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Guias e Dicas
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McCallum, Cecília , Notas de estudo de Antropologia

INTIMIDADE COM ESTRANHOS: UMA PERSPECTIVA KAXINAWÁ SOBRE CONFIANÇA E A CONSTRUÇÃO DE PESSOAS NA AMAZÔNIA

Tipologia: Notas de estudo

2016

Compartilhado em 18/03/2016

fabiola-souza-18
fabiola-souza-18 🇧🇷

4.6

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Baixe McCallum, Cecília e outras Notas de estudo em PDF para Antropologia, somente na Docsity! MANA 19(1): 123-155, 2013 INTIMIDADE COM ESTRANHOS: UMA PERSPECTIVA KAXINAWÁ SOBRE CONFIANÇA E A CONSTRUÇÃO DE PESSOAS NA AMAZÔNIA Cecilia McCallum In memoriam Francisco Lopes da Silva, cujo nome verdadeiro era Bixku, conhecido como “Pancho Kaxinawá” (1938-2006) Introdução A questão da intimidade tem sido central para os debates sobre socialidade e sobre a noção de pessoa na literatura sobre os povos das terras baixas da Amé- rica do Sul.1 Ao longo das últimas décadas, os etnógrafos desenvolveram e chegaram a confrontar diferentes abordagens para a análise de corpos sociais e fisiológicos que diferem, marcadamente, em relação ao status heurístico da intimidade, retratada ou como parte constitutiva de sua configuração ou, alternativamente, como seu efeito. Estas abordagens conflitantes se apoiam em uma concepção comum de intimidade como resultado de interações pro- longadas entre sujeitos humanos e conscientes, de tal forma que é associada com a mutualidade, a convivência e a socialidade vivida em comunidades estruturadas por laços de parentesco e afinidade. Para um tipo de análise, a intimidade é a engrenagem da construção da ordem social, enquanto para o outro, trata-se de um epifenômeno de processos estruturantes mais amplos que se alimentam de fontes externas àqueles domínios sociais em que sujeitos humanos interagem. Eduardo Viveiros de Castro, figura-chave para o desenvolvimento desta última abordagem, cunhou a primeira como “a economia moral da intimidade” e batizou a sua própria como “a economia simbólica da alte- ridade” (Viveiros de Castro 1996a).2 Ele sugeriu que a primeira enfatiza a solidariedade conseguida moralmente e privilegia a discussão de relações sociais internas de grupos concebidos como mônadas sociais em detrimento de redes mais amplas de relações. Acusa seus criadores, nomeadamente * INTIMIDADE COM ESTRANHOS124 Joanna Overing e alguns de seus ex-alunos, de uma visão irenista da socia- lidade amazônica, que a reduz “[a]o doméstico”.3 A seu ver, ela contribuiu para o “estudo da filosofia social e a prática da socialidade cotidiana”, mas, ele acrescenta em tom crítico, [...] valoriza teoricamente a produção sobre a troca, as práticas de mutualida- de sobre as estruturas de reciprocidade, e a ética da consanguinidade sobre a simbólica da afinidade. Apesar de sua rejeição à noção de sociedade como totalidade a priori dotada de uma racionalidade estrutural transcendente, este estilo, com sua visão essencialmente moral da socialidade, não deixa de ter analogias curiosas com a concepção fortesiana da Amity [...]. Por fim, a crítica cerrada à oposição público/doméstico [...] traduziu-se, não poucas vezes, em uma redução da sociedade ao nível doméstico (Viveiros de Castro 2002:335). A abordagem alternativa da “economia simbólica da alteridade” é um desenvolvimento do estruturalismo lévi-straussiano que enfatiza o quadro sociocosmológico generativo mais amplo da vida social. Aqui, a produção da socialidade é vista como determinada em primeira instância pelas relações de alteridade, de tal modo que o externo engloba o interno, e o distante estabelece as condições de existência para a intimidade. Viveiros de Castro sintetiza: Interessados nas inter-relações entre as sociologias e as cosmologias nativas, estes pesquisadores concentraram-se nos processos de troca simbólica (guer- ra e canibalismo, caça, xamanismo, rituais funerários) que, ao atravessarem fronteiras sociopolíticas, cosmológicas e ontológicas, desempenham um papel constitutivo na definição de identidades coletivas. Isso desembocou em uma crítica da noção de Sociedade como mônada fechada e autossubsistente [...]. Esta vertente explorou os significados múltiplos da categoria da afinidade nas culturas amazônicas (tema que aparece também em autores como Rivière ou Overing, mas de forma emicamente negativa) sugerindo seu valor de operador sociocosmológico central (Viveiros de Castro 1993) e buscando determinar a tensão entre identidade e alteridade que estaria na base dos regimes sociopo- líticos amazônicos (Viveiros de Castro 2002:335-336). Embora alguns, como Kelly Luciani (2003), tenham tratado estas dife- rentes abordagens como mero reflexo de diferenças nas ênfases teóricas, que podem ser interpretadas como complementares, outros, como Taylor (1996), distinguiram posições mutuamente excludentes e modelos analíticos muito diferentes. Em reação ao endurecimento da postura crítica dos adeptos do INTIMIDADE COM ESTRANHOS 127 linhas do atual entendimento de parentesco: no sentido fenomenológico de ser o fruto de significativas práticas intersubjetivas”. A discussão a seguir vai ao encontro desta observação, rumo a uma exploração da fenomenologia huni kuin e seu papel na imbricação instável de confiança e intimidade. Ela mostra que a confiança e a falta de confiança de outros, tanto íntimos quanto estranhos, partilham das mesmas origens, e que estas origens não são morais ou epistemológicas em um sentido abstrato. De fato, os Huni Kuin não são filósofos morais. Pelo contrário, confiança e desconfiança acontecem como eventos fenomenológicos e são pensados e tratados desta forma, isto