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Guias e Dicas
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A Democraciana na America - Vol II - Alexisde Tocqueville, Notas de estudo de Relações Internacionais

Descrição da Democracia Americana início do século XIX

Tipologia: Notas de estudo

2014

Compartilhado em 05/03/2014

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Baixe A Democraciana na America - Vol II - Alexisde Tocqueville e outras Notas de estudo em PDF para Relações Internacionais, somente na Docsity! Alexis de Tocqueville A DEMOCRACIA NA AMÉRICA Livro II Sentimentos e Opiniões Martins Fontes A DEMOCRACIA NA AMÉRICA Oonpe (Po Nam frul/to Esta obra fo i publicada originalmente em francês com o título DE LA DÉMOCRATIE EN AMÉRIQUE - VOL. II. Copyright © GF-Flammarion, Paris, 1981 pela Introdução (em “Leis e Costumes” )e notas. Copyright © 1999, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., Sâo Paulo, para a presente edição. I1 edição fevereiro de 2000 2* tiragem agosto de 2004 Tradução EDUARDO BRANDÃO Preparação do original Luzia Aparecida dos Santos Revisão gráfica Eliane Rodrigues de Abreu Ana Maria de Oliveira Mendes Barbosa Produção gráfica Geraldo Alves Paginação/Fotolitos Studio 3 Desenvolvimento Editorial Dados Intemadonais de Catalogação na Pubicação (CEP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Ibcqueville, Alexis de, 1805-1859. A democracia na América : sentimentos e opiniões : de uma pro­ fusão de sentimentos e opiniões que o estado social democrático fez nascer entre os americanos / Alexis de Tocqueville ; tradução Eduardo Brandão. - Sfto Paulo : Martins Fontes, 2000. - (Paidéia) Título original: De la démocratie en Amérique. ISBN 85-336-1151-X t. Democracia 2. Estados Unidos - Condições sociais 3. Estados Unidos - Política e governo I. Título. II. Série. 99-4370_________________________________ CDD-321.80420973 índices para catálogo sistemático: 1. Estados Unidos : Democracia : Ciência política 321.80420973 Todos os direitos desta edição para a língua portuguesa reservados à Livraria Martins Fontes Editora Ltda. Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil Tel. (11) 3241.3677 Fax (11)3105.6867 e-mail: info@martinsfontes.com.br http://www.martinsfontes.com.br ÍNDICE Advertência........................................................................ XI PRIMEIRA PARTE A INFLUÊNCIA DA DEMOCRACIA NO MOVIMENTO INTELECTUAL DOS ESTADOS UNIDOS I. Do método filosófico dos americanos................. 3 II. Da fonte principal das crenças entre os povos democráticos.......................................................... 9 III. Por que os americanos mostram maior aptidão e gosto pelas idéias gerais do que seus pais, os ingleses.................................................................... 15 IV. Por que os americanos nunca foram tão apai­ xonados quanto os franceses pelas idéias gerais em matéria política............................. .................. 21 V. Como, nos Estados Unidos, a religião sabe ser- vir-se dos instintos democráticos......................... 23 VI. Do progresso do catolicismo nos Estados Uni­ dos..................................... ..................................... 33 VII. O que faz o espírito dos povos democráticos in­ clinar-se para o panteísmo................................... 35 VIII. Como a igualdade sugere aos americanos a idéia da perfectibilidade indefinida do homem.. 37 IX. Como o exemplo dos americanos não prova que um povo democrático não seria capaz de ter ap­ tidão e gosto para as ciências, literatura e artes.... 41 X. Por que os americanos se aplicam mais à práti­ ca das ciências do que à teoria............................ 47 XI. Com que espírito os americanos cultivam as ar­ tes ...... ..................................................................... 55 XII. Por que os americanos erguem ao mesmo tem­ po monumentos tão pequenos e tão grandes.... 61 XIII. A fisionomia literária das eras democráticas...... 63 XIV. Da indústria literária.............................................. 69 XV. Por que o estudo da literatura grega e latina é particularmente útil nas sociedades democráti­ cas ........................................................................... 71 XVI. Como a democracia americana modificou a lín­ gua inglesa............................................................. 75 XVII. De algumas fontes de poesia nas nações demo­ cráticas.................................................................... 83 XVIII. Por que os escritores e os oradores americanos costumam ser empolados..................................... 91 XIX. Algumas observações sobre o teatro dos povos democráticos.......................................................... 93 XX. De algumas tendências particulares aos histo­ riadores nas eras democráticas............................ 99 XXI. Da eloqüência parlamentar nos Estados Unidos... 105 SEGUNDA PARTE A INFLUÊNCIA DA DEMOCRACIA SOBRE OS SENTIMENTOS DOS AMERICANOS I. Por que os povos democráticos mostram um amor mais ardente e mais duradouro pela igual­ dade do que pela liberdade.................................. 113 II. Do individualismo nos países democráticos...... 119 III. Como o individualismo é maior após uma re­ volução democrática do que em outra época .... 123 IV. Como os americanos combatem o individualis­ mo por meio de instituições livres...................... 125 V. Do uso que os americanos fazem da associação na vida civil............................................................ 131 VI. Da relação entre as associações e os jornais..... 137 XXII. Por que os países democráticos desejam natu­ ralmente a paz e os exércitos democráticos, na­ turalmente a guerra................ .............................. 329 XXIII. Qual é, nos exércitos democráticos, a classe mais aguerrida e mais revolucionária.................. 337 XXIV. O que toma os exércitos democráticos mais fra­ cos que os outros exércitos ao entrar em campa­ nha e mais temíveis quando a guerra se prolonga 341 XXV. Da disciplina nos exércitos democráticos.......... 347 XXVI. Algumas considerações sobre a guerra nas so­ ciedades democráticas........................................... 349 QUARTA PARTE DA INFLUÊNCIA QUE AS IDÉIAS E OS SENTIMENTOS DEMOCRÁTICOS EXERCEM SOBRE A SOCIEDADE POLÍTICA I. A igualdade dá naturalmente aos homens o gosto pelas instituições livres............................. 357 II. Que as idéias dos povos democráticos em matéria de governo são naturalmente favorá­ veis à concentração dos poderes...... .................. 359 III. Que os sentimentos dos povos democráticos estão de acordo com suas idéias para levá-los a concentrar o poder............................................. 363 IV. De algumas causas particulares e acidentais que terminam por levar um povo democrático a centralizar o poder ou que o afastam dessa cen­ tralização...... ............. ............................................ 367 V. Que entre as nações européias de nossos dias o poder soberano aumenta conquanto os so­ beranos sejam menos estáveis............................. 375 VI. Que espécie de despotismo as nações democrá­ ticas devem temer............................................... 387 VII. Continuação dos capítulos anteriores...... ........... 395 VIII. Visão geral do tema.......... .................................... 405 Notas do autor............................................................... . 409 Notas................................................................................... 419 Advertência Os americanos têm um estado social democrático que lhes sugeriu naturalmente certas leis e certos costumes políticos. Esse mesmo estado social, além disso, fez nascer, entre eles, uma profusão de sentimentos e de opiniões que eram desconhecidos nas velhas sociedades aristocráticas da Euro­ pa. Ele destruiu ou modificou relações que existiam outrora e estabeleceu novas. O aspecto da sociedade civil viu-se tão mudado quanto a fisionomia do mundo político. Tratei do primeiro tema na obra publicada por mim há cinco anos, sobre a democracia americana. O segundo é obje­ to do presente livro. Essas duas partes se completam e formam uma só obra, Devo, desde já, prevenir o leitor contra um erro que me seria muito prejudicial. Vendo-me atribuir tantos efeitos diversos à igualdade, o leitor poderia concluir que considero esta a causa única de tu­ do o que acontece em nossos dias. Seria supor-me dono de uma visão deveras estreita. Há, em nossos dias, uma porção de opiniões, de senti­ mentos, de instintos que devem seu surgimento a fatos es­ tranhos ou até contrários à igualdade. Assim, se tomasse os Estados Unidos como exemplo, eu provaria facilmente que a natureza do país, a origem de seus habitantes, a religião dos primeiros fundadores, as luzes que adquiriram, seus hábitos anteriores exerceram e ainda exercem, independentemente da democracia, uma imensa influência sobre sua maneira de pen­ sar e de sentir. Causas diferentes, mas igualmente distintas CAPÍTULO I Do rriétodo filosófico dos americanos Creio que não há, no mundo civilizado, país em que o povo se ocupe menos de filosofia do que os Estados Unidos. Os americanos não têm escola filosófica própria e preo­ cupam-se pouquíssimo com todas as que dividem a Europa. Mal sabem o nome delas. É fácil ver, contudo, que quase todos os habitantes dos Estados Unidos dirigem seu espírito da mesma maneira e o conduzem de acordo com as mesmas regras; ou seja, eles pos­ suem certo método filosófico comum a todos, sem nunca te­ rem se dado ao trabalho de definir suas regras. Escapar do espírito de sistema, do jugo dos costumes, das máximas familiares, das opiniões de classe e, até certo ponto, dos preconceitos nacionais; não tomar a tradição mais que como uma informação e os fatos presentes como um estudo útil para fazer de outro modo e melhor; procurar por si mes­ mo e em si mesmo a razão das coisas, tender ao resultado sem se deixar acorrentar ao meio e visar o fundo através da forma: são estes os traços principais que caracterizam o que chamarei de método filosófico dos americanos. Se for ainda mais longe e se, entre esses traços diversos, procurar o principal e o que pode resumir quase todos os ou­ tros, descubro que, na maioria das operações do espírito, ca­ da americano apela apenas para o esforço individual da sua razão. A América é, pois, um dos países do mundo em que me­ nos se estudam e em que melhor se seguem os preceitos de Descartes. Isso não deve surpreender. 