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Guias e Dicas
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13-Geertz 1978 - descricao densa, Notas de estudo de Antropologia

Descrição Densa

Tipologia: Notas de estudo

2016

Compartilhado em 18/03/2016

fabiola-souza-18
fabiola-souza-18 🇧🇷

4.6

(15)

62 documentos

Pré-visualização parcial do texto

Baixe 13-Geertz 1978 - descricao densa e outras Notas de estudo em PDF para Antropologia, somente na Docsity! CaríruLo 1 Uma Descrição DENSA: Por uma Teoria Interpretativa da Cultura I Em seu livro Philosophy in a New Key, Susanne Langer observa que certas idéias surgem com tremendo ímpeto no panorama intelectual. Elas solucionam imediatamente tantos problemas fundamentais que pare- cem prometer também resolver todos os problemas fundamentais, esclarecer todos os pontos obscuros. Todos sc agarram a elas como um “abre-te sésamo” de alguma nova ciência positiva, o ponto central em termos conceituais em torno do qual pode scr construído um sistema de análise abrangente. A moda repen- tina de tal grande idée, que exclui praticamente tudo o mais por um momento, deve-se, diz ela, “ao fato de todas as mentes sensíveis e ativas se voltarem logo para explorá-la. Utilizamo-la em cada conexão, para todos os propósitos, experimentamos cada extensão possível de seu significado preciso, com generalizações e derivativos” Entretanto, ao nos familiarizarmos com a nova idéia, após ela se tornar parte do nosso suprimento geral de conceitos teóricos, nossas expectativas são levadas a um maior equilíbrio quanto às suas reais utilizações, e termina a sua popularidade excessiva. Alguns fanáticos persistem em sua opinião anterior sobre ela, a “cha- ve para o universo”, mas pensadores menos bitolados, depois de algum tempo, fixam-se nos problemas que a idéia gerou efetivamente. Tentam aplicá-la e ampliá-la onde ela realmente se aplica e onde é possível expandi-la, desistindo quando ela não pode ser aplicada ou ampliada. Se foi verdade uma idéia seminal, ela se torna, em primeiro lugar, parte permanente e duradoura do nosso arsenal intelectual. Mas não tem mais o escopo grandioso, promissor, a versatilidade infinita de aplicação aparente que um dia teve. A segunda lei da termodinâmica ou princípio da seleção natural, a noção da motivação inconsciente ou a organização dos meios de produção não explicam tudo, nem mesmo tudo o que é humano, mas ainda assim explicam alguma coisa. Nossa atenção procura isolar justamente esse algo, para nos desvencilhar de uma quantidade de pseudociência à qual ele também deu origem, no primeiro fluxo da sua celebridade. Não sei se é exatamente dessa forma que todos os conceitos científicos basicamente importantes se desen- volvem. Todavia, esse padrão se confirma no caso do conceito de cultura, em torno do qual surgiu todo o estudo da antropologia e cujo âmbito essa matéria tem se preocupado cada vez mais em limitar, especificar, enfocar e conter. É justamente a essa redução do conceito de cultura a uma dimensão justa, que realmente assegure a sua importância continuada cm vez de debilitá-lo, que os ensaios abaixo são dedicados, em suas diferentes formas e direções. Todos eles argumentam, às vezes de forma explícita, muitas vezes simples- mente através da análise particular que desenvolvem, em prol de um conceito de cultura mais limitado, mais especializado e, imagino, teoricamente mais poderoso, para substituir o famoso “o todo mais complexo” de E. B. Tylor, o qual, embora eu não conteste sua força criadora, parece-me ter chegado ao ponto em que confunde muito mais do que esclarece. 