é, associados a afetos e propriedades que são materialmente incorporados à pessoa ao longo do tempo e extrapolados em pensamento e ação intencionais. Como eventos epistemológicos, também são corporais. Explico estes pontos a seguir. Estranhos íntimos Enquanto os Nawa (estrangeiros, não humanos, estranhos) são invaria- velmente indignos de confiança, com algumas exceções, os Huni Kuin se reconhecem como potencial e variavelmente inconstantes.8 Depois de dois anos vivendo com os Huni Kuin, percebi a mim mesma como uma Nawa transformada, parcialmente domesticada (McCallum 2010b). Quando otimis- ta, sentia que poderia afirmar ter incorporado algo do modo de vida deles e, portanto, ser digna de sua confiança (uma condição que eu imaginava, com otimismo, que fosse recíproca). Então, foi com desgosto que vivenciei essa inconstância, em 1991, durante uma visita ao Acre, onde cerca de metade da população huni kuin reside. Pancho Lopes, o líder da aldeia Recreio, na Área Indígena Alto Purus,9 onde eu vivera durante os anos 1980, me fez uma promessa e em seguida a renegou. Foi assim que eu descobri que não poderia confiar em uma pessoa que fora um informante-chave, importante para o sucesso de minha pesquisa de doutorado e que, por volta de oito anos antes do episódio relatado, deliberadamente me incluíra em seu círculo de confiança, como seu xanu, ou parente por afinidade, bem como me aceitara como corresidente de sua família. Era 1991. Cheguei a Rio Branco, Acre, e então, como determina a legislação, me reportei à unidade local da Funai.10 Lá eu soube que uma nova regra obrigava potenciais pesquisadores visitantes de áreas indígenas a obterem consentimento prévio de um líder local. Pancho, por acaso, estava na cidade e prometeu apoio à viagem que eu planejava a Recreio. No en- tanto, quando fui ao escritório da Funai para obter a autorização final para INTIMIDADE COM ESTRANHOS128 a visita, um funcionário informou que ele tinha recusado. Com um sorriso (que eu senti) maldoso, o burocrata acrescentou: “Ele disse que dará o seu consentimento somente depois que você obtiver U$100.000 em dinheiro para o desenvolvimento da aldeia”.11 Mais tarde, queixei-me para o sobrinho de Pancho, Paulo Lopes, (meu epa — BS/genro) sobre as ações de seu tio, ao que ele deu de ombros e respondeu simplesmente, “Meu tio é assim — um dia ele é bom, outro mau”. Em que sentido huni kuin específico uma pessoa pode ser tanto boa quanto má, ou flutuar entre os dois? Ao longo deste artigo, demonstrarei que o comentário de Paulo pode ser remetido a uma teoria particular de agência dos Huni Kuin, que sustenta que capacidades particulares de agir permeiam o corpo (yura) em um sentido material (McCallum 2001). A agência posta em movimento numa ação correta é tanto uma condição quanto uma conse- quência do fazer de corpos “reais”, isto é, corpos capazes de se envolverem em ação produtiva e reprodutiva. Ser propriamente humano — ou, colocado de outra forma, a pessoalidade — depende desse conhecimento e dessa capacidade incorporados. Pancho me decepcionou, apesar de tudo o que havia feito no passado, no sentido de fazer de mim uma pessoa mais real, quer dizer, apesar de ter passado alguns anos transformando o meu yura nawa original numa entidade mais amena, mais compatível com os estilos huin kuin de socia- lidade. Era um trabalho feito de tal forma que eu seria capaz de contribuir positivamente para a constituição contínua da vida social em Recreio. Ao longo de meu trabalho de campo para o doutoramento e em várias visitas de pesquisa posteriores, travei muitas discussões com o líder, fui acompa- nhada por ele, viajei com ele, brinquei com ele como faz a xanu (prima cruzada) de um homem (McCallum 1997). Desde os primeiros momentos em que pisei nos barrancos do rio Purus, eu dependi de seu apoio. Vivi em sua casa por muitos meses. Depois que me mudei para a minha própria habitação, a uns 20 metros de distância, continuei a fazer as refeições com ele e sua família. Em troca, ofereci o que podia: afora presentes, trabalhei com sua família quando ele esteve fora, ajudando a preparar a comida e a servi-la, colhendo com suas mulheres e filhas em suas roças, bem como, às vezes, executando outras tarefas que ele me pedia (tais como cuidar da loja cooperativa da aldeia, ou ensinar habilidades literárias a meninas adolescentes).12 Ele via muitas vantagens em minha presença e muitas vezes procurou explorar meu poder percebido como nawa para benefício próprio ou dos habitantes da aldeia (McCallum 2010b). Compartilhávamos interesses — ele também buscava saber mais sobre os modos e a história huni kuin. Tudo isso me proveu de INTIMIDADE COM ESTRANHOS 129 uma diminuta medida de intimidade compartilhada, lembrada e incorporada, tanto a partir da minha visão quanto da dele. Na perspectiva huni kuin, em meu corpo, tal intimidade é registrada como xinan — um termo que pode ser traduzido como “pensamento”, “me- mória” e também “confiança”.13 Quanto ao nosso próprio relacionamento, não poderia dizer que eu xinan Pancho, no sentido de que eu realmente “confiava” nele, mas seria mais correto dizer que eu “sabia, reconhecia, lembrava, pensava” nele — e ainda o faço. Quando Paulo disse que seu tio era às vezes mau, ele não estava brin- cando. De acordo com o relato do próprio Pancho, seu passado era marcado por disputas. Até o final dos anos 1970, ele morara em Balta, no rio Curanja, um afluente peruano do rio Purus. Ele me disse que sua migração rio abaixo para o lado brasileiro da fronteira fora motivada por uma disputa com um corresidente a quem ele acusara de ter agido como envenenador. Ele também alegou, em nossas primeiras semanas de