Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

ELIADE, Mircea - O Sagrado e o Profano, Notas de estudo de História

um estudo do famoso historiador sorbe os âmbitos do sagrado e do profano.

Tipologia: Notas de estudo

2011

Compartilhado em 09/02/2011

fabio-lourenco-6
fabio-lourenco-6 🇧🇷

1 documento

Pré-visualização parcial do texto

Baixe ELIADE, Mircea - O Sagrado e o Profano e outras Notas de estudo em PDF para História, somente na Docsity! O SAGRADO E O PROFANO Mircea Eliade O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 2 – Título original: LE SACRÉ ET LE PROFANE Copyright © by Rowohlt Taschenbuchverlag GmbH, 1957 Copyright © Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo, 1992, para a presente edição 1ª edição: março de 1992 Tradução: Rogério Fernandes Adaptação para a edição brasileira: Silvana Vieira Revisão gráfica: Edvaldo Ângelo Batista e Jonas Pereira dos Santos Produção gráfica: Geraldo Alves Paginação: Renato C. Carbone Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Eliade, Mircea, 1907 1986. O sagrado e o profano / Mircea Eliade ; [tradução Rogério Fernandes]. – São Paulo: Martins Fontes, 1992. – (Tópicos) ISBN 85 336 0053 4 1. Religião 2. Sagrado I. Título. 92 0565CDD 200 Índices para catálogo sistemático: 1. Religião 200 2. Sagrado : Religião 200 Todos os direitos para o Brasil reservados à Livraria Martins Fontes Editora Ltda. Rua Conselheiro Ramalho, São Paulo SP Brasil Telefone 239 3677 por acordo com LIVROS DO BRASIL SIA, Lisboa Mircea Eliade _________________________________________________ – 5 – PREFÁCIO A ciência das religiões, como disciplina autônoma, tendo por objeto a análise dos elementos comuns das diversas religiões afim de decifrar-lhes as leis de evolução e, sobretudo, precisar a origem e a forma primeira da religião, é uma ciência muito recente (data do século XIX), e sua fundação quase coincidiu com a da ciência da linguagem. Max Müller impôs a expressão “ciência das religiões” ou “ciência comparada das religiões” ao utilizá-la no prefácio do primeiro volume de sua obra Chips from a German Worshop (Londres, 1867). É certo que o termo fora empregado esporadicamente antes (em 1852, pelo padre Prosper Leblanc; em 1858 por F. Stie felhagen etc.), mas não no sentido rigoroso que Max Müller lhe deu e que, desde então, passou a ser amplamente adotado. A primeira cátedra universitária de história das religiões foi criada em Genebra no ano de 1873; em 1876, fundaram-se quatro na Holanda. Em 1879, o Collége de France, em Paris, criou também uma cátedra para a disciplina, seguido em 1885 pela École des Hautes Études da Sorbonne, que organizou uma seção especial destinada às ciências religiosas. Na Universidade Livre de Bruxelas, a cadeira,foi instituída em 1884. Em 1910, seguiu se a Alemanha, com a primeira cátedra em Berlim, depois em Leipzig e em Bonn. Os outros países europeus acompanharam o movimento. Em 1880, Vernes fundava em Paris a Révue de l’Histoire des Religions; em 1898, o dr. Achelis publicava o Archiv für Religionswissenschaft, em Friburg Brisgau; em 1905, Wilhelm Schmidt iniciava em St. Gabriel Módling, perto de Viena, a revista Anthropos, consagrada sobretudo às religiões primitivas; em 1925 surge Studi e Materiali di Storia delle Religioni, de R. Pettazzoni. O primeiro Congresso Internacional de Ciência das Religiões aconteceu em Estocolmo, em 1897. Em 1900 teve lugar, em Paris, o Congresso de História das Religiões, assim denominado por excluir dos seus trabalhos a filosofia da religião e a teologia. O oitavo congresso internacional foi realizado em Roma, em 1955. Pouco a pouco multiplicaram-se as bibliografias, os dicionários, as enciclopédias, as publicações das fontes. Assinalemos sobretudo a Encyclopaedia of Religion and Ethics (13 volumes, Edimburgo. 1908-1923), publicada sob a direção de J. Hastings; Die Religion in Geschichte und Gegenwart. Handwörterbuch für Theologie und Religionswissenschaft (5 volumes, Tübingen, 1909-1913); Religionsgeschichtliche Lesebuch, organizado por A. Bertholet (Tübingen, 1908 e seg.; 2ª ed., 1926 e seg.): Textbuch zur Religionsgeschichte, organizado por Ed. Lehmann (Leipzig, 1912) e, depois, por Ed. Lehmann e H. Haas; Fontes Historiae Religionun ex auctoribus graecis et latinis, organizadas por C. Clemen (Bonn, 1920 e seg.); Bilderatlas zur Religionsgeschichte, por H. Haas e colaboradores (Leipzig, 1924). O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 6 – Mas se a ciência das religiões, como disciplina autônoma, só teve início no século XIX, o interesse pela história das religiões remonta a um passado muito mais distante. Podemos localizar sua primeira manifestação na Grécia clássica, sobretudo a partir do século V. Esse interesse manifesta se. por um lado, nas descrições dos cultos estrangeiros e nas comparações com os fatos religiosos nacionais – intercaladas nos relatos de viagens – e, por outro lado, na crítica filosófica da religião tradicional. Heródoto (c. 484 c. 425 a.C.,) já apresentava descrições admiravelmente exatas de algumas religiões exóticas e bárbaras (Egito, Pérsia. Trácia, Cítia etc.), e chegou até mesmo a propor hipóteses acerca de suas origens e relações com os cultos e as mitologias da Grécia. Os pensadores pré-socráticos, interrogando se sobre a natureza dos deuses e o valor dos mitos, fundaram a crítica racionalista da religião. Assim, por exemplo, para Parmênides (nascido por volta de 520) e Empédocles (c. 495-435). os deuses eram a personificação das forças da Natureza. Demócrito (c. 460-70), por sua vez, parece ter se interessado singularmente pelas religiões estrangeiras, que, aliás, conhecia de fonte direta em virtude de suas numerosas viagens: atribui se a ele, também, um livro Sobre as inscrições sagradas da Babilônia, as Narrativas caldéias e Narrativas frigias. Platão (429-347) utilizava freqüentemente comparações com as religiões dos bárbaros. Quanto a Aristóteles (384 322), foi o primeiro a formular, de maneira sistemática, a teoria da degenerescência religiosa da humanidade (Metafisica, XIL, capítulo 7), idéia que,foi retomada várias vezes posteriormente. Teofrasto (372 287). que sucedeu a Aristóteles na direção do Liceu. pode ser considerado o primeiro historiador grego das religiões: segundo Diógenes Laércio (V. 48), Teofrasto compôs uma história das religiões em seis livros. Mas foi a partir das conquistas de Alexandre, o Grande (356-323), que os escritores gregos tiveram oportunidade de conhecer diretamente e descrever as tradições religiosas dos povos orientais. Sob Alexandre, Bérose, sacerdote de Bel, publica suas Babyloniká. Megasténe, várias vezes enviado por Seleukos Nikator, entre os anos de 302 e 297, em embaixada ao rei indiano Chandragupta, publica Indiká. Hecateu de Abdera ou de Mos (365-270/275) escreve sobre os hiperbóreos e consagra à teologia dos egípcios os seus Aigyptiaká. O sacerdote egípcio Manéton (século 111) aborda o mesmo assunto em obra publicada sob o mesmo título. Foi assim que o mundo alexandrino passou a conhecer um grande número de mitos, ritos e costumes religiosos exóticos. No início do século III, em Atenas, Epicuro (341-270) empreendeu uma crítica radical da religião: segundo ele, o “consenso universal” prova que os deuses existem, mas Epicuro considera-os seres superiores e longínquos, sem nenhuma relação com os .homens. Suas teses ganharam popularidade no mundo latino no século I a.C, graças, sobretudo, a Lucrécio (c. 98 c. 53). Mas foram os estóicos que, no final do período antigo, exerceram uma influência profunda, ao elaborarem a exegese alegórica, método que lhes permitiu resgatar e, ao mesmo tempo, revalorizar a herança mitológica. Segundo os estóicos, os mitos Mircea Eliade _________________________________________________ – 7 – revelavam visões filosóficas sobre a natureza profunda das coisas, ou encerravam preceitos morais. Os múltiplos nomes dos deuses designavam uma só divindade, e todas as religiões exprimiam a mesma verdade fundamental; só variava a terminologia. O alegorismo estóico permitiu a tradução, numa linguagem universal e facilmente compreensível, de qualquer tradição antiga ou exótica. O método alegórico alcançou sucesso considerável;; desde então passou a ser freqüentemente utilizado. A idéia de que certos deuses eram reis ou heróis divinizados pelos serviços que haviam prestado à humanidade abria caminho desde Heródoto. Mas foi Evêmero (c. 330 c. 260) que popularizou essa interpretação pseudo-histórica da mitologia em seu livro A Inscrição Sagrada. A grande difusão do evemerismo deveu se, sobretudo, ao poeta Ennius (239-169), que verteu para o latim A Inscrição Sagrada, aos polemistas cristãos, que mais tarde se apoderaram dos argumentos de Evêmero. Com um método muito mais rigoroso, o erudito Políbio (c. 210-205 c. 125) e o geógrafo Estrabão (c. 60 c. 25 d.C.) esforçaram-se por esclarecer o fundo histórico que certos mitos gregos podiam encerrar. Entre os ecléticos romanos, Cícero (106-43) e Varrão (116-27) merecem menção especial pelo valor histórico-religioso de suas obras. Os quarenta livros das Antiguidades Romanas, de Varrão, acumulavam uma erudição imensa. No De Natura Deorum, Cícero dava uma descrição bastante fiel da situação dos ritos e crenças no último século da era pagã. A difusão dos cultos orientais e das religiões dos mistérios no Império Romano, e o sincretismo religioso que daí resultou, sobretudo na Alexandria, favoreceu o conhecimento das religiões exóticas e as investigações sobre as antiguidades religiosas dos diversos países. Nos dois primeiros séculos da era cristã, o evemerista Herennius Philon publicou sua História Fenícia, Pausânias a Descrição da Grécia inesgotável mina para o historiador das religiões – e (o pseudo-) Apolodoro sua Biblioteca consagrada à mitologia. O neopitagorismo e o neoplatonismo efetuaram, com base nessas obras, a revalorização da exegese espiritualista dos mitos e dos ritos. Um representante típico dessa exegese é Plutarco (45-50 c. 125), particularmente no seu tratado De Iside et Osiride. Segundo Plutarco, a diversidade das formas religiosas é apenas aparente; os simbolismos revelam a unidade fundamental das religiões. A tese estóica é expressa com um novo brilho por Séneca (2 66): as múltiplas divindades são os aspectos de um Deus único. Por outro lado, as descrições das religiões estrangeiras e dos cultos esotéricos multiplicam-se. César (101-44 a.C.) e Tácito (c. 55-120) forneceram informações preciosas sobre as religiões dos gauleses e dos germanos; Apuleio (século II d.C.) descreveu a iniciação dos mistérios de ísis; Luciano apresentou o culto sírio no seu De Dea Syria (c. 120 d. C.) Para os apologistas e os heresiarcas cristãos, a questão se colocava num outro plano, pois aos múltiplos deuses do paganismo eles opunham o deus único da religião O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 10 – moeurs des premiers temps (Paris, 1724). O juiz Ch. de Brosses apresenta à Académie des Inscriptions, em 1757, a memória Du culte des dieux fétiches ou Parallèle de l’ancienne religion de l’Egypte avec la religion actuelle de la Nigritie, que a academia considerou audaciosa demais para ser publicada e que apareceu anônima em 1760. Respondendo a. Lafitau e inspirando se em Hume, Ch. de Brosses considera errada a suposição de que os povos inicialmente tiveram de Deus uma concepção pura, que se foi degenerando através dos tempos; pelo contrário, visto que “o espírito humano se eleva por graus do inferior para o superior”; a primeira forma religiosa só pode ter sido grosseira: o fetichismo – termo que Ch. de Brosses utiliza no sentido vago de culto dos animais, vegetais e objetos inanimados. Os deístas ingleses, sobretudo D. Hume, os filósofos e enciclopedistas franceses – J.J. Rousseau, Voltaire, Diderot, dAlembert e os iluministas alemães (principalmente F. A. Wolf e Lessing) retomam com vigor a discussão do problema da religião natural. Mas,foram os eruditos que fizeram uma contribuição positiva para a interpretação das religiões exóticas, pagãs ou primitivas. Certos autores exerceram uma grande influência, tanto pelas hipóteses que levantaram, como pelas reações que suas obras provocaram ao longo do tempo: Fontenelle, no seu Discours sur 1’origine des fables (publicado em 1724, mas composto entre 1680 e 1699), dá provas de um espírito histórico penetrante e antecipa as teorias animistas do século XIX, François Dupuis publica em 1794 L’Origine de tous les cultes, em que se esforça por demonstrar que a história dos deuses, mesmo a vida de Cristo, não passa de alegorias do curso dos astros, tese que será retomada pelos panbabilonistas do fim do século XIX, Freiderich Creuzer, na sua Symbolik und Mythologie der alten Völkern, besonders der Griechen (1810 1812), tenta reconstruir as fases primordiais das religiões `pelágicas” e orientais e mostrar o papel dos símbolos (suas teses foram demolidas pelo racionalista Christian August Lobeck numa obra enorme, publicada em 1829, Aglaophamus). Graças às descobertas feitas em todos os setores do orientalismo na primeira metade do século XIX, e graças também à constituição da,filologia indo européia e da lingüística comparada, a história das religiões atingiu seu verdadeiro impulso com Max Müller (1823 1900). Em Essay on Comparative Mythology, que data de 1856 Müller abre uma longa série de estudos seus e dos partidários da sua teoria. Müller explica a criação dos mitos pelos fenômenos naturais sobretudo as epifanias do Sol e o nascimento dos deuses por uma “doença da linguagem”: o que, originariamente, não passava de um nome, nomen, tornou-se uma divindade, numen. Suas teses tiveram um sucesso considerável e só perderam a popularidade pelos fins do século XIX depois dos trabalhos de W. Mannhardt (1831 1880) e Edward Burnett Tylor (1832 1917). W Mannhardt, em seu livro Wald und Feldkulte (1875 77), mostrou a importância da “baixa mitologia”; sobrevivente ainda nos ritos e nas crenças dos camponeses. Segundo ele, essas crenças representam um estágio da religião mais antigo do que as mitologias naturistas estudadas por Max Müller. As teses de Mannhardt foram retomadas e popularizadas por Sir James George Frazer, na obra The Golden Bough (1890, 3° edição 1907 1913, em 12 volumes). Em 1871 apareceu Mircea Eliade _________________________________________________ – 11 – o livro de E.B. Tylor, Primitive Culture, que,fez época ao lançar uma nova moda, a do animismo: para o homem primitivo, tudo é dotado de uma alma, e essa crença,fundamental e universal não só explicaria o culto dos mortos e dos antepassados, mas também o nascimento dos deuses. Uma nova teoria, a do pré- animismo, foi elaborada a partir de 1900 por R. R. Marrett, K. Th. Preuss e outros sábios: segundo essa teoria, na origem da religião encontra-se a experiência de uma força impessoal (mana). Uma crítica do animismo, mas partindo de outro ponto de vista, foi,feita por Andreu, Lang (1844-1912), que constatou, nos níveis arcaicos de cultura, a crença em Seres supremos (Ail Fathers), que não podia ser explicada pela crença em espíritos. O. P. Wilhelm Schmidt (1868 1954) retomou essa idéia e elaborando a nas perspectivas do método histórico cultural, esforçou se por demonstrar a existência de um monoteísmo, fundamental (cf. Der Ursprung der Gottesidee, 12 volumes, 1912-1955). Durante a primeira metade do século XIX surgem outros movimentos. Emile Durkheim (1858-1917) julgava ter encontrado no totemismo a explicação sociológica da religião. (O termo totem designa, entre os Odjibwa da América, o animal cujo nome o clã usa e que é considerado o antepassado da raça.) já em 1869, J. F. Mac Lennan afirmava que o totemismo constitui a primeira forma religiosa. Mas investigações posteriores, sobretudo as de Frazer, mostraram que o totemismo não se difundiu por todo o mundo e que. portanto, não podia ser considerado a forma religiosa mais antiga. Lucien Lé vy-Bruhl tentou provar que o comportamento religioso se explicaria pela mentalidade pré-lógica dos primitivos – hipótese a que renunciou no,fim da sua vida. Mas essas hipóteses sociológicas não exerceram lima influência duradoura sobre as investigações histórico-religiosas. Alguns etnólogos, esforçando-se por fazer de sua disciplina lima ciência histórica, contribuíram indiretamente para a história das religiões. Entre esses etnólogos, podemos citar Fr. Graebner. Leo Frobenius, W. W Rivers, Wilhelm Schmidt na Europa, e a escola americana de Franz Boas. Wilhelm Wundt (1832 1920), Willian James (1842-1910) e Sigmund Freud (1856-1939) propuseram explicações psicológicas da religião. A fenomenologia da religião teve o seu primeiro representante autorizado em Gerardus van der Leeuw (1890-1950). Atualmente, os historiadores das religiões estão divididos entre duas orientações metodológicas divergentes, mas complementares: uns concentram sua atenção principalmente nas estruturas específicas dos fenômenos religiosos, enquanto outros interessam-se de preferência pelo contexto histórico desses fenômenos; os primeiros esforçam-se por compreender a essência da religião, os outros trabalham por decifrar e apresentar sua história. O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 12 – INTRODUÇÃO Ainda nos lembramos da repercussão mundial que obteve o livro de Rudolf Otto, Das Heilige (1917). Seu sucesso deu se graças, sem dúvida, à novidade e à originalidade da perspectiva adotada pelo autor. Em vez de estudar as idéias de Deus e de religião, Rudolf Otto aplicara-se na análise das modalidades da experiência religiosa. Dotado de grande refinamento psicológico e fortalecido por uma dupla preparação de teólogo e de historiador das religiões, Rudolf Otto conseguiu esclarecer o conteúdo e o caráter específico dessa experiência. Negligenciando o lado racional e especulativo da religião, Otto voltou se sobretudo para o lado irracional, pois tinha lido Lutero e compreendera o que quer dizer, para um crente, o “Deus vivo”. Não era o Deus dos filósofos, o Deus de Erasmo, por exemplo; não era uma idéia, uma noção abstrata, uma simples alegoria moral. Era, pelo contrário, um poder terrível, manifestado na “cólera” divina. Na obra Das Heilige, Rudolf Otto esforça se por clarificar o caráter específico dessa experiência terrífica e irracional. Descobre o sentimento de pavor diante do sagrado, diante desse mysterium tremendum, dessa majestas que exala uma superioridade esmagadora de poder; encontra o temor religioso diante do mysterium fascinans, em que se expande a perfeita plenitude do ser. R. Otto designa todas essas experiências como numinosas (do latim numen, “deus”) porque elas são provocadas pela revelação de um aspecto do poder divino. O numinoso singulariza se como qualquer coisa de ganz andere, radical e totalmente diferente: não se assemelha a nada de humano ou cósmico; em relação ao ganz andere, o homem tem o sentimento de sua profunda nulidade, o sentimento de “não ser mais do que uma criatura”, ou seja – segundo os termos com que Abraão se dirigiu ao Senhor –, de não ser “senão cinza e pó” (Gênesis, 18: 27). O sagrado manifesta se sempre como uma realidade inteiramente diferente das realidades “naturais”. É certo que a linguagem exprime ingenuamente o tremendum, ou a majestas, ou o mysterium fascinans mediante termos tomados de empréstimo ao domínio natural ou à vida espiritual profana do homem. Mas sabemos que essa terminologia analógica se deve justamente à incapacidade humana de exprimir o ganz andere: a linguagem apenas pode sugerir tudo o que ultrapassa a experiência natural do homem mediante termos tirados dessa mesma experiência natural. Passados quarenta anos, as análises de R. Otto guardam ainda seu valor; o leitor tirará proveito da leitura e da meditação delas. Mas nas páginas que seguem situamo-nos numa outra perspectiva. Propomo-nos apresentar o fenômeno do sagrado em toda a sua complexidade, e não apenas no que ele comporta de irracional. Não é a relação entre os elementos não racional e racional da religião que Mircea Eliade _________________________________________________ – 15 – ao longo da sua história. Esses modos de ser no Mundo não interessam unicamente à história das religiões ou à sociologia, não constituem apenas o objeto de estudos históricos, sociológicos, etnológicos. Em última instância, os modos de ser sagrado e profano dependem das diferentes posições que o homem conquistou no Cosmos e, conseqüentemente, interessam não só ao filósofo mas também a todo investigador desejoso de conhecer as dimensões possíveis da existência humana. Por essa razão, o autor deste pequeno livro, embora um historiador das religiões, propõe se não escrever unicamente da perspectiva da ciência que cultiva. O homem das sociedades tradicionais é, por assim dizer, um homo religiosus, mas seu comportamento enquadra-se no comportamento geral do homem e, por conseguinte, interessa à antropologia filosófica, à fenomenologia, à psicologia. A fim de sublinhar melhor as notas específicas da existência num mundo suscetível de tornar-se sagrado, não hesitaremos em citar exemplos escolhidos entre um grande número de religiões, pertencentes a idades e culturas diferentes. Nada pode substituir o exemplo, o fato concreto. Seria vão discorrer acerca da estrutura do espaço sagrado sem mostrar, com exemplos precisos, como se constrói um tal espaço e por que é que tal espaço se torna qualitativamente diferente do espaço profano que o cerca. Tomaremos esses exemplos entre mesopotâmicos, indianos, chineses, kwakiutls e outras populações primitivas. Da perspectiva histórico cultural, uma tal justaposição de fatos religiosos, pertencentes a povos tão distantes no tempo e no espaço, não deixa de ser um tanto perigosa, pois há sempre o risco de se recair nos erros do século XIX e, principalmente, de se acreditar, como Tvlor ou Frazer, numa reação uniforme do espírito humano diante dos fenômenos naturais. Ora, os progressos da etnologia cultural e da história das religiões mostraram que nem sempre isso ocorre, que as “reações do homem diante da Natureza” são condicionadas muitas vezes pela cultura – portanto, em