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Guias e Dicas
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O Que é Homosseualidade, Notas de estudo de Geografia

o que é homossexualidade

Tipologia: Notas de estudo

2017

Compartilhado em 02/11/2017

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rildo-nobrega-7 🇧🇷

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Baixe O Que é Homosseualidade e outras Notas de estudo em PDF para Geografia, somente na Docsity! Peter Fry Edward MacRae O que é HOMOSSEXUALIDADE Abril Cultural Editora Brasiliense 1985 ÍNDICE - Assumindo uma posição , 7 - É proibido proibir? (Brasil1968-1982) ... 17 - Mulheres, Homens, Berdaches, Bichas E Sapatões 33 - Pecado, Crime, Doença e Sem-Vergonhice 60 - Nasce uma estrela ou o surgimento da "consciência homossexual" 80 - As lésbicas - uma pedra no sapato das feministas e das bichas 101 - Fechando 114 - Indicações para leitura 121 . ASSUMINDO UMA POSIÇÃO "O que é a homossexualidade?" Esta pergunta tem como pressuposto que a homossexualidade é alguma coisa. O problema é que a homossexualidade é uma infinita variação sobre um mesmo tema: o das relações sexuais e afetivas entre pessoas do mesmo sexo. Assim, ela é uma coisa na Grécia Antiga, outra coisa na Europa do fim do século XIX, outra coisa ainda entre os índios Guaiaqui do Paraguai. Com este mesmo raciocínio, a homossexualidade pode ser uma coisa para um camponês do Mato Grosso, outra coisa para um candidato a governador do Estado de São Paulo em 1982 e, de fato, tantas coisas quanto os diversos segmentos sociais da sociedade brasileira contemporânea. Um homem de Belém, por exemplo, pode tranqüilamente manter relações sexuais com uma pessoa que considere uma bicha. Para ele, não tem nada de diferente nesta atividade. Nem por isso ele é menos homem. Até poderia se considerar mais macho que nunca. Da mesma forma, um jovem rapaz na cidade de São Paulo poderia manter uma relação sexual com um senhor mais velho em troca de alguns cruzeiros. Como o nosso amigo paraense não é menos homem por isso e jamais se pensaria como homossexual. Na mesma cidade de São Paulo, um homem universitário, militante do movimento homossexual, pode discordar com o jovem prostituto e afirmar que ele é um homossexual só que não sabe, não tem consciência. Este mesmo rapaz poderia chegar a dizer que todos os homens têm "uma porção mulher" e que todo mundo tem um lado homossexual mesmo se latente e escondido. Esta mesma opinião poderia ser emitida por um psicanalista "progressista". Outro psicoterapeuta, mais "conservador", poderia dizer que quem pratica o homossexualismo é um doente mental e que é capaz de ser curado. Se este terapeuta fosse de tendências behaviouristas, poderia receitar terapia de aversão. O "paciente" seria sujeito à náusea quimicamente induzida, ao mesmo tempo em que vê numa tela a fotografia de um homem nu. Ao se recuperar da náusea, e ao se sentir mais tranqüilo e contente, aparecia uma fotografia de uma bela mulher. Nesta mesma cidade de São Paulo, poderíamos encontrar um espírita que acredita que os homossexuais masculinos são o resultado da encarnação de um espírito feminino num corpo masculino, enquanto um candomblezeiro poderia pensar que era homossexual por ser filho da orixá feminina lansã. Um delegado de polícia poderia pensar que os homossexuais são uma ameaça à ordem pública e instaurar uma operação limpeza no centro da cidade, atemorizando os homossexuais na rua com prisões e violências ilegais. Outro advogado poderia gastar tempo e energia de graça para libertar estas pessoas, partindo da firme convicção de que homossexuais não são mais perigosos que quaisquer outras pessoas. pensada são mais ou menos homogêneos, isto é, são compartilhados por todos os membros destas sociedades. Mas, nas sociedades industrializadas que são altamente diferenciadas socialmente, como é o caso da sociedade brasileira, existem vários "papéis homossexuais'; variando de região para região e de segmento social para segmento social. Além disso, estes “papéis homossexuais” se transformam ao longo do tempo paralelamente a outras transformações sociais. Mas, se é verdade que há tantas maneiras de representar e praticar a homossexualidade quanto há sociedades, épocas históricas e grupos distintos nestas mesmas sociedades, uma verdadeira resposta à nossa pergunta implicaria uma série de tomos, começando pela Grécia Antiga, passando por todas as sociedades indígenas, por todas as sociedades industrializadas e pela sociedade brasileira em toda sua complexidade, desde o descobrimento até agora. Pressupondo que os leitores deste livro estejam basicamente interessados em pensar sobre a homossexualidade no que tange às suas próprias vidas cotidianas, resolvemos tomar a situação brasileira contemporânea como ponto de partida para reflexão. Informações sobre as maneiras de encarar e praticar a homossexualidade de outras épocas e outras culturas serão incluídas na medida em que impingem diretamente sobre a cultura brasileira ou na medida em que ajudam, de alguma maneira, a entender certos aspectos desta sociedade. Por exemplo, achamos que os índios Guaiaqui do Paraguai e algumas tribos da América do Norte tiveram uma maneira de significar relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, cujos princípios básicos, isto é, a "masculinidade" e a "feminilidade", são muito parecidos com aspectos da situação brasileira contemporânea, que podemos encontrar, principalmente, nas prisões, nos colégios, nas zonas rurais e nos subúrbios das grandes cidades. Como os médicos e psicoterapeutas brasileiros se formaram e se formam de acordo com paradigmas muitas vezes produzidos nos centrosuniversitários europeus e americanos, buscaremos nesses lugares subsídios para entender as condições históricas da produção destes paradigmas. Como o Brasil não é uma ilha, mas sim parte da economia mundial (o FMI que o diga), é claro que, ao discutir as idéias e práticas que surgem nos centros de produção de conhecimentos e que são veiculadas pelos órgãos de comunicação de massa, não podemos ignorar o fluxo de informação e idéias que passa pela alfândega brasileira. Assim, ao discutir a organização e idéias do movimento homossexual no Brasil, teremos de levar em consideração a história deste movimento desde suas origens na Europa no século XIX. A proposta deste livro então é de examinar as várias idéias, representações e práticas associadas à noção de relações sexuais/afetivas entre pessoas do mesmo sexo no Brasil, como vozes muitas vezes discordantes, cada uma tentando ser ouvida mais que as outras. No campo da teoria econômica são produzidas várias teorias cujos proponentes lutam entre si para fazer valer sua opinião. Na política partidária, isto é feito através de eleições (quando tem), mas, no campo da sexualidade humana, a luta é engajada em todas as áreas da sociedade, nos consultórios médicos, nas delegacias de polícia, na rua, nos bares, na sala de visitas e na cama. Uns procuram legitimidade para suas opiniões, reivindicando a "objetividade" da ciência, outros invocam a autoridade de Deus (e é curioso notar que um único Deus pode legitimar tantas diferentes formas de encarar a homossexualidade), enquanto os movimentos homossexuais invocam a legitimidade da representação de uma minoria oprimida. Nós mesmos invocamos a postura relativizante da antropologia social para legitimar o nosso procedimento que é de enxergar a questão do homossexualismo como sendo essencialmente uma questão política e cultural. Partindo da observação de que as práticas e as idéias associadas à homossexualidade variam de contexto e de cultura para cultura, e de segmento para segmento numa sociedade estratificada como a brasileira, nós nos interessamos em tentar compreender esta variação em relação a outras variações culturais e estruturais. Assim estaremos interessados em procurar, entre outras coisas, a lógica social das idéias e práticas associadas à homossexualidade e sua significação. Deste modo, as várias categorias que surgiram para "explicar" a homossexualidade, como aquelas que atribuem o desejo homossexual a certas constelações familiares, aquelas que apontam para fatores genéticos e hormonais e aquelas que propõem explicações religiosas serão examinadas em relação a outras teorias concomitantes a respeito da família e, porque não, da economia política. De fato, nenhuma das teorias existentes sobre as causas de homossexualidade nos convence e a nossa tendência é de tratá-las todas, sem exceção, como produções ideológicas. Desta ótica relativizante, estas teorias dizem muito mais sobre pessoas que as articulam, dos contextos sociais e culturais onde são produzidas do que sobre a "homossexualidade" em si. Esta perspectiva "antropológica" e relativizante, que vê a homossexualidade mais como fato social que fato biológico ou psicológico, é apenas uma opção possível. Temos consciência, porém, de que o nosso próprio pensamento é também fruto da nossa posição social e deste momento histórico, e apenas oferecemos como mais uma voz na cacofonia geral sobre a sexualidade. Mas é claro que temos uma certa convicção da relevância destas idéias e esperamos conseguir convencer algumas pessoas ao longo do nosso livro. Além desta postura relativizante, temos, é claro, as nossas próprias idéias a respeito da homossexualidade, que são as mais simples possíveis. Desejos homossexuais são socialmente sufocavam quaisquer questionamentos do sistema vigente, entendido no seu sentido mais amplo. Numa época em que ao sair do teatro deparava-se costumeiramente com viaturas da polícia fazendo questão de mostrar seu poderio bélico, apontando canos de metralhadoras pelas janelas, o deboche bem-humorado dos Dzi Croquettes parecia abrir uma brecha para a expressão de alguma forma de não-conformismo. Se não era possível criticar publicamente o regime ou o sistema econômico, questionava-se as bases sagradas da vida cotidiana. Vivia-se comunitariamente, experimentava-se novas formas de consciência propiciadas pelo uso de drogas e, o que é mais importante para nós aqui, colocava-se em questão a moral sexual. Outros grupos trilhavam caminhos parecidos, como, por exemplo, os "Secos e Molhados", cuja figura mais expressiva, Ney Matogrosso, continua na mesma linha, ainda que hoje choque menos que antes. Como se vê, as coisas mudam e é interessante observar como o questionamento dos papéis sexuais pode ser transformado em produções artísticas legítimas e amplamente "curtidas", até pelo atual público de Ney, em que parecem predominar respeitáveis vovozinhas e seus netinhos. Enquanto durava o sufoco, pouco mais era possível e a contestação permanecia confinada a pequenos grupos ou a um minúsculo setor social freqüentador deste tipo de espetáculo teatral. Somente com o relativo abrandamento da censura e a assim chamada abertura política que começou em 1978, foi possível uma veiculação mais abrangente e sistemática destas questões. Neste mesmo ano apareceu o jornal Lampião, editado no Rio de Janeiro por jornalistas, intelectuais e artistas homossexuais que pretendiam originalmente lidar com a homossexualidade procurando forjar alianças com as demais "minorias", ou seja, os negros, as feministas, os índios e o movimento ecológico. Embora este projeto de aliança não tenha tido o sucesso desejado, o jornal certamente foi de grande importância, na medida em que abordava sistematicamente, de forma positiva e não pejorativa, a questão homossexual nos seus aspectos políticos, existenciais e culturais. Apesar do abrandamento da censura e do fato de a homossexualidade nem sequer ser mencionada no Código Penal Brasileiro, em 