relação, que ele mesmo assassinara diversas pessoas antes de sua conversão ao cristianismo evangélico. Pancho levou sua conversão a sério. Na primeira vez em que morei em sua casa, ele gostava de sintonizar uma estação de rádio evangélica de madrugada para ouvir os sermões e organizava cultos regularmente, decla- Figura 1 – Pancho lendo o Novo Testamento no Dia de Finados, Recreio, novembro de 1984 (© Cecilia McCallum) INTIMIDADE COM ESTRANHOS132 Pancho era visto de forma ambivalente por seus parentes e afins. Ele podia ser dominador, exageradamente autoritário e (na visão de muitos corresidentes) às vezes encarnava as qualidades antissociais dos chefes Nawa (não Huni Kuin), os patrões que em certa época dominavam de forma autocrática os seringueiros endividados na maior parte do estado do Acre.18 Em minha última visita a Recreio, em 1990, a aldeia já se dividira em vários outros assentamentos, quase uma década depois de sua fundação. De fato, como muitos outros consanguíneos próximos e parentes por afinidade, que tinham tido uma longa história de corresidência com Pancho, o próprio Paulo não mais vivia com seu tio. À época em que a antropóloga Elsje Lagrou visitou o lugar pela última vez, em 1995, Pancho, cujas qualidades agora tinham sido superadas pelos atributos negativos, vivia “sozinho” com suas mulheres, filhos mais novos não casados, uma filha casada e seu genro.19 Seus filhos adultos não viviam com ele. Depois de anos ou décadas de intimidade, as condições para sua renovação tinham evaporado. Os aldeões saíram para fundar assentamentos menores e Recreio se dividiu. Embora os parentes insatisfeitos ou insultados possam, em momentos de confronto, se distanciar de parentes com quem estão em conflito, Pan- cho não era mais nem menos Huni Kuin como resultado desta separação ou no momento em que agiu como catalisador para a formação da aldeia. A expressão “Huni Kuin” não é limitada a um grupo de pessoas que vivem coletivamente, nem simplesmente parte de um discurso normativo, mas remete a um processo histórico de construção corporal, que é a um só tem- po singular e plural, como ficará claro a seguir. O que era tão especial em Pancho que fazia dele um líder tão bem-sucedido? E por que seus parentes acabaram perdendo a fé nele? Para responder a estas questões, retorno ao tópico do corpo e da incorporação do pensamento/confiança. A pessoa cumulativa Os Huni Kuin não vão tão longe quanto os Huaorani, que consideram as crianças como “hóspedes” ao nascer, antes que o tempo e a intimidade operem sua transformação em parentes (Rival 1998). Eles consideram que humanos não nascem prontos: são feitos, devagar e cumulativamente, pela modelagem progressiva e deliberada da forma e do conteúdo do corpo: ossos, dentes, carne e pele da criança. Isto acontece por sua imersão em campos sensoriais de som, visão, cheiro e toque cheios de significado. O conheci- mento e a memória são integrados materialmente ao corpo por uma série de técnicas mundanas ou especiais, como parte de experiências ordinárias INTIMIDADE COM ESTRANHOS 133 ou extraordinárias no mundo ao redor, de modo a formar Pessoas/Homens (Huni) Reais (Kuin) que são capazes de agir no mundo e interagir com outros de forma adequada, produtiva (real, verdadeira) (McCallum 1996b, 2001). As capacidades assim estimuladas, que chamei alhures de “agência”, são vistas como conhecimento e gênero incorporados, ou seja, feitos carne e osso. Um homem de verdade (huni kuin) e uma mulher de verdade (ainbu kuin) passaram por experiências que permitiram que incorporassem dife- rentes conjuntos de capacidades, de tal forma que, como pessoas vivas, são igualmente humanos, mas distintos em termos de gênero. Assim, embora gênero não seja essência, não seja “biologicamente determinado”, se assenta materialmente no corpo como uma capacidade para a ação moral e social. É instilado de forma diferente em qualquer pessoa de verdade e, como outros resíduos de experiência, faz parte de sua (dele ou dela) individualidade existencial (McCallum 2001). Esta é uma abordagem empírica da pessoalidade (cada corpo como o lugar de experiências passadas acumuladas) que deve ser entendida como condicionada por uma fenomenologia específica do ser — a pessoa cumulativa é tornada potente por um passado adequadamente direcionado. Cada corpo/ pessoa envolve, idealmente, um progresso estável — uma série de microadi- ções à base original sem forma — uma acumulação que é tão epistemológica e imaterial quanto material. Todo o processo tem inflexões morais (a partir da perspectiva da análise antropológica) e é estruturado no âmbito da organização das relações de parentesco e afinidade.20 As pessoas resultantes deveriam ser capazes de se engajar plenamente na constituição da socialidade vivida por meio do envolvimento com outras dessas pessoas de verdade (e outros tipos de pessoas ou pessoas potenciais) em atividades produtivas e reprodutivas. O processo envolve, portanto, uma pletora de interações com outras pessoas e entidades, e acontece em zonas ou ambientes temporais e espa- ciais distintos. Estes envolvem uma combinação de contatos externos (não humanos, outro corpo) e internos (nosso corpo), a partir dos quais a agência pode ser incorporada. Pela perspectiva da constituição de “pessoas” (huni) “verdadeiras” (kuin), as relações estratégicas envolvidas são aquelas com parentes próximos, íntimos (ou seja, relações corresidenciais, cotidianamente reforçadas). Dizer que alguém é um verdadeiro homem ou uma verdadeira mulher é dizer que sua história de se tornar uma pessoa envolveu trocas próximas com verdadeiros parentes “consanguíneos” e por afinidade. São pessoas que tanto são