última instância, pela história. Mas, para o nosso propósito, é mais importante salientar as notas específicas cia experiência religiosa do que mostrar suas múltiplas variações e as diferenças ocasionadas pela história. É um pouco como se, a fim de captarmos melhor o fenômeno poético, apelássemos para uma massa de exemplos heterogêneos, citando, ao lado de Homero, Virgílio ou Dante, poemas hindus, chineses ou mexicanos – ou seja, tomando em conta não só poéticas historicamente solidárias (Homero, Virgílio, Dante) mas também algumas criações baseadas em outras estéticas. Do ponto de vista da história da literatura, tais justaposições são duvidosas – mas são válidas se temos em vista a descrição do fenômeno poético como tal, se nos propomos mostrar a diferença essencial entre a linguagem poética e a linguagem utilitária cotidiana. O sagrado e a história O que nos interessa, acima de tudo, é apresentar as dimensões específicas da O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 16 – experiência religiosa, salientar suas diferenças com a experiência profana do Mundo. Não insistiremos sobre os inumeráveis condicionamentos que a experiência religiosa no Mundo sofreu no curso do tempo. É evidente, por exemplo, que os simbolismos e os cultos da Terra Mãe, da fecundidade humana e agrária, da sacralidade da mulher etc. não puderam desenvolver se e constituir um sistema religioso amplamente articulado senão pela descoberta da agricultura. É igualmente evidente que uma sociedade pré-agrícola, especializada na caça, não podia sentir da mesma maneira, nem com a mesma intensidade, a sacralidade da Terra Mãe. Há, portanto, uma diferença de experiência religiosa que se explica pelas diferenças de economia, cultura e organização social – numa palavra, pela história. Contudo, entre os caçadores nômades e os agricultores sedentários, há uma similitude de comportamento que nos parece infinitamente mais importante do que suas diferenças: tanto uns como outros vivem num Cosmos sacralizado; uns como outros participam de uma sacralidade cósmica, que se manifesta tanto no mundo animal como no mundo vegetal. Basta comparar suas situações existenciais às de um homem das sociedades modernas, vivendo num Cosmos dessacralizado, para imediatamente nos darmos conta de tudo o que separa este último dos outros. Do mesmo modo, damo-nos conta da validade das comparações entre fatos religiosos pertencentes a diferentes culturas: todos esses fatos partem de um mesmo comportamento, que é o do homo religiosus. Este livro pode, pois, servir como uma introdução geral à história das religiões, visto que descreve as modalidades do sagrado e a situação do homem num mundo carregado de valores religiosos. Mas não constitui uma obra da história das religiões no sentido estrito do termo, pois o autor não se deu à tarefa de indicar, a propósito dos exemp los que cita, os respectivos contextos histórico culturais. Para fazê-lo, seriam necessários vários volumes. O leitor encontrará todas as informações adicionais na bibliografia. Saint Cloud, abril de 1956 Mircea Eliade Mircea Eliade _________________________________________________ – 17 – CAPÍTULO I O ESPAÇO SAGRADO E A SACRALIZAÇAO DO MUNDO Homogeneidade espacial e hierofania Para o homem religioso, o espaço não ê homogêneo: o espaço apresenta roturas, quebras; há porções de espaço qualitativamente diferentes das outras. “Não te aproximes daqui, disse o Senhor a Moisés; tira as sandálias de teus pés, porque o lugar onde te encontras é uma terra santa.” (Êxodo, 3: 5) Há, portanto, um espaço sagrado, e por conseqüência “forte”, significativo, e há outros espaços não sagrados, e por conseqüência sem estrutura nem consistência, em suma, amorfos. Mais ainda: para o homem religioso essa não-homogeneidade espacial traduz-se pela experiência de uma oposição entre o espaço sagrado – o único que é real, que existe realmente – e todo o resto, a extensão informe, que o cerca. É preciso dizer, desde já, que a experiência religiosa da não homogeneidade do espaço constitui uma experiência primordial, que corresponde a uma “fundação do mundo”. Não se trata de uma especulação teórica, mas de uma experiência religiosa primária, que precede toda a reflexão sobre o mundo. É a rotura operada no espaço que permite a constituição do mundo, porque é ela que descobre o “ponto fixo”, o eixo central de toda a orientação futura. Quando o sagrado se manifesta por uma hierofania qualquer, não só há rotura na homogeneidade do espaço, como também revelação de uma realidade absoluta, que se opõe à não realidade da imensa extensão envolvente. A manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo. Na extensão homogênea e infinita onde não é possível nenhum ponto de referência, e onde, portanto, nenhuma orientação pode efetuar-se, a hierofania revela um “ponto fixo” absoluto, um “Centro”. Vemos, portanto, em que medida a descoberta – ou seja, a revelação – do espaço sagrado tem um valor existencial para o homem religioso; porque nada pode começar, nada se pode fazer sem uma orientação prévia – e toda orientação implica a aquisição de um ponto fixo. É por essa razão que o homem religioso sempre se esforçou por estabelecer se no “Centro do Mundo”. Para viver no Mundo é preciso fundá-lo – e nenhum mundo pode nascer no “caos” da homogeneidade e da relatividade do espaço profano. A descoberta ou a projeção de um ponto fixo – o “Centro” – equivale à Criação do Mundo, e não tardaremos a citar exemplos que O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 20 – Todo espaço sagrado implica uma hierofania, uma irrupção do sagrado que tem como resultado destacar um território do meio cósmico que o envolve e o torna qualitativamente diferente. Quando, em Haran, Jacó viu em sonhos a escada que tocava os céus e pela qual os anjos subiam e desciam, e ouviu o Senhor, que dizia, no cimo: “Eu sou o Eterno, o Deus de Abraão!”, acordou tomado de temor e gritou: “Quão terrível é este lugar! Em verdade é aqui a casa de Deus: é aqui a Porta dos Céus!” Agarrou a pedra de que fizera cabeceira, erigiu a em monumento e verteu azeite sobre ela. A este lugar chamou Betel, que quer dizer “Casa de Deus” (Gênesis, 28: 1219). O simbolismo implícito na expressão “Porta dos Céus” é rico e complexo: a teofania consagra um lugar pelo próprio fato de torná-lo “aberto” para o alto, ou seja, comunicante com o Céu, ponto paradoxal de passagem de um modo de ser a outro. Não tardaremos a encontrar exemplos ainda mais precisos: santuários que são “Portas dos Deuses” e, portanto, lugares de passagem entre o Céu e a Terra. Inúmeras vezes nem sequer há necessidade de urna teofania ou de uma hierofania propriamente ditas: um sinal qualquer basta para indicar a sacralidade do lugar. “Segundo a lenda, o morabito que fundou El Hemel no fim do século XVI parou, para passar a noite, perto da fonte e espetou uma vara na terra. No dia seguinte, querendo retomá-la a fim de continuar seu caminho, verificou que a vara lançara raízes e que tinham nascido rebentos. Ele viu nisso o indício da vontade de Deus e fixou sua morada nesse lugar.” É que o sinal portador de significação religiosa introduz um eleme nto absoluto e põe fim à relatividade e à confusão. Qualquer coisa que não pertence a este mundo manifestou se de maneira apodítica, traçando desse modo uma orientação ou decidindo uma conduta. Quando não se manifesta sinal algum nas imediações, o homem provoca o, pratica, por exemplo, uma espécie de evocatio com a ajuda de animais: são eles que mostram que lugar é suscetível de acolher o santuário ou a aldeia. Trata-se, em resumo, de uma evocação das formas ou figuras sagradas, tendo como objetivo imediato a orientação na homogeneidade do espaço. Pede se um sinal para pôr fim à tensão provocada pela relatividade e à ansiedade alimentada pela desorientação, em suma, para encontrar um ponto de apoio absoluto. Um exemplo: persegue se um animal feroz e, no lugar onde o matam, eleva se o santuário; ou então põe se em liberdade um animal doméstico – um touro, por exemplo –, procuram-no alguns dias depois e sacrificam no ali mesmo onde o encontraram. Em seguida levanta se o altar e ao redor dele constrói se a aldeia. Em todos esses casos, são os animais que revelam a sacralidade do lugar, o que significa que os homens não são livres de escolher o terreno sagrado, que os homens não fazem mais do que procurá-lo e descobri-lo com a ajuda de sinais misteriosos. Esses poucos exemplos mostram nos os diferentes meios pelos quais o homem religioso recebe a revelação de um lugar sagrado. Em cada um desses casos, as hierofanias anularam a homogeneidade do espaço e revelaram um “ponto fixo”. Mas, visto que o homem religioso só consegue viver numa atmosfera impregnada do Mircea Eliade _________________________________________________ – 21 – sagrado, é preciso que tenhamos em conta uma quantidade de técnicas destinadas a consagrarem-lhe o espaço. Como vimos, o sagrado é o real por excelência, ao mesmo tempo poder, eficiência, fonte de vida e fecundidade. O desejo do homem religioso de viver no sagrado equivale, de fato, ao seu desejo de se situar na realidade objetiva, de não se deixar paralisar pela relatividade sem fim das experiências puramente subjetivas, de viver num mundo real e eficiente – e não numa ilusão. Esse comportamento verifica se em todos os planos da sua existência, mas é evidente no desejo do homem religioso de mover se unicamente num mundo santificado, quer dizer, num espaço sagrado. É por essa razão que se elaboraram técnicas de orientação, que são, propriamente falando, técnicas de construção do espaço sagrado. Mas não devemos acreditar que se trata de um trabalho humano, que é graças ao seu esforço que o homem consegue consagrar um espaço. Na realidade, o ritual pelo qual o homem constrói um espaço sagrado é eficiente à medida que ele reproduz a obra dos deuses. A fim de compreendermos melhor a necessidade de construir ritualmente o espaço sagrado, é preciso insistir um pouco na concepção tradicional do “mundo”: então logo nos daremos conta de que o “mundo” todo é, para o homem religioso, um “mundo sagrado”. Caos e cosmos O que caracteriza as sociedades tradicionais é a oposição que elas subentendem entre o seu território habitado e o espaço desconhecido e indeterminado que o cerca: o primeiro é o “mundo”, mais precisamente, “o nosso mundo”, o Cosmos; o restante já não é um Cosmos, mas uma espécie de “outro mundo”, um espaço estrangeiro, caótico, povoado de espectros, demônios, “estranhos” (equiparados, aliás, aos demônios e às almas dos mortos). À primeira vista, essa rotura no espaço parece conseqüência da oposição entre um território habitado e organizado, portanto “cosmizado”, e o espaço desconhecido que se estende para além de suas fronteiras: tem se de um lado um “Cosmos” e de outro um “Caos”. Mas é preciso observar que, se todo território habitado é um “Cosmos”, é justamente porque foi consagrado previamente, porque, de um modo ou outro, esse território é obra dos deuses ou está em comunicação com o mundo deles. O “Mundo” (quer dizer, “o nosso mundo”) é um universo no interior do qual o sagrado já se manifestou e onde, por conseqüência, a rotura dos níveis tornou-se possível e se pode repetir. É fácil compreender por que o momento religioso implica o “momento cosmogônico”: o sagrado revela a realidade absoluta e, ao mesmo tempo, torna possível a orientação – portanto, funda o mundo, no sentido de que fixa os limites e, assim, estabelece a ordem cósmica. Tudo isso sobressai com muita clareza do ritual védico concernente à tomada de posse de um território: a posse torna-se legalmente válida pela ereção de um altar do fogo consagrado a Agni. “Diz se que se está instalado quando se construiu um altar O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 22 – de fogo (gârhapatya), e todos aqueles que constroem um altar do fogo estão legalmente estabelecidos” (Shatapatha Brâhmana, VII, I, I, I 4). Pela ereção de um altar do fogo, Agni tornou-se presente e a comunicação com o mundo dos deuses está assegurada: o espaço do altar torna-se um espaço sagrado. Mas o significado do ritual é muito mais complexo, e quando nos damos conta de todas as suas articulações compreendemos por que a consagração de um território equivale à sua cosmização. Com efeito, a ereção de um altar a Agni não é outra coisa senão a reprodução – em escala microcósmica – da Criação. A água onde se amassa a argila é equiparada à Água primordial; a argila que serve de base ao altar simboliza a Terra; as paredes laterais representam a Atmosfera etc. E a construção é acompanhada de estrofes explícitas que proclamam qual região cósmica acaba de ser criada (Shatapatha Br. I, 9, 2, 29 etc.). Conseqüentemente, a elevação de um altar do fogo – a única maneira de validar a posse de um território – equivale a uma cosmogonia. Um território desconhecido, estrangeiro, desocupado (no sentido, muitas vezes, de desocupado pelos “nossos”) ainda faz parte da modalidade fluida e larvar do “Caos”. Ocupando o e, sobretudo, instalando se, o homem transforma o simbolicamente em Cosmos mediante uma repetição ritual da cosmogonia. O que deve tornar-se “o nosso mundo”, deve ser “criado” previamente, e toda criação tem um modelo exemplar: a Criação do Universo pelos deuses. Quando os colonos escandinavos tomaram posse da Islândia (land-náma) e a arrotearam, não consideraram esse empreendimento nem como uma obra original, nem como um trabalho humano e profano. Para eles, seu trabalho não era mais do que a repetição de um ato primordial: a transformação do Caos em Cosmos, pelo ato divino da Criação. Trabalhando a terra desértica, repetiam de fato o ato dos deuses que haviam organizado o Caos, dando-lhe uma estrutura, formas e normas. Quando se trata de arrotear uma terra inculta ou de conquistas e ocupar um território já habitado por “outros” seres humanos, a tomada de posse ritual deve, de qualquer modo, repetir a cosmogonia. Porque, da perspectiva das sociedades arcaicas, tudo o que não é “o nosso mundo” não é ainda um “mundo”. Não se faz “nosso” um território senão “criando-o” de novo, quer dizer, consagrando o. Esse comportamento religioso em relação a terras desconhecidas prolongou se, mesmo no Ocidente, até a aurora dos tempos modernos. Os “conquistadores” espanhóis e portugueses tomavam posse, em nome de Jesus Cristo, dos territórios que haviam descoberto e conquistado. A ereção da Cruz equivalia à consagração da região e, portanto, de certo modo, a um “novo nascimento”. Porque, pelo Cristo, “passaram as coisas velhas; eis que tudo se fez novo” (II Coríntios, 5:17). A terra recentemente descoberta era “renovada”, “recriada” pela Cruz. Mircea Eliade _________________________________________________ – 25 – espaço; (b) essa rotura é simbolizada por uma “abertura”, pela qual se tornou possível a passagem de uma região cósmica a outra (do Céu à Terra e vice-versa; da Terra para o mundo inferior); (c) à comunicação com o Céu é expressa indiferentemente por certo número de imagens referentes todas elas ao Axis mundi: pilar (cf. a universalis columna), escada (cf. a escada de Jacó), montanha, árvore, cipós etc.; (d) em torno desse eixo cósmico estende se o “Mundo” (“nosso mundo”) – logo, o eixo encontra-se “ao meio”, no “umbigo da Terra”, é o Centro do Mundo. Um grande número de mitos, ritos e crenças diversas deriva desse “sistema do Mundo” tradicional. Não é o caso de citá-los aqui. Parece nos mais útil limitar nos a alguns exemplos, escolhidos entre civilizações diferentes, e que podem nos fazer compreender o papel do espaço sagrado na vida das sociedades tradicionais – qualquer que seja, aliás, o aspecto particular sob o qual se apresente esse espaço: lugar santo, casa cultual, cidade, “Mundo”. Encontramos por toda a parte o simbolismo do Centro do Mundo, e é ele que, na maior parte dos casos, nos permite entender o comportamento religioso em relação ao “espaço em que se vive”. Comecemos por um exemplo que tem o mérito de nos revelar, de imediato, a coerência e a complexidade de um tal simbolismo: a Montanha Cósmica. Acabamos de ver que a montanha figura entre as imagens que exprimem a ligação entre o Céu e a Terra; considera-se, portanto, que a montanha se encontra no Centro do Mundo. Com efeito, numerosas culturas falam nos dessas montanhas – míticas ou reais – situadas no Centro do Mundo: é o caso do Meru, na Índia, de Haraberezaiti, no Irã, da montanha mítica “Monte dos Países”, na Mesopotâmia, de Gerizim, na Palestina, que se chamava aliás “Umbigo da Terra”. Visto que a montanha sagrada é um Axis mundi que liga a Terra ao Céu, ela toca de algum modo o Céu e marca o ponto mais alto do mundo; daí resulta, pois, que o território que a cerca, e que constitui o “nosso mundo”, é considerado como a região mais alta. É o que proclama a tradição israelita: a Palestina, sendo a região mais elevada, não foi submersa pelo Dilúvio. Segundo a tradição islâmica, o lugar mais elevado da Terra é a kâ’aba, pois “a estrela polar testemunha que ela se encontra defronte do centro do Céu”. Para os cristãos, é o Gólgota que se encontra no cume da Montanha cósmica. Todas essas crenças exprimem um mesmo sentimento, que é profundamente religioso: “nosso mundo” é uma terra santa porque é o lugar mais próximo do Céu, porque daqui, dentre nós, pode se atingir o Céu; nosso mundo é, pois, um “lugar alto”. Em termos cosmológicos, essa concepção religiosa traduz se pela projeção do território privilegiado que é o nosso no cume da montanha cósmica. As especulações posteriores tiraram toda sorte de conclusões, por exemplo a que acabamos de ver a propósito da Palestina: que a Terra Santa não foi submersa pelo Dilúvio. O mesmo simbolismo do Centro explica outras séries de imagens cosmológicas e crenças religiosas, entre as quais vamos reter as mais importantes: (a) as cidades santas e os santuários estão no Centro do Mundo; (b) os templos são réplicas da Montanha cósmica e, conseqüentemente, constituem a “ligação” por excelência entre a Terra e o Céu; (c) os alicerces dos templos mergulham profundamente nas O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 26 – regiões inferiores. Alguns exemplos serão suficientes. Em seguida trataremos de integrar todos esses diversos aspectos de um mesmo simbolismo; veremos então mais claramente como são coerentes essas concepções tradicionais do Mundo. A capital do soberano chinês perfeito encontra-se no Centro do Mundo: aí, no dia do solstício do verão, ao meio dia, o gnomo não deve ter sombras. É surpreendente encontrar o mesmo simbolismo aplicado ao Templo de Jerusalém: o rochedo sobre o qual se erguia o templo era o “umbigo da Terra”. O peregrino islandês Nicolau de Thvera, que visitara Jerusalém no século XIII, escreveu acerca do Santo Sepulcro: “É ali o meio do Mundo; ali, no dia do solstício do verão, a luz do Sol cai perpendicular do Céu”. A mesma concepção no Irã: a região iraniana (Airyanam Vaejab) é o centro e o coração do Mundo. Tal como o coração se encontra no meio do corpo, “o país do Irã é mais precioso que todos os demais países porque está situado no meio do Mundo”. É por isso que Shiz, a “Jerusalém” dos iranianos (por se encontrar no Centro do Mundo), era reputada como o lugar original do poder real e, ao mesmo tempo, a cidade onde Zaratustra nascera”. Quanto à assimilação dos templos às Montanhas cósmicas e à sua função de “ligação” entre a Terra e o Céu, testemunham no os próprios nomes das torres e dos santuários babilônios: chamam-se “Monte da Casa”, “Casa do Monte de todas as Terras”, “Monte das Tempestades”, “Ligação entre o Céu e a Terra” etc. A ziqqurat era, propriamente falando, uma Montanha cósmica: os sete andares representavam os sete céus planetários; subindo os, o sacerdote ascendia ao cume do Universo. Um simbolismo análogo explica a enorme construção do templo de Barabudur, em Java, erigido como uma montanha artificial. Sua escalada equivale a uma viagem extãtica ao Centro do Mundo; atingindo o terraço superior, o peregrino realiza uma rotura de nível; penetra numa “região pura”, que transcende o mundo profano. Dur-na-ki, “ligação entre o Céu e a Terra”, era um nome que se aplicava a vários santuários babilônios (em Nippur, Larsa, Sippar etc.). Babilônia tinha inúmeros nomes, entre os quais “Casa da base do Céu e da Terra”, “Ligação entre o Céu e a Terra”. Mas é ainda em Babilônia que se fazia a ligação entre a Terra e as regiões inferiores, porque a cidade havia sido construída sobre bâbapsú, “a Porta de Apsü”, designando apsâ as Águas do Caos anterior à Criação. Encontra-se a mesma tradição entre os hebreus: o rochedo do templo de Jerusalém penetrava profundamente o tebôm, o equivalente hebraico de apsú. E tal como na Babilônia havia a “Porta de Apsú”, o rochedo do templo de Jerusalém tapava a “boca de tebóm”. O apsú, o tehôm simbolizam ao mesmo tempo o “Caos” aquático – a modalidade pré-formal da matéria cósmica – e o mundo da Morte, de tudo o que precede a vida e a sucede. A “Porta de Apsú” e o rochedo que oculta a “boca de tehôm” designam não somente o ponto de intersecção – e portanto de comunicação – entre o mundo inferior e a Terra, mas também a diferença de regime ontológico entre esses dois planos cósmicos. Há rotura de nível entre tehôm e o rochedo do Templo que lhe fecha a “boca”, passagem do virtual ao formal, da morte à vida. O Caos aquático que precedeu a Criação simboliza ao mesmo tempo a regressão ao amorfo efetuada pela Mircea Eliade _________________________________________________ – 27 – morte, o regresso à modalidade larvar da existência. De certo ponto de vista, as regiões inferiores são comparáveis às regiões desérticas e desconhecidas que cercam o território habitado; o mundo de baixo, por cima do qual se estabelece firmemente o nosso “Cosmos”, corresponde ao “Caos” que se estende junto às suas fronteiras. “Nosso Mundo” situa-se sempre no centro De tudo o que acabamos de dizer resulta que o “verdadeiro mundo” se encontra sempre no “ meio”, no “Centro”, pois é aí que há rotura de nível, comunicação entre as três zonas cósmicas. Trata-se sempre de