Ele nos mostra, através da interpretação, em que se constitui a proximidade destes termos naquele contexto em particular. De maneira geral, o que está em jogo, afinal, no Édipo é o pensamento grego ajuizando a relação "poder" e "verdade". Evidentemente, estas duas idéias são fundamentais ali como o seriam alhures. Daí, a importância desta interpretação de Foucault. O mito do amor e ódio Tomar fôlego, respirar fundo. Vamos nos preparar para Freud. Como me parece óbvio, esta é a mais famosa interpretação de Édipo. Com Freud, Édipo se torna conhecido e pensado em províncias diversas da existência humana. Já famoso como mito, texto teatral, pintura e escultura, passa a sê-lo também no diva dos analistas. Édipo começa aqui a freqüentar a nossa mente num sentido diverso. Ele se transforma, com Freud, num modelo vivenciado por nós dentro da família burguesa. Édipo é o filho que, num certo sentido, nós todos fomos. Em algum momento de nossa vida infantil vivemos Édipo como microscópica tragédia de ódios e amores entre pais, mães e crianças. Mãos à obra, portanto, já que vou resumir a mais famosa peça do quebra-cabeças. Só espero que os psicanalistas em geral e Freud em particular me perdoem a ousadia. De qualquer forma, estamos no continente do mito, em plena viagem, e é até bom se perder um pouco nestas terras para que fique alguma coisa que dê vontade de retornar e rever. Em primeiro lugar, Édipo era alguém que fazia alguma coisa pensando estar fazendo outra. Era governado por uma força (no mito, o destino) que o empurrava sistematicamente num sentido não desejado e fora do seu controle. Édipo era aquele que não sabia. Não sabia onde estava indo. Não sabia que matara seu pai. Não sabia que casara com sua mãe. Fugia de tudo isto e, nessa fuga mesma, encontrava tudo isto. Édipo não era governado pela sua própria consciência do que era e do que queria. Segundo Freud, nós também não. A mente humana pode ser dividida em dois grandes sistemas: o sistema consciente e o sistema inconsciente. Para Freud, o inconsciente está para o consciente assim como a montanha que permanece submersa está para a ponta do iceberg acima da tona d'água. A proporção correta de tamanho que este exemplo implica dimensiona o imenso espaço disponível para o inconsciente. Aquilo que sabemos sobre nós, a consciência, é bem menor do que o não sabido, o inconsciente. Como Freud o faz, é bem razoável pensar que essa porção significativamente maior do psiquismo é que governa, de fato, a nossa trajetória existencial concreta. Somos governados pelo não sabido, pelo inconsciente. Ali travam-se as batalhas definitivas de nossas emoções, imagens, sensações, prazeres, etc. Ali, a arena onde se define nossa existência. E, a ela, nosso acesso é precário, nosso controle é nenhum. Nesse mar do inconsciente estão as correntes que empurram nossa vida muitas vezes em direções absolutamente imprevistas. Assim como empurraram Édipo de encontro a um drama de amor e ódio no relacionamento com seus pais. Édipo não sabia de sua fatalidade e seu caminho; nós estamos, como ele, nessas mesmas condições. Governados pelo inconsciente, navegamos em rotas decididas fora do que sabemos sobre nós. Mas foi exatamente tentando entender essas rotas, ao menos suas principais direções, que Freud estabeleceu novo paralelo entre Édipo e o modelo de ser humano que a psicanálise começava a investigar. Édipo se parece conosco por ser governado por forças que não conhece (a rigor, tal como nós, delas só possui algumas pistas) e por viver um jogo de amor e ódio no interior do triângulo familiar. A este intrincado jogo Freud chama de "complexo de Édipo". "Complexo de Édipo" é um termo que aparece na obra de Freud só depois de 1910, em que pese toda uma série de evidências anteriores demonstrar que ele já pensava no assunto Édipo há muito tempo. Mas, afinal, em que consiste esse tão famoso complexo que nos faz assim próximos do príncipe grego? A resposta óbvia e rápida, batendo de primeira, seria que amamos nossa mãe e odiamos nosso pai. Mas, como a palavra diz, complexo é algo difícil, complicado, e, dessa forma, o amor não é bem amor, o ódio não é exatamente ódio, o pai não é o pai mesmo, nem a mãe é a mãe. Vamos então, aos poucos, dirimindo esta imensa confusão de sentimentos e parentes. Quando digo que o pai não é o pai e a mãe não é a mãe estou me referindo ao fato de