feitas por quem é próximo a elas quanto são capazes de fazer outros verdadeiros parentes. Não há garantia de que o produto desse processo seja a pessoa cumula- tiva ideal, uma pessoa de verdade. O progresso só é garantido pela constante INTIMIDADE COM ESTRANHOS134 atenção ao detalhe, repetições diárias de palavras e outros atos, a intermi- nável constituição do próprio corpo e daqueles dos outros. A ingestão de comida, a sensação dos remédios dentro e sobre o corpo, assim como a pin- tura da pele, o uso de roupas, redes e outros objetos, a absorção material de homilias, a externalização de habilidades em atividades produtivas geradas em interações físicas, sexuais e reprodutivas, tudo isso contribui para esta pessoalidade cumulativa. Pessoas de verdade são corpos pronominais — são o meu/o nosso yura. Tais corpos são constituídos por relações sociais e organizados no âmbito de e entre metades e seções de homônimos em gerações alternadas. Assim como os pais, os avós homônimos são figuras-chave para fazer com que crianças cresçam. Portanto, não é raro que a avó materna de uma menina, que é de sua seção de homônimos ou cujo nome pertence à mesma seção de homônimos que o de sua neta, cuide dela diariamente. Meninos desenvolvem laços próximos com o pai de sua mãe MF, com frequência corresidentes e assumindo a responsabilidade da “fabricação” dos filhos de suas filhas. O nome do MF (txai) pertence à mesma seção daqueles dos primos cruzados (também denominados de txai) do menino. Mais tarde, parceiros sexuais, idealmente primos cruzados bilaterais, continuam o processo de fazer corpos de verdade por meio da corresidência e do compartilhamento de substâncias sexuais e comida. Esse processo não se dá sem sobressaltos. Há obstáculos, problemas, desvios, partidas de diversos tipos. Doença, morte, loucura, emoções fortes e o distanciamento em relação aos que foram íntimos geram transformações no corpo, suas capacidades e seu conteúdo. Pode se tornar outro, não mais uma verdadeira pessoa — talvez um Nawa, um animal, ou um yuxin (espírito).21 O sofrimento excessivo ou o desejo pode ser mortal. O mero conhecimento de técnicas socialmente destrutivas é capaz de abalar as bases deste progresso. Uma pessoa que aprende a envenenar ou enfeitiçar a outra pode não mais atuar como um verdadeiro parente, por exemplo, porque a capacidade de matar permanece latente. Não há, desta forma, caminhos simples para a pessoalidade adequada, incorporada. A alteridade é central para o processo de se tornar uma pessoa. O crescimento resulta da colocação em contato com o que é diferente, e muitas vezes perigoso, por meio de uma diversidade de contatos relacionais: como predador ou presa, como interlocutor ou espectador, amigo ou parceiro. Uma vez que tais encontros afetam o corpo materialmente, alterando seu próprio conteúdo de forma benéfica (ou o contrário), não se pode equacionar a pessoalidade cumulativa com uma condição de identidade acabada. Cada pessoa é diferente, e assim, não há Huni Kuin iguais em essência, apenas INTIMIDADE COM ESTRANHOS 137 necessários para a criação de confiança. A memória do cuidado, do afeto, da sociabilidade assume a forma de pensamento líquido. Esses pensamentos incorporados são uma condição necessária para que se faça a intimidade social, e a qualidade do pensamento (doce ou amargo) produz diferentes resultados: a socialidade constituída ou destruída. Pensamentos-emoção podem tanto pesar numa pessoa quanto elevá-la a uma sensação aérea. A tristeza e o lamento engrossam o sangue, de modo que a pessoa se torna letárgica e pesada. A felicidade é sentida como uma leveza do ser, descrita como xinan chankan — pensamentos leves. A vida, no entanto, não pode ser baseada em mera leveza, e um líder ou pai precisa de algum peso em seu pensamento. Precisa de seriedade para dar propósito à ação, direção ao pensamento ou, poder-se-ia dizer, dar-lhe intencionalidade. É preciso uma perspectiva clara e consciente sobre os outros para motivar suas ações. Neste sentido, ser xinanika (digno de confiança) é exercer uma força centrípeta sobre um campo de intimidade, caracterizado pela memória substantiva porém instável (porque líquida). Pancho foi capaz de fazer isso ao longo dos muitos anos em que atuou mais frequentemente como um bata ibu do que como um patrão nawa. A força exercida por ele, em conjunção com suas mulheres e (posteriormente) genro e filhas, constituiu o que pode ser descrito como uma pessoa expandida, um corpo (yura) coletivo dentro do qual o fluxo de substâncias benéficas inten- cionais assume a forma de comida e fluidos sexuais, ao invés de sangue.26 A comunidade, como yura vivo, é construída na imagem do corpo preenchido de pensamento/sangue. É uma arena social em que a confiança é desejada, mas não garantida. Formado na base da colaboração conjugal, o corpo coletivo deriva de suas atividades formadoras de corpo, como crianças derivam metoni- micamente de seus pais. Neste sentido, os dois líderes, masculino e feminino, são literalmente os ibu (pais, donos) da aldeia, o que se captura na expressão traduzida como líder, xanen ibu. O pensamento empírico que resulta na noção de um corpo cumulativo, portanto, não deveria ser entendido como limitado aos confins de corpos biológicos discretos. Ele inclui um círculo de intimidade dentro de e entre certos corpos. Embora um corpo seja sempre intencional, seus pensamentos dirigidos para outros, ele pode envolver ou ao menos penetrá-los. Se esses pensamentos são doces e nascem de uma fonte sólida de memória afetiva positiva, o pensador também deve ser digno de confiança. Esta confiabilidade é uma forma de pensamento afetivo que gera tipos