4 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA Os americanos não lêem as obras de Descartes, porque seu estado social os desvia dos estudos especulativos, e se­ guem suas máximas, porque esse mesmo estado social dispõe naturalmente seu espírito a adotá-las. No meio do movimento contínuo que reina no seio de uma sociedade democrática, o vínculo que une as gerações entre si se afrouxa ou se rompe; cada qual perde facilmente nisso o vestígio das idéias de seus antepassados ou não se in­ comoda com elas. Os homens que vivem em semelhante sociedade tam­ pouco poderiam derivar suas crenças das opiniões da classe a que pertencem, porque, por assim dizer, não existem mais classes, e as que ainda existem são compostas de elementos tão movediços que o corpo nunca poderia exercer, nelas, um verdadeiro poder sobre os membros. Quanto à ação que pode ter a inteligência de um ho­ mem sobre a de outro, é necessariamente muito restrita num país em que os cidadãos, que pouco a pouco se tomaram semelhantes, vêem-se todos de bem perto e, não perceben­ do nenhum deles os sinais de uma grandeza e de uma supe­ rioridade incontestes, são incessantemente remetidos de volta à própria razão, como fonte mais visível e mais próxima da verdade. Então, não é apenas a confiança num homem deter­ minado que é minada, mas o próprio gosto de crer num ho­ mem qualquer com base em sua palavra. Cada qual se tranca, pois, estreitamente em si e preten­ de julgar o mundo a partir daí. O uso dos americanos, de buscar em si mesmo a regra de seu juízo, conduz seu espírito a outros costumes. Como vêem que conseguem resolver sem ajuda todas as pequenas dificuldades que sua vida prática apresenta, con­ cluem facilmente que tudo no mundo é explicável e que nele nada ultrapassa os limites da inteligência. Assim, negam sem problema o que não podem com­ preender; isso lhes proporciona pouca fé no extraordinário e um repúdio quase insuperável pelo sobrenatural. Como é a seu próprio testemunho que eles têm o costu­ me de se referir, gostam de ver claramente o objeto de que se ocupam; livram-no então, tanto quanto podem, de seu invó­ PRIMEIRA PARTE 7 do - não reina apenas como uma filosofia adotada após exa­ me, mas como uma religião em que se crê sem discutir. Nos Estados Unidos, as seitas cristãs variam infinitamen­ te e se modificam sem cessar, mas o cristianismo é um fato estabelecido e irresistível que ninguém procura atacar ou de­ fender. Tendo admitido sem exame prévio os principais dogmas da religião cristã, os americanos são obrigados a receber da mesma maneira um grande número de verdades morais que dela decorrem e a ela se prendem. Isso encerra em limites es­ treitos a ação da análise individual e subtrai-lhe várias das mais importantes opiniões humanas. A outra circunstância de que falei é a seguinte: os ame­ ricanos têm um estado social e uma constituição democráti­ cas, mas não tiveram uma revolução democrática. Chegaram ao solo que ocupam mais ou menos como os vemos. Isso é considerável. Não há revoluções que não revolvam as antigas crenças, debilitem a autoridade e obscureçam as idéias comuns. Toda revolução tem mais ou menos como efeito entregar os ho­ mens a si mesmos e abrir diante do espírito de cada um de­ les um espaço vazio e quase ilimitado. Quando as condições se tomam iguais, em conseqüência de uma luta prolongada entre as diferentes classes de que a velha sociedade era formada, a inveja, o ódio e o desprezo pelo vizinho, o orgulho e a confiança exagerada em si mesmo invadem, por assim dizer, o coração humano e fazem dele, por algum tempo, seu domínio. Isso, independentemente da igualdade, contribui poderosamente para dividir os homens, para fazer que desconfiem do juízo uns dos outros e bus­ quem a luz tão-só em si mesmos. Cada qual procura então ser auto-suficiente e vangloria- se de ter sobre todas as coisas crenças próprias. Os homens passam a estar ligados apenas por interesses, não por idéias, e dir-se-ia que as opiniões humanas não constituem mais que uma espécie de poeira intelectual que se agita de todos os lados, sem poder se juntar e se fixar. Assim, a independência de espírito que a igualdade su­ põe nunca é tão grande e não parece tão excessiva quanto 8 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA no momento em que a igualdade começa a se estabelecer e durante o penoso trabalho que a funda. Portanto, cumpre distinguir com cuidado a espécie de liberdade intelectual que a igualdade pode proporcionar da anarquia que a revolução traz. É necessário considerar à parte cada uma dessas duas coisas, para não nutrir esperanças e temores exagerados quan­ to ao futuro. Creio que os homens que viverão nas novas sociedades farão uso freqüente de sua razão individual; mas estou longe de crer que abusem dela com freqüência, Isso se deve a uma causa aplicável mais genericamente a todos os países democráticos, a qual, a longo prazo, deve neles manter em limites fixos e às vezes estreitos a indepen­ dência individual do pensamento. A esse respeito falarei no capítulo seguinte. CAPÍTULO II Da fonte principal das crenças entre os povos democráticos As crenças dogmáticas são mais ou menos numerosas, conforme os tempos. Elas nascem de diferentes maneiras e podem mudar de forma e de objeto; mas não há como fazer que não existam crenças dogmáticas, isto é, opiniões que os homens recebem em confiança e sem discutir. Se cada um tratasse de formar por si próprio todas as suas opiniões e buscar isoladamente a verdade nos caminhos desbravados apenas por si, não é provável que um grande número de homens viesse a se reunir em alguma crença comum. Ora, é fácil ver que não há sociedade que possa pros­ perar sem crenças semelhantes, ou antes, não há sociedades que subsistam sem elas; porque, sem idéias comuns, não há ação comum, e sem ação comum existem homens, mas não um corpo social. Para que haja sociedade e, com maior razão, para que essa sociedade prospere, é necessário pois que todos os espíritos dos cidadãos estejam sempre reunidos e mantidos juntos por algumas idéias principais; e isso não po­ deria se dar se cada um deles não viesse de vez em quando ex­ trair suas opiniões de uma mesma fonte e consentisse fazer seu certo número de crenças já prontas. Se considero agora o homem à parte, descubro que as crenças dogmáticas lhe são tão indispensáveis para viver so­ zinho como para agir em comum com seus semelhantes. Se o homem fosse forçado a provar a si próprio todas as verdades de que se vale todos os dias, não acabaria nunca; esgotar-se-ia em demonstrações preliminares sem avançar; como não tem tempo, por causa do curto período da vida, 12 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA Portanto, o público possui entre os povos democráticos um poder singular, cuja idéia as nações aristocráticas nem sequer seriam capazes de conceber. Ele não persuade por suas crenças, ele as impõe e as faz penetrar nas almas por uma espécie de imensa pressão do espírito de todos sobre a inte­ ligência de cada um. Nos Estados Unidos, a maioria se encarrega de fornecer aos indivíduos uma enorme quantidade de opiniões já pron­ tas, e os alivia assim da obrigação de constituir opiniões pró­ prias. Existe lá um grande número de teorias em matéria de filosofia, de moral ou de política, que cada um adota desse modo, sem exame, com fé no público; e se examinarmos bem as coisas, veremos que a própria religião lá reina muito menos como uma doutrina revelada do que como uma opi­ nião comum. Sei que, entre os americanos, as leis políticas são tais que a maioria rege soberanamente a sociedade, o que aumenta muito o império que ela aí exerce naturalmente sobre a inte­ ligência. Porque não há nada mais familiar ao homem do que reconhecer uma sabedoria superior naquele que o oprime. De fato, essa onipotência política dá maioria nos Esta­ dos Unidos aumenta a influência que as opiniões do público obteriam sem ela sobre o espírito de cada cidadão; mas não a funda. É na própria igualdade que devemos procurar as fontes dessa influência, não nas instituições mais ou menos populares que homens iguais podem criar para si. É de crer que o império intelectual da maioria seria menos absoluto num povo democrático submetido a um rei do que no seio de uma democracia pura; mas sempre será muito absoluto e, quaisquer que sejam as leis políticas que rejam os homens nas eras de igualdade, podemos prever que a fé na opinião comum se tomará aí uma espécie de religião, de que a maio­ ria será o profeta. Assim, a autoridade intelectual será diferente, mas não será menor; e, longe de crer que deva desaparecer, suponho que se tomaria facilmente grande demais e que poderia vir a encerrar enfim a ação da razão individual em limites mais estreitos do que convém à grandeza e à felicidade da espécie humana. Vejo claramente na igualdade duas tendências: uma, PRIMEIRA PARTE 13 que leva o espírito de cada homem a novos pensamentos; a outra, que o reduziria de bom grado a não mais pensar. E percebo como, sob o império de certas leis, a democracia am­ pliaria a liberdade intelectual que o estado social democráti­ co favorece, de tal sorte que, após ter rompido todas as peias que certas classes ou homens outrora lhe impunham, o espí­ rito humano se encadearia estreitamente às vontades gerais da maioria. Se, no lugar de todas as diversas potências que atrapa­ lhavam ou atrasavam excessivamente o desenvolvimento da razão individual, os povos democráticos pusessem o poder absoluto de uma maioria, o mal apenas mudaria de caráter. Os homens não teriam encontrado o meio de viver indepen­ dentes; teriam apenas descoberto, coisa difícil, uma nova fi­ sionomia da servidão. Temos aí, eu nunca insistiria o sufi­ ciente, matéria em que devem refletir profundamente os que vêem na liberdade da inteligência uma coisa santa e que não odeiam apenas o déspota, mas também o despotismo. Quan­ to a mim, quando sinto a mão do poder pesando em minha fronte, pouco me importa saber quem me oprime, e não me sinto mais disposto a enfiar a cabeça debaixo do jugo porque um milhão de braços o oferecem a mim. PRIMEIRA PARTE 17 Tal dessemelhança entre dois povos tão esclarecidos me surpreende. Se volto meu espírito para a Inglaterra e obser­ vo o que lá vem acontecendo no último meio século, creio poder afirmar que o gosto pelas idéias gerais aí se desenvol­ ve à medida que a antiga constituição do país se enfraquece. O estado mais ou menos avançado das luzes não basta, portanto, para explicar sozinho o que sugere ao espírito hu­ mano o amor pelas idéias gerais, ou que delas o desvia. Quando as condições são muito desiguais e quando as desigualdades são permanentes, os indivíduos se tomam pou­ co a pouco tão dessemelhantes que quase se diria que há tantas humanidades distintas quantas são as classes; nunca se descobre ao mesmo tempo mais que uma delas e, perdendo de vista o vínculo geral que reúne todas elas no vasto seio do gênero humano, sempre se considera alguns homens, nunca o homem. Os que vivem nessas sociedades aristocráticas nunca concebem, portanto, idéias bastante gerais relativamente a si mesmos, o que é o suficiente para lhes proporcionar uma desconfiança habitual nessas idéias e uma repugnância ins­ tintiva por elas. Ao contrário, o homem que vive nos países democráticos só descobre junto de si seres mais ou menos semelhantes; portanto, não pode pensar numa parte qualquer da espécie humana sem que seu pensamento se amplie e se dilate até abraçar o conjunto. Todas as verdades que são aplicáveis a ele próprio lhe parecem aplicar-se igualmente ou da mesma maneira a cada um de seus concidadãos e de seus semelhan­ tes. Tendo adquirido o hábito das idéias gerais no estudo a que mais se dedica e que mais o interessa, transporta esse mesmo hábito a todos os outros, e é assim que a necessidade de descobrir em todas as coisas regras comuns, de abranger um grande número de objetos sob uma mesma forma e de explicar um conjunto de fatos por uma só causa, se toma uma paixão ardente e, muitas vezes, cega do espírito humano. Nada mostra a verdade do que precede melhor do que as opiniões da Antiguidade relativamente aos escravos. Os gênios mais profundos e mais vastos de Roma e da Grécia nunca conseguiram chegar à idéia tão geral e, ao mes­ 18 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA mo tempo, tão simples da similitude dos homens e do direi­ to igual que cada um deles traz, ao nascer, à liberdade; e se esforçaram para demonstrar que a escravidão estava inscrita na natureza e sempre existiria, Muito mais. Tudo indica que aqueles dentre os antigos que foram escravos antes de se­ rem livres, vários dos quais nos legaram belos escritos, tam­ bém consideravam a servidão desse mesmo ponto de vista. Todos os grandes escritores da Antiguidade faziam parte da aristocracia escravocrata, ou pelo menos viam essa aristo­ cracia estabelecida sem contestação ante seus olhos; seu es­ pírito, após ter se estendido em várias direções, viu-se pois limitado nessa, e foi preciso Jesus Cristo vir ao mundo para fazer compreender que todos os membros da espécie huma­ na eram naturalmente semelhantes e iguais. Nas eras de igualdade, todos os homens são indepen­ dentes uns dos outros, isolados e fracos; não se vê um só cuja vontade dirija de forma permanente os movimentos da mul­ tidão; nesses tempos, a humanidade sempre parece caminhar por si mesma. Para explicar o que acontece no mundo, so­ mos forçados a buscar algumas grandes causas que, agindo da mesma maneira sobre cada um de nossos semelhantes, levam-nos assim a seguir