4 caríturo UM O pantanal conceptual para o qual pode conduzir a espécie de teorização pot-au-feu tyloriana sobre cultu- ra é evidente naquela que ainda é uma das melhores introduções gerais à antropologia, o Mirror for Man, de Clyde Kluckbobn. Em cerca de vinte e sete páginas do seu capítulo sobre o conceito, Kluckhohn conseguiu definir a cultura como: (1) “o modo de vida global de um povo”; (2) “o legado social que o indivíduo adquire do seu grupo”; (3) “uma forma de pensar, sentir e acreditar”; (4) “uma abstração do comportamento”; (5) “uma teoria, elaborada pelo antropólogo, sobre a forma pela qual um grupo de pessoas se comporta real- mente”; (6) “um celeiro de aprendizagem em comum”; (7) “um conjunto de orientações padronizadas para os problemas recorrentes”; (8) “comportamento aprendido”; (9) “um mecanismo para a regulamentação normativa do comportamento”; (10) “um conjunto de técnicas para se ajustar tanto ao ambiente externo como em relação aos outros homens”: (11) “um precipitado da história”, e voltando-se, talvez em desespero, para as comparações, como um mapa, como uma peneira e como uma matriz. Diante dessa espécie de difusão teórica, mesmo um conceito de cultura um tanto comprimido c não totalmente padronizado, que pelo menos seja internamente coerente e, o que é mais importante, que tenha um argumento definido a propor, representa um progresso (como, para ser honesto, o próprio Kluckhohn perspicazmente compreen- deu). O ecletismo é uma autofrustração, não porque haja somente uma direção a percorrer com proveito, mas porque há muitas: é necessário escolher. O conceito de cultura que eu defendo, e cuja utilidade os ensaios abaixo tentam demonstrar, é essencial- mente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significa- dos que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado. É justamente uma explicação que eu procuro, ao construir expressões sociais enigmáticas na sua superfície. Todavia, essa afirmativa, uma doutrina numa cláusula, requer por si mesma uma explicação. W O operacionismo como dogma metodológico nunca fez muito sentido no que concerne às ciências sociais e, a não ser por alguns cantos já bem varridos — o “behavorismo” skinneriano, os testes de inteligência, etc. — está agora praticamente morto. Todavia, e apesar disso, ela teve um papel importante e ainda tem uma certa força, qualquer que seja a força que sintamos ao tentarmos definir o carisma ou a alienação em termos de operações: se você quer compreender o que é a ciência, você deve olhar, em primeiro lugar, não para as suas teorias ou as suas descobertas, e certamente não para o que seus apologistas dizem sobre ela; você deve ver o que os praticantes da ciência fazem. Em antropologia ou, de qualquer forma, em antropologia social, o que os praticantes fazem é a etnografia. E é justamente ao compreender o que é a etnografia, ou mais exatamente, o que é a prática da etnografia, é que se pode começar a entender o que representa a análise antropológica como forma de conhecimento. Devemos frisar, no entanto, que essa não é uma questão de métodos. Segundo a opinião dos livros-textos, praticar a etnografia é estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário, e assim por diante. Mas não são essas coisas, as técnicas e os proces- sos determinados, que definem o empreendimento. O que o define é o tipo de esforço intelectual que ele representa: um risco elaborado para uma “descrição densa”, tomando emprestada uma noção de Gilbert Ryle. UMa DESCRIÇÃO DENSA: POR UMA TEORIA INTERPRETATIVA DA CULTURA 7 regado de toda a região, para queixar-se. Todavia, o coronel respondeu: “Nada posso fazer a respeito. Não é meu problema” Citada literalmente, como um recado numa garrafa, essa passagem indica, como qualquer outra seme- lhante o faria, um sentido correto do muito que existe na descrição etnográfica da espécie mais elementar — como cla é extraordinariamente “densa”. Nos escritos etnográficos acabados, inclusive os aqui seleciona- dos, esse fato — de que o que chamamos de nossos dados são realmente nossa própria construção das construções de outras pessoas, do que elas e seus compatriotas se propõem — está obscurecido, pois a maior parte do que precisamos para compreender um acontecimento particular, um ritual, um costume, uma idéia, ou o que quer que seja está insinuado como informação de fundo antes da coisa em si mesma ser examinada diretamente. (Mesmo revelar que esse pequeno drama ocorreu nas montanhas do Marrocos central em 1912 — é foi novamente contado aqui em 1968 — é determinar muito da nossa compreensão dele.) Nada há de errado nisso e, de qualguer forma, é inevitável. Todavia, isso leva à visão da pesquisa antropológica como uma