um Cosmos perfeito, seja qual for sua extensão. Toda uma região (por exemplo, a Palestina), uma cidade (Jerusalém), um santuário (o templo de Jerusalém) representam indiferentemente uma imago mundi. Flávio José escreveu, a propósito do simbolismo do templo, que o pátio figurava o Mar (quer dizer, as regiões inferiores), o santuário representava a Terra, e o Santo dos Santos, o Céu (Ant. Jud., III, VII, 7). Verifica se pois que a imago mundi, assim como o “Centro”, se repete no interior do mundo habitado. A Palestina, Jerusalém e o Templo de Jerusalém representam cada um e ao mesmo tempo a imagem do Universo e o Centro do Mundo. Essa multiplicidade de “Centros” e essa reiteração da imagem do mundo a escalas cada vez mais modestas constituem uma das notas específicas das sociedades tradicionais. Parece nos que se impõe uma conclusão: o homem religioso desejava viver o mais perto possível do Centro do Mundo. Sabia que seu país se encontrava efetivamente no meio da Terra; sabia também que sua cidade constituía o umbigo do Universo e, sobretudo, que o Templo ou o Palácio eram verdadeiros Centros do Mundo; mas queria também que sua própria casa se situasse no Centro e que ela fosse uma imago mundi. E, como vamos ver, acreditava se que as habitações situavam-se de fato no Centro do Mundo e reproduziam, em escala microcósmica, o Universo. Em outras palavras, o homem das sociedades tradicionais só podia viver num espaço “aberto” para o alto, onde a rotura de nível estava simbolicamente assegurada e a comunicação com o outro mundo, o mundo transcendental, era ritualmente possível. O santuário – o “Centro” por excelência – estava ali, perto dele, na sua cidade, e a comunicação com o mundo dos deuses era-lhe afiançada pela simples entrada no templo. Mas o homo religiosus sentia a necessidade de viver sempre no Centro – tal como os achilpa, que, como vimos, traziam sempre consigo o poste sagrado, o Axis mundi, a fim de não se afastarem do Centro e permanecerem em comunicação com o mundo supra-terrestre. Numa palavra, sejam quais forem as dimensões do espaço que lhe é familiar e no qual ele se sente situado – seu país, sua cidade, sua aldeia, sua casa –, o homem religioso experimenta a necessidade de existir sempre num mundo total e organizado, num Cosmos. Um Universo origina se a partir do seu Centro, estende se a partir de um ponto central que é como o seu “umbigo”. É assim que, segundo o Rig Veda (X, 149), O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 30 – simbolicamente todos os anos, pois todos os anos o mundo deve ser criado de novo. Da mesma maneira, a vitória do deus contra as forças das Trevas, da Morte e do Caos repete se a cada vitória da cidade contra os invasores. É muito provável que as defesas dos lugares habitados e das cidades tenham sido, no começo, defesas mágicas; essas defesas – fossas, labirintos, muralhas etc. eram dispostas a fim de impedir a invasão dos demônios e das almas dos mortos mais do que o ataque dos humanos. No norte da Índia, na época de uma epidemia, descreve se em volta da aldeia um círculo destinado a interdizer aos demônios da doença a entrada no recinto. No Ocidente, na Idade Média, os muros das cidades eram consagrados ritualmente como uma defesa contra o Demônio, a Doença e a Morte. Aliás, o pensamento simbólico não encontra nenhuma dificuldade em assimilar o inimigo humano ao Demônio e à Morte. Afinal, o resultado dos ataques, sejam demoníacos ou militares, é sempre o mesmo: a ruína, a desintegração, a morte. Notemos que nos nossos dias ainda são utilizadas as mesmas imagens quando se trata de formular os perigos que ameaçam certo tipo de civilização: fala se do “caos”, de “desordem”, das “trevas” onde “nosso mundo” se afundará. Todas essas expressões significam a abolição de uma ordem, de um Cosmos, de uma estrutura orgânica, e a re-imersão num estado fluido, amorfo, enfim, caótico. Isto prova, ao que parece, que as imagens exemplares sobrevivem ainda na linguagem e nos estribilhos do homem não religioso. Algo da concepção religiosa do Mundo prolonga se ainda no comportamento do homem profano, embora ele nem sempre tenha consciência dessa herança imemorial. Assumir a criação do mundo Sublinhemos a diferença radical que se assinala entre os dois comportamentos – tradicional (religioso) e profano – relativamente à morada humana. Seria inútil insistir sobre o valor e a função da habitação nas sociedades industriais; são suficientemente bem conhecidos. Segundo a fórmula de um célebre arquiteto contemporâneo, Le Corbusier, a casa é uma “máquina para habitar”. Alinha se, portanto, entre as inúmeras máquinas fabrica das em série nas sociedades industriais. A casa ideal do mundo moderno deve ser, antes de tudo, funcional, quer dizer, deve permitir aos homens trabalharem e repousarem a fim de assegurarem o trabalho. Pode se mudar a “máquina de habitar” tão freqüentemente quanto se troca uma bicicleta, uma geladeira ou um carro. Pode se, igualmente, mudar da cidade ou província natais, sem nenhum outro inconveniente alé m daquele que decorre da mudança de clima. Não cabe no nosso tema descrever a história da lenta dessacralização da morada humana. Esse processo faz parte integrante da gigantesca transformação do mundo assumida pelas sociedades industriais – transformação que se tornou possível pela dessacralização do Cosmos, a partir do pensamento científico e, sobretudo, das Mircea Eliade _________________________________________________ – 31 – descobertas sensacionais da física e da química. Mais tarde, teremos ocasião de indagar-se essa secularização da Natureza é realmente definitiva, se não há nenhuma possibilidade, para o homem não religioso, de reencontrar a dimensão sagrada da existência no Mundo. Como acabamos de ver, e como veremos ainda melhor nas páginas seguintes, algumas imagens tradicionais, alguns traços da conduta do homem arcaico persistem ainda no estado de “sobrevivências”, mesmo nas sociedades mais industrializadas. Mas o que nos interessa no momento é mostrar, no estado puro, o comportamento religioso em relação à habitação e esclarecer a concepção do mundo que ele implica. Instalar-se num território, construir uma morada pede, conforme vimos, uma decisão vital, tanto para a comunidade como para o indivíduo. Trata-se de assumir a criação do “mundo” que se escolheu habitar. É preciso, pois, imitar a obra dos deuses, a cosmogonia. Mas isso nem sempre é fácil de fazer, pois existem também cosmogonias trágicas, sangrentas: como imitador dos gestos divinos, o homem deve reiterá-las. Se os deuses tiveram de espancar e esquartejar um Monstro marinho ou um Ser primordial para poderem criar a partir dele o mundo, o homem, por sua vez, deve imitar essa ação quando constrói seu mundo próprio, a cidade ou a casa. Daí a necessidade de sacrifícios sangrentos ou simbólicos por ocasião das construções, as inúmeras formas de Bauopfer, acerca do qual teremos ocasião de dizer mais tarde algumas palavras. Seja qual for a estrutura de uma sociedade tradicional – seja uma sociedade de caçadores, pastores, agricultores, ou uma sociedade que já se encontre no estágio da civilização urbana –, a habitação é sempre santificada, pois constitui uma imago mundi, e o mundo é uma criação divina. Mas existem várias maneiras de equiparar a morada ao Cosmos, justamente porque existem vários tipos de cosmogonia. Para nosso propósito, basta nos distinguir dois meios de transformar ritualmente a morada (tanto o território como a casa) em Cosmos, quer dizer, de lhe conferir o valor de imago mundi: (a) assimilandoa ao Cosmos pela projeção dos quatro horizontes a partir de um ponto central, quando se trate de uma aldeia, ou pela instalação simbólica do Axis mundi quando se trate da habitação familiar; (b) repetindo, mediante um ritual de construção, o ato exemplar dos deuses, graças ao qual o Mundo tomou nascimento do corpo de um Dragão marinho ou de um Gigante primordial. Não nos incumbe discutir aqui a diferença radical de “Concepção do Mundo” entre esses dois meios de santificar a morada, nem seus pressupostos histórico culturais. Basta dizer que o primeiro meio – ou seja, a “cosmização” de um espaço pela projeção dos horizontes ou pela instalação do Axis mundi – é atestado já nos estágios mais arcaicos de cultura (por exemplo, o poste kauuva auuva dos australianos achilpa), ao passo que o segundo meio parece ter sido inaugurado na cultura das Urfanzer. O que interessa à nossa investigação é o fato de que, em todas as culturas tradicionais, a habitação comporta um aspecto sagrado pelo próprio fato de refletir o Mundo. Com efeito, a morada das populações primitivas árticas, norte americanas e norte O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 32 – asiáticas apresenta um poste central que é assimilado ao Axis mundi, quer dizer, ao Pilar cósmico ou à Árvore do Mundo, que, como vimos, ligam a Terra ao Céu. Em outras palavras, na própria estrutura da habitação revela se o simbolismo cósmico. A casa é uma imago mundi. O Céu é concebido como uma imensa tenda sustentada por um pilar central: a estaca da tenda ou o poste central da casa são assimilados aos Pilares do Mundo e designados por este nome. Esse poste central tem um papel ritual importante: é na sua base que têm lugar os sacrifícios em honra do Ser supremo celestial. O mesmo simbolismo conservou se entre os pastores criadores de gado da Ásia central, mas, como a habitação de teto cônico com pilar central foi substituída aqui pela yourte, a função mítico ritual do pilar é atribuída à abertura superior de evacuação da fumaça. Tal como o poste (= Axis mundi), a árvore desprovida de ramos cujo cimo sai pela abertura superior da Vourte (e que simboliza a Árvore cósmica) é concebida como uma escada que conduz ao Céu: os xamãs trepam por ela na sua viagem celeste. E é pela abertura superior que saem os xamãs. Encontra-se ainda o Pilar sagrado, erguido no meio da habitação, na África, entre os povos hamitas e hamitóides. Concluindo, toda morada situa se perto do Axis mundi, pois o homem religioso só pode viver implantado na realidade absoluta. Cosmogonia e Bauopfer Uma concepção similar encontra-se também numa cultura altamente evoluída como a da Índia, mas neste caso apresenta se igualmente a outra maneira de equiparar a casa ao Cosmos, acerca da qual já dissemos algumas palavras. Com efeito, antes de os pedreiros colocarem a primeira pedra, o astrólogo indica- lhes o ponto dos alicerces que se situa acima da Serpente que sustenta o mundo. Um mestre de obras talha uma estaca e a enterra no solo, exatamente no ponto designado, a fim de fixar bem a cabeça da serpente. Uma pedra de base é colocada em seguida por cima da estaca. A pedra angular encontra-se assim exatamente no “Centro do Mundo”. Mas, por outro lado, o ato de fundação repete o ato cosmogônico: enterrar a estaca na cabeça da serpente e “fixá-la” é incitar o gesto primordial de Soma ou de Indra, quando este último, conforme diz o Rig Veda, “feriu a serpente no seu antro” (IV, 17, 9) e “cortou-lhe a cabeça” com seus raios (1, 52, 10). Como já dissemos, a Serpente simboliza o Caos, o amorfo, o não manifestado. Decapitá-la equivale a um ato de criação, passagem do virtual e do amorfo ao formal. Lembremo-nos de que foi do corpo de um monstro marinho primordial, Tiamat, que o deus Marduk deu forma ao Universo. Essa vitória era simbolicamente reiterada todos os anos, visto que todos os anos se renovava o Cosmos. Mas o ato exemplar da vitória divina era igualmente repetido por ocasião de qualquer construção; pois toda nova construção reproduzia a Criação do Mundo. Mircea Eliade _________________________________________________ – 35 – que lhe mostrava um painel sobre o qual se encontravam mencionadas as estrelas benéficas, e um deus revelou-lhe o projeto do templo. Senaqueribe construiu Nínive segundo “o projeto estabelecido desde tempos muito remotos na configuração do Céu”. Isto não só quer dizer que a “geometria celeste” tornou possíveis as primeiras construções, mas, sobretudo, que os modelos arquitetônicos, encontrando se no Céu, participavam da sacralidade uraniana. Para o povo de Israel, os modelos do tabernáculo, de todos os utensílios sagrados e do Templo foram criados por Jeová desde a eternidade, e foi Jeová que os revelou aos seus eleitos, para que fossem reproduzidos sobre a Terra. Dirige se a Moisés nestes termos: “Construireis o tabernáculo com todos os utensílios, exatamente segundo o modelo que te vou mostrar” (Êxodo, 25: 8 9). “Vê e fabrica todos esses objetos conforme o modelo que te hei mostrado na montanha” (ib., 25:40). Quando Davi dá a seu filho Salomão o projeto dos edifícios do Templo, do tabernáculo e de todos os utensílios, afiança Lhe que “tudo aquilo... se encontra exposto num escrito da mão do Eterno, que me facultou o entendimento disso” (I, Crônicas, XXVIII, 19). Ele viu, pois, o modelo celeste criado por Jeová desde o começo dos tempos. É o que Salomão proclama: “Ordenaste me que construísse o Templo em teu santíssimo Nome e um altar na cidade onde habitas, segundo o modelo da tenda santa que tu havias preparado desde o princípio” (Sabedoria, 9:8). A Jerusalém celeste foi criada por Deus ao mesmo tempo que o Paraíso, portanto in aeternum. A cidade de Jerusalém não era senão a reprodução aproximativa do modelo transcendente: podia ser maculada pelo homem, mas seu modelo era incorruptível, porque não estava implicado no Tempo. “A construção que atualmente se encontra no meio de vós não é aquela que foi revelada por Mim, a que estava pronta desde o tempo em que me decidi a criar o Paraíso, e que mostrei a Adão antes do seu pecado.” (Apocalipse de Baruc, II, 4, 3 7.) A basílica cristã, e mais tarde a catedral, retoma e prolonga todos esses simbolismos. Por um lado, a igreja é concebida como imitação da Jerusalém celeste, e isto desde a antiguidade cristã; por outro lado, reproduz igualmente o Paraíso ou o mundo celeste. Mas a estrutura cosmológica do edifício sagrado persiste ainda na consciência da cristandade: é evidente, por exemplo, na igreja bizantina. “As quatro partes do interior da igreja simbolizam as quatro direções do mundo. O interior da igreja é o Universo. O altar é o paraíso, que foi transferido para o oriente. A porta imperial do altar denomina se também porta do paraíso. Na semana da Páscoa permanece aberta durante todo o serviço divino; o sentido desse costume expressa se claramente no cânon pascal: `Cristo ressurgiu do túmulo e abriu nos as portas do paraíso.’ O ocidente, ao contrário, é a região da escuridão, da tristeza, da morte, a região das moradas eternas dos mortos, que aguardam a ressurreição do juízo final. O meio do edifício da igreja representa a Terra. Segundo a representação de Kosmas indikopleustes, a Terra é quadrada e limitada por quatro paredes, rematadas por uma cúpula. As quatro partes do interior da igreja simbolizam as quatro direções do mundo.” Como Imagem do Mundo, a igreja bizantina encarna e santifica o Mundo. O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 36 – Algumas conclusões Dentre os milhares de exemplos que estão à disposição do historiador das religiões, citamos um número bastante reduzido, mas suficiente para mostrar as variedades da experiência religiosa do espaço. Escolhemos esses exemplos em culturas e épocas diferentes, para apresentarmos ao menos as expressões mitológicas mais importantes e as encenações rituais relacionadas com a experiência do espaço sagrado. Porque, no curso da história, o homem religioso valorizou diferentemente essa experiência fundamental. Bastava nos comparar a concepção do espaço sagrado – e portanto do Cosmos – entre os australianos achilpa com as concepções similares dos Kwakiutl, dos altaicos ou dos mesopotâmios, para nos darmos conta das diferenças. Inútil insistir neste truísmo: a vida religiosa da humanidade, realizando se na história, suas expressões são fatalmente condicionadas pelos múltiplos momentos históricos e estilos culturais. Para o assunto de que nos ocupamos, entretanto, não é a variedade infinita das experiências religiosas do espaço que interessa, mas, ao contrário, seus elementos de unidade. Basta nos confrontar o comportamento de um homem não- religioso, em relação ao espaço em que vive, com o comportamento do homem religioso para com o espaço sagrado para percebermos imediatamente a diferença de estrutura que os separa. Se precisássemos resumir o resultado das descrições que acabamos de ler, diríamos que a experiência do sagrado torna possível a “fundação do Mundo”: lá onde o sagrado se manifesta no espaço, o real se revela, o Mundo vem à existência. Mas a irrupção do sagrado não somente projeta um ponto fixo no meio da fluidez amorfa do espaço profano, um “Centro”, no “Caos”; produz também uma rotura de nível, quer dizer, abre a comunicação entre os níveis cósmicos (entre a Terra e o Céu) e possibilita a passagem, de ordem ontológica, de um modo de ser a outro. É uma tal rotura na heterogeneidade do espaço profano que cria o “Centro” por onde se pode comunicar com o transcendente, que, por conseguinte, funda o “Mundo”, pois o Centro torna possível a orientado. A manifestação do sagrado no espaço tem, como conseqüência, uma valência cosmológica: toda hierofania espacial ou toda consagração de um espaço equivalem a uma cosmogonia. Uma primeira conclusão seria a seguinte: o Mundo deixa se perceber como Mundo, como cosmos, à medida que se revela como mundo sagrado. Todo o mundo é obra dos deuses, porque foi criado diretamente pelos deuses e consagrado – portanto “cosmizado” – pelos homens, ao reatualizarem ritualmente o ato exemplar da Criação. Isto é o mesmo que dizer que o homem religioso só pode viver num mundo sagrado porque somente um tal mundo participa do ser, existe realmente. Essa necessidade religiosa exprime uma inextinguível sede ontológica. O homem religioso é sedento do ser. O terror diante do “Caos” que envolve seu mundo habitado corresponde ao seu terror diante do nada. O espaço desconhecido que se Mircea Eliade _________________________________________________ – 37 – estende para além do seu “mundo”, espaço não cosmizado porque não consagrado, simples extensão amorfa onde nenhuma orientatio foi ainda projetada e, portanto, nenhuma estrutura-se esclareceu ainda – este espaço profano representa para o homem religioso o não ser absoluto. Se, por desventura, o homem se perde no interior dele, sente se esvaziado de sua substância “ôntica”, como se se dissolvesse no Caos, e acaba por extinguir-se. Essa sede ontológica manifesta se de múltiplas maneiras. A mais evidente, no caso específico do espaço sagrado, é a vontade do homem religioso de situar-se no próprio coração do real, no Centro do Mundo: quer dizer, lá onde o Cosmos veio à existência e começou a estender se para os quatro horizontes, lá onde também existe a possibilidade de comunicação com os deuses; numa palavra, lã onde se está mais próximo dos deuses. Vimos que o simbolismo do Centro do Mundo informa não somente os países, as cidades, os templos e os palácios, mas também a mais modesta habitação humana, seja a tenda do caçador nômade, o yourte dos pastores, a casa dos agricultores sedentários. Em resumo, cada homem religioso situa se ao mesmo tempo no Centro do Mundo e na origem mesma da realidade absoluta, muito perto da “abertura” que lhe assegura a comunicação com os deuses. Mas visto que se instalar em qualquer parte, habitar um espaço, equivale a reiterar a cosmogonia, e portanto a imitar a obra dos deuses, para o homem religioso toda decisão existencial de se “situar” no espaço constitui, de fato, uma decisão religiosa. Assumindo a responsabilidade de “criar” o mundo que decidiu habitar, não somente cosmiza o Caos, mas também santifica seu pequeno Cosmos, tornando o semelhante ao mundo dos deuses. A profunda nostalgia do homem religioso é habitar um “mundo divino”, ter uma casa semelhante à “casa dos deuses”, tal qual foi representada mais tarde nos templos e santuários. Em suma, essa nostalgia religiosa exprime o desejo de viver num Cosmos puro e santo, tal como era no começo, quando saiu das mãos do Criador. É a experiência do Tempo sagrado que permitirá ao homem religioso encontrar periodicamente o Cosmos tal como era in principio, no instante mítico da Criação. O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 40 – Tempo sagrado, pois, em relação às outras religiões, o cristianismo inovou a experiência e o conceito do Tempo litúrgico ao afirmar a historicidade da pessoa do Cristo. A liturgia cristã desenvolve se num tempo histórico santificado pela encarnação do Filho de Deus. O Tempo sagrado, periodicamente reatualizado nas religiões pré-cristãs (sobretudo nas religiões arcaicas), é um Tempo mítico, quer dizer, um Tempo primordial, não identificável no passado histórico, um Tempo original, no sentido de que brotou “de repente”, de que não foi precedido por um outro Tempo, pois nenhum Tempo podia existir antes da aparição da realidade narrada pelo mito. É sobretudo essa concepção arcaica do Tempo mítico que nos interessa. Em seguida veremos as diferenças relativamente ao judaísmo e ao cristianismo. Templum-tempus Comecemos nossa investigação pela apresentação de alguns fatos que têm a vantagem de nos revelar, logo de início, o comportamento do homem religioso em relação ao Tempo. Cabe aqui uma observação preliminar importante: em .várias línguas das populações aborígines da América do Norte, o termo “Mundo” (= Cosmos) é igualmente utilizado no sentido de “Ano”. Os yokut dizem “o mundo passou”, para exprimir que “um ano se passou”. Para os yuki, o “Ano” é designado pelos vocábulos “Terra” ou “Mundo”. Como os yokut, eles dizem “a terra passou”, no sentido de que se passou um ano. O vocabulário revela a correspondência religiosa entre o Mundo e o Tempo cósmico. O Cosmos é concebido como uma unidade viva que nasce, se desenvolve e se extingue no último dia do Ano, para renascer no dia do Ano Novo. Veremos que esse renascimento é um nascimento, que o Cosmos renasce todos os anos porque, a cada Ano Novo, o Tempo começa ab initio. A correspondência