que pai e mãe são, antes de tudo, "lugares simbólicos", funções desempenhadas, papéis exercidos, frente à criança. Se assim não fosse, estaríamos em pleno absurdo, constatando que a orfandade seria o perfeito neutralizador do "complexo de Édipo". Mas, não é o caso. Freud crê na universal presença do "complexo de Édipo". Este é vivido, na sua fase máxima, entre os três e cinco anos e reaparece, para ser superado com maior ou menor grau de êxito, na puberdade. Vamos ver como ele se dá no seu ápice na criança. Do ponto de vista de uma criança, ela e sua mãe (ou seja, quem ocupa esse lugar) formam uma totalidade. O bebê humano é absolutamente dependente de alguma fonte provedora que o impeça de morrer. Ele sozinho é radicalmente frágil, incompleto e despreparado para a existência. A mãe, como fonte provedora, o alimenta, aquece, protege. É, enfim, para a criança, o objeto de um forte investimento de desejo. É algo que ela julga ser parte de si mesmo, que ela julga possuir. Mãe e criança vivem, pelo nada significa isoladamente. São, no entanto, as unidades elementares da música. Tocadas soltas são puro som e não conseguem dizer nada. Não têm significado, e sem combiná-las não se cria música. Pode-se pensar delas praticamente o mesmo que se pensa dos fonemas. Ambos são apenas som, pura e exclusivamente, som. Neste nível, seja na linguagem seja na música, se exclui o significado. Agora, quando combinamos notas musicais, vai acontecer alguma coisa um pouco diferente da combinação dos fonemas. Vamos ter que pular um nível. Combinando fonemas obtemos palavras. Combinando notas obtemos frases. Na música não há palavras. As notas combinadas geram imediatamente melodias — como dizem os músicos, "frases melódicas" —, e não palavras, como acon- tece com a combinação de fonemas na linguagem. Aqui na música falta um nível. Passamos direto das notas, que equivalem aos fonemas, saltando por cima do nível das palavras, para encontrar de uma vez com o nível das frases musicais. Quando entra o mito no trio encontramos um outro balanceamento. No mito, o que falta é o nível dos fonemas e das notas. Este, o nível do som puro sem significado, não se encontra no mito. Ali só temos o nível das palavras e das frases. Em relação à linguagem, o mito pula o primeiro nível e só possui o segundo e o terceiro. Assim, tomando a linguagem como modelo, podemos compará-la com o mito e a música. Na linguagem, fonemas combinados geram palavras que combinadas geram frases. Na música, notas combinadas geram frases pulando as palavras. No mito, não temos nada equivalente aos fonemas ou às notas. Logo, as palavras é que são combinadas e geram frases. Podemos, num pequeno quadro, visualizá-los comparativamente usando os três níveis da linguagem como modelo. (Ver Quadro 1.) Creio que olhando o quadro acima fica bem clara a comparação de Lévi-Strauss. No mito falta o nível do fonema, do som puro sem significado, e na música falta o nível de significação das palavras, como indicam os dois sinais de subtração dentro do quadro. A comparação ainda pode ser aprofundada um pouco mais. Para Lévi-Strauss o mito e a música têm origem na linguagem. Só que a música acentua a dimensão da sonoridade e o mito acentua a dimensão do significado. As duas dimensões — som e significado — encontram-se profundamente presentes na linguagem. QUADRO 1 Vai ser a existência destes níveis de divisão interna da linguagem, da música e do mito o que serve de base para Lévi-Strauss dividir o mito em pequenas unidades que o constituem. Quando analisa mitos, o primeiro passo de Lévi-Strauss é dividi-los em pequenas unidades que ele denomina "mitemas". Estes mitemas vão ser muito importantes nas análises estruturalistas e aparecerão dividindo a estória de Édipo, como veremos. M a s , m ú s i c a e m i t o p o s s u e m m a i s possibilidades para Lévi-Strauss desenvolver comparações criativas. Ele diz que não é possível entender um mito se nós formos lê-lo como se lê uma reportagem de jornal, este nosso livro aqui ou um romance, por exemplo. Um mito não pode ser lido linha por linha, da esquerda para a direita, começando no início da página e terminando no fim dela. Em resumo, ele não pode ser lido da mesma maneira que você fez para ler todo este trecho. Um mito, para ser entendido, requer um procedimento de leitura diverso daquele que normalmente adotamos com outras