atividade mais observadora e menos interpretativa do que ela realmente é. Bem no fundo da base fatual, a rocha dura, se é que existe uma, de todo o empreendimento, nós já estamos explicando e, o que é pior, explicando explicações. Piscadelas de piscadelas de piscadelas A análise é, portanto, escolher entre as estruturas de significação — o que Ryle chamou de códigos estabelecidos, uma expressão um tanto mistificadora, pois ela faz com que o empreendimento soe muito parecido com a tarefa de um decifrador de códigos, quando na verdade ele é muito mais parecido com a do crítico literário — e determinar sua base social e sua importância. Aqui em nosso texto, tal escolha começa- ria com o diferençar os três quadros desiguais de interpretação, ingredientes da situação — o judeu, o berbere e o francês — e passaria então a mostrar como (e por que), naquela ocasião, naquele lugar, sua co- presença produziu uma situação na qual um desentendimento sistemático reduziu uma forma tradicional a uma farsa social. O que levou Cohen a fracassar, e com ele todo o antigo padrão de relações sociais e econômicas dentro do qual ele funcionava, foi uma confusão de idiomas. Voltarei a este aforismo demasiado compacto mais tarde, bem como aos detalhes sobre o próprio texto. O ponto a enfocar agora é somente que a etnografia é uma descrição densa. O que o etnógrafo enfrenta, de fato — a não ser quando (como deve fazer, naturalmente) está seguindo as rotinas mais automatizadas de coletar dados — é uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar. E isso é verdade em todos os níveis de atividade do seu trabalho de campo, mesmo o mais rotineiro: entrevistar informantes, observar rituais, deduzir os termos de parentesco, traçar as linhas de propriedade, fazer o censo doméstico... escrever seu diário. Fazer a etnografia é como tentar ler (no sentido de “construir uma leitura de”) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencio- nais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado. 8 cartruto UM HI A cultura, esse documento de atuação, é portanto pública, como uma piscadela burlesca ou uma incursão fracassada aos carneiros. Embora uma ideação, não existe na cabeça de alguém: embora não-física, não é uma identidade oculta. O debate interminável, porque não-terminável, dentro da antropologia, sobre se a cultura é “subjetiva” ou “objetiva”, ao lado da troca mútua de insultos intelectuais (“idealista!” — “materi- alista!”; “mentalista!” — “behavorista!”; “impressionista!” — “positivista” que o acompanha, é concebi- do de forma totalmente errônca. Uma vez que o comportamento humano é visto como ação simbólica (na maioria das vezes; há duas contrações) — uma ação que significa, como a fonação na fala, o pigmento na pintura, a linha na escrita ou a ressonância na música, — o problema sc a cultura é uma conduta padronizada ou um estado da mente ou mesmo as duas coisas juntas, de alguma forma perde o sentido. O que se deve perguntar a respeito de uma piscadela burlesca ou de uma incursão fracassada aos carneiros não é qual o seu status ontológico. Representa o mesmo que pedras de um lado c sonhos do outro — são coisas deste mundo. O que devemos indagar é qual é a sua importância: o que está sendo transmitido com a sua ocorrência e através da sua agência, seja ela um ridículo ou um desafio, uma ironia ou uma zanga, um deboche ou um orgulho. Isso pode parecer uma verdade óbvia, mas há inúmeras formas de obscurecê-la. Uma delas é imaginar que a cultura é uma realidade “superorgânica” autocontida, com forças e propósitos em si mesma, isto é, reificá- ta. Outra é alegar que ela consiste no padrão bruto de acontecimentos comportamentais que de fato observa- mos ocorrer em uma ou outra comunidade identificável — isso significa reduzi-la. Todavia, embora essas duas confusões ainda existam, e sempre continuarão conosco, sem dúvida, a fonte principal de desordem teórica na antropologia contemporânea é uma opinião que se desenvolveu em reação a elas e que hoje é largamente difundida — a saber, “a cultura (está localizada) na mente e no coração dos homens”, para citar Ward Goodenough, talvez seu proponente mais