voluntariamente, todos nós, um mes­ mo caminho. Isso conduz, também naturalmente, o espírito humano a conceber idéias gerais e a apreciar fazê-lo. Mostrei anteriormente como a igualdade das condições levava cada um a buscar a verdade por si mesmo. É fácil ver que tal método deve fazer o espírito humano tender insensi­ velmente para as idéias gerais. Quando repudio as tradições de classe, profissão e família, quando escapo do império do exemplo-para buscar, pelo único esforço de minha razão, o caminho a seguir, sou propenso a buscar os motivos de minhas opiniões na própria natureza do homem, o que me conduz necessariamente e quase sem eu saber a um grande número de noções muito gerais. Tudo o que precede conclui a explicação de por que os ingleses denotam muito menos aptidão e gosto pela generali­ zação das idéias do que seus filhos, os americanos, e sobre­ tudo do que seus vizinhos, os franceses, e por que os ingleses de nossos dias denotam mais do que seus pais. PRIMEIRA PARTE 19 Os ingleses foram por muito tempo um povo altamente esclarecido e, ao mesmo tempo, sobremodo aristocrático; suas luzes faziam-nos tender sem cessar a idéias muito gerais, e seus hábitos aristocráticos os retinham em idéias muito parti­ culares. Daí, essa filosofia, ao mesmo tempo audaciosa e tí­ mida, ampla e estreita, que dominou até aqui na Inglaterra e que ainda mantém lá tantos espíritos acanhados e imóveis. Independentemente das causas que mostrei acima, en­ contramos outras mais, menos aparentes, porém não menos eficazes, que produzem em quase todos os povos democrá­ ticos o gosto e, não raro, a paixão pelas idéias gerais. Cumpre distinguir muito bem essas variedades de idéias. Há idéias que são o produto de um trabalho lento, detalhado, consciencioso, da inteligência, e estas ampliam a esfera dos conhecimentos humanos. Há outras que nascem facilmente de um primeiro esfor­ ço rápido do espírito e que produzem apenas noções super­ ficiais e incertas. Os homens que vivem nas eras de igualdade têm muita curiosidade e pouco vagar; a vida deles é tão prática, tão com­ plicada, tão agitada, tão ativa, que lhes sobra pouco tempo para pensar. Os homens dos séculos democráticos apreciam as idéias gerais, porque elas os dispensam de estudar os ca­ sos particulares; elas contêm, se assim posso me exprimir, muitas coisas num pequeno volume e proporcionam em pou­ co tempo um grande produto. Portanto, quando, após um exame desatento e curto, eles crêem perceber entre certos objetos uma relação comum, não levam sua pesquisa adian­ te e, sem examinar nos detalhes como esses diversos objetos se assemelham ou se diferenciam, apressam-se a arrolar todos eles sob a mesma fórmula, a fim de seguir em frente. Uma das características distintivas dos séculos democrá­ ticos é o gosto, que todos os homens experimentam, pelo su­ cesso fácil e pelo desfrute presente. Isso se encontra tanto nas carreiras intelectuais como em todas as outras. A maioria dos que vivem nos tempos de igualdade está cheia de uma ambição ao mesmo tempo viva e mole: querem obter ime­ diatamente grandes êxitos, mas desejariam se dispensar de grandes esforços. Esses instintos contrários os levam direta­ 22 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA Isso parece, à primeira vista, frontalmente oposto ao que eu disse antes, que as nações democráticas extraíam da pró­ pria agitação de sua vida prática o amor que mostram pelas teorias. Um exame mais atento faz descobrir que não há na­ da contraditório nisso. Os homens que vivem nos países democráticos são ávi­ dos de idéias gerais porque têm pouco tempo livre e porque essas idéias os dispensam de perder seu tempo examinando os casos particulares. Isso é verdade, mas só deve ser enten­ dido das matérias que não são objeto habitual e necessário de seus pensamentos. Os comerciantes adotarão ansiosamen­ te e sem avaliar em detalhe todas as idéias gerais que lhes forem apresentadas relativamente à filosofia, à política, às ciências e às artes; mas só acolherão após detido exame as que se referirem ao comércio e só as admitirão com reserva. A mesma coisa acontece com os homens de Estado, quan­ do se trata de idéias gerais relativas à política. Por conseguinte, quando há um tema sobre o qual é particularmente perigoso que os povos democráticos se con­ sagrem cega e excessivamente às idéias gerais, o melhor corretivo que se pode empregar é fazer que eles se ocupem dele todos os dias e de uma maneira prática; será necessário então que entrem nos detalhes, e os detalhes os farão perce­ ber os lados fracos da teoria. O remédio muitas vezes é doloroso, mas seu efeito é certo. É assim que as instituições democráticas, que forçam cada cidadão a se ocupar praticamente do governo, mode­ ram o gosto excessivo das teorias gerais em matéria política, que a igualdade sugere. CAPÍTULO V Como, nos Estados Unidos, a religião sabe servir-se dos instintos democráticos Estabeleci, num dos capítulos anteriores, que os homens não podem prescindir das crenças dogmáticas e que era in­ clusive desejável que as tivessem. Acrescento aqui que, dentre todas as crenças dogmáticas, as mais desejáveis parecem-me ser as crenças dogmáticas em matéria de religião; isso se de­ duz claramente, mesmo quando só se quer dar atenção aos interesses deste mundo. Quase não há ação humana, por mais particular que a suponhamos, que não se origine de uma idéia muito geral que os homens conceberam de Deus, de suas relações com o gê­ nero humano, da natureza de sua alma e de seus deveres para com seus semelhantes. Não é possível fazer que essas idéias não sejam a fonte comum de que todo o resto emana. Portanto, os homens têm um interesse imenso em con­ ceber idéias bem assentadas sobre Deus, sobre sua alma, sobre seus deveres gerais para com seu criador e seus seme­ lhantes; porque a dúvida sobre esses primeiros pontos dei­ xaria todas as suas ações nas mãos do acaso e os condena­ ria, de certa forma, à desordem e à impotência. É, portanto, a matéria sobre que é mais importante que cada um de nós tenha idéias assentadas, e infelizmente é também aquela em que é mais difícil que cada um, entregue a si mesmo e pelo único esforço de sua razão, venha a de­ terminar suas idéias. Somente os espíritos livres das preocupações ordinárias da vida, muito perspicazes, muito desprendidos, muito exer- 24 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA citados, têm condição de penetrar, com ajuda de muito tem­ po e muitos cuidados, essas verdades tão necessárias. Ainda assim, vemos que até mesmo esses filósofos estão quase sempre rodeados de incertezas; que a cada passo a luz natural que os ilumina se obscurece e ameaça apagar-se e que, apesar de todos os seus esforços, ainda não puderam descobrir mais que um pequeno nümero de noções contra­ ditórias, no meio das quais o espírito humano flutua sem cessar desde há milhares de anos, sem poder apreender com firmeza a verdade, nem mesmo encontrar novos erros. Tais estudos estão muito acima da capacidade média dos homens e, ainda que a maioria destes fosse capaz de se dedicar a eles, é evidente que não teria tempo. Idéias assentadas sobre Deus e sobre a natureza huma­ na são indispensáveis à prática cotidiana de sua vida, e essa prática os impede de poder adquiri-las. Isso me parece único. Entre as ciências, há algumas que, úteis à multidão, estão a seu alcance; outras só são abordá- veis por pouca gente e não são cultivadas pela maioria, que necessita apenas de suas aplicações mais distantes; no entan­ to, a prática cotidiana desta é indispensável a todos, embora seu estudo seja inacessível à maioria. As idéias gerais relativas a Deus e à natureza humana são, pois, entre todas as idéias, as que mais convém subtrair à ação habitual da razão individual, a qual tem, com elas, o máximo a ganhar e o mínimo a perder reconhecendo uma autoridade. O primeiro objeto e uma das principais vantagens das religiões é fornecer sobre cada uma dessas questões primor­ diais uma solução nítida, precisa, inteligível às pessoas e mui­ to duradoura, Há religiões sobremaneira falsas e absurdas; no entanto, pode-se dizer que toda religião que permanece no círculo que acabo de indicar e que dele não pretende sair, como várias tentaram, para ir deter em todos os sentidos o livre curso do espírito humano, impõe um jugo salutar à inteligência; e cum­ pre reconhecer que, se ela não salva os homens no outro mundo, pelo menos é utilíssima à felicidade e à grandeza de­ les neste. PRIMEIRA PARTE 27 Se eu levar adiante essa mesma investigação, descobri­ rei que, para que as religiões possam, humanamente falando, manter-se nas eras democráticas, é necessário não apenas que elas se encerrem com cuidado no círculo das matérias religiosas: seu poder depende também, e muito, da natureza das crenças que professam, das formas exteriores que ado­ tam e das obrigações que impõem. O que disse anteriormente, que a igualdade conduz os homens a idéias muito gerais e vastas, deve ser entendido principalmente em matéria de religião. Homens semelhantes e iguais concebem facilmente a noção de um deus único, que impõe a cada um deles as mesmas regras e lhes concede a felicidade futura nas mesmas condições. A idéia da unidade do gênero humano os leva sem cessar à idéia da unidade do Criador, ao passo que, ao contrário, homens muito separa­ dos uns dos outros e demasiado dessemelhantes chegam facilmente a criar tantas divindades quantos forem os povos, as castas, as classes e as famílias, e a traçar mil caminhos par­ ticulares para o céu. Pode-se discordar de que o próprio cristianismo não te­ nha, de certa forma, sofrido essa influência que exerce o es­ tado social e político sobre as crenças religiosas. No momento em que a religião cristã apareceu na terra, a Providência, que, sem dúvida, preparava o mundo para a sua vinda, reunira uma grande parte da espécie humana, como um imenso rebanho, sob o cetro dos césares. Os homens que compunham essa multidão diferiam muito pouco uns dos outros; tinham porém o ponto comum de obedecerem todos às mesmas leis; e cada um deles era tão fraco e tão pequeno em relação à grandeza do príncipe que todos pareciam iguais quando comparados a ele. Cumpre reconhecer que esse estado novo e particular da humanidade deve ter disposto os homens a acolher as verdades gerais que o cristianismo ensina e serve para expli­ car a maneira fácil e rápida com a qual penetrou então no espírito humano. A contraprova foi feita após a destruição do Império. Tendo o então mundo romano se quebrado, por assim dizer, em mil pedaços, cada nação voltou à sua individuali­ 28 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA dade anterior. Em pouco tempo, no interior dessas nações, os níveis se graduaram ao infinito; as raças se assinalaram, as castas dividiram cada nação em vários povos. No meio desse esforço comum que parecia levar as sociedades humanas a se subdividir em tantos fragmentos quantos era possível con­ ceber, o cristianismo não perdeu de vista as principais idéias gerais que trouxera à luz. Mas pareceu prestar-se, na medida em que lhe era possível, às novas tendências que o fraciona- mento da espécie humana fazia nascer. Os homens conti­ nuaram a adorar um só Deus criador e conservador de todas as coisas; mas cada povo, cada cidade e, por assim dizer, cada homem acreditou poder conseguir algum privilégio à parte e criar protetores particulares para si junto ao senhor soberano. Não podendo dividir a Divindade, pelo menos mul­ tiplicaram e ampliaram sobremaneira seus agentes; a home­ nagem devida aos anjos e aos santos se tomou, para a maio­ ria dos cristãos, um culto quase idólatra e, por um momento, temeu-se que a religião cristã regredisse no sentido das reli­ giões que tinha derrotado. Parece-me evidente que quanto mais as barreiras que separavam as nações no seio da humanidade e os cidadãos no interior de cada povo tendem a desaparecer, tanto mais o espírito humano se dirige, como por si mesmo, para a idéia de um ser único e onipotente, outorgando igualmente e da mesma