literaturas que passam sob os nossos olhos. Um mito deverá ser lido como uma partitura musical. Esta estranha afirmação deu muito o que falar. Vamos ver o que ela quer dizer. Um mito não nos mostra seu significado básico, fundamental, através da seqüência dos aconteci- mentos tal como são apresentados na estória linear que lemos normalmente. Para Lévi-Strauss, o significado do mito está vinculado a grupos de acontecimentos que às vezes encontram-se até afastados na estória do mito. Temos que ler o mito em dois níveis. Tanto no sentido normal de qualquer leitura quanto como um todo muitas vezes referenciado a outros mitos próximos daquele. Temos que perceber o mito como se percebe uma totalidade; só assim perceberemos seu significado. Um determinado grupo de acontecimentos num mito pode estar relacionado com outro grupo muitas páginas adiante. Ou, ao contrário, um grupo de acontecimentos do final da estória pode ser aproximado de um grupo de início. Por isso o mito parece com uma partitura musical. Vejamos uma partitura musical e como se deve proceder a sua leitura. As notas, pausas, cifras e outros sinais musicais encontram-se dispostos na pauta bem diante de nós. Como estes padrões visuais vão se transformar em música? Como vamos ler a partitura? De saída vemos que a partitura musical, tal como o mito, permite a leitura "comum", "normal", linha após linha, da esquerda para a direita. Num movimento temporal que tem uma seqüência de princípio, meio e fim. Esta dimensão de leitura pode ser chamada de diacrônica. Mas a partitura, para se transformar em boa música, requer uma leitura sincrônica. Esta, a sincrônica, é a outra dimensão de leitura que partituras musicais e mitos exigem para se dar a conhecer. A dimensão sincrônica de leitura vai nos dar o significado daquela música na pauta como um todo. Ela pode começar por um tema. Em seguida, apresentar variações, mudanças de tonalidades, inversões, retomadas do tema, repetições, solos, etc. etc. Os "movimentos" na música estarão fortemente relacionados uns com os outros. Só captaremos isso vendo a música como totalidade. Se olharmos a partitura escrita para o contrabaixo isoladamente será complicado entender aquela música. O mesmo para o violino, os instrumentos de sopro, a percussão. Eles só terão o sentido completo de uma música determinada quando soarem como um conjunto de notas. O conjunto que esteja soando num dado momento estará, por sua vez, relacionado a movimentos sonoros de todas as partes da música. Esta dimensão sincrônica de que estou falando se constitui no princípio musical denominado harmonia. Vamos usar uma ilustração dessas dimensões diacrônica e sincrônica do próprio Lévi-Strauss. Digamos que nós tenhamos que arrumar uma série de números, por exemplo: 1, 2, 4, 7, 8, 2, 3, 4, 6, 8, 1, 3, 5, 7,8,1, 2, 5, 7, 3, 4, 5, 6 e 8. Nossa arrumação teria que ser sempre feita dia cronicamente (do menor para o maior, linha após linha, da esquerda para a direita) e sincronicamente (agrupando todos os números iguais em colunas para que eles soassem como conjunto, num "arranjo" que respeitasse os movimentos). Nossa arrumação dos números num quadro ficaria assim: Olhamos este quadro como se olha uma partitura. Os números da esquerda para a direita, linha após linha, indicam a ordem diacrônica tal como lemos normalmente. Os números que se repetem nas colunas nos dão a dimensão sincrônica que possui um significado complementar à diacrônica. Na sincronia, temos todas as relações das colunas no sentido de suas repetições. Nela agrupam-se elementos semelhantes uns aos outros (todos os números 1, todos os números 2, etc), e para conhecê-la temos que olhar a totalidade do quadro. Assim um maestro olha a partitura da orquestra, um arranjador prepara uma música para ser tocada por um conjunto. Para Lévy-Strauss, música e mitos são compreendidos segundo a percepção desta dupla dimensão. Só mais uma idéia antes de vermos como fica o Édipo de Lévi-Strauss. Além das idéias de que o mito pode ser, como a linguagem e a música, dividido em unidades, e a idéia das duas dimensões sincrônica e diacrônica, Lévi-Strauss acrescenta mais uma. Para ele o mito será sempre referenciado a parentesco superestimadas", ou seja, parentes que se ajudam, se amam. Esta coluna indica o parentesco visto como próximo, visto positivamente. A coluna II, por seu turno, é marcada