famoso. Chamada diversamente de etnociência, análise componencial ou antropologia cognitiva (hesitação terminológica que reflete uma incerteza profunda), essa escola de pensamento afirma que a cultura é com- posta de estruturas psicológicas por meio das quais os indivíduos ou grupos de indivíduos guiam seu com- portamento. “A cultura de uma sociedade”, para citar novamente Goodenough, desta vez numa passagem que se tornou o locus classicus de todo o movimento, “consiste no que quer que seja que alguém tem que saber ou acreditar a fim de agir de uma forma aceita pelos seus membros” A partir dessa visão do que é a cultura, segue-se outra visão, igualmente segura, do que seja descrevê-la — a elaboração de regras sistemá- ticas, um algoritmo etnográfico que, se seguido, tornaria possível operá-lo dessa maneira, passar por um nativo (deixando de lado a aparência física). Desta forma, um subjetivismo extremo é casado a um formalismo extremo, com o resultado já esperado: uma explosão de debates sobre se as análises particulares (que surgem sob a forma de taxonomias, paradigmas, tabelas, genealogias e outras inventivas) refletem o que os nativos pensam “realmente” ou se são apenas simulações inteligentes, equivalentes lógicos, mas substantivamente diferentes do que eles pensam. Já que, num primeiro relance, essa abordagem pode parecer suficientemente próxima da que está sendo desenvolvida aqui para ser tomada por ela, é útil ser bem explícito quanto ao que as separa. Deixando de tado, por um momento, nossas piscadelas e carneiros, se tomamos, por exemplo, um quarteto de Beethoven como uma amostra de cultura, muito especial, mas suficientemente ilustrativa para estes propósitos, acredito que ninguém o identificaria com os seus arranjos musicais, com a habilidade e o conhecimento necessário UMA DESCRIÇÃO DENSA: POR UMA TEORIA INTERPRETATIVA DA CULTURA 9 para tocá-lo, com a compreensão dele que têm seus instrumentistas ou ouvintes, nem, para levar em conta en passant os reducionistas e os reificadores, com uma execução particular do quarteto ou com alguma entida- de misteriosa que transcende sua existência material, Talvez a expressão “ninguém” agui utilizada seja demasiado forte, pois sempre há os incorrigíveis. Todavia, o fato de um quarteto de Beethoven ser uma estrutura tonal desenvolvida temporalmente, uma segiência coerente de sons modulados — em suma, uma música — e não o conhecimento ou a crença de qualquer pessoa em algo, inclusive como executá-la, é uma proposição com a qual, após refletir, concordará a maioria das pessoas. Para tocar violino é necessário possuir certos hábitos, habilidades, conhecimento e talento, estar com disposição de tocar e (como piada) ter um violino. Mas tocar violino não é nem o hábito, a habilidade, o conhecimento e assim por diante, nem a disposição ou (a noção que os crentes na “cultura material” aparen- temente seguem) o próprio violino. Para fazer um tratado comercial! em Marrocos você tem que fazer certas coisas, de uma certa maneira (entre outras, enquanto canta em árabe Quranic, cortar a garganta de um cordeiro ante os membros masculinos adultos, não-aleijados, de sua tribo reunidos) e possuir certas caracte- rísticas psicológicas (entre outras, um desejo de coisas distantes). Mas um pacto comercial não é nem cortar a garganta nem o desejo, embora este seja bastante real, conforme descobriram sete parentes do nosso “xeque” Marmusha quando, numa ocasião anterior, foram por ele executados em seguida ao roubo de uma pele de carneiro esfarrapada e praticamente sem valor pertencente a Cohen. A cultura é pública porque o significado o é. Você não pode piscar (ou caricaturar a piscadela) sem saber o que é considerado uma piscadela ou como contrair, fisicamente, suas pálpebras, e você não pode fazer uma incursão aos cameiros (ou imitá-la) sem saber o que é roubar um cameiro e como fazê-lo na prática. Mas tirar de tais verdades a conclusão de que saber como piscar é piscar e saber como roubar um carneiro é fazer uma incursão aos carneiros é revelar uma confusão tão grande como, assumindo as descrições superficiais por densas, identificar as piscadelas com contrações de