maneira as mesmas leis a cada homem. Portanto, é par­ ticularmente nesses séculos de democracia que importa não deixar confundir a homenagem prestada aos agentes secun­ dários com o culto que só é devido ao Criador. Outra verdade parece-me bastante clara: que as religiões devem se carregar menos de práticas exteriores nos tempos democráticos do que em todos os outros. Mostrei, a propósito do método filosófico dos america­ nos, que nada revolta mais o espirito humano nos tempos de igualdade do que a idéia de se submeter a formas. Os ho­ mens que vivem nesses tempos suportam com impaciência as figuras; os símbolos lhes parecem artifícios pueris, utiliza­ dos para velar ou embelezar a seus olhos verdades que seria mais natural lhes mostrar nuas e em plena luz; permanecem frios ao aspecto das cerimônias e são naturalmente propen­ PRIMEIRA PARTE 29 sos a dar uma importância apenas secundária aos detalhes do culto. Os que são encarregados de regulamentar a forma exte­ rior das religiões nas eras democráticas devem atentar para esses instintos naturais da inteligência humana, a fim de não lutar sem necessidade contra eles. Creio firmemente na necessidade das formas; sei que elas fixam o espírito humano na contemplação das verdades abstratas e, ajudando-o a captá-las fortemente, fazem-no abra­ çá-las com ardor. Não imagino que seja possível manter uma religião sem práticas exteriores; mas, por um lado, penso que, nos tempos em que ingressamos, seria particularmente perigoso multiplicá-las em excesso; penso que, ao contrário, é necessário restringi-las e que delas só se deve reter o que é absolutamente necessário para a perpetuidade do próprio dogma, que é a substância das religiões1, de que o culto é tão- só a forma. Uma religião que se tomaria mais minuciosa, mais inflexível e mais carregada de pequenas observâncias ao mesmo tempo que os homens se tomam mais iguais, logo se veria reduzida a um elenco de zeladores apaixonados no meio de uma multidão incrédula. Sei que não deixarão de me objetar que as religiões, ten­ do todas por objeto verdades gerais e eternas, não podem se dobrar assim aos instintos móveis de cada século, sem per­ der aos olhos dos homens o caráter de certeza; responderei também aqui que cumpre distinguir cuidadosamente as opi­ niões principais que constituem uma crença e que formam nesta o que os teólogos chamam de artigos de fé, das no­ ções acessórias que a ela se prendem. As religiões são obri­ gadas a sempre se apegar firmemente às primeiras, qualquer que seja o espírito particular do tempo; mas devem evitar ligar-se da mesma maneira às segundas nas épocas em que tudo muda de lugar incessantemente e em que o espírito, ha­ bituado ao espetáculo movediço das coisas humanas, só a contragosto suporta que o fixem. A imobilidade nas coisas externas e secundárias só me parece uma oportunidade de duração quando a própria sociedade civil é imóvel; em todos os outros casos, tendo a crer que é um perigo. 32 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA apartam. A opinião pública nunca é inimiga deles, portanto; ao contrário, ela os apóia e os protege, e suas crenças rei­ nam simultaneamente pelas forças que lhe são próprias e pe­ las forças da maioria a que eles aderem. Assim, respeitando todos os instintos democráticos que não lhe sejam contrários e valendo-se de vários deles, a religião consegue lutar com vantagem contra o espírito de indepen­ dência individual, que é o mais perigoso de todos para ela. CAPÍTULO VI Do progresso do catolicismo nos Estados Unidos A América é o lugar mais democrático da terra e é, ao mesmo tempo, o país em que, de acordo com relatos dignos de fé, a religião católica mais progressos faz. À primeira vista isso surpreende. Cumpre distinguir duas coisas: a igualdade dispõe os homens a quererem julgar por si mesmos; mas, por outro lado, ela lhes dá o gosto e a idéia de um poder social único, simples e idêntico para todos. Os homens que vivem nas eras democráticas são, pois, bastante propensos a subtrair-se a toda e qualquer autoridade religiosa. Mas, se consentem em submeter-se a uma autoridade assim, querem pelo menos que ela seja una e uniforme; poderes religiosos que não convir­ jam todos num mesmo centro chocam naturalmente a inteli­ gência deles, que concebem com quase igual facilidade que muitas são as religiões. Vêem-se mais em nossos dias que nas épocas anteriores católicos que se tomam incrédulos e protestantes que se fazem católicos. Se considerarmos o catolicismo interiormente, ele parece perder; se o encararmos fora dele, ele ganha. Isso se explica. Os homens de nossos dias são naturalmente pouco dis­ postos a crer; mas, quando têm uma religião, logo encontram em si mesmos um instinto oculto que os leva, sem saberem, ao catolicismo. Várias doutrinas e usos da Igreja romana os espantam; mas sentem uma admiração secreta por seu go­ verno, e sua grande unidade os atrai. 34 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA Se o catolicismo conseguisse por fim subtrair-se aos ódios políticos que fez nascer, não duvido muito que esse mesmo espírito do século, que lhe parece tão contrário, não se lhe tome muito desfavorável e que ele não faça de repente gran­ des conquistas. É uma das fraquezas mais familiares à inteligência hu­ mana querer conciliar princípios contrários e comprar a paz a despeito da lógica. Por conseguinte existem e sempre exis­ tirão homens que, depois de terem submetido a uma autori­ dade algumas de suas crenças religiosas, vão querer subtrair- lhes várias outras e vão deixar pairar seu espírito ao acaso, entre a obediência e a liberdade. Mas inclino-me a crer que o número desses será menor nas eras democráticas do que nas outras eras e que nossos descendentes tenderão cada vez mais a se dividir em apenas duas partes, uns saindo in­ teiramente do cristianismo, os outros entrando no seio da Igreja romana. CAPÍTULO VIII Como a igualdade sugere aos americanos a idéia da perfectibilidade indefinida do homem A igualdade sugere ao espírito humano várias idéias que não lhe ocorreriam sem ela e modifica quase todas as que este já tinha. Tomo como exemplo a idéia da perfectibilidade hu­ mana, porque ela é uma das principais que a inteligência é capaz de conceber e constitui, por si só, uma grande teoria fi­ losófica, cujas conseqüências se fazem ver a cada instante na prática dos negócios. Apesar de o homem se parecer, sob muitos aspectos, com os animais, um traço lhe é totalmente particular: ele se aperfeiçoa, e eles não. A espécie humana não pôde deixar de descobrir desde a origem essa diferença. Assim, a idéia de per­ fectibilidade é tão velha quanto o mundo; a igualdade não a fez nascer, mas lhe dá um novo caráter. Quando os cidadãos são classificados segundo seu nível, sua profissão, seu nascimento, e quando todos são obriga­ dos a seguir o caminho diante do qual o acaso os pôs, cada um crê perceber perto de si os últimos confins da potência hu­ mana e ninguém procura mais lutar contra um destino inevi­ tável. Não é que os povos aristocráticos recusem absoluta­ mente ao homem a faculdade de se aperfeiçoar. Eles não a julgam indefinida; concebem a melhoria, não a mudança; ima­ ginam a condição das sociedades vindouras como sendo me­ lhor, mas não outra; e, embora admitindo que a humanidade fez grandes progressos e ainda pode fazer alguns mais, en- cerram-na de antemão em certos limites intransponíveis. Por conseguinte, não crêem ter alcançado o soberano bem e a verdade absoluta (que homem ou que povo foi insensato 38 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA o bastante para imaginar tal coisa?), mas gostam de se con­ vencer de que atingiram mais ou menos o grau de grandeza e de saber que nossa natureza imperfeita comporta; e, como nada se move à sua volta, imaginam que tudo está em seu de­ vido lugar. É então que o legislador pretende promulgar leis eternas, que os povos e os reis só almejam erigir monumen­ tos seculares e que a geração presente se encarrega de pou­ par às gerações futuras o trabalho de resolver seu destino. À medida que as castas desaparecem, que as classes se aproximam, que os homens misturando-se tumultuosamente, os usos, os costumes e as leis variam, que fatos novos sobre­ vêm, que novas verdades são trazidas à luz, que antigas opi­ niões desaparecem e outras tomam seu lugar, a imagem de uma perfeição ideal e sempre fugidia se apresenta ao espíri­ to humano. Mudanças contínuas ocorrem então a cada instante ante os olhos de cada indivíduo. Uns pioram sua posição, e ele compreende perfeitamente que um povo, ou um indivíduo, por mais esclarecido que seja, não é infalível. Outros melho­ ram sua sorte, e ele conclui que o homem, em geral, é dotado da faculdade indefinida de aperfeiçoar. Seus reveses lhe fazem ver que ninguém pode gabar-se de ter descoberto o bem ab­ soluto; seus sucessos estimulam-no a persegui-lo sem trégua. Assim, sempre buscando, caindo, tomando a se levantar, mui­ tas vezes decepcionado, nunca desanimado, tende incessante­ mente a essa grandeza imensa que entrevê confusamente ao fim do longo trajeto que a humanidade ainda deve percorrer. É inacreditável quantos fatos decorrem naturalmente des­ sa teoria filosófica, segundo a qual o homem é indefinida­ mente perfectível, e a influência prodigiosa que ela exerce sobre eles que, nunca tendo ocupado de outra coisa além de agir, jamais de pensar, parecem conformar a ela suas ações, apesar de não a conhecerem. Encontro um marinheiro americano e pergunto-lhe por que os navios do seu país são construídos para durar pouco; ele me responde sem hesitar que a arte da navegação faz, cada dia que passa, progressos tão rápidos que o melhor navio logo se tomaria quase inútil se prolongasse sua existência além de alguns anos. PRIMEIRA PARTE 39 Nessas palavras pronunciadas ao acaso por um homem rude e a propósito de um fato particular, percebo a idéia geral e sistemática de acordo com a qual um grande povo conduz todas as coisas. As nações aristocráticas são naturalmente propensas a estreitar em demasia os limites da perfectibilidade humana, e as nações democráticas às vezes os estendem excessivamente. 42 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA humano, distraído a todo instante dos prazeres da imaginação e dos trabalhos da inteligência, só é estimulado para a busca da riqueza. Não apenas se vêem nos Estados Unidos, como em todos os outros países, classes industriais e comerciantes, mas, o que nunca havia sido visto antes, todos os homens aí se ocupam simultaneamente da indústria e do comércio. Estou convencido, porém, de que, se os americanos es­ tivessem a sós no universo, com as liberdades e as luzes adquiridas por seus pais e as paixões que lhes eram pró­ prias, não tardariam a descobrir que não é possível fazer por muito tempo progressos na prática das ciências sem cultivar a teoria; que todas as artes se aperfeiçoam umas pelas outras e que, por mais absortos que pudessem estar na busca do objeto principal de seus desejos, logo teriam reconhecido ser necessário desviar-se de vez em quando dele para melhor alcançá-lo. De resto, o gosto pelos prazeres do espírito é tão natural no coração do homem civilizado que, nas nações polidas, que são as menos dispostas a se consagrar a eles, sempre há um certo número de cidadãos que o sentem. Essa necessidade in­ telectual, uma vez sentida, logo seria satisfeita. Mas, ao mesmo tempo que os americanos eram natural­ mente propensos a exigir da ciência apenas suas aplicações particulares às artes, apenas os meios de tornar cômoda a vida, a douta e literária Europa se encarregava de ir às fontes gerais da verdade e aperfeiçoava, ao mesmo tempo, tudo o que pode concorrer para os prazeres, assim como tudo o que deve servir às necessidades do homem. À frente das nações esclarecidas do mundo antigo, os habitantes dos Estados Unidos distinguiam particularmente uma, à qual eram intimamente unidos por uma origem co­ mum e hábitos análogos. Encontravam nesse povo célebres cientistas, hábeis artistas, grandes escritores, e