de ação específicos. É inerentemente instável, uma condição vinculada à sua qualidade geralmente líquida; como força agenciadora que circula no sangue, concentra-se em certos órgãos e dá energia e sentido às ações de uma pessoa em relação a outras. INTIMIDADE COM ESTRANHOS138 Esta formulação pode ser relacionada ao entendimento do corpo estabe- lecido no “perspectivismo amazônico” (Viveiros de Castro 1998; Lima 1996). A expressão se refere à sistematização da filosofia ou ontologia indígena, como se exprime na exegese e na prática da Amazônia e das terras baixas da América do Sul. Como se encontra em trabalhos anteriores de autores que escrevem sobre a “economia simbólica da alteridade”, o foco recai sobre as relações com o exterior, nas quais muitos seres se veem como humanos. Estes seres — vistos por humanos vivos como animais, espíritos ou plantas — veem a si mesmos como sujeitos humanos. Autores do perspectivismo enfatizam que cada tipo diferente de corpo está no centro daquela forma específica de ser ou ontologia. O corpo é a base da perspectiva, sua origem. Aquelas espécies que se veem como humanos também entendem possuir cultura humana. Ao invés de um cosmo composto de uma natureza única e múltiplas culturas, pesso- as indígenas pensam em algo composto por uma única cultura e múltiplas naturezas (Viveiros de Castro 1998). Em termos formais, há apenas um tipo de sujeito, que é humano. A forma indígena de expressar essa identidade formal é associar uma “alma” (ou almas) a estes humanos autoidentificados. O corpo, que é a base da distinção, envolve as almas como uma peça de roupa ou traje de mergulho passível de ser removido ou mudado. A alma pode ser transferida ou transformada em outro corpo de animal, planta ou espírito. Deve-se observar que a aplicabilidade universal desta formulação tem aceitação ampla, mas não total, entre etnógrafos de povos indígenas do conti- nente. Muitos, entretanto, (mas não todos) aceitam a presença de ontologias perspectivistas.27 O pensamento e a prática huni kuin também podem ser considerados perspectivistas, como sugere a discussão acima. Eles, assim, identificam uma variedade de plantas e animais (não todos) como huni ou gente e direcionam muito de sua energia à manutenção de fronteiras claras entre eles mesmos e essas outras “pessoas”.28 No entanto, grande parte da discussão do perspectivismo se preocupa em explorar as relações com seres de fora (caça, xamanismo), em consonância com as preocupações anteriores com a alteridade de Viveiros de Castro e outros. Mas o perspectivismo também deveria prover um suporte útil para explorar relações internas envolvendo os diferentes corpos de parentes e outros corresidentes. Não precisa se res- tringir ao foco de “processos de troca simbólica (guerra e canibalismo, caça, xamanismo, rituais funerários) que [...] atravessa(m) fronteiras sociopolíticas, cosmológicas e ontológicas” (Viveiros de Castro 1998:190). Por meio da sistematização do perspectivismo indígena, diz-se que a abordagem da “economia simbólica da alteridade” deu uma “virada ontológica” (Costa & Fausto 2010). Abundantes estudos etnográficos da INTIMIDADE COM ESTRANHOS 139 “sociocosmologia” indígena, grande parte em português, têm trazido as “ontologias” indígenas para o centro do debate. As consequências práticas da formulação antropológica do perspectivismo amazônico são extremamente diversas, como a profusão de estudos demonstra. Além do Brasil, o trabalho em ontologias semelhantes na Sibéria e alhures traz à cena comparações regionais (Willerslev 2007). De fato, o trabalho sobre o perspectivismo tem sido recebido como inovação teórica enraizada em modos indígenas de pensar (Moore & Sanders 2006). Em relação ao cenário das terras baixas da América do Sul, poucas vo- zes críticas têm se levantado, dentre as quais aquela de Terry Turner (2009), que define o perspectivismo como o último suspiro de um “estruturalismo tardio” e falho. Adotando uma postura marxista, o autor se opõe à visão de que ameríndios consideram o sujeito como formalmente idêntico em todas as espécies, ou que a diferença se localiza em corpos. Para os propositores do perspectivismo, ele escreve, “os corpos visíveis das diferentes espécies [...] não têm nada a ver com as suas identidades subjetivas como humanos” (Turner 2009:26). Ele critica a observação de Viveiros de Castro de que o espírito ou alma é a forma interna do animal, “uma intencionalidade ou sub- jetividade formalmente idêntica à consciência humana” (Viveiros de Castro 2004:465 apud Turner 2009), como consequência problemática da ideia de multinaturalismo. Se é este o caso, decorre que a roupagem externa — o corpo — é desprovido tanto de consciência quanto de humanidade. O autor prossegue ridicularizando a noção de que os corpos sejam “invólucros” ou “roupagens” para a alma ou espírito do animal. No contexto da presente discussão do corpo como nexo de intimidade e veículo de confiança, esta ideia requer atenção. Para Viveiros de Castro, o “corpo-traje de mergulho” é o locus de “afetos” — ou seja, de capacidades e disposições, formas de ser que constituem uma espécie de habitus. Este habitus é diferente para cada animal ou ser. A aparência não é medida de identidade: apenas se pode saber que um corpo é diferente de outro pela maneira como se comporta, não em função de como é na aparência. Assim, uma pessoa que come carne crua não é humana, mas, talvez, um jaguar; uma criança que range os dentes enquanto dorme está se tornando um pecari, e assim por diante. Esses corpos em processo de devir jaguar ou pecari mudam a forma de ser que eles “vestem”, por assim dizer, de acordo com as mudanças de perspectiva, isto