por mitemas que indicam "relações de parentesco subestimadas”, ou seja, parentes que se matam, se depreciam. É o parentesco visto negativamente. A constatação óbvia que fazemos em seguida é que a coluna I é o contrário da II. Elas são o parentesco visto de maneira oposta. A coluna III possui dois mitemas que falam de "monstros e sua destruição". A coluna IV, com seus três mitemas, fala de nomes cujo traço comum é que significam em grego "coxo", "torto" e "pé inchado". Logo, eles possuem o traço comum de lançarem uma "dificuldade em andar corretamente". Para Lévi-Strauss, estas duas colunas também são, tal como a I e a II, opostas entre si. Esta oposição não é nada óbvia e, até pelo contrário, muito sutil. Na coluna III o homem destrói monstros. Estes monstros são "ctônicos", o que quer dizer que são da terra. Monstros que representam a terra, são extensões dela. O homem, ao destruí-los, nega que ele próprio tenha vindo da terra, seja nascido da terra. Nega sua proximidade com os elementos da terra. Nega, numa palavra, a sua autoctonia, o seu pertencimento a terra. Nega, enfim, que tenha nascido da terra, que seja dela originado. A coluna IV, ao contrário, mostra homens que são meio incapazes de andar. Lévi-Strauss nos diz que em muitas mitologias do mundo os homens, quando brotam, emergem e nascem da terra, são representados como tendo dificuldades de andar. Logo, a coluna IV afirma que o homem pertence à terra. Por esta série de explicações, ele demonstra que as colunas III e IV também afirmam coisas opostas. Assim, a coluna I é o oposto da II e a III é o oposto da IV. Se a coluna I fala bem do parentesco, a coluna II fala mal dele, e se a coluna III nega que o homem nasça da terra, a IV afirma este nascimento. Temos, pois, duas oposições simétricas. Lévi- Strauss vai afirmar que isso é o mito traduzindo uma inquietação, uma dificuldade, uma impossibilidade da sociedade grega de adotar uma única teoria da origem do homem. Por um lado, existe uma crença de que o homem provém da terra, é autóctone, tem o vegetal como modelo, nasce da terra e a ela pertence. Por outro lado, uma evidente constatação de que cada um de nós vem da relação entre um homem e uma mulher. Assim, afirma-se a terra, nega-se a terra. Afirma-se o parentesco, nega-se o parentesco. "Nascemos de um único ou de dois?", "O mesmo nasce do mesmo ou de outro?". São perguntas, problemas, paradoxos e dúvidas, com os quais uma sociedade se debate e para os quais o mito é um instrumento de expressão. Esse é Lévi-Strauss sempre nos deixando com essas inquietantes indagações. Sempre essa sen- sação entre o fascínio e a perplexidade com a forma pela qual ele interpretou um mito e revelou um problema complexo. Assim se fecha a análise de Édipo como um mito de origem. Vai ser mantendo este estilo em sua obra que Lévi-Strauss nos levará longe nas viagens de interpretações dos mitos de muitas sociedades. Bem, aqui está, enfim, o nosso Édipo três vezes interpretado. Foucault, Freud, Lévi-Strauss; três autores para Édipo, três destinos para Édipo. É como diz a letra de um velho rock de Carl Perkins: "One for the money, two for the show, three to get ready ..." Édipo é o mito da "verdade", o mito do "amor e ódio", o mito da "origem". Creio que ele pode ser qualquer um dos três . . . ou todos. Mas, como de resto é próprio dos mitos, ele é alguma coisa mais. É sempre enigma, sempre desafio. Édipo é mito; produzido por nós e a nós lançando no eterno mundo da interpretação, na plena vontade de vazar o desconhecido. A SAÍDA?... ONDE FICA A SAÍDA? Fim de viagem, fim de linha. E a saída? . . . Onde fica a saída deste labirinto de idéias sobre o mito? Qual a imagem que se desenhou na montagem do quebra-cabeças? Para a pergunta "o que é mito?" as respostas são múltiplas, complexas, míticas. É melhor não ter resposta e deixar o mito fluir elegantemente no balé de suas infinitas interpretações. Acho que assim navegamos juntos neste livro num estranho mar. Ao sabor de correntes, no rumo da Lua, na rota dos mitos que nos olham, dão uma piscadela e convidam a continuar. E é possível continuar por muito tempo, em muitos tipos de mitos e através de muitas hipóteses e teorias. Poderíamos ver ainda muitos continentes mitológicos. O mundo moderno, capitalista, contemporâneo é um belo exemplo de sala de visitas do mito. Aqui, bem em frente aos nossos olhos, anúncios