podiam her­ dar os tesouros da inteligência sem ter necessidade de traba­ lhar para acumulá-los. Não posso aceitar separar a América da Europa, apesar do oceano que as divide. Considero o povo dos Estados Uni­ dos como a porção do povo inglês encarregada de explorar as florestas do novo mundo, enquanto o resto da nação, dotado PRIMEIRA PARTE 43 de mais lazeres e menos preocupado com os problemas ma­ teriais da vida, pode se consagrar ao pensamento e desen­ volver em todos os sentidos o espírito humano. A situação dos americanos é inteiramente excepcional, portanto, e é de crer que nenhum povo democrático nunca será posto nela. Sua origem puritana, seus hábitos unicamen­ te comerciais, o próprio país que habitam e que parece des­ viar sua inteligência do estudo das ciências, das letras e das artes; a proximidade da Europa, que lhes permite não as es­ tudar sem cair de volta na barbárie; mil causas particulares, de que só pude assinalar as principais, concentraram de manei­ ra singular o espírito americano no cuidado das coisas pura­ mente materiais. As paixões, as necessidades, a educação, as circunstâncias, tudo de fato parece concorrer para inclinar o habitante dos Estados Unidos para a terra. Apenas a religião faz, de quando em quando, olhares passageiros e distraídos erguerem-se para o céu. Paremos de ver, pois, todas as nações democráticas à imagem do povo americano e tratemos de encará-las, enfim, com sua fisionomia própria. Pode-se conceber um povo em cujo seio não haveria nem casta, nem hierarquia, nem classe; no qual a lei, não reconhe­ cendo privilégios, dividiria igualmente as heranças e que, ao mesmo tempo, seria privado de luzes e de liberdade. Não é uma hipótese ociosa: um déspota pode achar proveitoso tor­ nar seus súditos iguais e deixá-los ignorantes, a fim de man­ tê-los escravizados mais facilmente. Não apenas um povo democrático dessa espécie não mostraria aptidão e gosto para as ciências, a literatura e as ar­ tes, mas deve-se crer que nunca lhe aconteceria mostrá-lo. A própria lei de sucessões se encarregaria, a cada gera­ ção, de destruir as fortunas, e ninguém criaria novas. O po­ bre, privado de luzes e de liberdade, nem sequer conceberia a idéia de se elevar à riqueza, e o rico se deixaria arrastar para a pobreza sem saber defender-se. Não tardaria a se estabelecer entre esses dois cidadãos uma completa e insuperável igual­ dade. Ninguém teria então nem tempo nem gosto para se de­ dicar aos trabalhos e aos prazeres da inteligência. Todos per­ maneceriam entorpecidos numa mesma ignorância e numa idêntica servidão. 44 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA Quando imagino uma sociedade democrática dessa es­ pécie, logo creio sentir-me num desses lugares baixos, escuros e abafados, em que as luzes, trazidas de fora, não demoram a empalidecer e extinguir-se. Parece-me que um peso súbito me oprime e que me arrasto no meio das trevas que me ro­ deiam, para encontrar a saída que deve me levar de volta ao ar e à luz do dia. Mas nada disso poderia se aplicar a homens já esclarecidos que, depois de terem destruído em meio a si mesmos os direitos particulares e hereditários que fixavam perpetuamente os bens nas mãos de certos indivíduos ou de certos corpos, permanecem livres. Quando os homens que vivem no seio de uma socieda­ de democrática são esclarecidos, descobrem sem dificuldade que nada os limita, os fixa ou os força a se contentar com sua fortuna presente. Todos concebem então a idéia de aumentá-la - e, se são livres, todos tentam fazê-lo mas nem todos têm êxito idên­ tico. A legislação, é verdade, não concede mais privilégios, mas a natureza sim. Como a desigualdade natural é enorme, as fortunas se tomam desiguais a partir do instante em que ca­ da um faz uso de todas as suas faculdades para enriquecer. A lei de sucessões ainda se opõe a que se fundem famí­ lias ricas, mas não impede mais que haja ricos. Ela leva sem cessar os cidadãos de volta a um nível comum, de que esca­ pam também sem cessar; eles se tornam mais desiguais em bens à medida que suas luzes são mais vastas e sua liberdade maior. Desenvolveu-se em nossos dias uma seita célebre por seu gênio e suas extravagâncias, que pretendia concentrar todos os bens nas mãos de um poder central e encarregá-lo de distribuí-los em seguida, conforme o mérito, a todos os particulares. Dessa maneira, os homens escapariam da com­ pleta e eterna igualdade que parece ameaçar as sociedades democráticas. Há outro remédio mais simples e menos perigoso: o de não conceder privilégio a ninguém, dar a todos luzes iguais e igual independência e deixar a cada um o cuidado de assi­ nalar por si mesmo seu lugar. A desigualdade natural logo se manifestaria, e a riqueza logo passaria aos mais hábeis. CAPÍTULO X Por que os americanos se aplicam mais à prática das ciências do que à teoria Se bem que o estado social e as instituições democráti­ cas não detenham o desenvolvimento do espírito humano, é pelo menos inconteste que o dirigem mais num sentido que em outro. Seus esforços, assim limitados, ainda são enormes, e vai o leitor me perdoar, espero, se me detenho um momen­ to para contemplá-los. Fizemos, quando se tratou do método filosófico dos ame­ ricanos, várias observações de que vamos tirar proveito aqui. A igualdade desenvolve em cada homem o desejo de julgar tudo por si mesmo; ela lhe proporciona, em todas as coisas, o gosto pelo tangível e pelo real, o desprezo pelas tradições e pelas formas. Esses instintos gerais fazem-se ver em primeiro plano no objeto particular deste capítulo. Os que cultivam as ciências entre os povos democráti­ cos sempre temem se perder nas utopias. Eles desconfiam dos sistemas, gostam de se manter bem próximos dos fatos e de estudá-los por eles mesmos; como não se deixam dobrar fa­ cilmente pelo nome de nenhum de seus semelhantes, nunca estão dispostos a jurar pela palavra do mestre; ao contrário, vemo-los sem cessar procurando o ponto fraco da doutrina deste. As tradições científicas têm sobre eles pouco império; eles nunca se detêm por muito tempo nas sutilezas de uma escola e se contentam dificilmente com grandes palavrórios; penetram, na medida do possível, nas partes principais do tema que os ocupa e gostam de expô-los em língua vulgar. As ciências possuem então uma aparência mais livre e mais segura, porém menos elevada. 48 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA O espírito pode, é o que me parece, dividir a ciência em três partes. A primeira contém os princípios mais teóricos, as no­ ções mais abstratas, aquelas cuja aplicação não é conhecida ou é muito distante. A segunda se compõe das verdades gerais, que, pren­ dendo-se ainda à teoria pura, conduzem no entanto, por um caminho direto e curto, à prática. Os procedimentos de aplicação e os meios de execução preenchem a terceira. Cada uma dessas diferentes porções da ciência pode ser cultivada à parte, embora a razão e a experiência façam saber que nenhuma delas seria capaz de prosperar por muito tem­ po, se absolutamente separadas das duas outras. Na América, a parte puramente prática das ciências é admiravelmente cultivada e ocupam-se lá com cuidado da porção teórica imediatamente necessária ã aplicação; os ame­ ricanos revelam desse lado um espírito sempre claro, livre, original e fecundo; mas não há quase ninguém, nos Estados Unidos, que se dedique à porção essencialmente teórica e abstrata dos conhecimentos humanos. Os americanos reve­ lam, nisso, o excesso de uma tendência que será encontrada, penso eu, embora em menor grau, em todos os povos de­ mocráticos. Nada é mais necessário à cultura das altas ciências, ou da porção elevada das ciências, do que a meditação, e não há nada menos propício à meditação do que o interior de uma sociedade democrática. Não encontramos aí, como nos povos aristocráticos, uma classe numerosa que se mantém em repouso por se achar bem, e outra que não se move por não ter esperança de melhorar. Todos se agitam: uns que­ rem alcançar o poder; outros, apropriar-se da riqueza. No meio desse tumulto universal, desse choque repetido de interesses contrários, dessa marcha contínua dos homens rumo à fortu­ na, onde encontrar a calma necessária às profundas combi­ nações da inteligência? Como deter o pensamento em deter­ minado ponto, quando ao redor tudo se mexe e nós mes­ mos somos arrastados e balançados todos os dias na corrente impetuosa que rola todas as coisas? PRIMEIRA PARTE 49 É preciso distinguir a espécie de agitação permanente que reina no seio de uma democracia tranqüila e já constituída, dos movimentos tumultuosos e revolucionários que quase sempre acompanham o nascimento e o desenvolvimento de uma sociedade democrática. Quando uma violenta revolução se produz num povo muito civilizado, ela não pode deixar de dar um impulso sú­ bito aos sentimentos e às idéias. Isso é verdade sobretudo para as revoluções democráti­ cas, que, revolvendo simultaneamente todas as classes de que um povo se compõe, fazem nascer ao mesmo tempo imen­ sas ambições no coração de cada cidadão. Se os franceses fizeram de repente tão admiráveis pro­ gressos nas ciências exatas, no momento mesmo em que aca­ bavam de destruir os restos da antiga sociedade, cumpre atribuir essa súbita fecundidade, não à democracia, mas à re­ volução sem igual que acompanhava seus desenvolvimentos. O que sobreveio então foi um fato particular; seria impru­ dente ver aí o indício de uma lei geral. As grandes revoluções não são mais comuns nos povos democráticos do que nos outros povos; sou inclusive incli­ nado a crer que o sejam menos. Mas reina no seio dessas nações um pequeno movimento incômodo, uma espécie de rolar incessante dos homens, uns sobre os outros, que per­ turba e distrai o espírito sem animá-lo nem elevá-lo. Os homens que vivem nas sociedades democráticas não só dificilmente se dedicam à meditação, como têm natural­ mente pouca estima por ela. O estado social e as instituições democráticas levam a maior parte dos homens a agir cons­ tantemente; ora, os hábitos de espírito que convêm à ação nem sempre convêm ao pensamento. O homem que age é reduzido a se contentar com freqüência com o aproximado, porque nunca levaria seu projeto a cabo se quisesse aperfei­ çoar cada detalhe. Tem de se apoiar o tempo todo em idéias que não teve tempo de aprofundar, porque o que o ajuda é muito mais a oportunidade da idéia que utiliza do que sua exatidão rigorosa; e, pensando bem, ele corre menos risco fa­ zendo uso de um ou outro princípio falso do que consumindo seu tempo em estabelecer a verdade de todos os seus princí­ 52 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA coberta que facilite os prazeres e os aumente, parece o mais magnífico esforço da inteligência humana. É principalmente por esse lado que os povos democráticos se interessam pelas ciências, as compreendem e honram. Nas eras aristocráticas, requerem-se em particular das ciências os prazeres do espíri­ to; nas democracias, os prazeres do corpo. Podem estar certos de que, quanto mais democrática, esclarecida e livre for uma nação, mais a quantidade desses apreciadores interessados do gênio científico irá crescendo, mais as descobertas imediatamente aplicáveis à indústria darão lucro, glória e até mesmo poder a seus autores; por­ que, nas democracias, a classe que trabalha participa dos ne­ gócios públicos, e os que a ela servem dela esperam tanto honras como dinheiro. Pode-se facilmente conceber que, numa sociedade or­ ganizada dessa maneira, o espírito humano seja insensivel­ mente levado a desprezar a teoria e deva, ao contrário, sen­ tir-se impelido com uma energia sem igual para a aplicação, ou pelo menos para essa parte da teoria que é necessária aos que aplicam. Se um pendor instintivo o eleva às mais altas esferas da inteligência, logo o interesse o traz de volta para as médias es­ feras. É aí que ele emprega sua força e sua inquieta autorida­ de, aí que gera maravilhas. Esses mesmos americanos, que não descobriram uma só das leis gerais da mecânica, introduziram na navegação