1979 instaurou-se um inquérito policial contra os editores do Lampião, que seriam acusados de infringir a lei de Imprensa por contrariar a "moral e os bons costumes". Anteriormente fora processado outro jornalista, Celso Curi, que escrevia regularmente no jornal Última Hora, de São Paulo, a "Coluna do Meio", espaço reservado para fofocas e informações sobre o meio homossexual. Apesar de estas ações policiais e judiciárias serem arquivadas. depois de complicadíssimos trâmites legais, o fato é que tanto aquele jornalista quanto os editores do Lampião passaram meses de intimidação e humilhação. Estes últimos foram salvos em parte pelo apoio do Sindicato dos Jornalistas, cujos advogados os defenderam. Seguramente era um sinal de que a homossexualidade deixava de ser objeto apenas de escárnio, começando a ser reconhecida a legitimidade de suas reivindicações. Este ano de 1978 também viu o nascimento do Movimento Negro Unificado, o pleno desabrochar do movimento feminista e o surgimento dos primeiros núcleos do movimento homossexual no Brasil. Logo após o surgimento do jornal Lampião, um grupo de artistas, intelectuais e profissionais liberais, descontentes com uma vida social restrita a boates e bares do "gueto" homossexual, começou a se reunir semanalmente em São Paulo. Visando originalmente discutir as implicações sociais e pessoais de sua orientação sexual, eles fizeram sua primeira manifestação pública através de uma carta aberta ao Sindicato dos Jornalistas protestando contra a forma difamatória com que a "imprensa marrom" apresentava a homossexualidade. Em fevereiro de 1979, os membros deste grupo já agora batizado de "SOMOS - Grupo de Afirmação Homossexual" apareceram pessoalmente em público durante um debate sobre as minorias, promovido na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. A importância deste debate é que marcou mais uma vez a crescente importância do movimento homossexual como interlocutor legítimo na discussão dos grandes assuntos nacionais. Além disso, foi uma experiência catártica que aumentou a confiança dos participantes e deu impulso à formação de outros grupos similares em São Paulo e outras cidades como também em vários estados. Na Semana Santa de 1980, todos estes grupos se encontraram em São Paulo para trocar idéias sobre a identidade homossexual, a relação entre o movimento homossexual e os partidos políticos e formas de atuação e organização. Nestas discussões, embora houvesse bastante polêmica e a expressão de diversos pontos de vista, ficou evidente uma generalizada antipatia para com quaisquer formas de autoritarismo, seja no interior de partidos políticos (de direita e de esquerda), seja nas relações entre homens e mulheres, seja também entre pessoas do mesmo sexo. As soluções propostas enfatizaram, então, a autonomia do movimento homossexual em relação aos partidos políticos e o apoio ao feminismo na luta contra o machismo. No mesmo sentido criticava-se a reprodução do "machismo" nas relações homossexuais. Contra a dicotomia "ativo/passivo", "dominador/dominado", "bofe/bicha", "fanchona/lady", propunha-se uma nova identidade – homossexual e relações sexuais/afetivas essencialmente igualitárias. Embora nós tenhamos falado até agora dos movimentos propriamente ditos, não podemos deixar de falar a respeito do que já foi chamado de "movimentação" homossexual, que lhes serve como real a opressão exercida pelos homens. Afinal, o feminismo já há algum tempo vinha fazendo este tipo de crítica, e as lésbicas ultimamente vinham se aproximando dos grupos feministas, apesar de terem sofrido um rechaço inicial. Lutavam, portanto, em duas frentes: contra as relações dominador/dominado entre os sexos e contra a sua reprodução no meio homossexual. Desde os debates na USP, várias mulheres haviam sido atraídas aos grupos homossexuais embora sempre estivessem em minoria. Apesar de inicialmente não pleitearem nenhum tratamento especial - afinal, reinava a ideologia da igualdade total -, logo começaram a sentir a necessidade de terem pelo menos um subgrupo exclusivo para elas, onde pudessem discutir com mais profundidade os seus problemas específicos, difíceis de levantar e desenvolver em reuniões com participação predominantemente masculina. Foi nessa época que elas começaram a ter contatos mais próximos com os grupos feministas atuantes em São Paulo desde meados da década de 1970. Deste contato resultou uma aguçada sensibilidade das sutilezas do machismo até enxergarem a sua presença mesmo no movimento homossexual. Começava a ficar evidente para elas que, mesmo entre os militantes homossexuais apesar da ideologia de igualdade, eram os homens que dominavam as discussões e as tomadas de decisão. Além disso, elas reclamavam da misoginia pouco disfarçada nas brincadeiras e nas formas de tratamento usadas pelos homens. Especialmente irritante para elas era o uso freqüente do termo "racha" para designar qualquer mulher e a mania dos homens de se tratarem uns aos outros como se fossem eles próprios mulheres. As tensões aumentaram e, pouco tempo depois disso, aproveitando o ensejo de uma briga entre os homens que já começava a ameaçar a coesão do grupo Somos, as lésbicas deste grupo resolveram optar por uma total autonomia. Fundaram o Grupo de Ação lésbico- Feminista em maio de 1980. Já por esta época, um delegado de polícia, José Wilson Richetti, começou uma cruzada moralizante com o fim de "limpar" o centro da cidade de prostitutas e homossexuais. Os métodos eram os de sempre: batidas relâmpago nos locais de reunião, a prisão ilegal para averiguação de antecedentes, mesmo no caso de pessoas com seus documentos em ordem, e o emprego de uma brutalidade extremada especialmente no caso de prostitutas e travestis. O movimento homossexual reagiu e, acionando os seus contatos com os movimentos feminista, negro e estudantil, promoveu uma inusitada passeata pelo centro da cidade como forma de protesto. Quase mil pessoas atenderam à chamada, prostitutas, alguns membros dos movimentos negro, estudantil e feminista, mas sobretudo um grande contingente de homossexuais, que deram o tom do evento através de palavras de ordem do tipo: "Agora, já, queremos é fechar", "ABX, libertem os travestis", "Richetti é louca, ela dorme de touca" etc. . . O deboche e a gozação entram no cenário político, normalmente dominado por acontecimentos bem mais "sérios". E, contra críticas de setores oposicionistas mais tradicionais, foi mantido por militantes homossexuais que estas palavras de ordem refletiam a natureza profundamente subversiva e anarquizante da experiência homossexual sempre disposta a questionar os valores sagrados tanto da direita quanto da esquerda, expondo-os ao ridículo. E talvez a mesma tradição que irrompeu no "proibido proibir" de Caetano e no espetáculo dos Dzi Croquettes. Esta passeata representou uma espécie de apoteose da militância homossexual em São Paulo que, depois disso, teve que enfrentar sérios problemas como a extinção do jornal Lampião, o fracionamento de vários grupos e o desaparecimento de outros. Embora o Lampião nunca tenha se colocado como porta-voz do movimento e tenha sempre afirmado a total autonomia de sua linha editorial, ele servia como ponto de referência e disseminava no país inteiro notícias sobre as atividades dos grupos. Durante certo tempo reinava um clima de desânimo e desconfiança. Um projeto inicial de grandes mudanças a curto prazo parecia tornar-se menos viável e o movimento sentiu-se sem rumo. Os grupos sobreviventes conseguiram encontrar novas formas de atuação apropriadas à atual situação e às possibilidades oferecidas em cada localidade. O grupo Somos de São Paulo, por exemplo, além das suas atividades normais, alugou uma sede onde são realizados plantões dominicais de apoio e orientação para homossexuais não-pertencentes a nenhum grupo. Talvez um dos desenvolvimentos mais interessantes e frutíferos seja a campanha promovida pelo Grupo Gay da Bahia, de Salvador, visando a eliminação no código do INPS do item 302.0, que classifica o homossexualismo como desvio mental. A importância desta iniciativa se deve ao fato desta classificação do INPS ser uma das únicas instâncias onde se discrimina oficialmente a homossexualidade, no Brasil. A campanha se alastra por grande parte do Brasil e já conseguiu a adesão de milhares de assinaturas para seu abaixo-assinado, não só de homossexuais, mas de uma grande proporção de outras pessoas, muitas delas personalidades destacadas no mundo científico, artístico e político. Além de batalhar por este abaixo-assinado, o Grupo Gay da Bahia conseguiu também declarações oficiais de apoio de entidades como a Associação Brasileira de Antropologia e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Tenta-se desta forma exorcizar o fantasma da doença que paira sobre esta orientação sexual. Este brevíssimo esboço de alguns acontecimentos ligados à homossexualidade nos últimos 15 anos concentrou-se nos aspectos da política sexual mais evidentes e públicos. Mas é de se lembrar que, ao mesmo tempo em que os movimentos homossexuais surgiram com o propósito de repensar a identidade homossexual e combater o preconceito social em todas as suas manifestações, a homossexualidade se tornou muito mais visível em geral para o masculinidade se baseia em dois pontos fundamentais: no uso do arco e num papel "ativo" nas relações sexuais. Por outro lado, a feminilidade se baseia no uso do cesto e relações sexuais "passivas". Quando um homem quebra uma das regras básicas da masculinidade, ele se torna uma pessoa malvista (Chachu). Porém, ele pode recuperar uma certa posição na sociedade cruzando a barreira entre os sexos e assumindo o papel social e sexual da mulher como no caso de Krembégi. De acordo com Clastres, "Chachubutawachugi era objeto de caçoada geral, se bem que desprovida de verdadeira maldade: os homens o desprezavam bastante nitidamente, as mulheres dele riam à socapa, e as crianças tinham por ele um respeito muito menor do que pelos outros adultos. Krembégi ao contrário não despertava nenhuma atenção especial; consideravam-se evidentes e adquiridas a sua incapacidade como caçador e a sua homossexualidade." O que parece mais ou menos claro é que, nesta sociedade, uma forte distinção entre masculinidade e feminilidade é acompanhada por uma igualmente forte distinção entre "atividade" e "passividade" sexual. Assim, os homens que mantiveram relações sexuais "ativas" com Krembégi não sofreram nenhuma alteração no seu status de homens. Supõe-se, então, que aos homens guaiaqui eram permitidas relações heterossexuais e homossexuais, contanto que eles mantivessem em ambas um papel "ativo". Supõe-se, também, que o homem que desejasse manter relações homossexuais "passivas" sofreria realmente um rebaixamento de status, se transformando em kyrypy-meno. Esse rebaixamento poderia ser bastante amenizado através do simples expediente de trocar de papel sexual: "virar muIher". Supõe-se também que os homens que desejassem manter relações homossexuais "passivas", mas que não queriam enfrentar estas conseqüências quase que inexoráveis, teriam que reprimir seus desejos totalmente, pois numa sociedade deste tipo, onde não há nenhuma privacidade, era impossível praticar uma atividade desse gênero sem que a notícia se espalhasse imediatamente. Na América do Norte, encontramos algo parecido. Em muitas tribos indígenas, como entre os guaiaqui, era perfeitamente possível um homem se "transformar" em mulher e até casar com outro homem. Estas pessoas eram conhecidas como homens-mulher. Inversamente, mulheres também se "transformavam" socialmente em homens, também chegando muitas vezes a se casar com outras