pálpebras ou incursão aos carneiros com a caça aos animais lanígeros fora dos pastos. A falácia cognitivista — de que a cultura consiste (para citar um outro porta-voz do movimento, Stephen Tyler) “em fenômenos mentais que podem (ele quer dizer “poderiam”) ser analisados através de métodos formais similares aos da matemática e da lógica” — é tão destrutiva do uso efetivo do conceito como o são as falácias “behavorista” e “idealista”, para as quais ele é uma correção mal concluída. Como seus erros são mais sofisticados e suas distorções mais sutis, talvez seja ainda mais do que isso. O ataque generalizado às teorias de significado constitui, desde Husserl, chegando a Wittgenstein, parte tão integrante do pensamento moderno que não é necessário desenvolvê-lo aqui mais uma vez. O que é necessário é verificar se as notícias a respeito chegam à antropologia; e em particular esclarecer que dizer que a cultura consiste em estruturas de significado socialmente estabelecidas, nos termos das quais as pesso- as fazem certas coisas como sinais de conspiração e se aliam ou percebem os insultos e respondem a eles, não é mais do que dizer que esse é um fenômeno psicológico, uma característica da mente, da personalidade, da estrutura cognitiva de alguém, ou o que quer que seja, ou dizer ainda o que é tantrismo, a genética, a forma progressiva do verbo, a classificação dos vinhos, a Common Law ou a noção de “uma praga condici- onal” (como Westermarck definiu o conceito do “ar em cujos termos Cohen apresentou sua queixa de da- nos). O que impede a nós, que crescemos piscando outras piscadelas ou cuidando de outros carneiros, de entender corretamente, num lugar como Marrocos, que o que pretendem as pessoas não é a ignorância sobre como atua a cognição (mas principalmente porque, presume-se, ela atua da mesma maneira que entre nós, e seria bem melhor se pudéssemos passar também sobre isso) como a falta de familiaridade com o universo imaginativo dentro do qual os seus atos são marcos determinados. Como já invocamos Wittgenstein, pode- mos muito bem transcrevê-lo: 12 Cariruco UM que a linha entre o modo de representação e o conteúdo substantivo é tão intraçável na análise cultural como é na pintura. E este fato, por sua vez, parece ameaçar o status objetivo do conhecimento antropológico, sugerindo que sua fonte não é a realidade social, mas um artifício erudito. Essa ameaça existe, na verdade, mas ela é superficial. A exigência de atenção de um relatório etnográfico não repousa tanto na capacidade do autor em captar os fatos primitivos em lugares distantes e levá-los para casa como uma máscara ou um entalho, mas no grau em que ele é capaz de esclarecer o que ocorre em tais lugares, para reduzir a perplexidade — que tipos de homens são esses? — a que naturalmente dão origem os atos não-familiares que surgem de ambientes desconhecidos. Isso naturalmente levanta alguns problemas sérios de verificação — ou, se “verificação” é uma palavra muito forte para uma ciência tão soft* (por mim eu preferiria “avaliação”) — de que mancira diferençar um relato melhor de um pior. Todavia, essa é tam- bém a sua melhor virtude. Se a etnografia é uma descrição densa e os etnógrafos são aqueles que fazem a descrição, então a questão determinante para qualquer exemplo dado, seja um diário de campo sarcástico ou uma monografia alentada, do tipo Malinowski, é se ela separa as piscadelas dos tiques nervosos e as pisca- delas verdadeiras das imitadas. Não precisamos medir a irrefutabilidade de nossas explicações contra um corpo de documentação não-interpretada, descrições radicalmente superficiais, mas contra o poder da ima- ginação científica que nos leva ao contato com as vidas dos estranhos. Conforme disse Thorcau, não vale a pena correr o mundo para contar os gatos de Zanzibar. V Ora, essa proposição, de que não é do nosso interesse retirar do comportamento humano justamente as propriedades que nos interessam antes de começar a examiná-lo, tem sido, por vezes, dimensionada numa grande alegação: a saber, de que uma vez que são apenas essas propriedades que nos interessam, não preci- samos nos preocupar com o comportamento, a não ser