é, os estilos de comportamento de seus corpos se alteram ao se movem para a perspectiva diferente. A trans- formação do corpo é concomitante com a mudança de ponto de vista. Pela ótica dos que estão observando, embora se possa “saber” como identificar outros corpos como aparentemente humanos, apenas os comportamentos INTIMIDADE COM ESTRANHOS142 resulta na ontologia indígena conhecida como “perspectivismo amazônico”. Este é, portanto, um modelo que também daria conta de teorias e práticas indígenas em relação à criação de elementos e relações familiares para os habitantes do mundo perceptível. A nova síntese vai além dos relatos estruturalistas, abrindo espaço para uma reconexão entre áreas de interesse de antropólogos que tinham sido separadas. Ela sugere que uma análise proveitosa procuraria relacionar “socialidade virtual” (a fonte convencional de parentesco, a esfera da alteri- dade) à “socialidade vivida” (o domínio fenomenológico, a esfera inventada da identidade). Contudo, o fantasma de um substantivismo falido assombra a apreensão do autor de estudos de “socialidade vivida”. O dualismo dinâmico é usado explicitamente para invalidar o que Viveiros de Castro (2001) chama de “visões fenomenais” ou moldadas pelo construcionismo social de relações de parentesco no contexto amazônico (uma referência ao estilo de análise dos adeptos da dita “economia moral da intimidade”). A primeira instância do processo analítico do parentesco, ele escreve, não deveria ser tomada simplesmente como relações reais entre pessoas vivas. Se este fosse o caso, a socialidade seria levada a parar onde a sociabilidade termina (Viveiros de Castro 2001:22). Pelo contrário, ao revelar a lógica conceitual por trás do pen- samento e da prática indígena, demonstra-se que o parentesco é delineado a partir de um cosmos habitado por diversos seres com quem as pessoas de verdade precisam lidar. Neste sentido, a socialidade não pode ser reduzida ao mundo do parentesco vivido, já que o último é concebido como um resultado inacabado das sucessivas diferenciações de pares de opostos. Viveiros de Castro continua a trabalhar no programa apresentado nesta síntese teórica mais recente, como também têm feito muitos outros. No entanto, é cedo para ver se o fim da polarização “economia moral da intimidade”/“economia simbólica da predação”, que seu ensaio parece prometer, pode realmente ser concretizado. Até o presente, alguns dos tópicos-chave explorados pelos analistas classificados outrora como “econo- mistas morais”, como o gênero, a produção e a sociabilidade, permanecem marginalizados ou mesmo sub-representados por aqueles que trabalham no âmbito dos parâmetros deste último modelo, como foram pelo próprio Lévi-Strauss.33 De fato, embora The Gender of the Gift, de Strathern (1988), seja uma importante fonte de ideias frescas, o próprio tema de gênero foi escalado como essencialmente desimportante para a tarefa de entender a socialidade nas terras baixas. Muitos leitores brasileiros enfatizam a preocupação de Strathern com a forma e interpretam sua análise como essencialmente estruturalista.34 INTIMIDADE COM ESTRANHOS 143 Alguns se inspiram em Descola (2001), que apresentou a visão bizarra de que o gênero é de relativa pouca importância para a compreensão da socialidade amazônica em um livro dedicado à discussão comparativa de gênero na Melanésia e na Amazônia. Recentemente, Vilaça (2011) observou que o gênero desempenha “um papel muito mais central na compreensão antropológica da socialidade na Melanésia” (:244) do que na Amazônia, onde — ela prossegue — as relações-chave para a constituição da socialidade são aquelas entre humanos e não humanos. Ela argumenta que a distinção de gênero é coberta pela distinção humano/não humano. No entanto, o perigo aqui é que o modelo do(a) analista o(a) conduz a um território muito além dos modos indígenas de entendimento e prática. Diria mais: para os próprios povos indígenas, todo processo de produção e reprodução — ou a própria vida — está centrado no corpo composto e “generizado” — ou seja, imbuído de gênero. Se o gênero é relegado desta forma, torna-se apartado da visão analítica (embora não da etnográfica). Então há perigos nesse entusiasmo estruturalista pelo divíduo na Amazônia.35 Poder-se-ia perguntar: a transposição da noção de divíduo, ao mesmo tempo em que ressalta de forma proveitosa a natureza incorporada, instável do parentesco, não levaria a uma perda de visão da natureza histó- rica e intencional (em sentido fenomenológico) da pessoalidade huni kuin? O perigo é que o leitor desatento pode ser levado a ignorar o que as pessoas indígenas dizem a respeito dos efeitos da passagem do tempo biográfico e da sedimentação da memória e do afeto. Poder-se-ia perguntar, ainda: ao dar pouca atenção, no nível do modelo, à etnografia da pessoalidade cumulati- va (a pessoa humana viva ou que já viveu, provida de gênero, imbuída de memória e habilidades adquiridas e conhecimento) em prol de uma ênfase dada ao divíduo fractal e sem gênero, é possível perceber o processo dinâ- mico no qual a socialidade vivida é constituída? O processo depende de gênero como conhecimento incorporado ou “agência”. Não é apenas como ancoragem para uma perspectiva huma- na que os Huni Kuin veem corpos, mas, quando em repouso, como ação humana potencial e, quando em movimento, sua realização ou negação. O que fazem ou não fazem é o que os torna mais ou menos aparentados, mais ou menos humanos. É este aspecto do corpo que as diversas formu- lações estruturalistas delineadas neste artigo deixaram de iluminar. Esta falta deriva em grande medida de leituras pouco generosas ou errôneas de etnógrafos