uma nova máquina que altera a face do mundo. Claro, estou longe de pretender que os povos democráti­ cos de nossos dias estejam destinados a ver se apagarem as luzes transcendentes do espírito humano, ou mesmo que não devam acender-se novas luzes entre eles. Na era do mundo em que estamos, e dentre tantas nações letradas, que o ardor da indústria incessantemente atormenta, os laços que unem as diferentes partes da ciência não podem deixar de impressio­ nar; e o próprio gosto pela prática, se for esclarecido, deve le­ var os homens a não desprezar a teoria. No meio de tantos ensaios de aplicações, de tantas experiências cada dia repeti­ das, é impossível que, muitas vezes, as leis gerais não se manifestem, de tal sorte que as grandes descobertas seriam fre­ qüentes, muito embora os grandes inventores fossem raros. PRIMEIRA PARTE 53 Creio aliás nas elevadas vocações científicas. Se a de­ mocracia não leva os homens a cultivar as ciências por elas mesmas, por outro lado aumenta imensamente o número dos que as cultivam. Não é crível que, entre tão grande mul­ tidão, não nasça de quando em quando algum gênio espe­ culativo inflamado tão-só pelo amor à verdade. Podemos es­ tar certos de que tal homem se esforçará para penetrar os mais profundos mistérios da natureza, qualquer que seja o espírito do seu país e do seu tempo. Não é preciso ajudar seu desenvolvimento; basta apenas não freá-lo. Tudo o que quero dizer é o seguinte: a desigualdade permanente das con­ dições leva os homens a se encerrarem na busca orgulhosa e estéril das verdades abstratas; ao passo que o estado social e as instituições democráticas os dispõem a só requerer das ciências suas aplicações imediatas e úteis. Essa tendência é natural e inevitável. É curioso conhe­ cê-la, e pode ser necessário mostrá-la. Se os que são chamados a dirigir as nações em nossos dias percebessem claramente e de longe esses novos instin­ tos que não tardarão a ser irresistíveis, compreenderiam que, com luzes e liberdade, os homens que vivem nas eras demo­ cráticas não podem deixar de aperfeiçoar a parte industrial das ciências e que, doravante, todo o esforço do poder social deve ser voltado a apoiar os altos estudos e criar gran­ des paixões científicas. Em nossos dias, é necessário reter o espírito humano na teoria; ele corre por si mesmo para a prática e, em vez de trazê-lo sem cessar ao exame detalhado dos efeitos secundá­ rios, é bom distraí-lo de vez em quando de tal emprego, a fim de elevá-lo à contemplação das causas primeiras. Por ter a civilização romana morrido em conseqüência da invasão dos bárbaros, talvez sejamos demasiado propensos a crer que a civilização não poderia morrer de outra forma. Se as luzes que nos iluminam viessem um dia a se apa­ gar, elas se obscureceriam pouco a pouco e como que por si mesmas. À força de se encerrar na aplicação, o espírito hu­ mano perderia de vista os princípios e, quando os houvesse inteiramente esquecido, teria dificuldade para seguir os mé­ todos que dos princípios derivam; não se poderiam mais in- 54 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA ventar novos métodos e empregar-se-iam sem inteligência e sem arte sábios procedimentos que ninguém compreenderia mais. Quando os europeus chegaram, há trezentos anos, à China, lá encontraram quase todas as artes tendo alcançado certo grau de perfeição e se surpreenderam com que, ha­ vendo atingido tal ponto, não tivessem os chineses ido mais longe. Posteriormente, descobriram os vestígios de alguns altos conhecimentos que haviam sido perdidos. A nação era industrial; a maioria dos métodos científicos tinha sido con­ servada em seu seio; mas a ciência mesma não existia mais. Isso lhes explicou a espécie de imobilidade singular em que tinham encontrado o espírito daquele povo. Ao seguirem os passos de seus pais, os chineses tinham esquecido as razões que os haviam conduzido. Serviam-se ainda da fórmula sem procurar seu sentido; conservavam o instrumento mas já não possuíam a arte de modificá-lo e reproduzi-lo. Assim, os chi­ neses não podiam mudar nada. Tinham de renunciar a me­ lhorar. Eram forçados a imitar sempre e em tudo seus pais, para não se projetarem em trevas impenetráveis se se afas­ tassem um só instante do caminho que estes últimos haviam traçado. A fonte dos conhecimentos humanos estava quase seca; e, muito embora o rio ainda corresse, não podia mais engrossar suas águas ou mudar seu curso. Entretanto, a China subsistia tranqüilamente fazia séculos; seus conquistadores tinham adotado seus costumes; a ordem reinava. Uma espécie de bem-estar material deixava-se per­ ceber em toda a parte. As revoluções eram raríssimas, e a guerra, por assim dizer, desconhecida. Portanto, ninguém deve se tranqüilizar pensando que os bárbaros ainda estão longe de nós, porque, se há povos que deixam arrancarem-lhes das mãos a luz, outros há que a apa­ gam, eles próprios, sob seus pés. PRIMEIRA PARTE 57 Por outro lado, sempre vemos nas democracias um nú­ mero enorme de homens cuja fortuna aumenta, mas cujos desejas aumentam muito mais rápido do que a fortuna, e que devoram com os olhos os bens que ela lhes promete, muito tempo antes de ela os propiciar. Estes procuram de todo mo­ do abrir caminhos mais curtos para esses desfrutes próxi­ mos. Da combinação dessas duas causas resulta que sempre encontramos nas democracias uma multidão de cidadãos cujas necessidades estão acima dos recursos e que consenti­ riam de bom grado em satisfazê-las incompletamente a renun­ ciar de todo ao objeto de sua cobiça. O operário compreende facilmente essas paixões por­ que ele próprio as compartilha: nas aristocracias, ele procura­ va vender seus produtos muito caro a uns poucos; percebe agora que haveria um meio mais expeditivo de enriquecer, que seria vendê-Jos barato a todos. Ora, há tão-somente duas maneiras de conseguir baixar o preço de uma mercadoria. Â primeira é encontrar meios melhores, mais curtos e mais inteligentes de produzi-la, A segunda é fabricar em maior quantidade objetos mais ou menos semelhantes, mas de me­ nor valor. Nos povos democráticos, todas as faculdades inte­ lectuais do operário estão dirigidas para esses dois pontos. Ele se esforça para inventar processos que lhe permitam trabalhar, não apenas melhor, mas também mais depressa e a menor custo, e, se não o conseguir, que lhe permitam di­ minuir as qualidades intrínsecas da coisa que faz, sem a tor­ nar inteiramente imprópria ao uso a que se destina. Quando só os ricos possuíam relógios, quase todos eram excelentes. Hoje só se fazem relógios medíocres, mas todo o mundo tem um. Assim, a democracia não tende apenas a dirigir o espírito hu­ mano para as artes úteis; ela leva também os artesãos a fazer rapidamente muitas coisas imperfeitas, e o consumidor a se contentar com elas. Não é que nas democracias a arte não seja capaz, se pre­ ciso, de produzir maravilhas. Isso às vezes se vê quando se apresentam compradores que aceitam pagar o tempo e a fa­ diga. Nessa luta de todas as indústrias, no meio dessa imensa concorrência e dessas incontáveis tentativas, formam-se ope­ 58 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA rários excelentes que penetram até os últimos limites de sua profissão; mas raramente têm a oportunidade de mostrar o que sabem fazer; poupam cuidadosamente seus esforços, mantêm-se numa sábia mediocridade que avalia a si própria e que, podendo ir além do objetivo que se propõe, visa lão- somente à meta que atinge. Já nas aristocracias, os operários fazem tudo o que sabem fazer e, quando param, é porque es­ tão no limite da sua ciência. Quando chego a um país e vejo as artes produzirem al­ guns produtos admiráveis, isso nada me informa sobre o es­ tado social e a constituição política dele. Mas, se percebo que, nele, os produtos das artes são em geral imperfeitos, em grande quantidade e de preço baixo, fico certo de que, no povo em que isso ocorre, os privilégios se debilitam; as clas­ ses começam a se misturar e logo vão se confundir. Os artesãos que vivem nas eras democráticas não pro­ curam apenas pôr ao alcance de todos os ddadãos seus produ­ tos úteis, mas se esforçam também para dar a todos os seus produtos qualidades brilhantes, que estes não possuem. Na confusão de todas as classes, cada um espera poder parecer o que não é e se desdobra em grandes esforços para consegui-lo. A democracia não faz nascer esse sentimento, que é plenamente natural no coração do homem; mas ela o aplica às coisas materiais - a hipocrisia da virtude existe em todos os tempos, a do luxo pertence mais particularmente aos séculos democráticos. Para satisfazer a essas novas necessidades da vaidade hu­ mana não há impostura a que as artes não recorram; a in­ dústria vai às vezes tão longe nesse sentido que não raro acaba se prejudicando. Já conseguiu imitar tão perfeitamente o diamante, que é fácil se enganar. A partir do momento em que inventarem a arte de fabricar diamantes falsos, de ma­ neira que não se possa mais distingui-los dos verdadeiros, ambos provavelmente serão abandonados e voltarão a ser sim­ ples pedrinhas. Isso me leva a falar daquelas artes que foram chamadas, por excelência, de belas-artes. Não creio que o efeito necessário do estado social e das instituições democráticas seja diminuir o número de homens PRIMEIRA PARTE 59 que cultivam as belas-artes; mas essas causas influem pode­ rosamente na maneira como elas são cultivadas. Se a maioria dos que já tinham adquirido o gosto pelas belas-artes empo­ brece e, por outro lado, muitos dos que ainda não são ricos começam a adquirir, por imitação, o gosto por elas, a quanti­ dade de consumidores em geral aumenta, e os consumidores muito ricos e refinados tomam-se mais raros. Sucede então nas belas-artes algo análogo ao que já mostrei quando falei das artes úteis: os artistas multiplicam suas obras e diminuem o mérito de cada uma delas. Não podendo mais ter em vista o grande, busca-se o ele­ gante e o bonito; tende-se menos à realidade do que à apa­ rência. Nas aristocracias, foram feitos alguns grandes quadros; nos países democráticos, uma mültidâo de pequenas pintu­ ras. Nas primeira^ efevaril-se estátüas de bronze, nas segun­ das moldam-se estátuas dé gesso. Quando cheguei pela primeira vez a Nova York, por es­ sa parte do oceano Atlântico a que chamam Costa Leste, fiquei surpreso ao perceber, ao longo do litoral, a alguma distância da cidade, certo número de palacetes de mármore branco, vários dos quais tinham uma arquitetura antiga; no dia se­ guinte, tendo ido observar mais de perto o que mais atraíra meu olhar, descobri que suas paredes eram de tijolo caiado e suas colunas de madeira pintada. Assim também todos os monumentos que eu admirara na véspera. O estado social e as instituições democráticas proporcio­ nam, além disso, a todas as artes de imitação, certas tendên­ cias particulares que é fácil assinalar. Desviam-nas com fre­ qüência da pintura da alma para ligá-las tão-somente à pin­ tura do corpo; e substituem a representação dos sentimentos e das idéias pela dos movimentos e das sensações; enfim, no lugar do ideal põem o real. Duvido que Rafael tenha feito um estudo tão aprofun­ dado dos menores artifícios do corpo humano quanto os de­ senhistas de nossos dias. Não dava a mesma importância que estes à rigorosa exatidão nesse ponto, pois pretendia superar a natureza. Queria fazer do homem algo que fosse superior ao homem; empreendeu embelezar a própria beleza. 