cósmico temporal é de natureza religiosa: o Cosmos é identificável ao Tempo cósmico (o “Ano”), pois tanto um como o outro são realidades sagradas, criações divinas. Entre certas populações norte americanas, essa correspondência cósmico temporal é revelada pela própria estrutura dos edifícios sagrados. Visto que o Templo representa a imagem do Mundo, comporta igualmente um simbolismo temporal. É o que encontramos, por exemplo, ‘ entre os algonkins e os sioux: sua cabana sagrada representa o Universo e simboliza também o ano. Porque o ano é concebido como um trajeto através das quatro direções cardeais, significadas pelas quatro janelas e pelas quatro portas da cabana sagrada. Os dakota dizem: “O Ano é um círculo em volta do Mundo”, quer dizer, em volta da sua cabana sagrada, que é uma imago mundi. Encontra-se na Índia um exemplo ainda mais claro. Vimos que a elevação de um altar equivale à repetição da cosmogonia. Ora, os textos acrescentam que o “altar do fogo é o Ano” e explicam deste modo seu simbolismo temporal: os trezentos e Mircea Eliade _________________________________________________ – 41 – sessenta tijolos de acabamento correspondem às trezentas e sessenta noites do ano, e os trezentos e sessenta tijolos yajusmâti aos trezentos e sessenta dias (Shatapatha Brâhmana, X, 5, 4, 10 etc.). Em outras palavras, a cada construção de um altar do fogo, não somente se refaz o Mundo, mas também se “constrói o Ano”: regenera-se o Tempo criando o de novo. Por outro lado, o ano é equiparado a Prajâpati, o deus cósmico; portanto, a cada novo altar reanima se Prajâpati, quer dizer, reforça se a santidade do Mundo. Não se trata do Tempo profano, da simples duração temporal, mas da santificação do Tempo cósmico. Com a elevação de um altar do fogo, o Mundo é santificado, ou seja, inserido num tempo sagrado. Reencontramos um simbolismo temporal análogo integrado no simbolismo cosmológico do templo de Jerusalém. Segundo Flávio José (Ant. Jud. 111, 7, 7), os doze pães que se encontravam sobre a mesa significavam os doze meses do Ano e o candelabro de setenta braços representava os decanos (quer dizer, a divisão zodiacal dos sete planetas em dezenas). O Templo era uma imago mundi: situando se no “Centro do Mundo”, em Jerusalém, santificava não somente o Cosmos como um todo, mas também a “vida” cósmica, ou seja, o Tempo. Cabe a Hermann Usener o mérito de ter sido o primeiro a explicar o parentesco etimológico entre templum e tempus, ao interpretar os dois termos pela noção de intersecção (“Schneidung, Kreuzung”). Investigações ulteriores afirmaram ainda mais esta descoberta: “Templum exprime o espacial, tempus o temporal. O conjunto desses dois elementos constitui uma imagem circular espaço-temporal”. A significação profunda de todos esses fatos parece ser a seguinte: para o homem religioso das culturas arcaicas, o Mundo renova se anualmente, isto é, reencontra a cada novo ano a santidade original, tal como quando saiu das mãos do Criador. Este simbolismo está claramente indicado na estrutura arquitetônica dos santuários. Visto que o Templo é, ao mesmo tempo, o lugar santo por excelência e a imagem do Mundo, ele santifica o Cosmos como um todo e também a vida cósmica. Ora, a vida cósmica era imaginada sob a forma de uma trajetória circular e identificava se com o Ano. O Ano era um círculo fechado, tinha um começo e um fim, mas possuía também a particularidade de poder “renascer” sob a forma de um Ano Novo. A cada Ano Novo, um Tempo “novo”, “puro” e “santo” – porque ainda não usado – vinha à existência. Mas o Tempo renascia, recomeçava, porque, a cada Novo Ano, o Mundo era criado novamente. Verificamos, no capítulo precedente, a importância do mito cosmogônico como modelo exemplar para toda espécie de criação e construção. Acrescentemos agora que a cosmogonia comporta igualmente a criação do Tempo. Mais ainda: assim como a cosmogonia é o arquétipo de toda “criação”, o Tempo cósmico que a cosmogonia faz brotar é o modelo exemplar de todos os outros tempos, quer dizer, dos Tempos específicos às diversas categorias de existentes. Expliquemo-nos: para o homem religioso das culturas arcaicas, toda criação, toda existência começa no Tempo: antes que uma coisa exista, seu tempo próprio não pode existir. Antes que o Cosmos viesse à existência, não havia tempo cósmico. O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 42 – Antes de uma determinada espécie vegetal ter sido criada, o tempo que a faz crescer agora, dar fruto e perecer, não existia. É por esta razão que toda criação é imaginada como tendo ocorrido no começo do Tempo, in principio. 0 Tempo brota com a primeira aparição de uma nova categoria de existentes. Eis por que o mito desempenha um papel tão importante: conforme veremos mais tarde, é o mito que revela como uma realidade veio à existência. Repetição anual da cosmogonia É o mito cosmogônico que relata o surgimento do Cosmos. Na Babilônia, no decurso da cerimônia akitu, que se desenrolava nos últimos dias do ano e nos primeiros dias do Ano Novo, recitava se solenemente o “Poema da Criação”, o Enuma-elish. Pela recitação ritual, reatualizava-se o combate entre Marduk e o monstro marinho Tiamat, que tivera lugar ab origine e que pusera fim ao Caos pela vitória final do deus. Marduk criara o Cosmos com o corpo retalhado de Tiamat e criara o homem com o sangue do demônio Kingu, principal aliado de Tiamat. A prova de que essa comemoração da criação era efetivamente uma reatualização do ato cosmogônico encontra-se tanto nos rituais como nas fórmulas pronunciadas no decurso da cerimô nia. Com efeito, o combate entre Tiamat e Marduk era imitado por uma luta entre os dois grupos de figurantes, cerimonial que se repete entre os hititas, enquadrado sempre no cenário dramático do Ano Novo, entre os egípcios e em Ras Shamra. A luta entre os dois grupos de figurantes repetia a passagem do Caos ao Cosmos, atualizava a cosmogonia. O acontecimento mítico tornava a ser presente. “Que ele possa continuar a vencer Tiamat e abreviar seus dias!”, exclamava o oficiante. O combate, a vitória e a Criação tinham lugar naquele mesmo instante, hic et nunc. Visto que o Ano Novo é uma reatualização da cosmogonia, implica uma retomada do Tempo em seus primórdios, quer dizer, a restauração do Tempo primordial, do Tempo “puro”, aquele que existia no momento da Criação. É por essa razão que, por ocasião do Ano Novo, se procede a “purificações” e à expulsão dos pecados, dos demônios ou simplesmente de um bode expiatório. Pois não se trata apenas da cessação efetiva de um certo intervalo temporal e do início de um outro intervalo (como imagina, por exemplo, um homem moderno), mas também da abolição do ano passado e do tempo decorrido. Este é, aliás, o sentido das purificações rituais: uma combustão, uma anulação dos pecados e das faltas do indivíduo e da comunidade como um todo, e não uma simples “purificação”. O Naurôz – o Ano Novo persa – comemora o dia em que teve lugar a Criação do Mundo e do homem. Era no dia do Naurôz que se efetuava a “renovação da Criação”, conforme se exprimia o historiador árabe Alb’runi. O rei proclamava: “Eis um novo dia de um novo mês e de um novo ano: é preciso renovar o que o tempo gastou.” O tempo gastara o ser humano, a sociedade, o Cosmos, e esse tempo Mircea Eliade _________________________________________________ – 45 – Compreende se melhor a função regeneradora do regresso ao Tempo da origem quando se examina mais de perto uma terapia arcaica, como as do Na khi, população tibetano birmanesa que vive no sudeste da China (província de Yün nau). O ritual de cura consiste na recitação solene do mito da Criação do Mundo, seguida dos mitos da origem das doenças (provocadas pela cólera das Serpentes) e da aparição do primeiro xamã curandeiro que trouxe aos homens os medicamentos necessários. Quase todos os rituais evocam o começo, o illud tempus míticos, quando o mundo ainda não existia: “No princípio, no tempo em que o céu, o sol, a lua, as estrelas, os planetas e a terra ainda não estavam lá, quando ainda não tinham surgido” etc. Segue se a cosmogonia e a aparição das serpentes: “No tempo em que o céu apareceu, em que o sol, a lua etc. apareceram, em que a terra se expandiu, em que os montes, os vales, as árvores e as rochas apareceram... então surgiram os Nâga e dragões” etc. Conta-se em seguida o nascimento do primeiro curandeiro e a aparição dos medicamentos. E acrescenta se: “Deve se narrar a origem dos medicamentos, pois do contrário não se pode falar sobre eles.” É importante enfatizar que, nesses encantamentos mágicos de cura, os mitos acerca da origem dos medicamentos estão sempre inter relacionados com o mito cosmogônico. Sabe se que nas práticas de cura dos povos primitivos, como aqueles que se baseiam na tradição, o medicamento só alcança eficácia quando se invoca ritualmente, diante do doente, a origem dele. Um grande número de preceitos mágicos do Oriente Próximo e da Europa inclui a história da doença ou do demônio que a causou e esconjura o momento mítico, no qual se exige a uma divindade ou santo que vença o mal. Parece assim que o mito da origem é uma cópia do mito cosmogônico, pois este serve de exemplo para todas as origens. Por isso, surge também, muitas vezes, nos exorcismos terapêuticos, o mito cosmogônico do mito da origem, e até se confunde com ele. Recorda, por exemplo, um exorcismo assírio contra a dor de dente: “Depois de o deus Anu ter feito os céus, os céus fizeram a terra, a terra os rios, os rios os canais, os canais as lagoas, e as lagoas o verme.” O verme dirige se em “lágrimas” às divindades Shatnash e Ea, pedindo-lhes alguma coisa de comer para “destruir”. Os deuses oferecem-lhes frutos, mas o verme exige deles dentes humanos. “Porque falaste assim, ó verme, que Ea te parta com sua mão poderosa!” Temos, pois, de lidar aqui com a criação do mundo, o nascimento do verme e da doença e a cura primordial exemplar (o aniquilamento do verme por Ea). A eficácia do exorcismo reside em que ele, executado ritualmente, atualiza o Tempo mítico da “origem”, tanto da origem do mundo como da origem da dor de dente e sua cura. O tempo, festivo e a estrutura das festas O Tempo de origem de uma realidade, quer dizer, o Tempo fundado pela primeira aparição desta realidade, tem um valor e uma função exemplares; é por essa razão O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 46 – que o homem se esforça por reatualizá-lo periodicamente mediante rituais apropriados. Mas a “primeira manifestação” de uma realidade equivale à sua “criação” pelos Seres divinos ou semi-divinos: reencontrar o Tempo de origem implica, portanto, a repetição ritual In ato criador dos deuses. A reatualização periódica dos atos criadores efetuados pelos seres divinos ira illo tempore constitui o calendário sagrado, o conjunto das festas. Uma festa desenrola se sempre no Tempo original. É justamente a reintegração desse Tempo original e sagrado que diferencia o comportamento humano durante a festa daquele de antes ou depois. Em muitos casos, realizam-se durante a festa os mesmos atos dos intervalos não festivos, mas o homem religioso crê que vive então num outro tempo, que conseguiu reencontrar o illud tempus mítico. Durante a cerimônia totêmica anual (intichiuma), os australianos arunta retomam o itinerário seguido pelo Antepassado divino do clã nos Tempos míticos (altcheringa, literalmente “Tempo do sonho”). Param em todos os inúmeros lugares onde parou o Antepassado e repetem os mesmos gestos que ele fez in illo tempore. Jejuam durante toda a cerimônia, não portam armas e abstêm se de todo contato com suas mulheres ou com os membros dos outros clãs. Estão completamente mergulhados no “Tempo do sonho”. As festas celebradas anualmente na ilha polinésia de Tikopia reproduzem as “obras dos deuses”, quer dizer, os atos pelos quais, nos Tempos míticos, os deuses fizeram o Mundo tal qual é hoje. O Tempo festivo no qual se vive durante as cerimônias é caracterizado por certas proibições (tabu): nada de ruído, de jogos, de danças. A passagem do Tempo profano ao Tempo sagrado é indicada pelo corte ritual de um pedaço de madeira em dois. As múltiplas cerimônias que constituem as festas periódicas e que, repetimos, não são mais do que a reiteração dos gestos exemplares dos deuses, não se distinguem, aparentemente, das atividades normais: trata se, em suma, de reparos rituais das barcas, de ritos relativos ao cultivo de plantas alimentares (yam, taro etc.), da restauração de santuários. Na realidade, porém, todas essas atividades cerimoniais se diferenciam dos trabalhos similares executados no tempo comum pelo fato de só incidirem sobre alguns objetos – que constituem, de certo modo, os arquétipos de suas respectivas classes – e também porque as cerimônias são realizadas numa atmosfera impregnada de sagrado. Com efeito, os indígenas têm consciência de que reproduzem, nos mais ínfimos pormenores, os atos exemplares dos deuses, tais como foram executados in illo tempore. Assim, periodicamente, o homem religioso torna-se contemporâneo dos deuses, na medida em que reatualiza o Tempo primordial no qual se realizaram as obras divinas. Ao nível das civilizações primitivas, tudo o que o homem faz tem um modelo trans humano; portanto, mesmo fora do tempo festivo, seus gestos imitam os modelos exemplares fixados pelos deuses e pelos Antepassados míticos. Mas essa imitação corre o risco de tornar-se cada vez menos correta. O modelo corre o risco de ser desfigurado ou até esquecido. São as reatualizações periódicas dos gestos divinos, numa palavra, as festas religiosas que voltam a ensinar aos homens a Mircea Eliade _________________________________________________ – 47 – sacralidade dos modelos. O conserto ritual das barcas ou a cultura ritual do yam já não se assemelham às operações similares efetuadas fora dos intervalos sagrados. Por um lado são mais exatas, mais próximas dos modelos divinos, e por outro lado são rituais, quer dizer, sua intencionalidade é religiosa. Conserta se cerimonialmente uma barca não porque ela necessite de conserto, mas porque, in illo tempore, os deuses mostravam aos homens como se deve reparar as barcas. Já não se trata de uma operação empírica, mas de um ato religioso, de uma imitatio dei. O objeto da reparação já não é um dos múltiplos objetos que constituem a classe das “barcas”, mas sim um arquétipo mítico: a própria barca que os deuses manipularam in illo tempore. Por conseqüência, o Tempo em que se efetua a reparação ritual das barcas reúne se ao Tempo primordial: é o próprio Tempo em que os deuses operavam. Evidentemente, não podemos reduzir todos os tipos de festas periódicas ao exemplo que acabamos de examinar. Mas não é a morfologia da festa que nos interessa, e sim a estrutura do Tempo sagrado atualizado nas festas. Ora, a respeito do tempo sagrado pode se dizer que é sempre o mesmo, que é uma “sucessão de eternidades” (Hubert e Mauss). Seja qual for a complexidade de uma festa religiosa, trata se sempre de um acontecimento sagrado que teve lugar ab origine e que é, ritualmente, tornado presente. Os participantes da festa tornam-se os contemporâneos do acontecimento mítico. Em outras palavras, “saem” de seu tempo histórico – quer dizer, do Tempo constituído pela soma dos eventos profanos, pessoais e intrapessoais – e reúnem se ao Tempo primordial, que é sempre o mesmo, que pertence à Eternidade. O homem religioso desemboca periodicamente no Tempo mítico e sagrado e reencontra o Tempo de origem, aquele que “não decorre” – pois não participa da duração temporal profana e é constituído por um eterno presente indefinidamente recuperável. O homem religioso sente necessidade de mergulhar por vezes nesse Tempo sagrado e indestrutível. Para ele, é o Tempo sagrado que torna possível o tempo ordinário, a duração profana em que se desenrola toda a existência humana. É o eterno presente do acontecimento mítico que torna possível a duração profana dos eventos históricos. Para dar um só exemplo: é a hierogamia divina, que teve lugar in illo tempore, que tornou possível a união sexual humana. A união entre o deus e a deusa passa se num instante atemporal, num eterno presente: as uniões sexuais entre os humanos – quando não rituais – desenrolam-se na duração, no tempo profano. O Tempo sagrado, mítico, funda igualmente o Tempo existencial, histórico, pois é o seu modelo exemplar. Em suma, graças aos seres divinos ou semi-divinos é que tudo veio à existência. A “origem” das realidades e da própria Vida é religiosa. Pode se cultivar e consumir ordinariamente o yam porque, periodicamente, se cultiva e consome o yam de uma maneira ritual. E esses rituais podem efetuar-se porque os deuses os revelaram in illo tempore, criando o homem e o yam e mostrando aos homens como se deve cultivar e consumir essa planta alimentar. Na festa reencontra-se plenamente a dimensão sagrada da Vida, experimenta se a santidade da existência humana como criação divina. No resto do tempo, há sempre O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 50 – primitivo situa se sempre num contexto cósmico. À sua experiência pessoal não falta nem autenticidade nem profundidade, mas, pelo fato de se exprimir numa linguagem que não nos é familiar, ela parece inautêntica ou infantil aos olhos dos modernos. Voltemos a nosso tema imediato: não estamos autorizados a interpretar o retorno periódico ao Tempo sagrado da origem como uma recusa do mundo real e uma evasão no sonho e no imaginário. Ao contrário, parece nos que, ainda aqui, é possível ver a obsessão ontológica, que aliás pode ser considerada uma característica essencial do homem das sociedades primitivas e arcaicas. Porque, em suma, desejar restabelecer o Tempo da origem é desejar não apenas reencontrara presença dos deuses, mas também recuperar o Mundo forte recente e puro, tal como era in illo tempore. É ao mesmo tempo sede do sagrado e nostalgia do Ser. No plano existencial, esta experiência traduz se pela certeza de poder recomeçar periodicamente a vida com o máximo de “sorte”. É, com efeito, não somente uma visão otimista da existência, mas também uma adesão total ao Ser. Por todos os seus comportamentos, o homem religioso proclama que só acredita no Ser e que sua participação no Ser-lhe é afiançada pela revelação primordial da qual ele é o guardião. A soma das revelações primordiais é constituída por seus mitos. Mito = modelo exemplar O mito conta uma história sagrada, quer dizer, um acontecimento primordial que teve lugar no começo do Tempo, ab initio. Mas contar uma história sagrada equivale a revelar um mistério, pois as personagens do mito não são seres humanos: são deuses ou Heróis civilizadores. Por esta razão suas gesta constituem mistérios: o homem não poderia conhecê-los se não lhe fossem revelados. O mito é pois a história do que se passou in illo tempore, a narração daquilo que os deuses ou os Seres divinos fizeram no começo do Tempo. “Dizer” um mito é proclamar o que se passou ab origine. Uma vez “dito”, quer dizer, revelado, o mito torna-se verdade apodítica: funda a verdade absoluta. “É assim porque foi dito que é assim”, declaram os esquimós netsilik a fim de justificar a validade de sua história sagrada e suas tradições religiosas. O mito proclama a aparição de uma nova “situação” cósmica ou de um acontecimento primordial. Portanto, é sempre a narração de uma “criação”: conta se como qualquer coisa foi efetuada, começou a ser É por isso que o mito é solidário da ontologia: só fala das realidades, do que aconteceu realmente, do que se manifestou plenamente. É evidente que se trata de realidades sagradas, pois o sagrado é o real por excelência. Tudo o que pertence à esfera do profano não participa do Ser, visto que o profano não foi fundado ontologicamente pelo mito, não tem modelo exemplar. Conforme não tardaremos a ver, o trabalho agrícola é um ritual revelado pelos deuses ou pelos Heróis civilizadores. É por isso que constitui um ato real e significativo. Por sua vez, o trabalho agrícola numa sociedade dessacralizada tornou- Mircea Eliade _________________________________________________ – 51 – se um ato profano, justificado unicamente pelo proveito econômico que proporciona. Trabalha se a terra com o objetivo de explorá-la: procura-se o ganho e a alimentação. Destituído de simbolismo religioso, o trabalho agrícola torna-se, ao mesmo tempo, “opaco” e extenuante: não revela significado algum, não permite nenhuma “abertura” para o universal, para o mundo do espírito. Nenhum deus, nenhum herói civilizador jamais revelou um ato profano. Tudo quanto os deuses ou os antepassados fizeram – portanto tudo o que os mitos contam a respeito de sua atividade criadora – pertence à esfera do sagrado e, por conseqüência, participa do Ser. Em contrapartida, o que os homens fazem por própria iniciativa, o que fazem sem modelo mítico, pertence à esfera do profano: é pois uma atividade vã e ilusória, enfim, irreal. Quanto mais o homem é religioso tanto mais dispõe de modelos exemplares para seus comportamentos e ações. Em outras palavras, quanto mais é religioso tanto mais se insere no real e menos se arrisca a perder se em ações não exemplares, “subjetivas” e, em resumo, aberrantes. Este é um aspecto do mito que convém sublinhar: o mito revela a sacralidade absoluta porque relata a atividade criadora dos deuses, desvenda a sacralidade da obra deles. Em outras palavras, o mito descreve as diversas e às vezes dramáticas irrupções do sagrado do mundo. Por esta razão, entre muitos primitivos, os mitos não podem ser recitados indiferentemente em qualquer lugar e época, mas apenas durante as estações ritualmente mais ricas (outono, inverno) ou no intervalo das cerimônias religiosas – numa palavra, num lapso de tempo sagrado. É a irrupção do sagrado no mundo, irrupção contada pelo mito, que funda realmente o mundo. Cada mito mostra como uma realidade veio à existência, seja ela a realidade total, o Cosmos, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, uma instituição humana. Narrando como vieram à existência as coisas, o homens explica as e responde indiretamente a uma outra questão: por que elas vieram à existência? O “por que” insere se sempre no “como”. E isto pela simples razão de que, ao se contar Como uma coisa nasceu, revela se a irrupção do sagrado no inundo, causa última de toda existência real. Por outro lado, sendo toda criação uma obra divina, e portanto irrupção do sagrado, representa igualmente uma irrupção de energia criadora no Mundo. Toda criação brota de uma plenitude. Os deuses criam por um excesso de poder, por um transbordar de energia. A criação faz se por uni acréscimo de substância ontológica. É por isso que o mito que conta essa ontofania sagrada, a manifestação vitoriosa de uma plenitude de ser, torna-se o modelo exemplar de todas as atividades humanas: só ele revela o real, o superabundante, o eficaz. “Devemos fazer o que os deuses fizeram no começo”, afirma um texto indiano (Shatapatha Brâhmana, VII, 2, 1, 4). – Assim fizeram os deuses, assim fazem os homens”, acrescenta Taittiriya Br. (1, 5, 9, 4). A função mais importante do mito é, pois, “fixar” os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as atividades humanas significativas: alimentação, sexualidade, trabalho, educação etc. Comportando se como ser humano plenamente responsável, o homem imita os gestos exemplares dos deuses, repete as ações deles, quer se trate de uma simples função fisiológica, como a alimentação, quer de uma O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 52 – atividade social, econômica, cultural, militar etc. Na Nova Guiné, numerosos mitos falam de longas viagens pelo mar, fornecendo assim “modelos aos navegadores atuais”, bem como modelos para todas as outras atividades, “quer se trate de amor, de guerra, de pesca, de produção de chuva, ou do que for... A narração fornece precedentes para os diferentes momentos da construção de um barco, para os tabus sexuais que ela implica etc.” Um capitão, quando sai para o mar, personifica o herói mítico Aori. “Veste os trajes que Aori usava, segundo o mito; tem como ele o rosto enegrecido e, nos cabelos, um love semelhante àquele que Aori retirou da cabeça de Iviri. Dança sobre a plataforma e abre os braços como Aori abria suas asas... Disse me um pescador que quando ia apanhar peixes (com seu arco) se tomava por Kivavia em pessoa. Não implorava o favor e a ajuda desse herói mítico: identificava se com ele.” O simbolismo dos precedentes míticos encontra-se igualmente em outras culturas primitivas. A respeito dos karuk da Califórnia, J. P. Harrington escreve: “Tudo o que o Karuk fazia, só o realizava porque os ikxareyavs, acreditava se, tinham dado o exemplo disso nos tempos míticos. Esses ikxareyavs eram as pessoas que habitavam a América antes da chegada dos índios. Os karuk modernos, não sabendo como traduzir essa palavra, propõem traduções como ‘os príncipes’, ‘os chefes’, ‘os anjos’... Só ficaram entre os karuk o tempo necessário para ensinar e pôr em andamento todos os costumes, dizendo a cada vez: ‘Eis como fariam os humanos.’ Seus atos e palavras ainda hoje são contados e citados nas fórmulas mágicas dos karuk.” A repetição fiel dos modelos divinos tem um resultado duplo: (1) por um lado, ao imitar os deuses, o homem mantém se no sagrado e, conseqüentemente, na realidade; (2) por outro lado, graças à reatualização ininterrupta dos gestos divinos exemplares, o mundo é santificado. O comportamento religioso dos homens contribui para manter a santidade do mundo. Reatualizar os mitos É interessante notar que o homem religioso assume uma humanidade que tem um modelo trans humano, transcendente. Ele só se reconhece verdadeiramente homem quando imita os deuses, os Heróis civilizadores ou os Antepassados míticos. Em resumo, o homem religioso se quer diferente do que ele acha que é no plano de sua existência profana. O homem religioso não é dado: faz-se a si próprio ao aproximar- se dos modelos divinos. Estes modelos, como dissemos, são conservados pelos mitos, pela história das gestas divinas. Por conseguinte, o home m religioso também se considera feito pela História, tal qual o homem profano. Mas a única História que interessa a ele é a História sagrada revelada pelos mitos, quer dizer, a história dos deuses, ao passo que o homem profano se pretende constituído unicamente pela História humana – portanto, justamente pela soma de atos que, para o homem religioso, não apresentam nenhum interesse, visto lhes faltarem os modelos divinos. Mircea Eliade _________________________________________________ – 55 – periodicamente recuperáveis durante as festas que constituem o calendário sagrado. O Tempo litúrgico do calendário desenrola se em círculo fechado: é o Tempo cósmico do Ano, santificado pelas “obras dos deuses”. E, visto que a obra divina mais grandiosa foi a Criação do Mundo, a comemoração da cosmogonia desempenha um papel importante em muitas religiões. O Ano Novo coincide com o primeiro dia da Criação. O Ano é a dimensão temporal do Cosmos. Diz se “O Mundo passou” quando se escoou um ano. A cada Ano Novo reitera-se a cosmogonia, recria se o Mundo e, ao fazê-lo, “cria se” também o Tempo, quer dizer, regenera-se o Tempo “iniciando o” de novo. É por esta razão que o mito cosmogônico serve de modelo exemplar a toda “criação” ou “construção”, sendo utilizado também como meio ritual de cura. Voltando se a ser simbolicamente contemporâneo da Criação, reintegra-se a plenitude primordial. O doente se cura porque recomeça sua vida com uma soma intacta de energia. A festa religiosa é a reatualização de um acontecimento primordial, de uma “história sagrada” cujos atores são os deuses ou os Seres semi-divinos. Ora, a `história sagrada” está contada nos mitos. Por conseqüência, os participantes da festa tornam- se contemporâneos dos deuses e dos Seres semi-divinos. Vivem no Tempo primordial santificado pela presença e atividade dos deuses. O calendário sagrado regenera periodicamente o Tempo, porque o faz coincidir com o Tempo da origem, o Tempo “forte” e “puro”. A experiência religiosa da festa, quer dizer, a participação no sagrado, permite aos homens viver periodicamente na presença dos deuses. Daí a importância capital dos mitos em todas as religiões pré-mosaicas, pois os mitos contam as gesta dos deuses, e estas gesta constituem os modelos exemplares de todas as atividades humanas. Ao imitar seus deuses, o homem religioso passa a viver no Tempo da origem, o Tempo mítico. Em outras palavras, “sai” da duração profana para reunir se a um Tempo “imóvel”, à “eternidade”. Visto que, para o homem religioso das sociedades primitivas, os mitos constituem sua “história sagrada”, ele não deve esquecê-los: reatualizando os mitos, o homem religioso aproxima se de seus deuses e participa da santidade. Mas há também “histórias divinas trágicas”, e o homem assume uma grande responsabilidade perante si mesmo e a Natureza ao reatualizá-las periodicamente. O canibalismo ritual, por exemplo, é a conseqüência de uma concepção religiosa trágica. Em resumo, pela reatualização dos mitos, o homem religioso esforça se por se aproximar dos deuses e participar do Ser; a imitação dos modelos exemplares divinos exprime, ao mesmo tempo, seu desejo de santidade e sua nostalgia ontológica. Nas religiões primitivas e arcaicas, a eterna repetição dos gestos divinos justifica se como imitado dei. O calendário sagrado repete anualmente as mesmas festas, quer dizer, a comemoração dos mesmos acontecimentos míticos. Propriamente falando, o calendário sagrado apresenta se como o “eterno retorno” de um número limitado de O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 56 – gestos divinos, e isto é verdadeiro não somente para as religiões primitivas, mas também para todas as outras religiões. Em toda parte, o calendário festivo constitui um retorno periódico das mesmas situações primordiais e, conseqüentemente, a reatualização do mesmo Tempo sagrado. Para o homem religioso, a reatualização dos mesmos acontecimentos míticos constitui sua maior esperança, pois, a cada reatualização, ele reencontra a possibilidade de transfigurar sua existência, tornando a semelhante ao modelo divino. Em suma, para o homem religioso das sociedades primitivas e arcaicas, a eterna repetição dos gestos exemplares e o eterno encontro com o mesmo Tempo mítico da origem, santificado pelos deuses, não implicam de modo nenhum uma visão pessimista da vida; ao contrário, é graças a este “eterno retorno” às fontes do sagrado e do real que a existência humana lhe parece salvar-se do nada e da morte. A perspectiva muda totalmente quando o sentido da religiosidade cósmica se obscurece. É o que se passa quando, em certas sociedades mais evoluídas, as elites intelectuais se desligam progressivamente dos padrões da religião tradicional. A santificação periódica do Tempo cósmico revela se então inútil e insignificante. Os deuses já não são acessíveis por meio dos ritmos cósmicos. O significado religioso da repetição dos gestos exemplares é esquecido. Ora, a repetição esvaziada de seu conteúdo conduz necessariamente a uma visão pessimista da existência. Quando deixa de ser um veículo pelo qual se pode restabelecer uma situação primordial e reencontrar a presença misteriosa dos deuses, quer dizer, quando é dessacralizado, o Tempo cíclico torna-se terrífico: revela-se como um círculo girando indefinidamente sobre si mesmo, repetindo se até o infinito. Foi o que aconteceu na Índia, onde a doutrina dos ciclos cósmicos (yuga) foi amplamente elaborada. Um ciclo completo, um mahâyuga, compreende doze mil anos. Termina se por uma “dissolução”, uma pralaya, que se repete de maneira mais radical (mahâpralaya, a “Grande Dissolução”) no fim do milésimo ciclo. Pois o esquema exemplar, “criação destruição criação etc.”, reproduz se até o infinito. Os doze mil anos de um mahâyuga são considerados como “anos divinos”, durando cada um deles trezentos e sessenta anos, o que dá um total de quatro milhões, trezentos e vinte mil anos para um único ciclo cósmico. Mil mahâyuga constituem um kalpa (“forma”); catorze kalpa fazem um manvantâra (assim chamado porque se supõe que cada manvantâra seja regido por um Manu, o Antepassado real mítico). Um kalpa equivale a um dia de vida de Brahma; um outro kalpa a uma noite. Cem desses “anos” de Brahma, ou seja, trezentos e onze bilhões de anos humanos, constituem a vida do Deus. Mas mesmo essa enorme duração da vida de Brahma não consegue esgotar o Tempo, pois os deuses não são eternos e as criações e destruições cósmicas prosseguem ad infinitum. É o verdadeiro “eterno retorno”, a eterna repetição do ritmo fundamental do Cosmos: sua destruição e recriação periódicas. Trata-se, em suma, da concepção primitiva do `Ano Cosmos’; mas esvaziada de seu conteúdo religioso. Evidentemente, a doutrina dos yuga foi elaborada pelas elites intelectuais, e, se ela Mircea Eliade _________________________________________________ – 57 – se tornou uma doutrina pan indiana, não pensemos que revelava seu aspecto terrífico a todas as populações da Índia. Eram sobretudo as elites religiosas e filosóficas que sentiam desespero perante o Tempo cíclico, que se repetia até o infinito, o eterno retorno à existência graças ao karma, a lei da causalidade universal. Por outro lado, o Tempo era equiparado à ilusão cósmica (mâyâ), e o eterno retorno à existência significava o prolongamento indefinido do sofrimento e da escravidão. A única esperança para as elites religiosas e filosóficas era o não retorno à existência, a abolição do karma; em outras palavras, a libertação definitiva (moksha), que implicava a transcendência do Cosmos. A Grécia também conheceu o mito do eterno retorno, e os filósofos da época tardia levaram a concepção do Tempo circular aos seus limites extremos. Para citar o belo resumo de H. Ch. Puech: “Segundo a célebre definição platônica, o tempo que a revolução das esferas celestes determina e mede é a imagem móvel da eternidade imóvel, que ele imita ao se desenrolar em círculo. Conseqüentemente, todo devir cósmico, assim como a duração deste mundo de geração e corrupção que é o nosso, desenvolver se á em círculo ou segundo sucessão indefinida de ciclos, no decurso dos quais a mesma realidade se faz, se desfaz, se refaz, de acordo com uma lei e alternativas imutáveis. Não somente se conserva aí a mesma soma de ser, sem que nada se perca nem se crie, mas também, segundo alguns pensadores do fim da Antiguidade – pitagóricos, estóicos, platônicos –, admite se que, no interior de cada um desses ciclos de duração, desses aiones, desses aeva, se reproduzem as mesmas situações que se produziram já nos ciclos anteriores e que se reproduzirão nos ciclos subseqüentes – até o infinito. Nenhum acontecimento é único, nenhum ocorre uma única vez (por exemplo, a condenação e a morte de Sócrates), mas realizou-se e realizar-se-á perpetuamente; os mesmos indivíduos apareceram, aparecem e reaparecerão em cada retorno do círculo sobre si mesmo. A duração cósmica é repetição e anakuklosis, eterno retorno.” Quanto às religiões arcaicas e paleorientais, bem como em relação às concepções mítico filosóficas do Eterno Retorno, tais como foram elaboradas na Índia e na Grécia, o judaísmo apresenta uma inovação importante. Para o judaísmo, o Tempo tem um começo e terá um fim. A idéia do Tempo cíclico é ultrapassada. Jeová não se manifesta no Tempo cósmico (como os deuses das outras religiões), mas num Tempo histórico, que é irreversível. Cada nova manifestação de Jeová na história não é redutível a uma manifestação anterior. A queda de Jerusalém exprime a cólera de Jeová contra seu povo, mas não é a mesma que Jeová exprimira no momento da queda de Samaria. Seus gestos são intervenções pessoais na História e só revelam seu sentido profundo para seu povo, o povo escolhido por Jeová. Assim, o acontecimento histórico ganha uma nova dimensão: torna-se uma teofania. O cristianismo vai ainda mais longe na valorização do Tempo histórico. Visto que Deus encarnou, isto é, que assumiu uma existência .humana historicamente condicionada, a História torna-se suscetível de ser santificada. O illud tempus evocado pelos evangelhos é um Tempo histórico claramente delimitado – o Tempo O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 60 – O sagrado celeste e os deuses uranianos A simples contemplação da abóbada celeste é suficiente para desencadear uma experiência religiosa. O Céu revela se infinito, transcendente. É por excelência o ganz andere diante do qual o homem e seu meio ambiente pouco representam. A transcendência revela se pela simples tomada de consciência da altura infinita. O “muito alto” torna-se espontaneamente um atributo da divindade. As regiões superiores inacessíveis ao homem, as zonas siderais, adquirem o prestígio do transcendente, da realidade absoluta, da eternidade. Lá é a morada dos deuses; é lá que chegam alguns privilegiados, mediante ritos de ascensão; para lá se elevam, segundo as concepções de certas religiões, as almas dos mortos. O “muito alto” é uma dimensão inacessível ao homem como tal; pertence de direito às forças e aos Seres sobre humanos. Aquele que se eleva subindo a escadaria de um santuário, ou a escada ritual que conduz ao Céu, deixa então de ser homem: de uma maneira ou de outra, passa a fazer parte da condição divina. Não se trata de uma operação lógica, racional. A categoria transcendental da “altura”, do supra-terrestre, do infinito revela se ao homem como um todo, tanto à sua inteligência como à sua alma. É uma tomada de consciência total: em face do Céu, o homem descobre ao mesmo tempo a incomensurabilidade divina e sua própria situação no Cosmos. O Céu revela, por seu próprio modo de ser, a transcendência, a força, a eternidade. Ele existe de uma maneira absoluta, pois é elevado, infinito, eterno, poderoso. É nesse sentido que se deve compreender o que dizíamos mais atrás, que os deuses manifestaram as diferentes modalidades do sagrado na própria estrutura do Mundo: o Cosmos – a obra exemplar dos deuses – é “construído” de tal maneira, que o sentimento religioso da transcendência divina é incitado pela própria existência do Céu. E, visto que o Céu existe de maneira absoluta, um grande número de deuses supremos das populações primitivas são chamados por nomes que designam a altura, a abóbada celeste, os fenômenos meteorológicos; ou são chamados muito simplesmente de “Proprietários do Céu”, ou “Habitantes do Céu”. A divindade suprema dos maori chama se lho; ibo tem o sentido de “elevado, acima”. Uwoluwu, o Deus supremo dos negros akposo, significa “o que está no alto, as regiões superiores”. Entre os selk’nam da Terra do Fogo, Deus se chama “Habitante do Céu” ou “Aquele que está no Céu”. Puluga, o Ser supremo dos andamanais, habita o Céu; sua voz é o trovão, o vento seu hálito; o furacão é o sinal de sua cólera, pois ele pune com o raio aqueles que infringem suas ordens. O Deus do Céu dos iorubas da costa dos Escravos chama se Olorum, literalmente “Proprietário do Céu”. Os samoiedos adoram Num, Deus que habita o mais alto do Céu e cujo nome significa “Céu”. Entre os koryaks, a divindade suprema chama se o Mircea Eliade _________________________________________________ – 61 – “Um do alto”, “o Senhor do Alto”, “Aquele que existe”. Os ainos conhecem no como “o Chefe divino do Céu”, “o Deus celeste”, “o Criador divino dos mundos”, mas também como Kamui, que quer dizer “Céu”. E pode alongar-se facilmente a lista. O mesmo ocorre entre as religiões de povos mais civilizados, quer dizer, dos povos que desempenharam um papel importante na História. O nome mongol do Deus supremo é Tengri, que significa “Céu”. O T’ien chinês denota ao mesmo tempo o “Céu” e “Deus do Céu”. O termo sumério para divindade, dingir, tinha como significado primitivo uma epifania celeste: “claro, brilhante”. O Anu babilônio exprime igualmente a noção de “Céu”. O Deus supremo indo europeu, Diêus, denota ao mesmo tempo a epifania celeste e o sagrado (cf. “brilhar”, “dia”; dyaus, “céu”, “dia” – Dyaus, deus indiano do Céu). Zeus, Júpiter guardam ainda nos nomes a recordação da sacralidade celeste. O celta Taranis (de taran, “trovejar”), o báltico Perkunas (“relâmpago”) e o protoeslavo Perun (cf. o piorum polonês: “relâmpago”) mostram sobretudo as transformações ulteriores dos deuses do Céu em deuses da Tempestade. Não se trata de “naturismo”. O Deus celeste não é identificado com o Céu, pois foi o próprio Deus que, criador de todo o Cosmos, criou também o Céu. É por esta razão que é chamado “Criador”, “Todo Poderoso”, “Senhor”, “Chefe”, “Pai” etc. O Deus celeste é urna pessoa e não uma epifania uraniana. Mas ele habita o Céu e manifesta se por meio dos fenômenos meteoroló gicos: trovão, raio, tempestade, meteoros etc. Em outras palavras, algumas estruturas privilegiadas do Cosmos – o Céu, a atmosfera – constituem as epifanias favoritas do Ser supremo: ele revela sua presença por meio daquilo que lhe é específico: a majestas da imensidade celeste, o tremendum da tempestade. O Deus longínquo A história dos Seres supremos de estrutura celeste é de grande importância para a compreensão da história religiosa da humanidade como um todo. Não será possível escrevê-la aqui, nestas poucas páginas, mas não podemos deixar de mencionar um fato que nos parece capital: os Seres supremos de estrutura celeste têm tendência a desaparecer do culto; “afastam se” dos homens, retiram-se para o Céu e tornam-se dei otiosi. Numa palavra, pode se dizer que esses deuses, depois de terem criado o Cosmos, a vida e o homem, sentem uma espécie de “fadiga”, como se o enorme empreendimento da Criação lhes tivesse esgotado os recursos. Retiram se, pois, para o Céu, deixando na Terra um filho ou um demiurgo, para acabar ou aperfeiçoar a Criação. Aos poucos, o lugar deles é tomado por outras figuras divinas: os Antepassados míticos, as Deusas Mães, os Deuses fecundadores etc. O deus da Tempestade conserva ainda uma estrutura celeste, mas já não é um Ser supremo criador: é apenas um Fecundador da Terra, e às vezes não passa de um auxiliar de O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 62 – sua parenta, a Terra Mãe. O Ser supremo de estrutura celeste só conserva seu lugar preponderante entre os povos pastores, e ganha uma situação única nas religiões de tendência monoteísta (Ahura Mazda) ou monoteístas (Jeová, Alá). O fenômeno do “afastamento” do Deus supremo revela se desde os níveis arcaicos de cultura. Entre os australianos kulin, o Ser supremo Bundjil criou o Universo, os animais, as árvores e o próprio homem; mas, depois de ter investido seu filho com o poder sobre a Terra, e sua filha com o poder sobre o Céu, Bundjil retirou se do mundo. Habita sobre as nuvens, como um “senhor”, tendo um grande sabre na mão. Puluga, o Ser supremo dos andamanais, retirou se depois de ter criado o mundo e o primeiro homem. Ao mistério do “afastamento” corresponde a ausência quase completa de culto: nenhum sacrifício, nenhuma solicitação, nenhuma ação de graças. Apenas alguns costumes religiosos em que ainda sobrevive a recordação de Puluga: por exemplo, o “silêncio sagrado” dos caçadores que regressam à aldeia depois de uma caçada feliz. O “Habitante do Céu” ou “Aquele que está no Céu” dos selk’nam é eterno, onisciente, onipotente, criador, mas a Criação foi concluída pelos antepassados míticos, criados pelo Deus supremo antes de se retirar para cima das estrelas. Atualmente, esse Deus isolou se dos homens, indiferente às coisas do mundo. Não tem imagens, nem sacerdotes. Somente em caso de doença lhe dirigem preces: “Tu, do alto, não leves meu filho; é ainda muito pequeno!”, Só lhe fazem oferendas durante as intempéries. O mesmo acontece entre a maioria das populações africanas: o grande Deus celeste, o Ser supremo, criador e onipotente, desempenha um papel insignificante na vida religiosa da tribo. Encontra-se muito longe, ou é bom demais para ter necessidade de um culto propriamente dito, e invocam no apenas em casos extremos. Assim, por exemplo, o Olorum (“Proprietário do Céu”) dos iorubas, depois de ter iniciado a criação do mundo, confiou a um deus inferior, óbatala, o cuidado de concluí-lo e governá-lo. Quanto a Olorum, retirou