superficialmente. A cultura é tratada de modo mais efetivo, prossegue o argumento, puramente como sistema simbólico (a expressão-chave é, “em seus própri- os termos”), pelo isolamento dos seus elementos, especificando as relações internas entre esses elementos e passando então a caracterizar todo o sistema de uma forma geral — de acordo com os símbolos básicos em torno dos quais ela é organizada, as estruturas subordinadas das quais é uma expressão superficial, ou os princípios ideológicos nos quais ela se baseia. Embora se trate já de uma melhoria acentuada em relação às noções de “comportamento aprendido” e “fenômeno mental” do que é a cultura e fonte de algumas das idéias teóricas mais poderosas da antropologia contemporânea, essa abordagem hermética das coisas pare- ce-me correr o perigo de fechar (e de ser superada cada vez mais por ela) a análise cultural longe do seu objetivo correto, a lógica informal da vida real. Há pouca vantagem em se extrair um conceito dos defeitos do psicologismo apenas para mergulhá-lo, imediatamente, nos do esquematismo. Deve atentar-se para o comportamento, e com exatidão, pois é através do fluxo do comportamento — ou, mais precisamente, da ação social — que as formas culturais encontram articulação. Elas encontram-na também, certamente, em várias espécies de artefatos e vários estados de consciência. Todavia, nestes casos o significado emerge do papel que desempenham (Wittgenstein diria seu “uso”) no padrão de vida decorren- *No original, soft science, em oposição às hard sciences, de base matemática, consideradas mais exatas. UMA DescriÇÃO Desa: Po UMA TrORIA INTERPRETATIVA DA Cutura 13 te, não de quaisquer relações intrínsecas que mantenham umas com as outras. Eo que Cohen, o “xeque” e o “Capitão Dumari” estavam fazendo quando tropeçavam nos objetivos uns dos outros — fazendo o comér- cio, defendendo a honra, estabelecendo a dominação — que criou nesse drama pastoral, e é “sobre” isso que o drama surgiu, portanto. Quaisquer que sejam, ou onde quer que estejam esses sistemas de símbolos “em seus próprios termos”, ganhamos acesso empírico a eles inspecionando os acontecimentos e não arrumando entidades abstratas em padrões unificados. Outra implicação é que a coerência não pode ser o principal teste de validade de uma descrição cultural. Os sistemas culturais têm que ter um grau mínimo de coerência, do contrário não os chamaríamos sistemas, e através da observação vemos que normalmente eles têm muito mais do que isso. Mas não há nada tão coerente como a ilusão de um paranóico ou a estória de um trapaceiro. À força de nossas interpretações não pode repousar, como acontece hoje em dia com tanta freqiiência, na rigidez com que elas se mantêm ou na segurança com que são argumentadas. Creio que nada contribuiu mais para desacreditar a análise cultural do que a construção de represcntações impecáveis de ordem formal, em cuja existência verdadeira praticamen- te ninguém pode acreditar. Se à interpretação antropológica está construindo uma leitura do que acontece, então divorciá-la do que acontece — do que, nessa ocasião ou naquele lugar, pessoas específicas dizem, o que elas fazem, o que é feito a elas, a partir de todo o vasto negócio do mundo — é divorciá-la das suas aplicações e torná-la vazia. Uma boa interpretação de qualquer coisa — um poema, uma pessoa, uma estória, um ritual, uma instituição, uma sociedade — leva-nos ao cerne do que nos propomos interpretar. Quando isso não ocorre e nos conduz, ao contrário, a outra coisa — a uma admiração da sua própria elegância, da inteligência do seu autor ou das belezas da ordem euclidiana —, isso pode ter encantos intrínsecos, mas é algo muito diferente do que a tarefa que temos — exige descobrir o que significa toda a trama com os carneiros. A trama com os carneiros — a tapeação do roubo, a transferência reparadora, o confisco político deles — é (ou foi) essencialmente um discurso social, mesmo que tenha sido feito, como sugeri anteriormente, em diversos idiomas e tanto em ação como em palavras. Ao reclamar o seu “ar, Cohen invocou o pacto comercial; reconhecendo a alegação, o xeque desafiou a tribo dos