mulheres. São as mulheres--homem. Estes berdaches, como são chamados genericamente, como Krembégi, em geral eram bem aceitos e em muitos casos lhes eram atribuídos poderes excepcionais de cura e de profecia. E o caso de uma mulher da tribo Kutenai, ququnok patke. Nascida nos fins do século XVIII, era robusta e forte de tal forma que nenhum rapaz se interessava por ela. Após um casamento com um colonizador canadense, voltou para a tribo, agora vestida de homem e portando uma espingarda, arco e flechas. Além disso, reivindicou poderes sobrenaturais. Tentou casar com uma menina, mas não conseguiu e teve que se satisfazer com viúvas e mulheres separadas de seus maridos. Adentrou cada vez mais no papel masculino, tornando-se exímio jogador de cartas, caçador e guerreiro. Algumas testemunhas reportam que também tinha o dom da profecia, chegando a prever o fim da colonização branca na área. Dizem também que era grande curadora e há evidências de que desempenhou um importante papel de intermediária na disputa entre os Blackfeet e Flatheads. Parece também que morreu neste exercício, nas mãos dos Blackfeet. Poderíamos contar mais casos, pois chamou muito a atenção dos colonizadores e exploradores que escreveram suas impressões em diários e livros. Nestas descrições parece que as mulheres que voluntariamente trocavam de papel sexual acabavam sendo melhores "homens'" que os homens de verdade. Eram valentes, corajosas e boas provedoras. Da mesma forma, parece que os homens que se transformavam' em "mulheres" desempenhavam de forma excepcional as tarefas femininas, tornando-se exímios ceramistas e tecelões. Mas o que é realmente interessante, e que distingue os berdaches da situação guaiaqui, é que quase sempre lhes eram atribuídos poderes sobrenaturais de cura e profecia. Dado o etnocentrismo que contamina a maior parte do material histórico e antropológico sobre esse assunto, é difícil determinar como eram de fato os berdaches e como eram tratados antes da colonização. Uns autores da época colocam-nos em verdadeiros pedestais como pessoas altamente respeitadas e até veneradas. Outros, mais interessados em promover a moral européia, enfatizam um outro lado, insistindo que eram também objetos de ridicularização. O fato é que há várias maneiras de rir e nunca saberemos se os risos dos índios eram de prazer ou de agressão. De qualquer forma, é mais ou menos claro que, como entre os guaiaqui, os papéis de homem e mulher eram radicalmente separados e as pessoas que, por uma razão ou outra, não podiam ou não queriam se conformar com os atributos sociais e sexuais associados ao seu sexo biológico, tinham a opção de assumir os atributos do sexo oposto. Nestas sociedades, então, as pessoas não são classificadas de acordo com seu suposto comportamento sexual homo ou hetero. Não existem identidades sexuais como "o homossexual" na nossa cultura, que define uma pessoa pelo seu suposto gosto por relações sexuais com pessoas do mesmo sexo. O que existem nestas culturas são identidades sociais e sexuais construídas de combinações de sexo biológico e papéis sexuais. Assim, uma mulher que desempenha o papel feminino (inclusive ela pode manter relações homossexuais e se comportar "femininamente") é simplesmente uma mulher. Se ela desempenha o papel masculino, ela se torna mulher-homem, ou berdache. Uma pessoa que é biologicamente masculina e que procriação. As mulheres que não seguem este caminho, ou porque não querem ou porque não podem, provavelmente serão classificadas de prostitutas, pois estas devem gostar do sexo (ou pelo menos fingir que gostam) e são, por definição, promíscuas. Neste esquema não há marcas simbólicas tão óbvias como o arco e o cesto dos guaiaqui, que servem para demarcar a masculinidade da feminilidade, mas ainda há formas de comportamento que são próprias a apenas um sexo e cercadas de proibições para o outro. E o exemplo do batom, das bonecas e do chorar. Homem não usa batom (a não ser durante o carnaval), menino não brinca com boneca e certamente não deve chorar. Afinal, se pintar, cuidar de nenéns e ser sensível são predicados da feminilidade. O menino que toca nestes "cestos" e que não sabe manipular seu "arco", logo percebe o perigo das suas contravenções. É chamado de maricas, mulherzinha, etc. Geralmente esta acusação é suficiente para fazer qualquer menino voltar ao seu "arco". Àqueles que persistem num comportamento pouco adequado ao sexo masculino quando crescem, será imputada uma contravenção maior ainda. Se presumirá que, como "mulherzinhas", se sentirão atraídos por homens com quem manterão relações sexuais "passivas". De "mariquinhas" se transformam em "bichas". A bicha, como os kyrypy-meno dos guaiaqui, é um homem que tende a desempenhar tarefas normalmente associadas às mulheres e que também prefere a companhia sexual de "homens de verdade". Desta forma, neste Brasil que estamos chamando de "popular", como entre os guaiaqui, o menino é chamado de "bicha" não simplesmente porque se supõe que ele goste de manter relações homossexuais, mas porque ele é "efeminado" (desempenha o papel feminino) e porque se mantiver uma relação homossexual desempenhará um papel "femininamente passivo". O rapaz que desempenha o papel masculino e que poderia ser o parceiro sexual da bicha (portanto mantendo uma relação homossexual) é chamado de "homem" ou de "machão". A situação das mulheres tem semelhanças e diferenças. O fato é que na primeira infância as meninas podem brincar com brinquedos "masculinos" sem serem xingadas de "homenzinho" ou de "sapatão". O grande perigo do qual as meninas têm que ser protegidas é outro - o que é representado pela figura da prostituta. Assim, desde o início da adolescência, a sexualidade das meninas é controladíssima na esperança que cheguem até um único casamento virgens. Desta forma, as meninas podem mostrar sinais de afeto umas às outras sem que isto provoque escândalo e reprovação. Mesmo assim, a figura popular do "sapatão" é muito forte, e é a imagem invertida da "bicha". O "sapatão", como a mulher-homem berdache, é uma mulher em termos fisiológicos que desempenha aspectos do papel masculino. Desta forma, as concepções populares brasileiras da sexualidade, como entre os guaiaqui e outras sociedades ameríndias, são baseadas fundamentalmente sobre as noções de sexo fisiológico, sexo social, como na figura que segue: Neste esquema, então, as relações sexuais esperadas também são todas "heterossexuais" em termos de papéis sexuais. As pessoas socialmente "femininas" se relacionam com as socialmente "masculinas". As mulheres e bichas se relacionam com os homens e os homens e mulheres-machos se relacionam com as mulheres. O que é considerado realmente "desviante", de acordo com estas regras, são relações "homossexuais" não em termos fisiológicos, mas em termos dos papéis sexuais. Assim, um homem pode se relacionar sexualmente com uma bicha, enquanto o primeiro é "ativo" e o segundo "passivo". Nesse sentido, o que causa escândalo é quando bicha se relaciona com bicha. Esta, sim, seria a relação "homossexual", e ela é ridicularizada no ditado popular "bicha com bicha dá lagartixa". Esta maneira de organizar os papéis sexuais pode ser claramente vista na área da prostituição masculina. Resumindo e simplificando, os profissionais neste campo se dividem em "travestis" e "michês" que têm aparência bem "máscula". Se os primeiros são travestis da figura da mais "feminina" das mulheres, os segundos são travestis do mais "másculo" dos homens. De fato não há melhor evidência para o fato dos papéis sexuais serem essencialmente sociais, pois tanto travestis como michês são homens, fisiologicamente falando. Em princípio, e de acordo com a nossa exposição das regras do jogo sexual, os michês "comem" enquanto os travestis "dão". Mas podemos aproveitar este momento para matizar nosso argumento, pois, nas palavras de outro velho ditado, "na prática a teoria é outra". Na privacidade da cama é freqüente que o travesti tome o papel "ativo", como também não é raro que o michê seja "passivo". E igualmente possível que participem de atos "sexuais" como beijar, "roçar" etc... que não têm conotações nem de "atividade" nem de "passividade". As regras, como sempre acontece com quaisquer regras, são burladas com freqüência. O fato é que aqueles travestis que vivem da prostituição e que são os mais bem-sucedidos alegam que são também grandes "comedores". O segredo deste sucesso é que um respeitável senhor pode ser visto na companhia de um travesti, pois, de acordo com as regras formais, ele vai passar publicamente por "macho". Apenas na cama os papéis serão invertidos. Da mesma forma; o michê que é visto como uma "bicha" é visto publicamente como "macho". E, em ambos os casos, justifica-se a quebra da regra por interesses aparentemente apenas econômicos. Assim, por exemplo, o michê para pensar que sua própria masculinidade está sempre a ser provada por um desempenho sexual tanto potente quanto freqüente. Mesmo assim, podemos dizer que a concepção popular brasileira da sexualidade fala mais de "masculinidade" e "feminilidade", de "atividade" e de "passividade", de "quem está por cima" e de "quem está por baixo" do que sobre a heterossexualidade ou a homossexualidade, que são aspectos que entram no esquema sorrateiramente, por assim. dizer. Se este esquema desse importância maior à homossexualidade propriamente dita, então o homem que "transasse" com a bicha certamente teria que ser chamado de "homossexual" ou algo parecido. Nem sempre isto acontece. Este Brasil popular é muito antigo, como demonstramas confissões e denúncias que foram feitas perante o Santo Ofício, durante a Inquisição no Nordeste do Brasil, entre os anos de 1591 e 1620. Naquela época, relações homossexuais constituíam o "nefando pecado de sodomia" e os "sodomitas" poderiam ser condenados à morte na fogueira. Durante a visitação do Santo Ofício, muitos "sodomitas" eram denunciados e outros confessaram, de tal modo que dispomos de material riquíssimo sobre a homossexualidade daqueles tempos. O antropólogo e militante homossexual Luís Mott, da Universidade Federal da Bahia, conseguiu identificar 135 "sodomitas" e verificou que "os conceitos de ativo ('agente' como diziam no tempo da inquisição), e passivo ('paciente'), são categorias repetidoras da bipolaridade heterossexual da macho-fêmea, não encontrando obrigatoriamente correspondência restrita nos atos homossexuais". Uma outra estudiosa, Patrícia Aufterheide, sugere que os parceiros "ativos" em geral tinham uma certa ascendência social sobre os "passivos". Cita o caso de Fernão Roiz de Souza, um fidalgo branco que, aos seus onze anos, era-pajem na casa do governador e teve que se submeter "passivamente" sob a ameaça de morte. Na medida em que cresceu, ele se transformou num "ativo", procurando sempre parceiros mais fracos socialmente que ele: mulatos e mulheres. Luís Mott observa casos semelhantes, mas também nota situações em que o parceiro socialmente mais forte era sexualmente "passivo". Referindo-se às relações homossexuais entre brancos e negros, ele diz: "... encontramos nas relações sodomíticas interraciais todo um continuum de interações, ora os brancos exercendo seu poder e prepotência de casta superior, ora os de cor encontrando mil e um artifícios para serem eles os donos do poder ao menos neste micro-universo diádico ditado pelo homo-erotismo." O fato é, portanto, que, como argumentamos acima, "atividade" significa poder em relação à "passividade", que faz com que as relações de poder da vida cotidiana possam ser algumas vezes invertidas temporariamente no ato sexual de coito anal. E assim que acontece, hoje em dia, como já assinalamos, quando