se definitivamente dos negócios terrestres e humanos, e não há templos, nem estátuas, nem sacerdotes deste Deus supremo. Todavia, é invocado, como último recurso, em tempos de calamidade. Retirado no Céu, Ndyambi, o Deus supremo dos héréros, abandonou a humanidade a divindidades inferiores. “Por que lhe ofereceríamos sacrifícios?” – explica um indígena. “Não precisamos temê-lo, pois, ao contrário dos nossos [espíritos dos] mortos, ele não nos faz mal algum.” O Ser supremo dos tumbukas é grande demais “para se interessar pelas coisas vulgares dos homens”. O mesmo acontece entre os negros de língua tshi da África ocidental, com Njankupon: não tem culto e só lhe prestam homenagem em casos de grandes privações ou epidemias, ou depois de uma violenta borrasca; os homens perguntam-lhe então em que é que o ofenderam. Dzingbé (“o Pai universal”), o Ser supremo dos ewe, só é invocado durante a seca: “Ó Céu, a quem devemos nossos agradecimentos, grande é a seca; faz que chova, que a Terra se refresque e que os campos prosperem.” O afastamento e a passividade do Ser supremo são admiravelmente expressos num adágio dos gyriamas da África Mircea Eliade _________________________________________________ – 65 – num “Centro” que se efetua a comunicação com o Céu, e esta constitui a imagem exemplar da transcendência. Poder-se-ia dizer que a própria estrutura do Cosmos conserva viva a recordação do Ser supremo celeste. Como se os deuses tivessem criado o Mundo de tal maneira que ele não pudesse refletir-lhes a existência; pois nenhum mundo é possível sem a verticalidade, e esta dimensão, por si só, basta para evocar a transcendência. Retirado da vida religiosa propriamente dita, o sagrado celeste permanece ativo por meio do simbolismo. Um símbolo religioso transmite sua mensagem mesmo quando deixa de ser compreendido, conscientemente, em sua totalidade, pois um símbolo dirige se ao ser humano integral, e não apenas à sua inteligência. Estrutura do simbolismo aquático Antes de falarmos da Terra, precisamos apresentar as valorizações religiosas das Águas, e isso por duas razões: (1) as Águas existiam antes da Terra (conforme se exprime o Gênesis, “as trevas cobriam a superfície do abismo, e o Espírito de Deus planava sobre as águas”); (2) analisando os valores religiosos das Águas, percebe se melhor a estrutura e a função do símbolo. Ora, o simbolismo desempenha um papel considerável na vida religiosa da humanidade; graças aos símbolos, o Mundo se torna “transparente”, suscetível de “revelar” a transcendência. As águas simbolizam a soma universal das virtualidades: são fons et origo, o reservatório de todas as possibilidades de existência; precedem toda forma e sustentam toda criação. Uma das imagens exemplares da Criação é a Ilha que subitamente se “manifesta” no meio das vagas. Em contrapartida, a imersão na água simboliza a regressão ao pré-formal, a reintegração no modo indiferenciado da preexistência. A emersão repete o gesto cosmogônico da manifestação formal; a imersão equivale a uma dissolução das formas. É por isso que o simbolismo das Águas implica tanto a morte como o renascimento. O contato com a água comporta sempre uma regeneração: por um lado, porque a dissolução é seguida de um “novo nascimento”; por outro lado, porque a imersão fertiliza e multiplica o potencial da vida. À cosmogonia aquática correspondem, ao nível antropológico, as hilogenias: a crença segundo a qual o gênero humano nasceu das Águas. Ao dilúvio ou à submersão periódica dos continentes (mitos do tipo “Atlântica”) corresponde, ao nível humano, a “segunda morte” do homem (a “umidade” e leimon dos Infernos etc.), ou a morte iniciática pelo batismo. Mas, tanto no plano cosmológico como no plano antropológico, a imersão nas Águas equivale não a uma extinção definitiva, e sim a uma reintegração passageira no indistinto, seguida de uma criação, de uma nova vida ou de um “homem novo”, conforme se trate de um momento cósmico, biológico ou soteriológico. Do ponto de vista da estrutura, o “dilúvio” é comparável ao “batismo”, e a libação funerária às lustrações dos recém nascidos ou aos banhos O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 66 – rituais primaveris que trazem saúde e fertilidade. Em qualquer conjunto religioso em que as encontremos, as águas conservam invariavelmente sua função: desintegram, abolem as formas, “lavam os pecados”, purificam e, ao mesmo tempo, regeneram. Seu destino é preceder a Criação e reabsorvê-la, incapazes que são de ultrapassar seu próprio modo de ser, ou seja, de se manifestarem em formas. As Águas não podem transcender a condição do virtual, de germes e latências. Tudo o que é forma se manifesta por cima das Águas, destacando se delas. Há aqui um aspecto essencial: a sacralidade das Águas e a estrutura das cosmogonias e dos apocalipses aquáticos não poderiam ser reveladas integralmente senão por meio do simbolismo aquático, que é o único “sistema” capaz de integrar todas as revelações particulares das inúmeras hierofanias. Esta lei é, de resto, a de todo simbolismo: é o conjunto simbólico que valoriza os diversos significados das hierofanias. As “Águas da Morte”, por exemplo, só revelam seu sentido profundo quando se conhece a estrutura do simbolismo aquático. História exemplar do batismo Os padres da Igreja não deixaram de explorar certos valores pré-cristãos e universais do simbolismo aquático, com o risco de os enriquecerem de significados novos, relativamente à existência histórica do Cristo. Para Tertuliano (De Baptismo III-V), a água foi a primeira “sede do Espírito divino, que a preferia então a todos os outros elementos... Foi a água a primeira que produziu o que tem vida, a fim de que nosso espanto cessasse quando ela gerasse um dia a vida no batismo... Toda água natural adquire, pois, pela antiga prerrogativa com que foi honrada em sua origem, a virtude da santificação no sacramento, se Deus for invocado sobre ela. Logo que se pronunciam as palavras, o Espírito Santo, descido dos Céus, pára sobre as águas, que ele santifica com sua fecundidade; as águas assim santificadas impregnam se, por sua vez, da virtude santificadora... O que outrora curava o corpo cura hoje a alma; o que trazia a saúde no Tempo traz a salvação na eternidade...” O “homem velho” morre por imersão na água e dá nascimento a um novo ser regenerado. Este simbolismo é admiravelmente expresso por João Crisóstomo (Homil. in Joh., XXV, 2), que, falando da multivalência simbólica do batismo, escreve: “Ele representa a morte e a sepultura, a vida e a ressurreição... Quando mergulhamos a cabeça na água como num sepulcro, o homem velho fica imerso, enterrado inteiramente; quando saímos da água, aparece imediatamente o homem novo.” Como se vê, as interpretações de Tertuliano e João Crisóstomo harmonizam-se perfeitamente com a estrutura do simbolismo aquático. Intervêm, contudo, na valorização cristã das águas certos elementos novos ligados a uma `história’; neste Mircea Eliade _________________________________________________ – 67 – caso a História sagrada. Há, antes de tudo, a valorização do batismo como descida ao abismo das Águas para um duelo com o monstro marinho. Esta descida tem um modelo: o do Cristo no Jordão, que era ao mesmo tempo uma descida nas Águas da Morte. Conforme escreve Cirilo de Jerusalém, “o dragão Behemoth, segundo Jó, estava nas Águas e recebia o Jordão em sua garganta. Ora, como era preciso esmagar as cabeças do dragão, Jesus, tendo descido nas Águas, atacou a fortaleza para que adquiríssemos o poder de caminhar sobre os escorpiões e as serpentes”. Vem, em seguida, a valorização do batismo como repetição do dilúvio. Segundo Justino, o Cristo, novo Noé, saiu vitorioso das Águas e tornou-se o chefe de uma outra raça. O dilúvio simboliza tanto a descida às profundezas marinhas como o batismo. “O dilúvio era, pois, uma imagem que o batismo acabava de consumar... Assim como Noé havia afrontado o mar da Morte, onde a humanidade pecadora tinha sido aniquilada e do qual emergira, também aquele que se batiza desce na piscina batismal para afrontar o dragão do mar num combate supremo e sair dele vencedor.” Mas, ainda acerca do rito batismal, estabeleceu se também um paralelo entre o Cristo e Adão. O paralelo Adão Cristo assume um lugar considerável já na teologia de S. Paulo. “Pelo batismo”, afirma Tertuliano, “o homem recupera a semelhança com Deus.” (De Bapt, V.) Para Cirilo, “o batismo não é somente purificação dos pecados e graça da adoção, mas também antitypos da Paixão de Cristo”. Também a nudez batismal encerra, ao mesmo tempo, um significado ritual e metafísico: o abandono da “antiga veste de corrupção e pecado da qual o batizado se despoja por Cristo, aquela com que Adão se cobriu depois do pecado”, mas igualmente o retorno à inocência primitiva, condição de Adão antes da queda. “Ó coisa admirável”, escreve Cirilo. “Vós estáveis nus aos olhos de todos e não vos envergonhastes disso. É que em verdade trazeis em vós a imagem do primeiro Adão, que no Paraíso se encontrava nu e não se envergonhava.” Nesses poucos textos, podemos perceber o sentido das inovações cristãs: por um lado, os padres procuravam correspondência entre os dois testamentos; por outro lado, mostravam que Jesus Cristo tinha cumprido realmente as promessas feitas por Deus ao povo de Israel. Mas é importante observar que essas novas valorizações do simbolismo batismal não contradiziam o simbolismo aquático universalmente difundido. Tudo se reencontra ali: Noé e o Dilúvio tiveram como recíproco, em inúmeras tradições, o cataclismo que pôs fim a uma “humanidade” (“sociedade”), à exceção de um único homem, que se tornou o Antepassado mítico de uma nova humanidade. As “Águas da Morte” são um leitmotiv das mitologias paleorientais, asiáticas e oceânicas. A Água “mata” por excelência: dissolve, abole toda forma. É justamente por isso que é rica em “germes”, criadora. O simbolismo da nudez batismal já não é o privilégio da tradição judaico-cristã. A nudez ritual equivale à integridade e à plenitude; o “Paraíso” implica a ausência das “vestes”, quer dizer, a ausência do “uso” (imagem arquetípica do Tempo). Toda nudez ritual implica um modelo atemporal, uma imagem paradisíaca. O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 70 – delaware, que habitavam outrora a Pensilvânia; segundo seus mitos, o Criador, embora já tivesse preparado para eles, na superfície da Terra, todas as coisas de que gozam atualmente, tinha decidido que os homens ficariam ainda algum tempo escondidos no ventre de sua Mãe telúrica, para que se desenvolvessem melhor, para que amadurecessem. Outros mitos ameríndios falam de um tempo antigo em que a Terra Mãe produzia os homens da mesma maneira como produz, em nossos dias, os arbustos e os caniços. A crença de que os homens foram paridos pela Terra espalhou se universalmente. Em várias línguas o homem é designado como aquele que “nasceu da Terra”. Crê se que as crianças “vêm” do fundo da Terra, das cavernas, das grutas, das fendas, mas também dos mares, das fontes, dos rios. Sob a forma de lenda, superstição ou simplesmente metáfora, crenças similares sobrevivem ainda na Europa. Cada região, e quase cada cidade e aldeia, conhece um rochedo ou uma fonte que “trazem” as crianças: são os Kinderbrunnen, Kinderteicbe, Bubenquellen etc. Até entre os europeus de nossos dias sobrevive o sentimento obscuro de uma solidariedade mística com a Terra natal. É a experiência religiosa da autoctonia: as pessoas sentem se gente do lugar. E este sentimento de estrutura cósmica ultrapassa em muito a solidariedade familiar e ancestral. Ao morrer, deseja se reencontrar a Terra Mãe, ser enterrado no solo natal. “Rasteja para a Terra, tua mãe!”, diz o Rig Veda (X, 18, 10). “Tu, que és terra, deito te na Terra”, está escrito no Atharva Veda (XVIII, 4, 48). “Que a carne e os ossos voltem à Terra!”, pronuncia se durante as cerimônias funerárias chinesas. As inscrições sepulcrais romanas trazem o medo de ter as cinzas enterradas em outros lugares, e, sobretudo, a alegria de reintegrá-las à pátria: hic natus hic Bitus est (CIL, V, 5595: “aqui nasceu, aqui foi colocado”): bic situs est patriae (VIII, 2885); hic quo natus fuerat optans erat illo reverti (V, 1703: “ lá onde nasceu, para lá desejou regressar”). Humi positio: deposição da criança no solo Esta experiência fundamental – de que a mãe humana é apenas a representante da Grande Mãe telúrica deu lugar a inúmeros costumes. Lembremos, por exemplo, o parto no chão (a humi positio), ritual que se encontra, pelo menos em parte, em todos os lados do mundo, da Austrália à China, da África à América do Sul. Entre os gregos e os romanos, o costume desaparecera na idade histórica, mas é possível que tenha existido num passado mais longínquo: certas estátuas das deusas do nascimento (Eileithya, Damia, Auxeia) representam nas de joelhos, exatamente na posição da mulher que dá à luz no solo. Em textos demóticos egípcios, a expressão “sentar-se no chão” significava “parir” ou “parto”. É fácil compreender o sentido religioso desse costume: a geração e o parto são versões microcósmicas de um ato exemplar realizado pela Terra; a mãe humana não Mircea Eliade _________________________________________________ – 71 – faz mais do que imitar e repetir este ato primordial da aparição da Vida no seio da Terra. Por isso, a mãe humana deve colocar-se em contato direto com a Grande Mãe, a fim de se deixar guiar por ela na realização do grande mistério que é o nascimento de uma vida, para receber dela as energias benéficas e encontrar aí a proteção maternal. O costume de depor o recém nascido no solo é ainda mais difundido. Em certos países da Europa ainda se costuma, hoje em dia, colocar a criança no chão, logo que esteja lavada e enfaixada. Em seguida, a criança é erguida pelo pai (de terra tollere) em sinal de reconhecimento. Na China antiga, “o moribundo, como o recém- nascido, é deposto no solo... Para nascer ou morrer, para entrar na família viva ou na família ancestral (e para sair de uma ou outra) há um limiar comum, a Terra natal... Quando se coloca sobre a Terra o recém nascido ou o moribundo, é a ela que cabe dizer se o nascimento ou a morte são válidos, se é necessário tomá-los como fatos consumados e regulares... O rito da deposição na Terra implica a idéia de uma identidade substancial entre a Raça e o Solo. Essa idéia traduz se, com efeito, pelo sentimento de autoctonia – o mais vivo que se pode captar nos primórdios da história chinesa. A idéia de uma aliança estreita entre uma região e seus habitantes é uma crença tão profunda que permaneceu no coração das instituições religiosas e do direito público”. Da mesma forma que a criança é colocada no chão logo após o parto, a fim de que sua verdadeira Mãe a legitime e lhe assegure uma proteção divina, também os moribundos – crianças e adultos – são depostos na terra. Este rito equivale a um novo nascimento. O enterro simbólico, parcial ou total, tem o mesmo valor mágico religioso que a imersão na água, o batismo. O doente regenera-se com esse ato: nasce de novo. A operação tem a mesma eficácia quando se trata de apagar uma falta grave ou curar uma doença do espírito (e esta última apresenta, para a coletividade, o mesmo perigo que o crime ou a doença somática). O pecador é colocado num tonel ou numa fossa aberta na terra, e quando ele sai diz se que “nasceu uma segunda vez, do seio de sua mãe”. É por isso que, entre os escandinavos, se acredita que uma feiticeira pode ser salva da danação eterna se for enterrada viva e, sobre ela, semearem se cereais, ceifando se a colheita assim obtida. A iniciação comporta uma morte e uma ressurreição rituais. Assim, entre vários povos primitivos, o neófito é simbolicamente “morto”, enterrado numa fossa e coberto com folhagem. Quando se levanta do túmulo, é considerado um homem novo, pois foi parido pela segunda vez, e diretamente pela Mãe cósmica. A mulher, a terra e a fecundidade A mulher relaciona se, pois, misticamente com a Terra; o dar à luz é uma variante, em escala humana, da fertilidade telúrica. Todas as experiências religiosas relacionadas com a fecundidade e o nascimento têm uma estrutura cósmica. A O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 72 – sacralidade da mulher depende da santidade da Terra. A fecundidade feminina tem um Modelo cósmico: o da Terra Mater, da Mãe universal. Em algumas religiões acredita se que a Terra Mãe é capaz de conceber sozinha, sem o auxílio de um companheiro. Encontram-se ainda os traços dessas idéias arcaicas nos mitos ?]e partenogênese das deusas mediterrânicas. Segundo Hesíodo, Gea (a Terra) pariu Uranos, “um ser igual a ela, capaz de cobri Ia inteiramente” (Teogonia, 126 ss.). Outras deusas gregas também geraram sem a ajuda dos deuses. É uma expressão mítica da auto suficiência e da fecundidade da Terra Mãe. A tais concepções míticas correspondem as crenças relativas à fecundidade espontânea da mulher e a seus poderes mágico religiosos ocultos, que exercem uma influência decisiva na vida das plantas. O fenômeno social e cultural conhecido como matriarcado está ligado à descoberta da agricultura pela mulher. Foi a mulher a primeira a cultivar as plantas alimentares. Foi ela que, naturalmente, se tornou proprietária do solo e das colheitas. O prestígio mágico religioso e, conseqüentemente, o predomínio social da mulher têm um modelo cósmico: a figura cia Terra Mãe. Em outras religiões, a criação cósmica, ou pelo menos sua realização, é o resultado de uma hierogamia entre o Deus Céu e a Terra Mãe. Este mito cosmogônico, bastante difundido, é encontrado sobretudo na Oceania da Indonésia à Micronésia –, mas também na Ásia, na África e nas duas Américas. Ora, como vimos, o mito cosmogônico é o mito exemplar por excelência: serve de modelo ao comportamento dos homens. É por isso que o casamento humano é considerado uma imitação da hierogamia cósmica. “Eu sou o Céu”, proclama o marido na Brhadâranyaka Upanishad (VI, 4, 20), “tu és a Terra!” Já no Atharva Veda (XIV, 2, 71) o marido e a mulher são assimilados ao Céu e à Terra. Dido celebra seu casamento com Enéias no meio de uma violenta tempestade (Eneida, IV, 16 ss.); a união deles coincide com a dos elementos; o Céu abraça sua esposa distribuindo a chuva fertilizante. Na Grécia, os ritos matrimoniais imitavam o exemplo de Zeus unindo se secretamente com Hera (Pausânias, II, 36, 2). Como era de esperar, o mito divino é o modelo exemplar da união humana. Mas há um outro aspecto importante: a estrutura cósmica do ritual conjugal e do comportamento sexual dos seres humanos. Para o homem não religioso das sociedades modernas, é difícil apreender essa dimensão cósmica e ao mesmo tempo sagrada da união conjugal. Mas, como já dissemos várias vezes, não se pode esquecer que, para o homem religioso das sociedades arcaicas, o Mundo se apresenta carregado de mensagens. Por vezes, essa mensagens são cifradas, mas os mitos estão lã para ajudar o homem a decifrá-las. Conforme teremos ocasião de ver, a experiência humana, na sua totalidade, é suscetível de ser igualada à Vida cósmica e, conseqüentemente, de ser santificada, pois o Cosmos é a suprema criação dos deuses. A orgia ritual em favor das colheitas também tem um modelo divino: a hierogamia do deus fecundador com a Terra Mãe. A fertilidade agrária é estimulada por um frenesi genésico ilimitado. De certo ponto de vista, a orgia corresponde à Mircea Eliade _________________________________________________ – 75 – que o mistério se realizou, que a primavera não tardará a vir. A maior parte desses rituais tem lugar antes do “fenômeno natural” da primavera. Dessacralização da natureza já dissemos que, para o homem religioso, a Natureza nunca é exclusivamente “natural”. A experiência de uma Natureza radicalmente dessacralizada é uma descoberta recente, acessível apenas a uma minoria das sociedades modernas, sobretudo aos homens de ciência. Para o resto das pessoas, a Natureza apresenta ainda um “encanto”, um “ mistério”, uma “majestade”, onde se podem decifrar os traços dos antigos valores religiosos. Não há homem moderno, seja qual for o grau de sua irreligiosidade, que não seja sensível aos “encantos” da Natureza. Não se trata unicamente dos valores estéticos, desportivos ou higiênicos concedidos à Natureza, mas também de um sentimento confuso e difícil de definir, no qual ainda se reconhece a recordação de uma experiência religiosa degradada. Será interessante mostrar, com a ajuda de um exemplo preciso, as modificações e a deterioração dos valores religiosos da Natureza. Procuramos este exemplo na China, e isso por duas razões: 1) na China, como no Ocidente, a dessacralização da Natureza é obra de uma minoria, principalmente de letrados; (2) contudo, na China, como em todo o Extremo Oriente, esse processo de dessacralização nunca foi totalmente levado a cabo. A “contemplação estética” da Natureza conserva ainda, mesmo para os letrados mais sofisticados, um prestígio religioso. Sabe se que, a partir do século XVII, a decoração dos jardins com lagos tornou-se moda entre os letrados chineses. Eram lagos no meio dos quais se erguiam alguns rochedos com árvores anãs, flores e, muitas vezes, modelos em miniatura de casas, pagodes, pontes e figuras humanas; chamavam-lhes “Montanhas em miniatura”, em anamita, ou “Montanha artificial” em sino anamita. Notemos que até os nomes trazem um significado cosmológico: a Montanha, conforme vimos, é um símbolo do Universo. Mas esses jardins em miniatura, que se tornaram objeto de predileção para os estetas, tinham uma longa história, até mesmo uma pré-história, na qual se revela um profundo sentimento religioso do mundo. Os antecedentes eram os lagos cuja água perfumada representava o Mar e cuja cobertura sobrelevada figurava a Montanha. A estrutura cósmica desses objetos é evidente. O elemento místico também estava presente, pois a Montanha no meio do Mar simbolizava as Ilhas dos Bem Aventurados, espécie de Paraíso onde viviam os imortais taoístas. Trata-se, pois, de um mundo à parte, um mundo em miniatura, que as pessoas instalavam em suas casas, em