que foram identificados com a “economia moral da aborda- gem da intimidade”, quando se diz que o seu trabalho endossa uma visão substantivista da pessoalidade e, portanto, uma análise essencializadora ou mesmo reificadora. INTIMIDADE COM ESTRANHOS144 A atribuição de uma visão substantivista da pessoalidade tem sérias implicações. Na antropologia social, ela atuou como a base para a ideia de que as relações sociais são mais bem entendidas como interações entre su- jeitos moral e fisicamente distintos. Se este fosse o caso, isto implicaria que a sociológica indígena baseia-se na visão de que a sociedade é o resultado de relações entre indivíduos concebidos como separados biologicamente (mesmo parecendo uma evocação estranha de um funcionalismo estrutural obsoleto) com a diferença de que estes corpos separados são “construídos culturalmente” de uma forma huni kuin única. Este não é o propósito por trás da noção da pessoa cumulativa. Pelo contrário, a expressão tem a intenção de chamar a atenção para a centralidade de uma fenomenologia especifica- mente indígena na visão dos Huni Kuin sobre a socialidade. Argumentei que a noção de pessoa cumulativa não se refere a uma totalidade acabada, o produto final de uma série de adições materiais e infinitas para um sujeito unitário e progressivamente unificado. A noção de pessoa fractal é uma forma elegante de capturar as forças centrípetas em ação — ou, de outro modo, o movimento recursivo e repetitivo de fora para dentro, a incorporação histórica ou biográfica do potencial para a ação. O que está ausente neste modelo é o corpo em movimento — no gasto de energia e conhecimento assim obtido. Muitas discussões etnográficas têm reafirmado o enquadramento de Seeger et al. (1987) da relação entre corporalidade e forma e processo so- cial na Amazônia indígena. Elas notaram que a sociológica indígena está acima de toda uma fisio-lógica, expressando-se em idioma corporal, sobre e através de corpos. Se o pensamento social se centra de fato no corpo, ele trata o corpo não como fixo ou dado, mas como algo em movimento, fluido e transformável. Recentemente, isto recebeu ênfase considerável (Vilaça 2002, 2005, 2011). O que recebeu menos atenção, seja em publicações em inglês ou em português, foram o conhecimento, as disposições e as capacidades para a ação inerentes ao corpo já moldado (mesmo que seja transformável): ou seja, um conhecimento que é tanto ativo como efetivo.36 O pensamento social se preocupa com as ações do corpo e suas capacidades para a ação, com sua habilidade para se engajar de forma bem-sucedida na produção, bem como na reprodução (Belaunde 2005). Pessoas de Verdade, com corpos cumulativos, são capazes de entrar em ação apropriada, socialmente produ- tiva, isto é, são entendidos como imbuídos de uma agência especificamente humana. A socialidade viva pode ou não ser o resultado da conjunção estru- turada (estruturante) de tais agências (dentre as quais, agências masculinas e femininas são as variáveis centrais e complementares). Então, a lógica, que é ao mesmo tempo fisiológica e social, depende de uma fenomenologia INTIMIDADE COM ESTRANHOS 147 Cecilia McCallum é professora adjunta no Departamento de Antropologia e Etnologia da Universidade Federal da Bahia. E-mail:<Cecilia.McCallum@ uol.com.br> Notas * Um enorme agradecimento a Margit Ystanes e Vigdis Broche-Due, organi- zadoras do workshop “The Entangled Tensions of Intimacy, Trust and the Social”, para o qual o presente artigo foi originalmente escrito. O evento foi organizado pelo Grupo de Pesquisa de Políticas da Pobreza (Poverty Politics Research Group) do Departamento de Antropologia Social da Universidade de Bergen, na Noruega, como parte do subprojeto “Os Efeitos da Marginalização e da Violência na Saúde Psicossocial” (“The Effects of Marginalization and Violence on Psychosocial Heal- th”), financiado pelo Conselho de Pesquisa da Noruega, e aconteceu em Bergen de 18 a 20 de maio de 2012. Resultou no livro ainda inédito intitulado Trust, Intimacy and the Social. Agradeço também aos organizadores e participantes do seminário de Antropologia da Universidade de Manchester, onde também apresentei o artigo em maio de 2012. Luisa Elvira Belaunde e Els Lagrou fizeram comentários valiosos a uma versão anterior. Sou grata a elas e aos pareceristas anônimos deste periódico. O Conselho de Pesquisa Econômica e Social (ESRC) da Grã-Bretanha, a Funda- ção Leverhulme e a Fundação Nuffield financiaram a pesquisa com os Huni Kuin entre 1983 e 1992. Toda a responsabilidade pelo resultado final é exclusivamente minha. 1 A expressão “terras baixas da América do Sul” refere-se a uma região cultural que se concentra em sociedades amazônicas, mas inclui povos tão distantes geogra- ficamente quanto os que vivem da América Central à Terra do Fogo. 2 Uma versão em português foi publicada em Viveiros de Castro (2002). 3 Estão, entre os muitos antigos alunos de Overing, além de mim, Peter Gow, Luisa Elvira Belaunde e Fernando Santos Granero. 4 Overing (1981), em um artigo muito citado, demonstrou que a contínua manutenção de comunidades endogâmicas relativamente fechadas depende da alteridade. 5 Santos Granero (2007) defende uma visão semelhante em relação à natureza infeliz e desnecessária da percepção de uma divisão entre estas duas abordagens analíticas, as quais, sugere ele, Viveiros de Castro (1998) não apresentou como ex- cludentes, nem vê como “modelos inflexíveis de socialidade amazônica nativa”. INTIMIDADE COM ESTRANHOS148 6 Nos últimos anos, líderes huni kuin pediram que sua autodenominação fosse usada ao invés de “Kaxinawá”. 7 Kensinger (1995); McCallum (2001). 