um respeitável burguês é "comido" por um travesti proveniente das classes mais pobres. Ajudando a acreditar que este Brasil popular não seja só fruto da nossa imaginação, mas também faz parte do imaginário mais geral, podemos tirar mais um exemplo do livro de Jorge Amado, Capitães de Areia, onde, na banda de moleques liderada por um rapaz chamado Pedro Bala, relações homossexuais eram freqüentes e corriqueiras. Um dia, o padre, amigo de Pedro, chegou a dizer que tais relações eram pecaminosas e Pedro respondeu expulsando os "passivos" do grupo. Pois, neste tipo de situação, o estigma é reservado apenas para quem é "passivo". O "ativo" na relação não sofre nenhuma crítica e freqüentemente consegue aumentar sua imagem de macho "comendo as bichas". Já que falamos de jovens, podemos lembrar que entre rapazes, no começo da adolescência, é comum a brincadeira de "troca-troca", em que dois meninos se alternam nos papéis "ativo" e "passivo" nas súas brincadeiras sexuais. Dizem que o mais "esperto" é aquele que consegue "comer" o amiguinho e na hora de "dar" consegue parar a brincadeira. O comum é que se o professor surpreende os meninos em flagrante, é o "passivo" daquele momento que é expulso do colégio. O lugar onde este sistema pode ser encontrado na sua forma mais exacerbada é nas prisões, onde presos veteranos competem entre si para "casar" com os mais novos e bonitos. Estes últimos acabam sendo conhecidos e tratados como "mulherzinhas". A eles cabe o dever de lavar a roupa dos seus "maridos", além de prestar- lhes vários outros pequenos favores. Nas relações sexuais que sucedem, cabe a eles também desempenhar um papel estritamente "passivo". O veterano, por outro lado, tem a obrigação de proteger seu boy e de favorecê-lo nas transações do dia-a-dia da prisão. Em prisões femininas se dá o mesmo, e mais uma vez são as veteranas que adotam o papel "ativo". Desta forma, relações de poder dentro da prisão são refletidas e reproduzidas nas relações sexuais. Vemos aqui muito claramente relacionadas a "passividade" sexual e a fraqueza social. Se formos pensar em termos históricos, veremos que já na Roma Antiga, embora o relacionamento homossexual em si não fosse especialmente malvisto, era considerado totalmente ultrajante um homem livre assumir um papel passivo tanto com um escravo quanto com um outro cidadão. Aqui, como nas prisões, a hierarquia sexual devia corroborar a hierarquia social. Mesmo entre homens livres no Brasil de hoje, em muitos lugares "a bicha está sempre debaixo da sola do pé do macho", como disse uma delas em Belém do Pará. À primeira vista, esta é uma posição extremamente desagradável, para não dizer insuportável. Mas, embora alguns sejam literalmente forçados a representar este papel como os boys nas cadeias, outros parecem optar por ele de livre vontade. Entre os guaiaqui, os indivíduos têm que ser homens ou mulheres; neste sistema, os homens têm que ser machos ou bichas. Não há meio termo. O paralelo que estabelecemos entre o Brasil popular e algumas sociedades indígenas das Américas pode ser estendido para a esfera da religião, pois como no caso dos berdaches, há uma forte associação entre homossexualidade e Vale a pena pensarmos um pouco sobre por que são tão freqüentem ente atribuídos poderes excepcionais e até sobrenaturais à identidade de "homem efeminado" ou "mulher-macho". Uma possível interpretação é que estes poderes são uma espécie de compensação para as pessoas que não querem ou não conseguem seguir os caminhos convencionais de homens e mulheres. Parece que a ridicularização é de certa forma contrabalançada com o prestígio de curador e profeta. Outra interpretação possível é a de que quebrar com as convenções sociais de masculinidade e feminilidade, que são tão fortemente arraigadas em qualquer sociedade, requer, de início, uma boa dose de coragem e originalidade. Desta forma, os berdaches e os quimbandas teriam que ter o que nós chamamos de uma personalidade forte, assim os equipando para proezas futuras. Mas há outra interpretação também possível que parte da idéia de que ambigüidade e poderes excepcionais têm algo em comum. Um homem que se transforma em "homem- mulher" ou uma mulher que se transforma em "mulher-homem" são fundamentalmente ambíguos. Ambigüidade é sempre uma possível fonte de criatividade. Uma das qualidades mais importantes num pai-de-santo ou numa mãe-de-santo, além daquelas questões especificamente religiosas, como o conhecimento dos segredos do culto e a capacidade de desempenhar o papel de curador e profeta, é a criatividade. Um pai-de-santo de Belém certa vez nos disse que considerava que o candomblé tivesse aspectos de teatralidade e que um bom pai-de-santo era aquele que soubesse "montar" suas festas como se fossem espetáculos. Disse também que se ele não tivesse sido chamado pelos espíritos, teria seguido uma carreira teatral como travesti. E, de fato, entre as qualidades mais freqüentemente atribuídas à identidade de "bicha" estão a criatividade, a sensibilidade artística e o humor, como se fossem propriedades naturais. Mas estas características que realmente são comuns a muitas bichas, o são justamente porque há uma relação importante entre a criação artística, a ambigüidade, o humor e uma visão crítica da sociedade, muitas vezes manifestada pelos homossexuais através de um comportamento caricaturalmente efeminado, conhecido como "fechação". As bichas são ambíguas por definição: têm um sexo fisiológico e outro social, e como o estigma social os coloca fora dos centros formais de poder social, elas ocupam uma posição estrutural às margens da sociedade da qual é pelo menos possível uma visão crítica das coisas. Neste sentido, convém lembrar que a criatividade e um humor mordaz e venenoso também são associados a outros grupos marginalizados e estigmatizados socialmente como os negros e os judeus. Os berdaches gozaram de prestígio e respeito dentro de um contexto social e religioso em que a inversão dos papéis sexuais era associada a poderes de profecia e de cura. O berdache era em nada um "desviante"; era tão "natural" para os índios da América do Norte quanto é um padre de batina para nós. Mas não há mais berdaches nos Estados Unidos da América e o seu fim foi brutal perante a "civilização" que os conquistou em nome de Cristo e do progresso. Os berdaches foram perseguidos e ridicularizados pelos colonizadores brancos, e membros do Bureau de Assuntos Indígenas obrigaram-nos a se vestir de acordo com seu sexo biológico. Nestas circunstâncias, os próprios índios acabaram por ver nesta instituição uma fonte de humilhação e vergonha e há pelo menos um caso de suicídio de um berdache, cuja família insistiu para que ele caçasse junto com os homens da tribo. Os berdaches e os valores sexuais das sociedades às quais pertenciam foram vitimados por uma ideologia sexual que classificava a homossexualidade como crime, pecado e doença. Travesti sofrendo violência nas mãos da policia de SãoPaulo. PECADO, CRIME, DOENÇA E SEM-VERGONHICE O Grupo Gay da Bahia tem como uma de suas prioridades a retirada da homossexualidade da lista de doenças do INAMPS. Neste capítulo contaremos a história da atuação da medicina no campo da sexualidade em geral e da homossexualidade em particular, examinando suas teorias sobre causas, efeitos e curas. Procuramos demonstrar, ao mesmo tempo, que os especialistas da medicina contribuem em grande parte para a construção social do homossexual moderno, diferente da "bicha" ou "viado" do Brasil popular. Sabemos que, na era colonial, a prática da homossexualidade era "hediondo pecado, péssimo e horrendo, provocador da ira de Deus e execrável até pelo próprio Diabo" '(Constituições Primeiras do Arcebispo da Bahia, 1707) e que podia ser punida com morte na fogueira. Na segunda metade do século XIX, porém, irrompe na Europa e no Brasil toda uma preocupação médica com a homossexualidade e, de fato, quaisquer relações sexuais fora do casamento, incluindo prostituição. Formou-se a idéia de que a "saúde" da nação era diretamente ligada à "saúde" da família e dependente, portanto, do controle da sexualidade. Aqui no Brasil, o médico carioca Pires de Almeida, em 1906, escreve no seu livro Homossexualismo (A Libertinagem no Rio de Janeiro): "Mais que todos os seres, o homem, pelas suas paixões e por seus instintos pioneiros do estudo da homossexualidade e que influenciou a medicina definitivamente, coletou milhares de "confissões" dos seus pacientes e as publicou no seu livro Psicopatia Sexualis. Chegou à conclusão de que os uranistas sofrem de uma mancha psicopática, que mostram sinais de degenerescência anatômicos, que sofrem de histeria, neurastenia e epilepsia. Acrescenta ainda que "na maioria dos casos, anomalias psíquicas (disposição brilhante para a arte, especialmente música, poesia, etc., ao lado de poderes intelectuais maléficos ou excentricidade original) são presentes e podem se estender a condições salientes de degeneração mental (imbecilidade, loucura mora!)." A partir dos trabalhos de Krafft-Ebing, Ulrichs, Pires de Almeida e outros, a grande controvérsia nos meios médicos girou em torno da questão das causas da homossexualidade. Enquanto alguns acharam que as causas eram basicamente biológicas (hereditariedade, defeitos congênitos ou defeitos hormonais), outros explicaram a homossexualidade em termos do meio ambiente social. Em geral, esses primeiros teóricos distinguiram entre os uranistas de verdade, ou "invertidos", cuja homossexualidade era biológica e, portanto, os eximiam de qualquer culpa ou responsabilidade, e os "pervertidos", em geral "homossexuais ativos", que praticavam a homossexualidade por pura "sem-vergonhice". No Brasil, Leonídio Ribeiro propõe que causas biológicas e sociais interagem: "Não obstante ser aceitável, até certo ponto, uma parte dos argumentos apresentados pela psicanálise, ganha terreno, cada vez mais, a teoria que afirma existirem na maioria dos casos de inversão sexual, uma causa ou predisposição orgânica, para esses fenômenos que seriam favorecidos ou agravados, pela influência do ambiente" . Mas os médicos não se satisfizeram apenas em declarar a homossexualidade uma anomalia orgânica, pois as origens endócrinas desta "doença" também acarretariam outras patologias. Assim é que surge o "homossexual" que é esquizóide, paranóide etc. Ribeiro dedica um capítulo inteiro ao sadismo, e através de uma descrição minuciosa de "Febrônio, Indio do Brasil", que teria estrangulado uma série de rapazes, estabelece uma clara relação entre sadismo e homossexualidade. Mas, com a mudança do status da "homossexualidade" de pecado para "doença", abre-se a possibilidade de cura. A partir dos argumentos de Ribeiro, por exemplo, Febrônio é "salvo" da cadeia e premiado com a segregação ad vitam no Manicômio Judiciário. E todos os homens classificados como "homossexuais" são agora sujeitos ao tratamento "médico pedagógico". Diz Ribeiro: "Provado que o homossexualismo é, em grande número de casos, uma conseqüência de perturbações do funcionamento das glândulas de secreção interna, logo surgiu a possibilidade de seu tratamento. Era mais um problema social a ser resolvido pela medicina". (grifos nossos). Nos casos dos indivíduos cuja homossexualidade é resultante do meio ambiente, propõe-se "medidas pedagógicas. (...) Em muitos casos, sobretudo quando está em jogo o filho único, em que é predominante a influência materna, a solução será o afastamento do ambiente familiar, afim de que a creança possa privar com pessoas de sua idade e de sexo contrário. (...) E preciso suprimir os carinhos e facilidades do ambiente familiar. (...) Em tais casos é inútil a internação em colégios onde haja dormitórios coletivos, sem fiscalização rigorosa, na convivência exclusiva com creanças do mesmo sexo". Se a homossexualidade per se nunca foi definida como crime no Código Penal Brasileiro, ao contrário do que ocorreu em outros países, na década de 1930 havia uma clara conivência entre a polícia e os médicos, pois os delinqüentes "homossexuais" de uma certa classe social eram encaminhados para o Laboratório de Antropologia Criminal do Instituto de Identificações de São Paulo, onde os médicos levaram adiante suas pesquisas sobre as causas biológicas e sociais da homossexualidade, com ênfase sobre os biotipos e ambiente social dos indivíduos em questão. Numa comunicação apresentada na Primeira Semana Paulista de Medicina Legal, em 1937, o Dr. E. de Aguiar Whitaker apresentava "os resultados obtidos pelo estudo anthropopsychiatrico" de oito homossexuais (pederastia passiva) detidos pela polícia de São Paulo. De acordo com a teoria vigente na época, Whitaker diagnostica homossexual idade "endógena" (biológica) e "exógena" (oriunda do ambiente social). Para dar uma idéia da forma preconceituosa de como eram encaradas estas "vítimas da ciência", seguem dois exemplos: "1 - Alvaro Adamo, 19 annos. 