62 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA Assim, a democracia não leva apenas os homens a reali­ zar uma multidão de pequenas obras; leva-os também a erguer um pequeno número de enormes monumentos. Mas entre esses dois extremos não há nada. Alguns restos esparsos de vastíssimos edifícios não anunciam nada, portanto, sobre o estado social e as instituições dos povos que os erigiu. Acrescento, muito embora isso saia do meu tema, que não fazem conhecer melhor sua grandeza, suas luzes e sua prosperidade real. Todas as vezes que um poder qualquer for capaz de fa­ zer todo um povo concorrer para uma só empresa, consegui­ rá com pouca ciência e muito tempo tirar do concurso de tão ingentes esforços algo imenso, sem que por isso se deva concluir que o povo é feliz, esclarecido ou mesmo forte. Os espanhóis encontraram a cidade do México repleta de templos magníficos e vastos palácios; o que não impediu Cortez de conquistar o império do México com seiscentos infantes e dezesseis cavalos. Se os romanos houvessem conhecido melhor as leis dá hidráulica, não teriam erguido todos aqueles aquedutos que rodeiam as ruínas de suas cidades, e teriam feito melhor em­ prego de seu poder e de sua riqueza. Se houvessem desco­ berto a máquina a vapor, talvez não houvessem estendido até as extremidades de seu império esses longos rochedos artifi­ ciais chamados vias romanas. Essas coisas são magníficos testemunhos de sua igno­ rância, assim como de sua grandeza. Um povo que não deixasse outros vestígios de sua pas­ sagem, além de alguns canos de chumbo enterrados no chão e alguns trilhos de ferro em sua superfície, poderia ter sido mais senhor da natureza do que os romanos. CAPÍTULO XIII A fisionomia literária das eras democráticas Quando entramos na loja de um livreiro nos Estados Uni­ dos e corremos ps olhos pelos livros, americanos que abaste­ cem as estantes, a quantidade de obras parece enorme, en­ quanto a de autores conhecidos parece, ao contrário, mínima. Encontramos primeiramente uma multidão de tratados elementares destinados a dár a primeira noção dos conheci­ mentos humanos. A maior parte dessas obras foi composta na Europa. Os americanos as reimprimem, adaptando-as a seu uso. Vem em seguida uma quantidade quase inumerável de livros de religião, Bíblias, sermões, anedotas pias, contro­ vérsias, relatórios de instituições de caridade. Aparece enfim o longo rol dos panfletos políticos: na América, os partidos não fazem livros para se combater, mas brochuras que circu­ lam com uma rapidez incrível, vivem um dia e morrem. No meio de todas essas obscuras produções do espírito humano aparecem as obras mais notáveis de apenas um pe­ queno número de autores conhecidos dos europeus, ou que deviam sê-lo. Conquanto a América seja talvez, nos dias de hoje, o país civilizado em que as pessoas menos se ocupam de literatura, lá encontramos uma grande quantidade de indivíduos que se interessam pelas coisas do espírito e que delas fazem, senão o estudo da vida inteira, pelo menos o encanto de seus mo­ mentos de lazer. Mas é a Inglaterra que fornece a eles a maio­ ria dos livros que reclamam. Quase todas as grandes obras inglesas são reproduzidas nos Estados Unidos. O gênio lite­ rário da Grã-Bretanha ainda projeta seus raios até o fundo 64 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA das florestas do novo mundo. Não há cabana de pioneiro em que não se encontrem alguns volumes avulsos de Shakes- peare. Lembro-me de ter lido pela primeira vez o drama feu­ dal de Henrique V numa log-house. Os americanos não só vão se nutrir cada dia nos tesou­ ros da literatura inglesa, como também podemos dizer com veracidade que eles encontram a literatura da Inglaterra em seu próprio solo. Entre o pequeno número de homens que se ocupam, nos Estados Unidos, de compor obras de litera­ tura, a maioria são ingleses quanto ao fUndo e, sobretudo, quanto à forma. Eles transportam assim para o meio da de­ mocracia as idéias e os usos literários correntes na nação aristocrática que tomaram por modelo. Pintam com cores em­ prestadas dos costumes estrangeiros; quase nunca representam em sua realidade o país que os viu nascer, raramente são po­ pulares nele. Os cidadãos dos Estados Unidos parecem, eles próprios, tão convencidos de que não é para eles que se publicam livros que, antes de se fixarem no mérito de um de seus es­ critores, comumente esperam que este tenha sido apreciado na Inglaterra. Assim, em matéria de quadros, deixam de bom grado ao autor do original o direito de julgar a cópia. Portanto, os habitantes dos Estados Unidos ainda não possuem, propriamente falando, uma literatura. Os únicos au­ tores que reconheço como americanos são jornalistas. Não são grandes escritores, mas falam a língua do país e se fazem entender por ele. Não vejo nos outros mais que estrangeiros. Eles são para os americanos o que foram nossos imitadores dos gregos e dos romanos na época do renascimento das letras: um objeto de curiosidade, e não de simpatia geral. Eles distraem o espírito e não agem sobre os costumes. Já disse que esse estado de coisas estava longe de decor­ rer somente cia democracia e que era necessário buscar suas causas em várias circunstâncias particulares e independen­ tes dela. Se os americanos, ao mesmo tempo que conservavam seu estado social e suas leis, tivessem outra origem e se vis­ sem transportados para outro país, não duvido que tivessem uma literatura. Tal como são, tenho certeza de que acabarão PRIMEIRA PARTE 67 ções e hábitos comuns, e nunca tiveram nem o poder, nem a vontade, nem o tempo de se entender entre si. No entanto, é no meio dessa multidão incoerente e agi­ tada que nascem os autores, e é ela que distribui a esses os lucros e a glória. Não tenho dificuldade para compreender que, sendo as­ sim as coisas, devo esperar não encontrar na literatura de tal povo mais que um pequeno número dessas convenções rigo­ rosas que os leitores e escritores das eras aristocráticas reco­ nhecem. Se acontecesse que os homens de uma época se pu­ sessem de acordo sobre algumas delas, isso nào provaria nada para a época seguinte; porque, nas riações democráticas, cada nova geração é um novo povo. Nessas nações, as letras dificil­ mente seriam submetidas a regras estritas, e é praticamente impossívél que o sejam um dia a regras permanentes. Nas democracias, hem todos os homens que se ocupam de literatura receberam uma educação literária - longe disso - , e entre os que têm algum verniz de belas-letras, a maior par­ te segue carreira política ou abraça uma profissão de que só por momentos pode se afastar, para apreciar furtivamente os prazeres do espírito. Portanto, não fazem desses prazeres o encanto principal de sua existência, mas os consideram como um recreio passageiro e necessário no meio dos sérios traba­ lhos da vida. Tais homens nunca seriam capazes de adquirir um conhecimento bastante aprofundado da arte literária para sentir suas delicadezas: as pequenas nuanças lhes esca­ pam. Dispondo apenas de um tempo bem curto para dedi­ car às letras, querem aproveitá-lo integralmente. Gostam dos livros obtidos sem dificuldade, que se lêem depressa, que não exigem eruditas pesquisas para serem compreendidos. Pedem belezas fáceis, que se entregam por si mesmas e que se podem deleitar de imediato; necessitam sobretudo do ines­ perado e do novo. Habituados a uma existência prática, aco­ modada, monótona, necessitam de emoções vivas e rápidas, de clarões súbitos, de verdades ou erros brilhantes que os arranquem no ato de si mesmos e os introduzam de repente e, como que por violência, no meio do tema. Que mais preciso dizer? E quem não compreende, sem que eu precise exprimi-lo, o que vai se seguir? Tomada em seu conjunto, a literatura das eras democrá­ 68 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA ticas não seria capaz de apresentar, como nos tempos de aristocracia, a imagem da ordem, da regularidade, da ciência e da aite. Nela, a forma será, de ordinário, negligenciada, às vezes menosprezada; o estilo, freqüentemente, se mostrará esquisito, incorreto, sobrecarregado e mole, e quase sempre destemido e veemente. Os autores visarão à rapidez de exe­ cução mais que à perfeição dos detalhes. Os pequenos escri­ tos serão mais freqüentes do que os livros volumosos, o espírito mais que a erudição, a imaginação mais que a pro­ fundidade; reinará uma força inculta e quase selvagem em seu pensamento, e muitas vezes uma variedade muito gran­ de e uma fecundidade singular em seus produtos. Procurará muito mais surpreender do que agradar, e se esforçará mais por arrebatar as paixões do que em cativar o gosto. Encontraremos sem dúvida, de longe em longe, escrito­ res que vão querer seguir outro caminho e, se tiverem um mérito superior, conseguirão, a despeito de seus defeitos e de suas qualidades, ser lidos; mas serão raras essas exceções, e os mesmos que, no conjunto de suas obras, saírem assim do comum, a este voltarão por alguns detalhes. Acabo de pintar dois estados extremos; mas as nações não passam de repente do primeiro ao segundo; só conse­ guem fazê-lo gradativamente e através de nuanças infinitas Na passagem que leva um povo letrado de um estado ao ou­ tro, quase sempre sobrevêm um momento em que, encon- trando-se o gênio literário das nações democráticas com o das aristocracias, ambos parecem querer reinar de comum acordo sobre o espírito humano. São épocas passageiras, mas muito brilhantes: tem-se então a fecundidade sem exuberância e o movimento sem confusão. Assim foi a literatura francesa do século XVIII. Iria mais longe que meu pensamento se dissesse que a literatura de uma nação é sempre subordinada a seu estado social e à sua constituição política. Sei que, independentemen­ te dessas causas, há várias outras que proporcionam certas características às obras literárias; mas essas me parecem as principais. As relações que existem entre o estado social e político de um povo e o gênio de seus escritores sempre são muito numerosas; quem conhece um nunca ignora completamente o outro. Da indústria literária CAPÍTULO XIV A democracia não faz apenas o gosto pelas letras pene­ trar nas classes industriais, ela também introduz o espírito industrial no seio da literatura. Nas aristocracias, os leitores são difíceis e pouco nume­ rosos; nas democracias, é menos difícil agradá-los, e seu número é prodigioso. Resulta daí que, nos povos aristocráti­ cos, só se deve esperar ter êxito mediante ingentes esforços, e que esses esforços, que podem proporcionar muita glória, nunca seriam capazes de proporcionar muito dinheiro; ao passo que, nas nações democráticas, um escritor pode se ga­ bar de obter a pouco custo um renome medíocre e uma gran­ de fortuna. Não é necessário para tanto que o admirem, basta que o leiam. A multidão sempre crescente de leitores e a necessidade contínua que têm do novo garantem a difusão de um livro que eles nem estimam. Nos tempos de democracia, o público muitas vezes age com os autores como os reis costumam fazê-lo com seus cortesãos: enriquece-os e despreza-os. Que mais necessitam as almas venais que nascem nas cortes ou que são dignas de nelas viver? As literaturas democráticas formigam sempre desses au­ tores que não percebem nas letras nada mais que uma indús­ tria e, para alguns grandes escritores que nelas se assinalam, contam-se aos milhares os vendedores de idéias. 