seus lares, para participar das forças místicas ali concentradas, de restabelecer, pela meditação, a harmonia com o Mundo. A Montanha era ornada de grutas, e o folclore das grutas desempenhou um papel importante na construção dos jardins em miniatura. As grutas são retiros secretos, morada dos Imortais taoístas e O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 76 – local das iniciações. Representam um mundo paradisíaco, e por esta razão sua entrada é difícil (simbolismo da “porta estreita”, do qual voltaremos a falar no capítulo seguinte). Mas todo este complexo – água, árvores, montanha, gruta –, que desempenhara um papel tão grande no taoísmo, não era mais do que o desenvolvimento de uma idéia religiosa ainda mais antiga: a do local perfeito, quer dizer, completo – compreendendo um monte e um lago e retirado. Local perfeito, pois ao mesmo tempo mundo em miniatura e Paraíso, fonte de beatitude e lugar de Imortalidade. Ora, a paisagem perfeita – monte e lago era o “lugar santo” imemorial, onde na China, todas as primaveras, rapazes e moças se encontravam para entoar cantos rituais alternados e para jogos amorosos. Adivinham-se facilmente as valorizações sucessivas desse ‘ lugar santo” primordial. Nos tempos mais antigos, era um espaço privilegiado, mundo fechado, santificado, onde rapazes e moças se reuniam periodicamente para participar dos mistérios da Vida e da fecundidade cósmica. Os taoístas retomaram o esquema cosmológico arcaico monte e lago – e elaboraram um complexo mais rico (montanha, lago, gruta, árvores), reduzido a uma escala menor: um universo paradisíaco em miniatura, carregado de forças místicas, pois retirado do mundo profano, e junto do qual os taoístas se recolhiam e meditavam. A santidade do mundo fechado revela se ainda nos lagos com água perfumada e cobertura que simbolizam o Mar e as Ilhas dos Bem Aventurados. Este complexo servia também para a meditação, tal qual, no começo, os jardins em miniatura, antes que a moda dos letrados se apoderasse deles, no século XVII, para transformá-los em “objetos de arte”. É preciso enfatizar, porém, que jamais assistimos a uma total dessacralização do mundo, pois, no Extremo Oriente, o que se chama “emoção estética” conserva ainda, mesmo entre os letrados, uma dimensão religiosa. Mas o exemplo dos jardins em miniatura mostra nos em que sentido e por que meios se opera a dessacralização do mundo. Basta que imaginemos o que uma emoção estética dessa ordem pode tornar- se numa sociedade moderna para compreendermos como a experiência da santidade cósmica pode rarefazer se e transformar-se até se tornar uma emoção unicamente humana: por exemplo, a da arte pela arte. Outras hierofanias cósmicas Visto que era preciso que nos limitássemos, falamos aqui de apenas alguns aspectos da sacralidade da Natureza, e tivemos de omitir um número considerável de hierofanias cósmicas. Assim, por exemplo, não pudemos falar dos símbolos e cultos solares ou lunares, nem do significado religioso das pedras e do papel religioso dos animais etc. Cada um desses grupos de hierofanias cósmicas revela uma estrutura particular da sacralidade da Natureza; ou, mais exatamente, uma modalidade do sagrado expressa por meio de um modo específico de existência no Cosmos. Basta, Mircea Eliade _________________________________________________ – 77 – por exemplo, analisar os diversos valores religiosos atribuídos às pedras, para que se compreenda o que as pedras, como hierofanias, podem revelar aos homens: o poder, a firmeza, a permanência. A hierofania da pedra é uma ontofania por excelência: antes de tudo, a pedra é, mantém se sempre a mesma, não muda – e impressiona o homem pelo que tem de irredutível e absoluto, desvendando-lhe, por analogia, a irredutibilidade e o absoluto do Ser. Captado graças a uma experiência religiosa, o modo específico de existência da pedra revela ao homem o que é uma existência absoluta, para além do Tempo, invulnerável ao devir. Do mesmo modo, uma análise rápida das múltiplas e variadas valorizações religiosas da Lua apresenta-nos tudo o que os homens decifraram nos ritmos lunares. Graças às fases da Lua – quer dizer, ao seu “nascimento”, “morte” e “ressurreição” – , os homens tomaram consciência de seu próprio modo de ser no Cosmos e de suas possibilidades de sobrevivência ou renascimento. Graças ao simbolismo lunar, o homem religioso conseguiu aproximar amplos conjuntos de fatos, sem relação aparente entre si, e finalmente integrá-los num único “sistema”. É mesmo provável que a valorização religiosa dos ritmos lunares tenha possibilitado a realização das primeiras grandes sínteses antropocósmicas dos primitivos. Graças ao simbolismo lunar, foi possível relacionar e estabelecer correspondências entre fatos tão heterogêneos como o nascimento, o devir, a morte, a ressurreição; as Águas, as plantas, a mulher, a fecundidade, a imortalidade; as trevas cósmicas, a vida pré-natal e a existência além túmulo, seguida de um renascimento de tipo lunar (`luz saindo das trevas”); a tecelagem, o símbolo do “fio da Vida”, o destino, a temporalidade, a morte etc. Em geral, a maior parte das idéias de ciclo, dualismo, polaridade, oposição, conflito, mas também de reconciliação dos contrários, de coincidentia oppositorum, foram descobertas e precisadas graças ao simbolismo lunar. Pode se falar de uma metafísica da Lua, no sentido de um sistema coerente de “verdades” relativas ao modo de ser específico dos vivos, a tudo o que, no Cosmos, participa da Vida, quer dizer, do devir, do crescimento e do decrescimento, da “morte” e da “ressurreição”. Pois não se pode esquecer que a Lua revela ao homem religioso não somente a ligação indissolúvel entre a Morte e a Vida, mas também, e sobretudo, que a Morte não é definitiva, que é sempre seguida de um novo nascimento. A Lua valoriza religiosamente o devir cósmico e reconcilia o homem com a Morte. O Sol, ao contrário, revela um outro modo de existência: não participa do devir: embora em constante movimento, o Sol permanece imutável, sua forma é sempre a mesma. As hierofanias solares traduzem os valores religiosos da autonomia e da força, da soberania, da inteligência. É por isso que, em algumas culturas, assistimos a um processo de solarização dos Seres supremos. Como vimos, os deuses celestes tendem a desaparecer da atualidade religiosa, mas em certos casos sua estrutura e seu prestígio sobrevivem ainda nos deuses solares – sobretudo nas civilizações altamente elaboradas, que desempenharam um papel histórico importante (Egito, Oriente helenístico, México). Um grande número de mitologias heróicas é de estrutura solar. O herói é assimilado O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 80 – pré-cristã , de uma antiguidade imemorial. Seria inexato supor que, por esta razão, os camponeses da Europa não são cristãos. É preciso, porém, reconhecer que a religiosidade deles não se reduz às formas históricas do cristianismo, que conserva ainda uma estrutura cósmica quase inteiramente perdida na experiência dos cristãos das cidades. Pode se falar de uni cristianismo primordial, a histórico; ao se cristianizarem, os agricultores europeus integraram a sua nova fé a religião cósmica que conservavam desde a pré-história. Entretanto, para o historiador das religiões desejoso de compreender e fazer compreender a totalidade das situações existenciais do homo religiosus, o problema é mais complexo. Para lá das fronteiras das culturas agrícolas estende se todo um mundo: o mundo verdadeiramente “primitivo” dos pastores nômades, dos caçadores totemistas, das populações ainda no estágio da caça miúda e da colheita. Para conhecer o universo mental do homo religiosus é preciso ter em conta, sobretudo, os homens dessas sociedades primitivas. Ora, o comportamento religioso deles parece nos, hoje, excêntrico, se não francamente aberrante, e, em todo caso, muito difícil de compreender. Mas o único meio de compreender um universo mental alheio é situar- se dentro dele, no seu próprio centro, para alcançar, a partir daí, todos os valores que esse universo comanda. O primeiro fato com que deparamos ao adotar a perspectiva do homem religioso das sociedades arcaicas é que o Mundo existe porque foi criado pelos deuses, e que a própria existência do Mundo “quer dizer” alguma coisa, que o Mundo não é mudo nem opaco, que não é uma coisa inerte, sem objetivo e sem significado. Para o homem religioso, o Cosmos “vive” e “fala”. A própria vida do Cosmos é uma prova de sua santidade, pois ele foi criado pelos deuses e os deuses mostram-se aos homens por meio da vida cósmica. É por essa razão que, a partir de um certo estágio de cultura, o homem se concebe como um microcosmos. Ele faz parte da Criação dos deuses, ou seja, em outras palavras, ele reencontra em si mesmo a santidade que reconhece no Cosmos. Segue se daí que sua vida é assimilada à vida cósmica: como obra divina, esta se torna a imagem exemplar da existência humana. Vimos, por exemplo, que o casamento é valorizado como uma hierogamia entre o Céu e a Terra. Entre os agricultores, porém, a correspondência Terra Mulher é ainda mais complexa. A mulher é assimilada à gleba, as sementes ao semen virile e o trabalho agrícola à união conjugal. “Esta mulher veio como um terreno vivo: semeai nela, homens, a semente!”, está escrito no Atharva Veda (XIV, 2, 14). “Vossas mulheres são como campos para vós” (Corão, 11, 225). Uma rainha estéril lamenta se: “Sou como um campo onde nada cresce!” Num hino do século XII, a Virgem Maria é glorificada como terra nora arabilis quae fructum parturiit. Tentemos compreender a situação existencial daquele para quem todas essas correspondências são experiências vividas e não simplesmente idéias. É evidente que sua vida possui uma dimensão a mais: não é apenas humana, é ao mesmo tempo “cósmica”, visto que tem uma estrutura trans humana. Poder-se-ia chamá-la uma Mircea Eliade _________________________________________________ – 81 – “existência aberta”, porque não é limitada estritamente ao modo de ser do homem. (Sabemos, aliás, que o primitivo situa seu próprio modelo a atingir no plano trans humano revelado pelos mitos.) A existência do homo religiosus, sobretudo do primitivo, é “aberta” para o mundo; vivendo, o homem religioso nunca está sozinho, pois vive nele uma parte do Mundo. Mas não se pode dizer, como Hegel, que o homem primitivo está “enterrado na Natureza”, que ele não se reencontrou ainda como distinto da Natureza, como ele mesmo. O hindu que, abraçando sua esposa, proclama que ela é a Terra e ele é o Céu, está ao mesmo tempo plenamente consciente da humanidade dele e de sua esposa. O agricultor austro asiático que designa com o mesmo vocábulo, lak, o falo e a enxada e que, como tantos outros cultivadores, assimila os grãos ao semen virile, sabe muito bem que a enxada é um instrumento que ele fabricou para si e que, ao trabalhar o campo, efetua um trabalho agrícola que exige um certo número de conhecimentos técnicos. Em outras palavras, o simbolismo cósmico junta um novo valor a um objeto ou uma ação, sem com isso prejudicar seus valores próprios e imediatos. Uma existência “aberta” para o Mundo não é uma existência inconsciente, enterrada na Natureza. A “abertura” para o Mundo permite ao homem religioso conhecer se conhecendo o Mundo – e esse conhecimento é precioso para ele porque é um conhecimento religioso, refere se ao Ser. Santificação da vida O exemplo que acabamos de citar ajuda-nos a compreender a perspectiva do homem das sociedades arcaicas: para ele, a vida como um todo é suscetível de ser santificada. São múltiplos os meios por que se obtém a santificação, mas o resultado é quase sempre o mesmo: a vida é vivida num plano duplo; desenrola se como existência humana e, ao mesmo tempo, participa de uma vida trans humana, a do Cosmos ou dos deuses. É provável que, num passado muito longínquo, todos os órgãos e experiências fisiológicas do homem, bem como todos os seus gestos, tivessem um significado religioso. Isto porque todos os comportamentos humanos foram fundados pelos deuses ou pelos heróis civilizadores in illo tempore: estes fundaram não somente os diversos trabalhos e as diversas formas de se alimentar, fazer amor, exprimir se etc., mas até os gestos aparentemente sem importância. No mito dos australianos karadjeri, os dois Heróis civilizadores adotaram uma posição especial para urinar, e os Karadjeri ainda hoje imitam esse gesto exemplar ‘. É inútil lembrar que não há nenhuma correspondência semelhante ao nível da experiência profana da Vida. Para o homem a religioso, todas as experiências vitais – tanto a sexualidade como a alimentação, o trabalho como o jogo – foram dessacralizadas. Isto quer dizer que todos os atos fisiológicos foram desprovidos de significado espiritual, desprovidos portanto da dimensão verdadeiramente humana. Mas, além do significado religioso que se atribui aos atos fisiológicos como O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 82 – imitação de modelos divinos, os órgãos e suas funções foram valorizados religiosamente por sua assimilação às diversas regiões e fenômenos cósmicos. Já citamos um exemplo clássico: a mulher assimilada à gleba e à Terra Mãe, o ato sexual assimilado à hierogamia Céu Terra e à semeadura agrícola. Mas é enorme o número de correspondências entre o homem e o Universo. Algumas delas parecem impor se espontaneamente ao espírito, como, por exemplo, a do olho ao Sol, ou dos dois olhos ao Sol e à Lua, ou a da caixa craniana à lua cheia; ou ainda a assimilação dos sopros aos ventos, dos ossos às pedras, dos cabelos às ervas etc. Mas o historiador das religiões encontra outras assimilações que pressupõem um simbolismo mais elaborado, todo um sistema de correspondências micro- macrocósmicas. Assim, por exemplo, a assimilação do ventre ou da matriz à gruta, dos intestinos aos labirintos, da respiração à tecelagem, das veias e artérias ao Sol e à Lua, da coluna vertebral ao Axis mundi etc. Evidentemente, todas essas correspondências entre o corpo humano e o macrocosmos não são encontradas entre os primitivos. Certos sistemas de correspondência homem Universo só nas grandes culturas foram completamente elaborados (Índia, China, Oriente Próximo antigo, América Central). Seu ponto de partida, porém, encontra-se já nas culturas arcaicas. Entre os primitivos, surgem sistemas de homologia antropocósmica de extraordinária complexidade, que demonstram uma capacidade inesgotável de especulação. É o caso, por exemplo, dos Dogons da África ocidental francesa. Ora, essas correspondências antropocósmicas interessam nos principalmente porque são as “cifras” das diversas situações existenciais. Dizíamos que o homem religioso vive num mundo “aberto” e que, por outro lado, sua existência é “aberta” para o Mundo. Isto é o mesmo que dizer que o homem religioso é acessível a uma série infinita de experiências que poderiam ser chamadas de “cósmicas”. Tais experiências são sempre religiosas, pois o Mundo é sagrado. Para chegar a compreendê-las, é preciso ter em mente que as principais funções fisiológicas são suscetíveis de se transformar em sacramentos. Come se ritualmente, e a alimentação é diversamente valorizada segundo as diferentes religiões e culturas: os alimentos são considerados sagrados, ou um dom da divindade, ou uma oferenda aos deuses do corpo (como é o caso, por exemplo, na Índia). A vida sexual, como vimos, também é ritualizada e, por conseqüência, assimilada aos fenômenos cósmicos (chuvas, semeadura) e aos atos divinos (hierogamia Céu Terra). Por vezes, o casamento é valorizado num plano triplo: individual, social e cósmico. Por exemplo, entre os Omaha, a aldeia é dividida em duas metades, chamadas respectivamente Céu e Terra. Os casamentos só podem ser realizados entre as duas metades exógamas, e a cada novo casamento repete se o Meros gamos primordial: a união entre a Terra e o Céu. Essas correspondências antropocósmicas, e sobretudo a sacramentalização da vida fisiológica que se segue, conservaram toda a sua vitalidade mesmo nas religiões altamente evoluídas. Para nos limitarmos a um só exemplo, lembremos que a união sexual, como ritual, atingiu um prestígio considerável no tantrismo indiano. A Índia Mircea Eliade _________________________________________________ – 85 – uma imagem dupla: a rotura do telhado e o vôo nos ares. Os textos budistas falam dos Arhats que “voam pelos ares quebrando o teto do palácio, que, voando por sua própria vontade, quebram e atravessam o teto da casa e vão pelos ares” etc. Essas fórmulas podem ser interpretadas de duas maneiras: no plano da experiência mística, trata se de um “êxtase” e, portanto, do vôo da alma pelo brahmarandhara; no plano metafísico, trata se da abolição do mundo condicionado. Mas os dois significados do “vôo” dos Arhats exprimem a rotura de nível ontológico e a passagem de um modo de ser a outro, ou, mais exatamente, a passagem da existência condicionada a um modo de ser não condicionado, quer dizer, de perfeita liberdade. Na maior parte das religiões arcaicas, o “vôo” significa o acesso a um modo de ser sobre humano (Deus, mágico, “espírito”), em última instância a liberdade de se mover à vontade – portanto uma apropriação da condição do “espírito”. Para o pensamento indiano, o Arhat que “rompe o teto da casa” e voa pelos ares ilustra, de maneira figurada, que ele transcendeu o Cosmos e alcançou um modo de ser paradoxal, impensável até, o da liberdade absoluta (seja qual for o nome que lhe dêem: niruâna, asamskrta, samâdhi, sahaja etc.). No plano mitológico, o gesto exemplar da transcendência do Mundo é ilustrado por Buda, ao proclamar que “quebrou” o Ovo cósmico, a “concha da ignorância” e que atingiu “a bem aventurada, a universal dignidade de Buda”. O exemplo mostra nos a importância da perenidade dos simbolismos arcaicos relativos à habitação humana. Esses simbolismos exprimem situações religiosas primordiais, mas são suscetíveis de modificar seus valores, enriquecendo se de significados novos e integrando se em sistemas de pensamento cada vez mais articulados. “Habita-se” o corpo da mesma maneira que se habita uma casa ou o Cosmos que se criou para si mesmo (cf. cap. I). Toda situação legal e permanente implica a inserção num Cosmos, num Universo perfeitamente organizado, imitado, portanto, segundo o modelo exemplar, a Criação. Território habitado, Templo, casa, corpo, como vimos, são Cosmos. Mas todos esses Cosmos, e cada um de acordo com seu modo de ser, apresentam uma “abertura”, seja qual for o sentido que lhe atribuam as diversas culturas (“olho” do Templo, chaminé, torre de fumaça, brabmarandbara etc.) De uma maneira ou outra, o Cosmos que o homem habita – corpo, casa, território tribal, este mundo em sua totalidade – comunica se pelo alto com um outro nível que lhe é transcendente. Acontece que numa religião acósmica, como a da Índia depois do budismo, a abertura para o plano superior já não exprime a passagem da condição humana para a condição sobre humana, mas a transcendência, a abolição do Cosmos, a liberdade absoluta. É enorme a diferença entre o significado filosófico do “ovo quebrado” por Buda, ou do “teto” fraturado pelos Arhats, e o simbolismo arcaico da passagem da Terra ao Céu ao longo do Axis mundi ou pelo orifício de fumaça. Permanece, porém, o fato de que a filosofia e o misticismo indianos escolheram de preferência, entre os símbolos que podiam significar a rotura ontológica e a transcendência, a imagem primordial do estilhaçamento do teto. A superação da condição humana traduz se, de O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 86 – uma maneira figurada, pelo aniquilamento da “casa”, ou seja, do Cosmos pessoal que se escolheu habitar. Toda “morada estável” onde o homem se “instalou” equivale, no plano filosófico, a uma situação existencial que se assumiu. A imagem do estilhaçamento do teto significa que se aboliu toda a situação que se escolheu, que se optou não pela instalação no mundo, mas pela liberdade absoluta, que, para o pensamento indiano, implica o aniquilamento de todo mundo condicionado. Não é necessário analisar longamente os valores atribuídos por um de nossos contemporâneos não religiosos a seu corpo, sua casa e seu universo, para perceber a enorme distância que o separa dos homens das culturas primitivas e orientais que acabamos de mencionar. Assim como a habitação de um homem moderno perdeu os valores cosmológicos, também seu corpo foi igualmente privado de todo significado religioso ou espiritual. Poder-se-ia dizer, em resumo, que, para os modernos desprovidos de religiosidade, o Cosmos se tornou opaco, inerte, mudo: não transmite nenhuma mensagem, não carrega nenhuma “cifra”. O sentimento da santidade da Natureza sobrevive hoje na Europa sobretudo entre as populações rurais, pois é aí que ainda se encontra um cristianismo vivido como liturgia cósmica. Quanto ao cristianismo das sociedades industriais, principalmente o dos intelectuais, há muito que perdeu os valores cósmicos que possuía ainda na Idade Média. Isto não implica necessariamente que o cristianismo urbano seja “degradado” ou “inferior”, mas apenas que a sensibilidade religiosa das populações urbanas encontra- se gravemente empobrecida. A liturgia cósmica, o mistério da participação da Natureza no drama cristológico tornaram-se inacessíveis aos cristãos que vivem numa cidade moderna. Sua experiência religiosa já não é “aberta” para o Cosmos; é uma experiência estritamente privada. A salvação é um problema que diz respeito ao homem e seu Deus; no melhor dos casos, o homem reconhece se responsável não somente diante de Deus, mas também diante da História. Mas nestas relações homem Deus História o Cosmos não tem nenhum lugar. O que permite supor que, mesmo para um cristão autêntico, o Mundo já não é sentido como obra de Deus. A passagem pela porta estreita Tudo o que acabamos de dizer sobre o simbolismo corpo casa, e suas correspondências antropocósmicas, está longe de ter esgotado a extraordinária riqueza do assunto: tivemos de nos limitar a apenas alguns de seus múltiplos aspectos. A “casa” – visto que é ao mesmo