publicitários, filmes, notícias de jornais, super-heróis, música popular, fotografias, etiquetas, modas, televisão, programas de rádios, superstars, superstições, consumo, supermercados, esportes, best sellers nos contemplam, seduzem e abandonam. Todo este universo tão próximo e tão rotizinado em nossas vidas. Tão aí presente, inapelável e, por isso mesmo, um constante desafio à interpretação. Uma interpretação sem dúvida complexa que muitos analistas aceitaram enfrentar. Uma interpretação que seria, só ela, um outro livro. A chamada "mitologia contemporânea" teve em Umberto Eco e Roland Barthes dois dos seus grandes intérpretes. Umberto Eco analisou James Bond, arquitetura, estórias em quadrinhos, super- homem, televisão e alguns outros tipos de mensagens da indústria cultural. Roland Barthes, na mesma linha, analisou, especificamente num dos seus livros chamado Mitologias, coisas tão díspares quanto o strip-tease ou o rosto de Greta Garbo. No mesmo livro desenvolveu uma importante teorização do mito. Também, como Umberto Eco ou como nós e muitos outros, estava procurando a saída do labirinto dos mitos. E nisso curtindo o prazer de interpretá-los. O mito, como vimos, não possui sólidos alicerces de definições. Não possui verdade eterna e é como uma construção que não repousa no solo. O mito flutua. Seu registro é o do imaginário. Seu poder é a sensação, a emoção, a dádiva. Sua possibilidade intelectual é o prazer da interpretação. E interpretação é jogo e não certeza. Acabamos o livro e a nítida sensação de uma grande falta deve ficar em nós. É a falta que faz voltar. É a falta bem-feita do prazer de continuar, ir fundo, na reflexão sobre o mundo dos mitos. Eles são uma narrativa, como já disse desde o início. São uma narrativa através da qual uma sociedade se expressa, indica seus caminhos, discute consigo mesma. O mito consola a todos nós muitas vezes. Pode nos enganar também. Mas, o importante é que saibamos seus poderes, que saibamos com ele jogar. Seja o jogo de sentir e se emocionar, seja o jogo de interpretar e pensar o mito. Ele, certamente, pensa a todos nós. INDICAÇÕES PARA LEITURA Existe tanta literatura sobre o tema mito que as "indicações para leitura" acabam se tornando muito difíceis. Tantos são os caminhos, as linhas de estudo e as possibilidades, que a escolha implica uma drástica redução do material. Vou, portanto, indicar pouco e dentro daquilo que acho ser o mais seguro. Quem ler estes livros indicados vai poder tranqüilamente achar seu próprio caminho no labirinto dos mitos. Em primeiro lugar, existe um livro da Brasiliense, escrito por Marilena Chaui, que num dos capítulos faz uma boa análise do mito de Édipo. Trata-se do famoso Repressão Sexual: essa nossa (des)conhecida. Nele, a ênfase é sobre a visão psicanalítica do mito de Édipo com um desenvolvimento bastante completo das idéias de Freud. Vale muito dar uma conferida no livro todo e nesse capítulo em especial. Como para mim o grande nome no estudo dos mitos é o de Lévi-Strauss, vou indicar um pequeno livro dele sobre o assunto. Um livro fácil e simples, que dá o maior pé para entender. São, na verdade, conferências que foram pronunciadas por Lévi-Strauss e postas em forma de livro. Chama-se Mito e Significado e é da Livraria Martins Fontes. O artigo onde Lévi-Strauss fala de Édipo saiu na sua coletânea "Antropologia Estrutural" da Editora Tempo Brasileiro. Existe muita coisa de Lévi-Strauss sobre mito. Muita produção e, por vezes, complexidade também. Portanto esses dois acima já são um bom começo. As Idéias de Lévi-Strauss, de Edmund Leach, pode ser muito útil também. Saiu pela Cultrix. Do mesmo Leach, que foi o organizador, existe um ótimo livro, The Structural Study of Mith and Totemism, com vários artigos de vários autores da editora Tavistock Publications, de Londres. Em termos de Brasil existe o Ensaios de Antropologia Estrutural, do Roberto Da Matta, onde dois dos quatro artigos são sobre mito. É da Vozes. Ainda um outro com vários artigos muito bons e diversos autores é o Mito e Linguagem Social, editado pela Tempo Brasileiro. Quem quiser conhecer o uso das idéias sobre mito aplicadas ao que se chama "indústria cultural" pode dar uma olhada no meu livro Magia e Capitalismo: um estudo antropológico da publicidade, editado aqui pela Brasiliense.
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