'Garçon'. Procedente da Capital. Examinadoem 18/9/1936. Resumo da observação - Trata-se de um indivíduo com levepsychopathia, homossexual (pederastia passiva) por defeitos de educação e accidental, suceptível de cura, de personalidade medíocre, cyclothymico, emotivo e instável (de modo pouco accentuado), revelando satisfactorio senso ethico, susceptível de educação médico-pedagógica. Diagnóstico - Personalidade medíocre, cyclothymico, emotividade e instabilidade leves. Pederasta passivo por defeitos de educação e accidental. Desadaptação social susceptível de correção. (V. - B.) Leptosoma-athletico (K.). Bacia de typo feminino aproximado. Pellos do pubis de conformação feminina approximada". "7 - João de Abreu. 32 annos. Solteiro. 'Garçon'. Brasileiro. Procedente de São Paulo. Examinado em 29/9/1937. Resumo da observação - Trata-se de um indivíduo cujo aparelho sexual é susceptível de funcionar normalmente, porém preferindo a cópula anal, que lhe traz completa satisfação genesia. A sua personalidade, bastante medíocre, é de typo eschizoide, com tendências à instabilidade. Obedecendo aos seus pendores e ou outra área do cérebro, então abre-se um caminho para a sua extirpação. Até há alguns anos atrás, era considerada válida a realização de uma operação cirúrgica que consistia na retirada de uma parte dos lóbulos frontais do cérebro, relacionados com a produção de fantasias e do prazer sexual. Apesar deste processo ter caído em desuso, ultimamente o periódico Medica! World New, de 25 de setembro de 1970, anunciou uma técnica de queimar, através de choques elétricos, uma pequena seção do hipotálamo. Este método teria sido usado em vários jovens americanos homossexuais, na sua maioria pedófilos, que dessa forma teriam sido reconduzidos à "normalidade". O fato de eles terem perdido a capacidade de fantasia e de sentirem prazer sexual parece não ter sido considerado muito importante. Outro método usado nos Estados Unidos, especialmente no caso de homossexuais presos por crimes sexuais, foi a castração. Nestes últimos casos, ao invés de significar um aumento na capacidade de sentir prazer em viver, o que se chama de "cura", não passa de um eufemismo para punição. Isto é evidente no "tratamento" através da lobotomia, castração etc... a que são submetidos homossexuais detidos em certas prisões e manicômios, especialmente nos Estados Unidos. E na lei espanhola que, considerando os homossexuais um "perigo social", condena os homossexuais ao internamento em pretensos "centros de' cura" que são meras penitenciárias. De fato, parece que na maior parte do tempo aqueles que dizem desejar "curar" os homossexuais estão mais interessados em colocá-los fora de circulação, não se importando com a natureza dos meios que usam para diminuir a sua possibilidade de "prejudicar a sociedade". A tendência desde Ulrichs, Krafft-Ebing etc. era de enfatizar os aspectos biológicos e inatos da homossexualidade, mas Freud salientou os aspectos experienciais, sociais e familiares, sem descartar completamente a idéia de existirem tendências inatas que ele via como parte de uma predisposição bissexual. Sua teoria leva a uma visão desfavorável da homossexualidade e demonstra a persistência de atitudes provenientes de sua origem de classe-média judaica vienense. Por exemplo, a psicanálise presume que a sexualidade tenha objetivos predeterminados, inatos, além dos adquiridos. Presume a heterossexualidade como a condição sadia e a procriação como a sua finalidade máxima. O que ele considera o ato sexual maduro é o coito heterossexual e os que preferem outras variantes são considerados imaturos. Ele aceita sexo oral e outras formas de excitação sexual como legítimos, na medida em que são preliminares ao coito heterossexual. Obviamente, atividades homossexuais são portanto automaticamente excluídas deste quadro. Freud considerava a homossexualidade uma condição quase incurável, com quatro principais causas. A primeira seria a "fixação", quando o indivíduo deixava de completar adequadamente todas as etapas do processo de amadurecimento permanecendo fixado a uma delas. A segunda seria o medo da castração, resultante de um desejo infantil pela mãe e o medo de uma punição por parte de um pai ciumento. A terceira é o narcisismo. Segundo Freud, o homossexual procuraria um parceiro parecido consigo, pois, inconscientemente, desejava amar a si mesmo. A quarta seria a identificação com um dos pais do sexo oposto, que levaria a criança a copiar a sua preferência sexual. Alegava que isto ocorria muito com meninos que tivessem mães dominadoras e pais ausentes. Aqueles que conhecem a fundo os trabalhos de Freud podem considerar este breve resumo como uma simplificação absurda. Talvez seja. Mas o fato é que estas idéias, atribuídas a Freud, se tornaram parte do senso comum. Como tal, adquiriram a forma de dogmas quase inquestionáveis e informam a maneira pela qual muita gente pensa a homossexualidade. Por exemplo, o desespero que se abate sobre pais e mães quando descobrem que um filho ou uma filha é homossexual, muitas vezes se deve a este tipo de interpretação, que atribui "culpa" a eles. Mas não há razão nenhuma de aceitar estas interpretações que colocam arbitrariamente a heterossexualidade como a expressão da maturidade plena. Chamar o homossexual de imaturo é apenas outra maneira de depreciá-lo sem chamá-lo de doente. O famoso paradigma da fábrica de bichas constituída de uma mãe dominadora e um pai ausente é seguramente apenas uma reiteração da ideologia de que apenas a família patriarcal é realmente saudável, ignorando a realidade da vida familiar em geral. O fato é que, para todas as crianças, as mães geralmente aparecem como personagens dominadoras. Assim, se a teoria fosse válida, o problema que teríamos que enfrentar seria o de descobrir as causas da heterossexualidade. . . Assim ,mesmo se Freud negasse que a homossexualidade fosse doença, certamente não deixaria de vê-la como defeito. Desta forma, a psicanálise tende a reproduzir o moralismo judaico-cristão, usando como ameaça, em vez do inferno, uma vida sem sentido, seguida de uma velhice solitária ou um caríssimo divã. Outra tradição terapêutica que teve e continua tendo grande repercussão é a do comportamentalismo, cujos adeptos, deixando de lado discussões mais aprofundadas sobre a questão da saúde e da doença, partem do princípio de que o comportamento e as emoções são frutos de um processo de aprendizado e são passíveis de modificação através de métodos mais ou menos mecânicos. Baseados no princípio da recompensa de comportamentos desejados e da punição dos que se visa eliminar, estes métodos acabam levando o paciente a adquirir características que melhor possibilitam sua integração na sociedade que o cerca. Isto geralmente significa induzi-lo a se comportar como a maioria. E uma orientação essencialmente conservadora de viver. sexualidade humana como, por exemplo, aquela que descrevemos para o Brasil popular. Neste caso não há "homossexuais" e "heterossexuais", mas sim "bichas" e "homens", "mulheres" e "sapatões". Combate também uma outra possível maneira de compreender a sexualidade humana como simplesmente sexualidade. Ao definir o "homossexual sadio", a ciência médica continua legitimando uma divisão estanque entre "homossexuais" e "heterossexuais", quando é possível vislumbrar uma situação em que pessoas não precisariam ser uma coisa ou outra. Como disse Alfred Kinsey, vinte e cinco anos atrás: "Os machos não se dividem em dois grupos distintos: os heterossexuais e os homossexuais. O mundo não está dividido em ovelhas e carneiros. Nem todas as coisas são negras, nem todas são brancas. E um princípio fundamental do sistema de classificação que raramente na Natureza se encontram categorias nitidamente separadas. Só a mente humana inventa as categorias e tenta abrigar os fatos em compartimentos separados. O mundo vivente representa uma continuidade em todos os seus aspectos. Quanto mais depressa aprendermos esta noção, aplicando-a ao comportamento sexual do homem, tanto mais depressa compreenderemos claramente o que é a realidade do sexo." NASCE UMA ESTRELA OU O SURGIMENTO DA "CONSCIÊNCIA HOMOSSEXUAL" Obviamente é demasiado simplista pensar o mundo em termos da luta entre mocinhos e bandidos ou, se quiser, no caso, os homossexuais e seus repressores. Pensar assim seria incorrer no mesmo erro daqueles que vêem a opressão feminina em termos de um complô masculino. De fato, homens, mulheres, médicos, legistas, homossexuais e psicoterapeutas fazem parte de um todo que é maior que a soma dos seus componentes individuais. No capítulo anterior contamos a história de como a homossexualidade foi definida como doença e algumas conseqüências disso. Não foram apenas os médicos, em isolamento, que tramaram maquiavelicamente esta façanha. Afinal, para que as questões que levantavam e as respostas que apresentavam fossem julgadas pertinentes e para que estas viessem a ter tão grande repercussão, era necessário que já existisse um clima social propício. Aliás, fizemos questão de observar que as primeiras investidas contra a homossexualidade por parte da medicina foram acompanhadas de uma forte preocupação por parte das classes dominantes com quaisquer atividades sexuais extrafamiliares. Afinal, os médicos não constituem um grupo isolado da sociedade maior. Eles pertencem a uma determinada classe social com a qual compartilham um estilo de vida e preocupações sociais e, como no resto da população, alguns são homossexuais. Eles também participaram e participam ativamente na história do homossexualismo. Vamos agora mostrar como estes médicos homossexuais e outras pessoas classificadas de homossexuais, doentes e neuróticos enfrentaram este estigma imposto a eles. Enquanto a grande maioria evitava se expor de alguma forma, temendo o desmascaramento e os efeitos terríveis disto, alguns homens e mulheres lutaram publicamente contra este preconceito. Já nos referimos ao trabalho de Karl Ulrichs e de Karoly Maria Benkert, inventores dos termos “uranista” e "homossexual" que iriam ser literalmente as palavras chaves do debate que começava a ser travado sobre a questão. O que argumentaremos mais tarde é que, ao inventar estas palavras, eles também estavam lançando as bases sobre as quais iria se desenvolver toda uma nova identidade social e sexual - o "homossexual". Ulrichs e Benkert eram homens que sentiam atração sexual por outros homens. Como na época em que eles começaram a sentir estes desejos estas palavras e a identidade a elas associadas não existiam, deveríamos hesitar em chamá-los de homossexuais. Das duas palavras recém-inventadas, foi o termo "uranista" aquele mais imediatamente bem-sucedido. E esta concepção biologizante continha o germe da idéia de um "terceiro sexo" que seria tão "natural" quanto os outros dois. Desta forma, pretendia-se justificar atos que ainda naquela época eram considerados como "crimes contra a natureza". Na Inglaterra, por exemplo, o dramaturgo Oscar Wilde foi condenado, em 1895, a dois anos de prisão com trabalhos forçados, sob a acusação de praticar sodomia com Lord Alfred Douglas, criando um escândalo moral público do tipo em que os ingleses são mestres. As repercussões deste escândalo foram graves e iriam retardar em muitos anos o desenvolvimento da emancipação homossexual naquele país, que já era anunciada pelos trabalhos de Havelock Ellis e Edward Carpenter. Havelock Ellis (1859-1939), embora não fosse homossexual, tinha um interesse pessoal no assunto devido ao fato de ser casado com uma lésbica. Era um médico de idéias socialistas que dedicou sua vida ao estudo da sexualidade em geral. Embora negasse a concepção de um "terceiro sexo", era um grande partidário do determinismo biológico e concebia a homossexualidade como uma "involução do impulso sexual", que ele considerava como sendo bastante inócua. Apesar do seu tom às vezes moralista, exigido pelos preconceitos de sua época, foi ele quem estabeleceu certos parâmetros que durante anos iriam nortear campanhas em favor dos homossexuais: 1)O homossexualismo seria marca característica de uma certa minoria incurável. 