8 A questão da inconstância é talvez a mais antiga da etnologia dos povos indí- genas do Brasil. Em seu capítulo sobre “a inconstância da alma selvagem”, Viveiros de Castro cita um sermão publicado em 1657 pelo jesuíta Padre Antonio Vieira, que lamentava a maleabilidade excessiva dos Tupinambás convertidos (Viveiros de Castro 2002). 9 A Área Indígena Alto Purus, que os Huni Kuin, falantes de língua pano, com- partilham com os Kulina (que falam arawã), é a maior do estado do Acre. 10 Acrônimo para Fundação Nacional do Índio. 11 Dois fatores contribuem para esta reivindicação. Um foi uma contingência — muito dinheiro desenvolvimentista estava sendo distribuído no Acre, como parte do financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento para a pavimentação da rodovia principal que conectava o estado ao restante do Brasil. Em um acordo estabele- cido com o fim de pacificar ambientalistas e outros movimentos sociais que se opunham a esta atividade, o desembolso de recursos para a estrada incluía o financiamento de projetos voltados para a “proteção” dos povos indígenas e do meio ambiente. O se- gundo fator foram as minhas próprias (malogradas) tentativas, ao longo dos dois anos anteriores, de obter fundos para um projeto apoiando os Huni Kuin do Alto Purus, que eu havia enviado a diversas ONGs, como por exemplo à Rainforest Foundation. 12 Ver McCallum 1989, 2001, 2010a, 2010b. 13 Montag (1981:405) considera “confiar” uma das traduções possíveis para o verbo xinan-. 14 Ver Vilaça (2011) sobre a conversão na Amazônia; e Vilaça (2006) para a conversão Wari’. 15 Nawa também é traduzido como “não índio/s, inimigo/s, estranho/s, espírito/s inimigo/s”, dependendo do contexto. 16 Não é minha intenção inferir que Pancho tenha sido necessariamente o perpetrador do assassinato, mas ele foi o principal suspeito. As missionárias ficaram profundamente perturbadas com estes acontecimentos. Elas me contaram os con- tornos gerais da história como forma de explicar sua decisão de não mais oferecer a casa para visitantes indígenas em Manoel Urbano. Os acontecimentos daquela noite permanecem misteriosos e, até onde sei, nenhuma acusação formal foi registrada. 17 Ver entrevista com Pancho (Kaxinawá 2006) e o seu obituário por Valle de Aquino e Iglesias (2006). INTIMIDADE COM ESTRANHOS 149 18 Ver McCallum (1990) sobre diferentes estilos pessoais das lideranças kaxinawá (huni kuin) e as relações com patrões não indígenas. 19 Esses processos de fissuras (e fusões) em assentamentos são constituídos no âmbito dos processos de socialidade vivida, tratados neste artigo através da perspectiva da fenomenologia huni kuin. A partir de uma perspectiva sociológica e histórica, eles podem ser vistos como o contexto do qual emergem a confiança e a desconfiança. O tema merece discussão mais extensa, mas isso está para além do alcance deste artigo. 20 O sistema onomástico, que incorpora oito grupos de nomeação, nos quais os nomes são transmitidos entre gerações alternadas, se integra a um sistema de metades exogâmicas. Um número limitado de nomes divide-se entre as metades Inu e Dua. Eles são concedidos de acordo com um princípio de “transmissão paralela”. Assim, uma menina herda o seu nome de uma mulher na categoria de avó materna, e um menino, de um homem na categoria de avô paterno. Práticas de casamento, fundamentais para a reprodução do sistema, são compatíveis com a terminologia de parentesco kariera. Os filhos de casamentos entre primos cruzados bilaterais herdam nomes das categorias corretas e os Kaxinawá estimulam ativamente esses casamentos “corretos” (Kensinger 1984; D’Ans 1990; McCallum 2001:21-27, 1989). 21 Para uma discussão anterior sobre o corpo huni kuin, ver McCallum 1996b. Muitos estudos etnográficos conduzidos alhures nas terras baixas da América do Sul descrevem entendimentos semelhantes da maleabilidade e da transformabilidade do corpo. Ver, por exemplo, Gow 1989; Kelly Luciani 2003; Taylor 2000; e Vilaça (2005, 2011) para uma apreciação recente. 22 Este ponto é bem estabelecido na literatura. Contudo, a consideração da pessoa cumulativa foi negligenciada, já que é frequentemente confundida com a ideia de que a noção indica uma (falsa) preocupação com a autoidentidade e uma ordem moral fixa. 23 Refiro-me à discussão proposta por Wagner na abertura de A invenção da cultura (1975). Se a ideia da antropologia reversa é tomada para pressupor que o outro é um ser humano a priori, ela então não seria aplicável estritamente ao caso dos Huni Kuin. Os Nawa são potencialmente pessoas/humanos em um gradiente de humanidade para a alteridade, em que a pessoalidade cumulativa é a pré-condição para a futura geração de socialidade vivida. No entanto, os Nawa nunca atingem plenamente a condição acumulada, material, de um ser humano de verdade. 24 Ken Kensinger, que fez pesquisa extensa e pioneira com os Huni Kuin (Ka- xinawá) peruanos, gentilmente me enviou uma fotografia de Pancho, aos 11 anos, tirada por ele quando passou pela casa dessa família mestiça. Ele também confirmou detalhes da história de Pancho sobre sua vida entre eles. 25 Meninos consomem o coração, o fígado e o sangue da jiboia para adquirir habi- lidades de caça; meninas engolem seus olhos para ver desenhos e aprender a trançá-los. Dentre outras qualidades assim adquiridas, está o xinan da cobra (Lagrou 2007:352). INTIMIDADE COM ESTRANHOS152 practices in Lowland South America. Urbana, IL: University of Illinois Press. pp. 221-251. ___. 1995. How real people ought to live: the Cashinahua of Eastern Peru. Pros- pect Heights: Waveland Press. KOHN, Eduardo. 2009. “A conversa- tion with Philippe Descola”. 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