tempo uma imago mundi e uma réplica do corpo humano desempenha um papel considerável nos rituais e nas mitologias. Em certas culturas (por exemplo, China protohistórica, Etrúria etc.) as urnas funerárias têm a forma de casa: apresentam uma abertura superior que permite à alma do morto entrar e sair”. A urna casa torna-se de certo modo o novo “corpo” do defunto. É também de uma casinha em forma de capuz que sai o Antepassado Mircea Eliade _________________________________________________ – 87 – mítico, e é sempre numa tal casa urna capuz que se esconde o Sol durante a noite para tornar a sair de manhã. Há, pois, uma correspondência estrutural entre as diversas modalidades de passagem: das trevas à luz (Sol), da preexistência de uma raça humana à manifestação (Antepassado mítico) da Vida à Morte e à nova existência post mortem (a alma). Sublinhamos várias vezes que toda forma de “Cosmos” – o Universo, o Templo, a casa, o corpo humano – é provida de uma “abertura” superior. Agora se compreende melhor o significado desse simbolismo: a abertura torna possível a passagem de um modo de ser a outro, de uma situação existencial a outra. Toda existência cósmica está predestinada à “passagem”: o homem passa da pré-vida à vida e finalmente à morte, tal como o Antepassado mítico passou da preexistência à existência e o Sol das trevas à luz. Notemos que este tipo de “passagem” se enquadra num sistema mais complexo, cujas principais articulações examinamos ao falar da Lua como arquétipo do devir cósmico, da vegetação como símbolo da renovação universal, e sobretudo das múltiplas maneiras de repetir ritualmente a cosmogonia, quer dizer, a passagem exemplar do virtual ao formal. Convém precisar que todos os rituais e simbolismos da “passagem” exprimem uma concepção específica da existência humana: urna vez nascido, o homem ainda não está acabado; deve nascer uma segunda vez, espiritualmente; torna-se homem completo passando de um estado imperfeito, embrionário, a um estado perfeito, de adulto. Numa palavra, pode se dizer que a existência humana chega à plenitude ao longo de uma série de ritos de passagem, em suma, de iniciações sucessivas. Falaremos em breve do sentido e da função da iniciação. Por ora, vamos nos deter um pouco no simbolismo da “passagem” tal qual o homem religioso o decifra no meio familiar e na vida cotidiana: na sua casa, por exemplo, nos caminhos que utiliza para ir ao trabalho, nas pontes que atravessa etc. Esse simbolismo está presente na própria estrutura da habitação. A abertura superior significa, conforme vimos, a direção ascensional para o Céu, o desejo de transcendência. O limiar concretiza tanto a delimitação entre o “fora” e o “dentro”, como a possibilidade de passagem de urna zona a outra (do profano ao sagrado; cf. cap. 1). Mas são sobretudo as imagens da ponte e da porta estreita que sugerem a idéia de passagem perigosa e que, por esta razão, abundam nos rituais e nas mitologias iniciáticas e funerárias. A iniciação, como a morte, o êxtase místico, o conhecimento absoluto, a fé (no judaísmo cristianismo), equivale a uma passagem de um modo de ser a outro e opera uma verdadeira mutação ontológica. Para sugerir essa passagem paradoxal (pois implica sempre uma rotura e uma transcendência), as diversas tradições religiosas utilizaram abundantemente o simbolismo da ponte perigosa ou da porta estreita. Na mitologia iraniana, a ponte Cinvat é utilizada pelos defuntos em sua viagem post mortem: tem uma largura de nove comprimentos de lança para os justos, mas para os ímpios torna-se estreita como “a lâmina de uma navalha” (Dinkart, IX, 20, 3). Debaixo da ponte Cinvat abre se o buraco profundo do Inferno O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 90 – casamento e do nascimento, mas, como não tardaremos a ver, subsistem apesar de tudo vagas recordações e nostalgias de comportamentos religiosos abolidos. Quanto aos rituais iniciáticos propriamente ditos, convém fazer uma distinção entre as iniciações da puberdade (faixa de idade) e as cerimônias de admissão numa sociedade secreta: a diferença mais importante reside no fato de que todos os adolescentes são obrigados a enfrentar a iniciação da idade, ao passo que as sociedades secretas são reservadas a um determinado número de adultos. Parece certo que a instituição da iniciação da puberdade é mais antiga do que a da sociedade secreta; encontra-se mais espalhada e é atestada desde os níveis mais arcaicos de cultura, como, por exemplo, entre os australianos e os fueguinos. Não nos cabe expor aqui as cerimônias iniciáticas em toda sua complexidade. Nosso objetivo é mostrar que, já nos estágios arcaicos de cultura, a iniciação desempenha um papel capital na formação religiosa do homem, e, sobretudo, que ela consiste essencialmente numa mudança do regime ontológico do neófito. Ora, este fato parece nos muito importante para a compreensão do homem religioso: mostra nos que o homem das sociedades primitivas não se considera “acabado” tal como se encontra ao nível natural da existência: para’se tornar um homem propriamente dito, deve morrer para esta vida primeira (natural) e renascer para uma vida superior, que é ao mesmo tempo religiosa e cultural. Em outras palavras, o primitivo coloca seu ideal de humanidade num plano sobre humano. Isto quer dizer que: (1) só se torna um homem completo depois de ter ultrapassado, e em certo sentido abolido, a humanidade “natural”, pois a iniciação se reduz, em suma, a uma experiência paradoxal, sobrenatural, de morte e ressurreição, ou de segundo nascimento; (2) os ritos iniciãticos comportando as provas, a morte e a ressurreição simbólicas foram fundados pelos deuses, os Heróis civilizadores ou os Antepassados míticos: esses ritos têm, portanto, uma origem sobre humana, e, ao realizá-los, o neófito imita um comportamento sobre humano, divino. É importante reter este fato, pois nos mostra mais uma vez que o homem religioso se quer diferente do que se encontra ao nível “natural”, esforçando se por ,fazer se segundo a imagem ideal que lhe foi revelada pelos mitos. O homem primitivo esforça se por atingir um ideal religioso de humanidade, e nesse esforço encontram-se já os germes de todas as éticas elaboradas mais tarde nas sociedades evoluídas. Evidentemente, nas sociedades a religiosas modernas, a iniciação já não existe como ato religioso. Veremos mais adiante, contudo, que, embora fortemente dessacralizados, os padrões de iniciação ainda sobrevivem no mundo moderno. Mircea Eliade _________________________________________________ – 91 – Fenomenologia da iniciação A iniciação comporta geralmente uma tripla revelação: a do sagrado, a cia morte e a da sexualidade. A criança ignora todas essas experiências; o iniciado as conhece, assume e integra em sua nova personalidade. Acrescentemos que se o neófito morre para sua vida infantil, profana, não regenerada, renascendo para uma nova existência, santificada, ele renasce também para um modo de ser que torna possível o conhecimento, a ciência. O iniciado não é apenas um “recém nascido” ou um “ressuscitado”: é um homem que sabe, que conhece os mistérios, que teve revelações de ordem metafísica. Durante seu treinamento na selva, aprende os segredos sagrados: os mitos relativos aos deuses e à origem do mundo, os verdadeiros nomes dos deuses, o papel e a origem dos instrumentos rituais utilizados durante as cerimônias de iniciação (os buli roarers, as lâminas de sílex para a circuncisão etc.). A iniciação equivale ao amadurecimento espiritual, e em toda a história religiosa da humanidade reencontramos sempre este tema: o iniciado, aquele que conheceu os mistérios, é aquele que sabe. As cerimônia começa sempre com a separação do neófito de sua família e um retiro na selva. já há ali um símbolo da morte: a floresta, a selva, as trevas simbolizam o além, os “Infernos”. Em alguns lugares acredita se que um tigre vem e transporta no dorso os candidatos: a fera encarna o Antepassado Mítico, o Senhor da iniciação, que conduz os adolescentes aos Infernos. Além disso, considera-se que o neófito é engolido por um monstro, em cujo ventre reina a Noite cósmica; é o mundo embrionário da existência, tanto no plano cósmico como no plano da vida humana. Em inúmeras regiões, existe na selva uma cabana iniciática. É aí que os jovens candidatos sofrem uma parte de suas provas e são instruídos nas tradições secretas da tribo. Ora, a cabana iniciática simboliza o ventre materno. A morte do neófito significa uma regressão ao estado embrionário, mas isto não deve ser compreendido unicamente em termos de fisiologia humana, mas também em termos cosmológicos: o estado fetal equivale a uma regressão provisória ao mundo virtual, pré-cósmico. Outros rituais trazem à luz o simbolismo da morte iniciática. Entre alguns povos, os candidatos são enterrados ou deitados em túmulos recém cavados, ou então são cobertos de folhagens e permanecem imóveis, como mortos. Ou esfregam-nos com um pó branco a fim de que se assemelhem aos espectros. Os neófitos imitam, aliás, o comportamento dos espectros: não se servem dos dedos para comer, pegando o alimento diretamente com os dentes, como se acreditava que faziam as almas dos mortos. Por fim, as torturas a que são submetidos têm inúmeros significados, entre os quais o seguinte: o neófito torturado e mutilado é considerado torturado, esquartejado, cozido ou queimado pelos demônios senhores da iniciação, quer dizer, pelos Antepassados míticos. Os sofrimentos físicos correspondem à situação daquele que é “comido” pelo demônio fera, cortado em pedaços nas goelas do monstro O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 92 – iniciático, digerido em seu ventre. As mutilações (arrancar dentes, amputar dedos etc.) são carregadas, também, de um simbolismo da morte. A maior parte das mutilações relacionam-se com as divindades lunares. Ora, a Lua desaparece periodicamente, morre, para renascer três noites mais tarde. O simbolismo lunar enfatiza que a morte é a condição primeira de toda regeneração mística. Além das operações específicas – como a circuncisão e a sub-incisão –, fora as mutilações iniciáticas, outros sinais exteriores marcam a morte e a ressurreição: tatuagem, escarificações. Quanto ao simbolismo do renascimento místico, apresenta se sob múltiplas formas. Os candidatos recebem outros nomes, que serão daí para frente seus verdadeiros nomes. Entre algumas tribos, considera-se que os jovens iniciados esqueceram tudo de sua vida anterior; imediatamente após a iniciação são alimentados como crianças, conduzidos pela mão e ensinados de novo a como se comportar. Geralmente aprendem na selva um língua nova, ou pelo menos um vocabulário secreto, acessível somente aos iniciados. Como se vê, com a iniciação, tudo recomeça. Por vezes, o simbolismo do segundo nascimento exprime se por gestos concretos. Entre certos povos bantos, antes de ser circuncidado o jovem é objeto de uma cerimônia conhecida como “nascer de novo”. O pai sacrifica um carneiro e, três dias depois, envolve a criança na membrana do estômago e na pele do animal. Antes de ser envolvida, a criança deve subir para a cama e chorar como um recém nascido. Ela fica na pele de carneiro durante três dias. Entre o mesmo povo, os mortos são enterrados na pele dos carneiros e em posição embrionária. O simbolismo do renascimento mítico pelo revestimento ritual de uma pele de animal é encontrado, aliás, em culturas altamente evoluídas (Índia, Egito antigo). Nos quadros iniciáticos, o simbolismo do nascimento acompanha quase sempre o da Morte. Nos contextos iniciáticos, a morte significa a superação da condição profana, não santificada, a condição do “homem natural”, ignorante do sagrado, cego para o espírito. O mistério da iniciação revela pouco a pouco ao neófito as verdadeiras dimensões da existência: ao introduzi lo no sagrado, a iniciação o obriga a assumir a responsabilidade de homem. É importante ter este fato em mente: o acesso à espiritualidade traduz se, em todas as sociedades arcaicas, por um simbolismo da Morte e de um novo nascimento. Sociedades masculinas e sociedades femininas Os ritos de admissão nas sociedades masculinas utilizam as mesmas provas e reproduzem os mesmos quadros iniciáticos. Mas, conforme dissemos, pertencer a sociedades masculinas implica já uma seleção: nem todos aqueles que sofreram a iniciação da puberdade farão parte da sociedade secreta, embora todos o desejem. Para dar um exemplo, entre as tribos africanas Mandja e Banda, existe uma sociedade secreta conhecida pelo nome de Ngakola. Segundo o mito que se conta aos neófitos durante a iniciação, Ngakola era um monstro que tinha o poder de matar Mircea Eliade _________________________________________________ – 95 – em rito de passagem. Em outras palavras, para os primitivos, morre se sempre para qualquer coisa que não seja essencial; morre se sobretudo para a vida profana. Em resumo, a morte chega a ser considerada como a suprema iniciação, quer dizer, como o começo de uma nova existência espiritual. Mais ainda: geração, morte e regeneração (renascimento) foram compreendidas como os três momentos de um mesmo mistério, e todo o esforço espiritual do homem arcaico foi empregado em mostrar que não devem existir cortes entre esses três momentos. Não se pode parar em um dos três momentos. O movimento, a regeneração continuam sempre. Refaz se infatigavelmente a cosmogonia para se estar seguro de que se faz de fato alguma coisa: uma criança, por exemplo, ou uma casa, ou uma vocação espiritual. É por isso que se encontra sempre a valência cosmogônica dos ritos de iniciação. O “segundo nascimento” e a criação espiritual O quadro iniciático – quer dizer, morte para a condição profana, seguida do renascimento para o mundo sagrado, para o mundo dos deuses – também desempenha um papel importante nas religiões evoluídas. O sacrifício indiano constitui um exemplo célebre. Seu objetivo é alcançar, após a morte, o Céu, a morada dos deuses ou a qualidade de deus (devâtma). Em outras palavras, pelo sacrifício forja se uma condição sobre humana, resultado que pode ser comparado ao das iniciações arcaicas. Ora, o sacrificante deve ser previamente consagrado pelos sacerdotes, e a consagração (dikshâ) comporta um simbolismo iniciático de estrutura obstétrica; propriamente falando, a dikshâ transforma ritualmente o sacrificante em embrião, fazendo o nascer uma segunda vez. Os textos enfatizam longamente o sistema de correspondência graça ao qual o sacrificante sofre um regressus ad uterum seguido de um novo nascimento. Vejamos, por exemplo, o que diz a esse respeito o Aitareya Brâhmana (I, 3). “Os sacerdotes transformam em embrião aquele a quem concedem a consagração (dikshâ). Aspergem no com água: a água é a semente viril... Fazem no entrar no abrigo especial: o abrigo especial é a matriz de quem faz a dikshâ; fazem no entrar assim na matriz que lhe convém. Recobrem no com uma veste, a veste é o âmnio... Põem-lhe por cima uma pele de antílope negro; o córion está, de fato, por cima do âmnio... Ele tem os punhos cerrados; com efeito, o embrião tem os punhos cerrados enquanto está no ventre, a criança tem os punhos fechados quando nasce. Ele tira a pele de antílope para entrar no banho; é por isso que os embriões vêm ao mundo despojados do córion. Ele mantém a veste para entrar no mundo e é por isso que a criança nasce com âmnio por cima de si.” O conhecimento sagrado e, por extensão, a sabedoria são concebidos como o fruto de uma iniciação, e é significativo que tanto na Índia antiga como na Grécia se encontre o simbolismo obstétrico ligado ao despertar da consciência suprema. Não era sem razão que Sócrates se comparava a uma parteira: ele de fato ajudava o O Sagrado e o Profano _________________________________________________ – 96 – homem a nascer para a consciência de si, dava à luz o “homem novo”. Encontra-se o mesmo simbolismo na tradição budista: o monge abandonava seu nome de família e tornava se um “filho do Buda” (sakya putto), pois “nascera entre os santos” (ariya). Conforme dizia Kassapa ao falar de si mesmo: “Filho natural do Bem aventurado, nascido de sua boca, nascido do dbamma (a Doutrina), formado pelo dbammà” etc. (Samyutta Nikâya, 11, 221). O nascimento iniciático implicava a morte para a existência profana. O esquema conservou se tanto no hinduísmo como no budismo. O iogue “morre para esta vida” a fim de renascer para um outro modo de ser: aquele é representado pela libertação. O Buda ensinava o caminho e os meios de morrer para a condição humana profana – quer dizer, para a escravidão e a ignorância – e renascer para a liberdade, para a beatitude e para o incondicionado do nirvana. A terminologia indiana do renascimento iniciático lembra, às vezes, o simbolismo arcaico do “novo corpo” que o neófito obtém graças à iniciação. O próprio Buda o proclama: “Mostrei aos meus discípulos os meios pelos quais eles podem criar, a partir deste corpo (constituído pelos quatro elementos, corruptíveis), um outro corpo de substância intelectual (râpim manomayan), completo com todos os membros e dotado de faculdades transcendentais (abbinindriyam).” O simbolismo do segundo nascimento ou da geração como acesso à espiritualidade foi retomado e valorizado pelo judaísmo alexandrino e pelo cristianismo. Fílon utiliza abundantemente o tema da geração para falar do nascimento a uma vida superior, a vida do espírito (cf. por ex., Abraham, 20, 99). Por sua vez, S. Paulo fala de “filhos espirituais”, dos filhos que ele procriou pela fé. “Tito, meu verdadeiro filho na fé que nos é comum” (Epístola a Tito, I:4). “Rogo-te por meu filho Onésimo, que gerei na prisão... (Epístola a Filémon, 10). Inútil insistir nas diferenças entre os “filhos” que S. Paulo “gerou na fé” e os “filhos do Buda”, ou aqueles que Sócrates “partejava”, ou ainda os “recém nascidos” das iniciações primitivas. As diferenças são evidentes. Era a própria força do rito que `matava” e “ressuscitava” o neófito nas sociedades arcaicas, do mesmo modo que a força do rito transformava em “embrião” o sacrificante hindu. O Buda, pelo contrário, “engendrava” por “sua boca”, quer dizer, pela comunicação de sua doutrina (dbamma); era graças ao conhecimento supremo revelado pela dbamma que o discípulo nascia para uma vida nova, capaz de o conduzir até o limiar do nirvana. Sócrates, por sua vez, não pretendia mais do que exercer o ofício de uma parteira: ajudava a “parir” o homem verdadeiro que cada um trazia no mais profundo de si próprio. Para S. Paulo, a situação é diferente: ele engendrava “filhos espirituais” pela fé, quer dizer, graças a um mistério fundado pelo próprio Cristo. De uma religião a outra, de uma gnose ou sabedoria a outra, o tema imemorial do segundo nascimento enriquece se com novos valores, que mudam às vezes radicalmente o conteúdo da experiência. Permanece, porém, um elemento comum, um invariante, que se poderia definir da seguinte maneira: o acesso à vida espiritual implica sempre a morte para a condição profana, seguida de um novo nascimento. Mircea Eliade _________________________________________________ – 97 – O sagrado e o profano no mundo moderno Embora tenhamos insistido na iniciação e nos ritos de passagem, não pretendemos ter esgotado o assunto; conseguimos apenas esclarecer alguns aspectos essenciais: E contudo, ao falar um pouco mais longamente da iniciação, tivemos de omitir uma série de situações sócio religiosas muito importantes para a compreensão do homo religiosus: não falamos, por exemplo, do soberano, do xamã, do sacerdote, do guerreiro etc. Quer dizer que este trabalho é forçosamente sumário e incompleto: constitui apenas uma introdução muito rápida a um tema imenso. Tema imenso, porque, como já dissemos, não interessa unicamente ao historiador das religiões, ao etnólogo, ao sociólogo, mas também ao historiador, ao psicólogo, ao filósofo. Conhecer as situações assumidas pelo homem religioso, compreender seu universo espiritual é, em suma, fazer avançar o conhecimento geral do homem. É verdade que a maior parte das situações assumidas pelo homem religioso das sociedades primitivas e das civilizações arcaicas há muito tempo foram ultrapassadas pela História. Mas não desapareceram sem deixar vestígios: contribuíram para que nos tornássemos aquilo que somos hoje; fazem parte, portanto, da nossa própria história. Como repetimos em várias ocasiões, o homem religioso assume um modo de existência específica no mundo, e, apesar do grande número de formas histórico religiosas, este modo específico é sempre reconhecível. Seja qual for o contexto histórico em que se encontra, o homo religiosus acredita sempre que existe uma realidade absoluta, o sagrado, que transcende este mundo, que aqui se manifesta, santificando o e tornando o real. Crê, além disso, que a vida tem uma origem sagrada e que a existência humana atualiza todas as suas potencialidades na medida em que é religiosa, ou seja, participa da realidade. Os deuses criaram o homem e o Mundo, os Heróis civilizadores acabaram a Criação, e a história de todas as obras divinas e semi-divinas está conservada nos mitos. Reatualizando a história sagrada, imitando o comportamento divino, o homem instala se e mantém se junto dos deuses, quer dizer, no real e no significativo. É fácil ver tudo o que separa este modo de ser no mundo da existência de um homem a religioso. Há antes de tudo o fato de que o homem a religioso nega a transcendência, aceita a relatividade da “realidade”, e chega até a duvidar do sentido da existência. As outras grandes culturas do passado também conheceram homens a religiosos, e não é impossível que esses homens tenham existido até mesmo em níveis arcaicos de cultura, embora os documentos não os registrem ainda. Mas foi só nas sociedades européias modernas que o homem a religioso se desenvolveu plenamente. O homem moderno a religioso assume uma nova situação existencial: reconhece se como o único sujeito e agente da História e rejeita todo apelo à
Docsity logo



Copyright © 2024 Ladybird Srl - Via Leonardo da Vinci 16, 10126, Torino, Italy - VAT 10816460017 - All rights reserved