2) As tentativas de reforma deveriam se voltar para provocar mudanças na lei permitindo que esta minoria vivesse em paz. Nesta época, vários grupos foram constituídos em países europeus para lutar contra a descriminalização da homossexualidade, mas o mais importante foi o estabelecido na Alemanha para abolir o artigo 175 do Código Penal daquele país, que punia o comportamento homossexual entre homens. Este foi fundado em 1897 pelo médico judeu e homossexual Magnus Hirschfeld. Na sua campanha para abolir o artigo 175 e interessar os homossexuais a lutar em favor de seus direitos, o comitê publicou vários livros e panfletos, além do Anuário para Tipos Sexuais Intermediários. Tão bem-sucedida foi esta campanha que conseguiu mais de seis mil assinaturas de personalidades e médicos importantes para um abaixo-assinado e a adesão pública do líder do Partido Social-Democrata, August Bebel, que chegou a proferir um discurso no Reichstag em seu favor. Hirschfeld acreditava, como, Ellis e Carpenter, que as causas do uranismo eram fundamentalmente biológicas. Discordava dele Benedict Friedlander, que saiu do Comitê para fundar um grupo dissidente (Comunidade dos Especiais) e que mencionamos em parte porque suas idéias se parecem com as nossas. Acreditava ele que a homossexualidade não era inata. Ridicularizava a noção de "estados intermediários" e por não concordar com a equiparação dos homossexuais a doentes, atacava a preponderância de médicos no Comitê. Além disso, ele percebia que o comportamento sexual não coincidia com as categorias de homossexual e heterossexual, pois os chamados homossexuais eram capazes de se relacionar heterossexualmente e vice-versa. Assim, ele antecipava as idéias desenvolvidas depois da segunda guerra mundial por Alfred Kinsey. Além disso, Friedlander achava que a bissexualidade era a forma mais plena e menos distorcida da sexualidade humana. Hirschfeld, entretanto, continuou seu trabalho de vento em popa, fundando em 1919 em Berlim o Instituto de Ciência Sexual e organizando o Primeiro Congresso Internacional para a Reforma Sexual. No segundo congresso, em 1928, em Copenhage, foi eleito, junto com Ellis, presidente honorário da recém-fundada Liga Mundial para a Reforma Sexual. Participaram destes congressos representantes de vários países, entre eles Alexandra Kollontai, líder bolchevista e pioneira da luta dos direitos das mulheres, pois na União Soviética imediatamente pós-revolucionária dava-se muita importância à questão da "libertação sexual", chegando-se até a propor a abolição da instituição familiar. Em dezembro de 1917, o governo bolchevique aboliu as leis contra atos homossexuais. Esta medida fazia parte de uma série de iniciativas visando promover uma verdadeira revolução sexual: facilitar o divórcio e o aborto, a legalização da prostituição, concubinato e incesto. A tomada de posição da União Soviética de que a homossexualidade não prejudicava ninguém e que não era problema legal mas sim científico, fez com que os radicais de outros países também apoiassem as reivindicações dos homossexuais. Porém, já no final da década de 1920, surgiram indícios de mudança com a ascensão de Stalin ao poder. No Congresso da Liga Mundial de 1929, os delegados soviéticos de linha mais dura não falaram em homossexualismo, mas condenaram o aborto, ressaltando a importância da "consciência da maternidade" entre as mulheres trabalhadoras. Os stalinistas começaram a desenvolver uma visão da homossexual idade como produto da decadência do setor burguês da sociedade. Glorificando a "decência proletária", começou-se uma campanha contra os homossexuais e esses passaram a ser expurgados do Partido, discriminados, vigiados e denunciados. Em janeiro de 1934 foram efetuadas detenções em massa de homossexuais em Moscou, Leningrado, Kharkov e Odessa. Artistas, intelectuais e outros foram condenados a vários anos de prisão ou exílio na Sibéria, e foi gerada desta. forma uma onda de pânico e suicídios. Finalmente em março de 1934, com o apoio pessoal de Stalin, foi introduzida uma lei punindo homossexuais masculinos com até oito anos de prisão. Esta medida encontrou o apoio da imprensa que iniciou uma violenta campanha contra a homossexualidade com a colaboração do escritor realista socialista Máximo Gorki. O retorno à repressão da homossexualidade fazia parte de um conjunto maior de medidas stalinistas em defesa da concepção tradicional da família, culminando com a abolição do direito ao aborto em 1936. E interessante notar aqui a mesma relação "defesa da família tradicional/ataque à homossexualidade", que observamos no caso da Europa e até o Brasil no final do século XIX. Não era diferente daquela estabelecida pelos alemães nazistas nesta mesma época. Se, na União Soviética, declarava-se a homossexualidade uma "perversão fascista", na Alemanha nazista a homossexualidade ou qualquer desvio da sexualidade procriativa intramarital era vista como "bolchevismo sexual". Em maio de 1933 começou uma campanha de depuração das bibliotecas de livros "pouco germânicos", e o primeiro alvo foi o Instituto de Hirschfeld, que foi atacado por estudantes da Academia de Ginástica com o acompanhamento musical de uma fanfarra. Foram queimados em praça pública mais de 10.000 livros, fotografias, arquivos e um busto do próprio Hirschfeld. Este, já a partir de 1932, tinha se exilado e veio a morrer na França pouco depois da destruição de seu Instituto. Apesar da esquerda alegar que os nazistas eram em grande parte homossexuais, a posição hitlerista era claramente contra esta forma de sexualidade. Quando, em 29 de junho de 1934, uma disputa pelo poder no seio do nazismo ocasionou o assassinato de Ernst Rohm e outros Iíderes da S.A., conhecidos pelas suas práticas homossexuais, acabaram os últimos resquícios de qualquer tolerância da homossexualidade na Alemanha. Em 1935, o número de condenações sob o parágrafo 175 era de 835. Em 1935, a abrangência deste parágrafo foi aumentada para incluir beijos, abraços e até fantasias homossexuais, entre os crimes passíveis de punição. Mas o que era mais importante para o movimento de reivindicação dos direitos dos gays era a elevadíssima incidência de comportamento homossexual nos Estados Unidos. Não era mais possível ignorar que a homossexualidade era um fenômeno bastante amplo na sociedade e certamente não restrito a uma pequena minoria de "desviantes". No mesmo ano em que foi publicado o Relatório Kinsey, foi fundada a Sociedade Mattachine, cujo nome foi tomado de um famoso bobo de corte renascentista, originalmente uma associação secreta cuja estrutura foi copiada do Partido Comunista Americano. Apesar de ter sido fundada por pessoas com posições políticas bastante radicais, a Sociedade Mattachine adotou uma linha de moderação e cautela visando a integração do homossexual na' sociedade através da reforma das leis anti-homossexuais dos Estados Unidos. Seus associados muitas vezes aceitaram a noção da homossexuaIidade como doença, freqüentemente adotavam pseudônimos e enfatizavam a sua "respeitabilidade". A própria palavra "homossexual" tendia a ser rejeitada devido à sua ênfase no "sexual", e outros neologismos foram adotados, como "homófilo" e "homoerótico". Esta postura aparentemente tímida é bastante compreensível se levarmos em conta a natureza repressiva da sociedade americana de então, e da ameaça constante que o macartismo apresentava para qualquer atuação política mais radical. Como os outros grupos que o precederam na militância homossexual, a Sociedade Mattachine sofreu desavenças internas, levando ao surgimento de novas associações, das quais as mais importantes eram "One Inc." e o grupo exclusivamente lésbico "As filhas de Bilits". Em outros países também surgiram grupos parecidos, como "Arcadie", na França, "Forbundet 48" na Dinamarca, "COC" na Holanda etc. Apesar de preconizar atitudes políticas "moderadas", essas associações tiveram uma atuação importante e em alguns casos até audaciosa, como uma passeata automobilística realizada em Los Angeles em 1966 para protestar contra a exclusão de homossexuais das forças armadas americanas. A importância destes grupos homófilos pode ser avaliada pelo fato de que em 1969 havia 150 deles nos Estados Unidos. Mas a partir de 1969, o movimento homossexual, inicialmente nos Estados Unidos mas depois em inúmeros outros lugares, tomou uma feição mais radical. Isto se seguiu ao surgimento do movimento hipp ie e ao desenvolvimento da chamada contracultura. Inicialmente não se questionava muito os papéis sexuais. De fato, em alguns casos a procura de formas de vida que fossem mais "natu rais" até reforçou estereótipos destes papéis com uma ênfase na versão idealizada da "mulher camponesa", "meiga e fértil" como um novo modelo feminino. Mas os eventos de maio de 1968 em Paris e a incorporação de noções de libertação sexual pela contracultura, juntamente com uma nova militância negra e feminista, formam o pano de fundo social para a criação da Frente de Libertação Gay (FLG), que começou nos Estados Unidos, mas logo se espalhou para grande parte da Europa Ocidental. O que parece ter marcado o nascimento deste grupo foi a "Rebelião de Stonewall", que é para o movimento homossexual algo parecido com a tomada da Bastilha para a Revolução Francesa. Na noite de 28 de junho de 1969, uma sextafeira, alegando o descumprimento das leis sobre a venda de bebidas alcoólicas, a polícia tentou interditar um bar chamado "Stonewall Inn", localizado em Christopher Street, a rua mais movimentada da área conhecida como o "gueto" homossexual de Nova York. O que era para ser simplesmente uma ação policial rotineira, suscitou uma reação inédita. Os freqüentadores do bar reagiram e começou uma batalha que durou o fim de semana inteiro. Gritava-se palavras de ordem como "Poder Gay", "Sou bicha e me orgulho disso", "Eu gosto de rapazes" etc. Pouco depois a Frente de Libertação Gay lançou seu jornal, Come Out (Assuma-se) e decretou-se a data de 28 de julho "Dia de Orgulho Gay", em comemoração deste "mito de origem". Como sempre, os militantes que pretendiam politizar explicitamente a questão homossexual eram uma minoria. Mas o seu posicionamento refletia uma mudança mais generalizada entre uma proporção considerável da população homossexual. As paíavras de ordem" Asuma-se" ou "Saia da clandestinidade e vá para as ruas" foram levadas a sério por um grande número de pessoas nas suas vidas cotidianas. Entre muitos, o velho hábito de esconder as suas preferências sexuais passou a ser considerado não somente prejudicial, mas até vergonhoso. Nos Estados Unidos e na Europa Ocidental principalmente chegou até a ser moda o uso de sinais homossexuais tais como a letra grega À (lambda) ou botões com dizeres do tipo: "Como ousa pensar que eu seja heterossexual?". Mesmo no Brasil, principalmente entre pessoas que desfrutam de uma maior independência sócio-econômica, tornou-se comum a adoção de uma identidade gay. É óbvio que sob muitos aspectos este é um desenvolvimento altamente positivo, diminuindo em grande parte as antigas tensões impostas pela clandestinidade e a vergonha. Mas é relevante ressaltar que freqüentemente embutida nesta nova postura está a adoção de uma identidade também imposta de fora com suas regras pré-estabelecidas. A principal delas sendo aquela que restringe a possibilidade de relações do gay somente a pessoas do seu próprio sexo. Para resolver problemas causados por esta nova rigidez, inventou-se também a figura do "bissexual", mas este permanece um personagem profundamente ambíguo e muitas vezes mal visto tanto pelos heteros quanto pelos homossexuais. pretendido congregar tanto homossexuais masculinos quanto femininos, depois de alguns meses a maioria das mulheres saiu do grupo para formar um outro, que fosse exclusivamente lésbico. Isto se deu em grande parte devido ao fato de elas se sensibilizarem por várias diferenças importantes entre a problemática homossexual masculina e feminina, que as levaram a se identificar mais intimamente com as militantes feministas. Porém, no Brasil, como em outros países, as lésbicas encontraram uma forte relutância inicial, mas agora já superada, por parte das feministas, em admitir em suas organizações mulheres que faziam questão de se assumirem publicamente como homossexuais. A opção sexual das lésbicas não deixava de causar estranheza e até repulsa às feministas heterossexuais. Isto ocorria apesar de muitas mulheres homossexuais já estarem vivendo suas vidas de acordo com os ideais de autonomia pessoal que, para muitas das feministas, ainda não passava de aspirações a serem realizadas em um futuro não-imediato. Nos primeiros anos de existência da gigantesca organização feminista "moderada" americana NOW, a própria fundadora e então presidenta da organização, Betty Friedan, se colocou fortemente contra um posicionamento favorável ao lesbianismo por parte daquela entidade. Sua atuação oportunista, para não dizer preconceituosa, foi justificada sob a alegação de que era necessário preservar a imagem das feministas. O fato é que já há muito tempo aqueles que se opõem à emancipação feminina têm usado como uma de suas primeiras formas de ataque a acusação de que mulheres empenhadas em se impor socialmente seriam lésbicas. Para mencionar um exemplo brasileiro recente, lembramos uma manchete do jornal Hora do Povo, que durante a campanha eleitoral de 1982 apoiava o peemedebista Miro Teixeira contra sua então principal rival ao governo do estado do Rio de Janeiro, Sandra Cavalcanti. Uma das edições vinha com grande parte de sua primeira página preenchida por letras garrafais na manchete: "Miro entra de sola em Sandra sapatão". Convém lembrar que a senhora em questão, longe de ser feminista, era uma política extremamente conservadora e apelava para ideais tradicionais como a proteção da família. Mas como uma mulher ambiciosa e empenhada em disputar com homens o poder, ela estava inevitavelmente exposta a este tipo de acusação. Mas, embora esta rotulação de mulheres dominantes e de caráter forte como homossexuais tenha geralmente sido usada com o fim de isolar tais mulheres e evitar a formação de organizações femininas poderosas, elas nem sempre foram destituídas de algum fundamento. Hoje, quando o movimento feminista em geral já começa a encarar mais abertamente a questão, surge o reconhecimento público de que numerosas militantes em organizações reivindicatórias femininas eram ou são lésbicas. Recentemente, uma cientista social feminista, Annabel Faraday, chegou a postular que a lésbica não deve ser vista como a simples versão feminina do homossexual masculino. Afirmando que, embora os dois tenham em comum o fato de não serem heterossexuais, ela mantém que se a heterossexual idade for vista como uma relação de poder entre homens e mulheres, então o que homossexuais masculinos e lésbicas estão rejeitando são duas experiências opostas. Segundo Faraday, a conceptualização corrente da lésbica, simplesmente em termos de sua atividade sexual, ignorando o significado e o contexto social desta sexualidade, serve somente para restringir e confinar as mulheres dentro de definições masculinas. Ao presumir que esta preferência seja um dado da natureza, em vez de procurar entender o que leva uma mulher a escolher outra mulher como parceira, cai-se na concepção de "condição" ou de "mulheres que se descobrem homossexuais". Daí a vê-las como problemáticas, neuróticas etc., é só um pequeno passo. Em contrapartida, um grupo radical americano, as "Radicalesbians", propõe que as mulheres deixem de ser julgadas em termos de seu comportamento sexual e que sejam tomadas em conta as suas identidades totais. Deixando de lado o termo "lésbicas", elas preferem falar em "mulheres identificadas com mulheres", enfatizando a significação política de se colocarem como mulheres em primeiro lugar, numa sociedade que exige que elas estruturem suas vidas em torno dos homens. Novamente aqui vemos colocada a questão da homossexualidade em termos de um papel social, neste caso muitas vezes conscientemente assumido. Adaptando este caso ao nosso esquema, podemos dizer que, na visão popular, as feministas seriam consideradas mulheres-homens (ou "sapatões" como ainda hoje acontece), pois as qualidades de independência, questionamento, inovação, auto-afirmação etc., cultivadas por estas mulheres, são tradicionalmente atributos do papel masculino. Porém, a essência deste movimento é justamente a contestação desta organização dos papéis sexuais. Estando dispostas a levar esta contestação até o fim, algumas feministas radicais não recuam perante a adoção de outro aspecto do papel tradicionalmente reservado aos homens biológicos, a adoção de mulheres como suas parceiras. Como esta escolha muitas vezes faz bastante sentido, visto no contexto da luta política em que estão empenhadas, não há nada a estranhar. Afinal, como já vimos, o sentido mais fundamental de suas exigências é justamente a negação de qualquer limitação apriorista em nome de uma "naturalidade" espúria das formas de comportamento permissíveis ao indivíduo. Mas, voltando às dificuldades de relacionamento notadas entre os homossexuais masculinos e femininos, vemos que estas se dão em vários níveis. Um dos mais importantes se relaciona ao serem extremamente fugazes, muitas vezes não ultrapassando um único encontro. Se por acaso não for possível encontrar um parceiro, recorre-se à masturbação, auxiliada talvez por uma revista pornográfica. Outra alternativa é uma visita a uma "sauna gay", onde, além de poder assistir videocassetes pornográficos, o freguês tem a oportunidade de ocupar um pequeno cubículo de repouso juntamente com algum outro freqüentador que tenha despertado o seu interesse. Caso nenhum lhe interesse, ele pode ainda pagar o massagista de plantão e fazer um relax. Hoje, de fato, em algumas das grandes cidades brasileiras, as oportunidades abertas a um homem para ter uma relação sexual descompromissada com outro homem são quase infinitas. Esta propensão ao sexo impessoal agride profundamente as mulheres, tanto hetero quanto homossexuais, criadas como foram a associar sexo e afeto, e elas freqüentemente criticam asperamente os homossexuais. masculinos, alegando que eles são inconseqüentes e alienados. O que as deixa especialmente indignadas é a prostituição e a pornografia, por serem instâncias da transformação de pessoas em "objetos sexuais", isto é, o isolamento daqueles aspectos vistos como estritamente relacionados à sexualidade, da totalidade da personalidade de uma pessoa. O que provoca tanta rejeição entre feministas é que esta "objetificação sexual" é considerada por elas, e com boas razões, uma das maneiras como tradicionalmente os homens têm oprimido as mulheres. Porém, talvez caiba aqui levantar novamente a constatação de que é perigoso ignorar a significação social que envolve a sexualidade em casos específicos. Poderíamos arriscar a opinião de que, em uma sociedade onde os homens dominam, o sexo impessoal entre eles adquire um significado diferente e menos opressivo daquele que envolve parceiros de sexos distintos, em que já de início um está em uma posição privilegiada somente por ser homem. O costume de alguns homossexuais masculinos de imitar o comportamento das mulheres, e até de se referirem a si mesmos usando formas femininas, é percebido por muitas feministas heterossexuais ou lésbicas como uma forma de agressão. O homossexual extremamente desmunhecado é freqüentemente acusado de reforçar, na sua versão caricatural da feminilidade, os seus aspectos mais opressivos. Coerentemente elas também antipatizam com a reprodução dos papéis "ativo" /"passivo", "fanchona" /"Iady" que hoje parecem predominar mais no "gueto" lésbico que no homossexual masculino. Embora estas reações sejam bastante compreensíveis, parece- nos importante chamar a atenção para certos aspectos positivos, como a corrosividade e o deboche geralmente presentes nestes pastiches de masculinidade e feminilidade. Especialmente entre os homossexuais masculinos freqüentadores do "gueto", é muito prezada a "fechação" (um tipo de desmunhecação proposital e escandalosa) como forma de humor, expressão de uma identidade grupal e meio de agredir os que têm preconceitos anti-homossexuais. Parece razoável, portanto, lembrar àqueles que criticam esta adoção de caricaturas dos papéis de gênero normalmente reservados aos membros do sexo biológico oposto, que quando homens se portam como vamps da HoIIvwood da década de 1940, eles não estão necessariamente manifestando um desejo de realmente virarem mulheres fúteis, e sim ridicularizando a artificialidade daqueles papéis. Era este, por exemplo, o sentido da atuação já mencionada dos Dzi Croquettes. Até o travesti, quanto mais parecido consegue ficar com uma mulher, mais ele está pondo em questão a naturalidade de qualquer tipo de feminilidade, pois tanto ele quanto os que o cercam, no fundo, nunca podem esquecer-se completamente que ele é de fato um homem. Mas é preciso lembrar aqui que estes tipos de comportamento são extremos e talvez a nossa representação deles tenha até exagerado seus aspectos caricaturais. Normalmente, o comportamento de indivíduos homossexuais segue muito mais fielmente as normas vigentes para o seu sexo e geralmente é preciso ter uma percepção muito aguda para poder identificar um homossexual (tanto masculino quanto feminino) que não deseja se mostrar como tal. Também vale a pena ressaltar que as generalizações feitas aqui sobre homossexuais masculinos e femininos devem ser matizadas pela lembrança de que homens e mulheres nunca formam blocos homogêneos, e que as variações existentes dentro de cada