72 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA e as qualidades especiais que caracterizam a literatura das eras aristocráticas. De fato, basta correr os olhos pelos escritos que nos dei­ xou a Antiguidade para descobrir que, se os escritores por vezes careceram então de variedade e de fecundidade nos te­ mas, de ousadia, movimento e generalização no pensamen­ to, sempre mostraram uma arte e um cuidado admiráveis nos detalhes; nada em suas obras parece feito às pressas nem ao acaso; tudo é escrito para conhecedores, e a busca da beleza ideal se revela o tempo todo. Não há literatura que ponha mais em relevo que a dos antigos as qualidades que faltam naturalmente aos escritores das democracias. Não há portan­ to literatura que mais convenha estudar nas eras democráti­ cas. Esse estudo é, dentre todos, o mais apto a combater os defeitos literários inerentes a tais eras; quanto às suas quali­ dades naturais, elas nascerão sozinhas, sem que seja neces­ sário aprender a adquiri-las. Aqui é preciso entendermo-nos bem. Um estudo pode ser útil à literatura de um povo e não ser apropriado a suas necessidades sociais e políticas. Se se obstinassem a ensinar apenas as belas-letras numa sociedade em que cada um seria habitualmente levado a fazer violentos esforços para aumentar sua fortuna ou para mantê- la, teriam cidadãos muito cultos e muito perigosos; porque, como o estado social e político lhes daria, todos os dias, necessidades que a educação nunca lhes ensinaria a satisfazer, perturbariam o Estado em nome dos gregos e dos romanos, em vez de fecundá-lo com sua indústria. É evidente que, nas sociedades democráticas, o interes­ se dos indivíduos, tanto quanto a segurança do Estado, exige que a educação da maioria seja científica, comercial e indus­ trial, muito mais que literária. O grego e o latim não devem ser ensinados em todas as escolas; mas é importante que aqueles cuja natureza ou for­ tuna destina a cultivar as letras ou predispõe a apreciá-las en­ contrem escolas em que possam se apossar perfeitamente da literatura antiga e fazer-se impregnar inteiramente por seu espírito. Algumas universidades excelentes valeriam mais, para atingir essa meta, do que uma multidão de maus colé­ 1‘RJMEIRA PARTE 73 gios, em que estudos supérfluos mal feitos impedem fazer bem estudos necessários. Todos os que têm a ambição de se destacar nas letras, nas nações democráticas, muitas vezes devem alimentar-se com as obras da Antiguidade. É uma higiene salutar. Nâo que eu considere as produções literárias dos anti­ gos irretocáveis. Penso apenas que possuem qualidades es­ peciais que podem servir maravilhosamente para contraba­ lançar nossos defeitos particulares. Elas nos animam do lado em que ademamos. PRIMEIRA PASTE 77 Quando não têm a necessidade de mudar as palavras, sen­ tem às vezes o desejo de fazê-lo. O gênio dos povos democráticos não se manifesta ape­ nas no grande número de novas palavras que põem em cir­ culação, mas também na natureza das idéias que essas palavras novas representam. Nesses povos, é a maioria que faz a lei em matéria de língua, assim como em todo o resto. Seu espírito se revela nesse como em outros aspectos. Ora, a maioria está mais ocupada nos negócios do que nos estudos, mais nos interes­ ses políticos e comerciais do que nas especulações filosófi­ cas ou nas belas-letras. A maioria das palavras criadas ou admitidas por ela trarão a marca desses hábitos; servirão principalmente para exprimir as necessidades da indústria, as paixões dos partidos ou os detalhes da administração pública. É desse lado que a língua vai se estender sem ces­ sar, enquanto, ao contrário, abandonará pouco a pouco o terreno da metafísica e da teologia. Quanto à fonte onde as nações democráticas vão buscar suas palavras novas e à maneira que adotam para fabricá-las, é fácil dizê-la. Os homens que vivem nos países democráticos não sa­ bem a língua que se falava em Roma e em Atenas, e não têm a preocupação de remontar à Antiguidade para encontrar aí a expressão que lhes falta. Se às vezes recorrem às etimolo­ gias cultas, comumente é a vaidade que os faz buscá-las no acervo das línguas mortas, não é a erudição que as oferece naturalmente a seu espírito. Às vezes os mais ignorantes den­ tre eles é que mais as empregam. O desejo tipicamente de­ mocrático de sair da sua esfera leva-os com freqüência a querer realçar uma profissão grosseira com um nome grego ou latino. Quanto mais baixo e mais distante da ciência o ofício, mais seu nome é pomposo e erudito. Assim é que nos­ sos dançarinos sobre corda transformaram-se em acrobatas e funâmbulos. Na falta de línguas mortas, os povos democráticos to­ mam naturalmente palavras emprestadas das línguas vivas; porque se comunicam sem cessar entre si, e os homens dos diferentes países se imitam espontaneamente, porque se pare­ cem cada dia mais. 78 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA Mas é principalmente em sua própria língua que os po­ vos democráticos buscam os meios de inovar. Retomam de quando em quando, em seu vocabulário, expressões esque­ cidas que repõem em circulação, chj retiram de uma classe particular de cidadãos um termo que lhe é próprio, para fazê- lo entrar com um sentido figurado na linguagem habitual. Uma multidão de expressões que, inicialmente, tinham per­ tencido apenas à língua especial de um partido ou de uma profissão, vêem-se assim arrastadas ao uso geral. O expediente mais corriqueiro que os povos democráti­ cos empregam para inovar em matéria de linguagem consiste em dar a uma expressão já em uso um sentido inusitado. Es­ se método é simplíssimo, pronto e cômodo. Não é necessá­ rio ciência para servir-se adequadamente dele, e a própria ignorância facilita seu emprego. Mas ela faz a língua correr grandes riscos. Os povos democráticos, duplicando assim o sentido de uma palavra, às vezes tomam duvidoso o que aban­ donam e o que lhe dão, Um autor começa desviando um pouco uma expressão conhecida de seu sentido primitivo e, depois de a ter assim modificado, adapta-a como pode a seu tema. Vem outro, que puxa a significação para outro lado; um terceiro arrastada con­ sigo num novo caminho; e, como não há árbitro comum, não há tribunal permanente capaz de fixar definitivamente o sentido da palavra, esta permanece numa situação ambulante. Isso faz que os escritores quase nunca pareçam prender-se a um só pensamento, mas sempre mirar no meio de um grupo de idéias, deixando ao leitor o cuidado de julgar a que foi atingida. Isso é uma conseqüência incômoda da democracia. Eu preferiria que eriçassem a língua com palavras chinesas, tár­ taras ou huronianas, a tomar incerto o sentido das palavras francesas. A harmonia e a homogeneidade não passam de be­ lezas secundárias da linguagem. Há muita convenção nesses tipos de coisas, e a rigor podemos dispensá-las. Mas não há boa língua sem termos claros. A igualdade traz necessariamente outras mudanças à linguagem. Nos tempos aristocráticos, em que cada nação tende a se manter afastada de todas as outras e gosta de ter uma fisio­ PRIMEIRA PARTE 79 nomia própria, sucede com freqüência que vários povos de origem comum se tomem sobremaneira estranhos uns aos outros, de tal sorte que, sem cessar de poderem se entender, não falam mais todos da mesma maneira. Nesses mesmos tempos, cada nação é dividida num cer­ to número de classes que se vêem pouco e não se misturam; cada uma dessas classes adquire e conserva invariavelmente hábitos intelectuais próprios apenas dela, e adota preferen­ cialmente certas palavras e certos termos que passam em se­ guida de geração em geração, como herança. Encontramos então no mesmo idioma uma língua de pobres e uma língua de ricos, uma língua de vilões e uma língua de nobres, uma língua culta e uma língua vulgar. Quanto mais profundas as divisões e mais intransponíveis as barreiras, mais deve ser assim. Eu apostaria de bom grado que, entre as castas da índia, a linguagem varia prodigiosamente e que há quase tanta di­ ferença entre a língua de um pária e a de um brâftiane quanta entre seus trajes. Quando, ao contrário, os homens, não sendo mais manti­ dos em seu lugar, se vêem e se comunicam sem cessar, quan­ do as castas são destruídas e as classes se renovam e se con­ fundem, todas as palavras da língua se misturam. As que não podem convir à maioria perecem; o resto forma uma massa comum, em que cada um se serve mais ou menos ao acaso. Quase todos os diferentes dialetos que dividiam os idiomas da Europa tendem visivelmente a se eclipsar; não há patoá no novo mundo, e eles desaparecem cada dia no velho. Essa revolução no estado social influi tanto sobre o esti­ lo quanto sobre a língua. Todo o mundo não só utiliza as mesmas palavras, como também as pessoas se acostumam a empregar indiferente­ mente cada uma delas. As regras que o estilo havia criado são quase destruídas. Já não se encontram expressões que, por sua natureza, parecem vulgares, e outras que parecem distintas. Como indivíduos oriundos de diversos níveis so­ ciais levaram consigo, à posição que chegaram, as expressões e os termos que costumavam usar, a origem das palavras, como a dos homens, se perdeu, e criou-se uma confusão na linguagem, como na sociedade. 82 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA essas palavras só sejam encontradas nas línguas democráti­ cas; digo apenas que a tendência dos homens, nos tempos de igualdade, é aumentar particularmente a quantidade de pala­ vras dessa espécie, tomá-las sempre de forma isolada « a sua acepção mais abstrata e utilizá-las a cada instante, mesmo quando a necessidade do discurso não o requer. CAPÍTULO XVII De algumas fontes de poesia nas nações democráticas Foram dadas várias interpretações, bastante diferentes, da palavra poesia. Seria cansar os leitores procurar com eles qual desses diferentes sentidos convém escolher; prefiro dizer logo o que escolhi. A poesia, a meu ver, é a busca e a pintura do ideal. Quem, subtraindo uma parte do que existe, acrescen­ tando alguns traços imaginários ao quadro, combinando cer­ tas circunstâncias reais, mas cujo concurso não exista, com­ pleta e amplia a natureza, este é poeta. Assim, a poesia não terá por objetivo representar o verdadeiro, mas omá-lo e ofe­ recer ao espírito uma imagem superior. Os versos me parecerão como o belo ideal da linguagem e, nesse sentido, serão eminentemente poéticos; mas, por si sós, não constituirão a poesia. Quero investigar se, entre as ações, os sentimentos e as idéias dos povos democráticos não há que se prestem à ima­ ginação do ideal e que, por esse motivo, devamos conside­ rar como fontes naturais de poesia. Cumpre reconhecer antes de mais nada que o gosto pe­ lo ideal e pelo prazer que temos ao ver a pintura nunca são tão vivos e tão difundidos num povo democrático quanto no seio de uma aristocracia. Nas nações aristocráticas, o corpo às vezes age como que por si mesmo, ao passo que a alma está mergulhada num repouso que lhe pesa. Nessas nações, o próprio povo muitas vezes denota gostos poéticos e seu espírito às vezes se alça além e acima do que o rodeia. 84 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA Mas, nas democracias, o amor peio gozo material, a idéia do melhor, a concorrência, o encanto próximo do sucesso, são como aguilhões que precipitam o passo de cada homem na trajetória que abraçou e o impedem de se afastar dela um só momento. O principal esforço da alma vai nesse sentido. A imaginação não se apagou, mas se consagra quase exclu­ sivamente a conceber o útil e a representar o real. A igualdade não apenas desvia os homens da pintura do ideal; ela diminui o número dos objetos a pintar. A aristocracia, mantendo a sociedade imóvel, favorece a firmeza e a dureza das religiões positivas, assim como a esta­ bilidade das instituições políticas. Não apenas ela mantém o espírito humano na fé, mas o dispõe a adotar antes esta fé que aquela. Ura povo aristocrá­ tico sempre será propenso a colocar potências intermediá­ rias entre Deus e o homem. Podemos dizer que, nisso, a aristocracia se mostra muito favorável à poesia. Quando o universo está povoado de se­ res sobrenaturais que não são apreendidos pelos sentidos, mas que o espírito descobre, a imaginação sente-se à vonta­ de, e os poetas, encontrando mil temas diferentes para pin­ tar, encontram um sem-número de espectadores prontos para se interessar por seus quadros. Nas eras democráticas, ocorre às vezes, ao contrário, que as crenças se vão, inconstantes como as leis. A dúvida traz então a imaginação dos poetas de volta à terra e encer- ra-os no mundo visível e real, Ainda que não abale as religiões, a igualdade as simpli­ fica; ela desvia a atenção dos agentes secundários e volta-a principalmente para o senhor soberano, A aristocracia leva naturalmente o espírito humano à con­ templação do passado, e nele o fixa. A democracia, ao con­ trário, dá aos homens uma espécie de repugnância instintiva pelo que é antigo. Nisso, a aristocracia é muito mais favorável à poesia, porque de ordinário as coisas crescem e se velam à medida que se distanciam; e, sob esse duplo aspecto, elas se prestam melhor à pintura do ideal. Depois de haver tirado da poesia o passado, a igualda­ de subtrai-lhe em parte o presente.
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