grupo social podem ser tão grandes quanto as que existem entre estes mesmos grupos. Apesar das diferenças mencionadas, homossexuais masculinos e femininos freqüentemente se unem tanto para fins de lazer quanto para reivindicações políticas, como ocorreu na já mencionada manifestação contra a violência policial em São Paulo. Acima de tudo, o grande fator de união dos homossexuais de ambos os sexos é a posição marginalizada e desviante que lhes é reservada na sociedade. Além da discriminação a que estão sujeitos, existem utros problemas comuns aos dois grupos, como, por exemplo, a falta de modelos tradicionalmente estabelecidos que norteiem as relações homossexuais. Tanto os homens quanto as mulheres são defrontados com sérios problemas quando tentam adotar os padrões heterossexuais para seus relacionamentos, uma vez que inexistem nos seus casos os fatores externos importantes para a manutenção da estabilidade dos casais heterossexuais, tais como pressões familiares, vicinais e de trabalho, e a responsabilidade pela criação dos filhos. Ao contrário dos heterossexuais, casais homossexuais não são unidos por nenhuma espécie de contrato social e geralmente a principal base de seus relacionamentos é a atração e afeição mútuas. Bases essas que são notoriamente impermanentes. Observamos que, ao longo dos últimos anos, o que chamamos de um arranjo "popular" dos papéis sexuais está sob forte pressão por parte de áreas das classes médias urbanas que, ao produzir uma ideologia essencialmente igualitária, colocam em cheque tanto os papéis tradicionais de "homem" e "mulher" como os papéis tradicionais de "bicha" e "sapatão". E assim que entendemos o surgimento do "entendido" na década de 60 e a subseqüente aparição do gay e do "homossexual militante". Se os heterossexuais estão procurando novas formas de convivência, os homossexuais também o estão. Até mais ou menos 1975, os partidos políticos de oposição consideraram que os movimentos feminista, negro e homossexual eram irrelevantes à luta geral, ou seja, a questão das desigualdades entre as classes sociais. O que marca os anos mais recentes destas áreas ditas minoritárias, é o fato de elas terem chegado a ser reconhecidas também como "políticas", a partir de uma visão da sociedade que enxerga o poder não apenas no Estado, mas também na rua, no escritório, no hospital, dentro de casa e na cama. Esta "politização da vida cotidiana" é seguramente um dos fenômenos mais interessantes dos últimos anos. Fernando Gabeira, Herbert Daniel e outros que o digam. E justamente nesta época que Michel Foucault compete com os velhos heróis para o primeiro lugar das bibliografias dos cursos de ciências humanas das universidades. Mas, por mais que estas idéias tenham sido amplamente divulgadas, atingiram apenas uma pequena minoria da população e temos as nossas dúvidas sobre o quanto elas estão postas em prática, mesmo por aqueles que mais proclamam na. imprensa, na televisão e nas reuniões públicas. O fato é que a homossexualidade continua sendo tratada, na prática, como uma indigesta mistura de pecado, sem-vergonhice e doença. Diariamente, a imprensa marrom estampa manchetes que contam escândalos envolvendo homossexuais. Na procura de emprego, os testes psicológicos ainda procuram detectar a orientação sexual dos candidatos. Nas famílias, muitos meninos e meninas sofrem horrores ao perceberem que sentem desejo homossexual; seus pais continuam ou rejeitando estes filhos ou, na melhor das hipóteses, compartilhando a vergonha, como se fossem eles os responsáveis. Nas ruas, a polícia armada com as leis contra "vadiagem" discrimina homossexuais assim como discrimina os negros. Mesmo os amigos mais "tolerantes" ainda guardam um pouco de "pena" para seus amigos homossexuais. Um dos fundadores do jornal Lampião, Antônio Crisóstomo, foi sentenciado a quase 4 anos de prisão, acusado de atentado violento ao pudor com sua filha adotiva, apesar de não constar nenhuma evidência de que a menina tenha sido violentada sexualmente. O advogado de defesa, na sua apelação, mostra claramente que o fator predominante que levou à sua condenação foi o fato de ele ser homossexual. Outros exemplos que certamente incluiriam dezenas de assassinatos de homossexuais ocorridos anualmente preencheriam muitas páginas, mas é importante frisar que, apesar de toda a tinta e energia gastas nos últimos anos, a homossexualidade continua sendo alvo de discriminação em todas as áreas da vida social. No entanto, temos uma visão otimista do futuro, porque realmente a vida dos que são chamados e dos que se proclamam homossexuais nesta década de 80 é seguramente menos penosa do que foi aquela dos que vieram antes, graças em grande parte aos movimentos homossexuais no mundo todo. E de se esperar que este avanço continue, mesmo se os exemplos que citamos da União Soviética mostrem que todo "progresso" é frágil. A ameaça de uma reação contra as primeiras liberdades conquistadas está sempre presente. Porém, este "avanço" coloca novos problemas e novas angústias, pois se é verdade que a homossexualidade é em geral menos discriminada que antes, o seu reconhecimento como algo válido e legítimo tanto por parte das elites culturais quanto das do capital faz com que se estabeleçam novas normas de conduta que não deixam de cercear a vida social e sexual dos indivíduos. Se no Brasil que chamamos de popular, os rapazes são divididos entre "machos" e "bichas", o mundo moderno opera no sentido de dividi- los em "homossexuais", "heterossexuais" e, marginalmente, "bissexuais", num linguajar erudito, e "entendidos", gays, "caretas" e "giletes" na gíria corrente. Tem muita gente que preferiria não ter que se submeter a estas novas categorias sociais que tendem a empurrá-los para "guetos" estanques. Prefeririam que estas categorias sociais fossem elas mesmas combatidas e acabam entrando em choque não só com a ciência médica mas também com alguns "homossexuais conscientes" que, por razões várias, têm interesse na manutenção das distinções. Afinal, negar a inevitabilidade da fronteira que separa os "homossexuais" dos "heterossexuais" colocaria em questão a própria noção de uma identidade homossexual que, para muitas pessoas, representa um modo de dar ordem às suas vidas, cheio de possibilidades de gratificação e muitas vezes "assumido" a duras penas. O fato de haver um debate em torno destas questões e outras apenas confirma o argumento deste livro, que coloca a homossexualidade, acima de tudo, como um fato social. E como tal, é palco das mesmas disputas, paradoxos, contradições e transformações que caracterizam a sociedade como um todo. INDICAÇÕES PARA LEITURA A bibliografia sobre homossexualidade é enorme. Sugerimos a leitura das seguintes, que têm o mérito de serem em português e de publicação recente. MASTERS, W. H., e JOHNSON, V. E., Homossexualidade em Perspectiva, Artes Médicas, 1979. Os dois famosos pesquisadores da fisiologia do sexo voltam sua atenção e "eletrodos" para as relações homossexuais. Concluem que a homossexualidade pode ser "sadia" e, em alguns casos, que os homossexuais podem ser melhores amantes que os heteros. MONEY, J., e TUCKER, P., Papéis Sexuais, Brasiliense, 1981. Discussão da psicologia clínica em torno dos aspectos sociais e biológicos na formação dos papéis sexuais. NAZARIO, L, Pasolini, Brasiliense, 1982 (coleção Encanto Radical) Biografia do cineasta, ensaísta e poeta italiano que a certa altura discute o significado da homossexualidade na sua obra. Vale a pena ler. OKITA, H., Homossexualismo: da Opressão à Libertação, Proposta Editorial, 1980. Livreto elaborado por militantes da Convergência Socialista tentando persuadir os homossexuais a se filiarem àquela organização ou ao P.T. ORAISON, M., A Questão Homossexual, Nova Fronteira, 1977. Um padre, médico e psicólogo escreve positivamente sobre o assunto levando em consideração a posição cristã. VÁRIOS AUTORES, Caminhos Cruzados, Brasiliense, 1982. Contém três artigos sobre a homossexualidade pelos autores deste livro, tratando da "fechação", da homossexualidade na literatura naturalista e do caso de Febrônio [ndio do Brasil, que foi internado como louco em 1927, entre outras razões, por ser acusado de ser homossexual. WOLFF, C., Amor entre Mulheres, Nova Fronteira, 1978. Uma visão psicanalítica simpática ao lesbianismo. Inclui considerações sociais também. Deixamos de lado toda a parte de ficção, mas recomendamos os romances: Interlúdio em São Vicente, de João Silvério Trevisan; República dos Assassinos e No País das Sombras, de Aguinaldo Silva; Os Solteiri5es, de Gasparino Damata; A Meta, Crescilda e os Espartanos, Teoremambo e Nivaldo e Jerônimo, de Darcy Penteado; sem esquecer Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha. Há uma infinidade de obras de ficção tratando do tema e esta é, então, uma pequena lista pessoal composta estritamente de autores brasileiros. Uma lista mais abrangente, incluindo estrangeiros, não poderia esquecer nomes como André Gide, Mareei Proust, Jean Genet, James Baldwin, Radcliffe Hall, Robin Maugham, E. M. Forster, Christopher Isherwood, Gore Vida I, John Rechy, Tennesse Williams, William Burroughs, Margherite Yourcenar, Cavafis, Oscar Wilde, Fernando Pessoa, Shakespeare e muitos outros. Existem vários trabalhos, de mais difícil acesso, que foram fundamentais na preparação deste livro. BIBLIOGRAFIA AUFTERHEIDE, P., 1973, "True Confessions: The Inquisition and Social Attitudes in Brazil at the Turn of the XVII Century", Luso-Brazilian Review, 10 (2), pp. 208-240. ClASTRES, P., 1978, "O Arco e o Cesto", in CLASTRES, P., A Sociedade contra o Estado, Rio, Francisco Alves. DI:SY, P., 1978, "l'homme-femme", in Libre, pp. 57-102. FARADAY, A., 1981, "Liberating lesbian Research", in Kenneth Plummer (Ed.) The Making of the Modern Homosexual, london. Hutchinson. KRAFFT-EBING, R. von, 1965. Psychopathia Sexualis, New York. Paperback Library. LAURITSEN, J. e THORSTAD, D., 1974, The Ear/y Homosexual Rights Move/7Jent (1864-1935), New York. Times Change Press. LOBERT, R., 1979, A Palavra Mágica Dzi: Uma resposta difícil de se perguntar, dissertação de mestrado, Unicamp, mimeo. MacRAE, E., 1982, "Os respeitáveis militantes e as bichas loucas", in Caminhos Cruzados: Linguagem, Antropologia e Ciências Naturais, vários autores, S. Paulo. Brasiliense. MEAD, M., 1969, Sexo e Temperamento, São Paulo. Perspectiva. MOTT, L. R. B., 1982, "Escravidão e Homossexualidade", trabalho apresentado no 111 Congresso Afro-Brasileiro, Fundação Joaquim Nabuco, Recife, setembro de 1982, mimeo. MOTT, L. R. B., 19S2b, "A Homossexualidade: Uma Variável Esquecida pela Demografia Histórica. Os Sodomitas no Brasil Colonial", Comunicação apresentada no 39 Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, Vitória, mimeo. PIRES DE ALMEIDA, 1906, Homossexualismo (A Libertinagem no Rio de Janeiro), Rio: Laemmert C. RAMALHO, J. R., 1979, Mundo do Crime, Rio. Graal. RIBEIRO, L., 1938, Homossexualismo e Endocrinologia, Rio. Francisco Alves. VEYNE, P., 1982, "L'homosexualité à Rome", Communications, n9 35, Paris, Seuil. WEINBERG, G., 1973, Society and the Healthy Homosexual, New York, Anchor Books. WHITAKER, E. de A., 1938, "Contribuição ao estudo dos homossexuais", Arquivos da Sociedade de Medicina Legal e Criminologia de São Paulo, vol. VIII, pp. 217 -222. Biografia Peter Fry nasceu na Inglaterra, pesquisou na África, fez doutoramento em Londres e leciona Antropologia Social desde 1970 na UNICAMP. Foi um dos fundadores do jornal Lampião. Publicou Spirits of Protest (Cambridge LJniversityPress) e ParaInglês Ver (Zahar) e alguns artigos em jornais e revistas.
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