ofensores; aceitando a responsabilidade, a tribo dos ofensores pagou a indenização; ansioso por demons- trar tanto aos xeques como aos negociantes quem estava no poder, o francês mostrou a mão dominadora. Como em qualquer discurso, o código não determina a conduta, e o que foi dito não precisava sê-lo, na verdade. Dada a sua ilegitimidade aos olhos do Protetorado, Cohen não precisava ser escolhido para pressionar sua queixa. Por motivos semelhantes, o xeque poderia tê-la recusado. A tribo dos ofensores, ainda resistentes à autoridade francesa, poderia considerar a incursão como “verdadeira” e lutar em vez de negociar. Os franceses, se fossem mais habiles e menos durs (como ocorreu de fato, mais tarde, sob a tutelagem senhorial do Marechal Lyautey), poderiam permitir a Cohen conservar seus carneiros, concordando — como dizemos — com a continuação do padrão de comércio e suas limitações à autoridade deles. E há ainda outras possibilidades: os Marmushas podiam ver a atuação dos franceses como um insulto muito grande, e entrar em dissidência entre eles; os franceses poderiam tentar não apenas apertar Cohen, mas impor medidas mais drásticas ao próprio xeque: e Cohen poderia ter concluído que entre os renegados berberes e os soldados “Beau Geste” não valia mais a pena fazer negócio na região montanhosa do Atlas, e retirar-se para o recinto da cidade, melhor governada. Aliás, foi mais ou menos o que aconteceu, um pouco mais tarde, quando o Protetorado avançou para uma soberania genuína. Entretanto, o ponto aquí não é descrever o que aconteceu ou não no Marrocos. (A partir desse simples incidente, pode chegar-se a complexidades enormes de experiência social.) Isso é apenas para demons- trar em que consiste um tipo de interpretação antropológica: traçar a curva de um discurso social; fixá-lo numa forma inspecionável. 14 Carttuco UM O etnógrafo “inscreve” o discurso social: ele o anota. Ao fazê-lo, cle o transforma de acontecimento passado, que existe apenas em seu próprio momento de ocorrência, em um relato, que existe em sua inscri- ção e que pode ser consultado novamente. O xegue já está morto há muito tempo, assassinado no processo de “pacificação” como o chamaram os franceses: o “Capitão Dumari”, seu pacificador, mora no Sul da França, aposentado juntamente com suas lembranças; e Cohen foi no ano passado para “casa”, para Israel, em parte como refugiado, em parte como peregrino e em parte como patriarca moribundo. Todavia, no meu sentido amplo, o que eles “disseram” uns aos outros, há sessenta anos, nos planaltos do Atlas — embora longe da perfeição — está conservado para estudo, Paul Ricoeur, de quem foi emprestada e um tanto distor- cida toda a idéia da inscrição da ação, pergunta, “O que a escrita fixa?” Não o acontecimento de falar, mas o que foi “dito”, onde compreendemos, pelo que foi “dito” no falar, essa exteriorização intencional constitutiva do objetivo do discurso graças ao qual o sagen — o dito — torna-se Aus-sage — a enunciação, o enunciado. Resumindo, o que escrevemos é 0 noema (“pensamento”, conteúdo”, “substância”) do falar. E o significado do acontecimento de falar, não o acontecimento como acontecimento. Isso não está muito bem “dito” — se os filósofos de Oxford recorrem a historietas, os fenomenológicos empregam frases longas. De qualquer forma, isso nos leva a uma resposta mais precisa à nossa indagação: “O que faz o etnógrafo” — ele escreve. Isso também pode parecer uma descoberta um tanto surpreendente e talvez até implausível para quem está familiarizado com a “literatura” corrente. Entretanto, como a respos- ta padrão à nossa questão tem sido “ele observa, ele registra, ele analisa” — uma espécie de concepção de veni, vidi, vinci do assunto — ela pode ter consegiiências bem mais profundas do que na aparência, sendo que talvez a menor delas, a de distinguir essas três fases da busca de conhecimento, pode não ser normal- mente possível, na verdade, e de fato, como “operações” autônomas elas podem nem sequer existir. A situação é ainda mais delicada porque, como já foi observado, o que inscrevemos (ou tentamos fazê-lo) não é o discurso social bruto ao qual não somos atores, não temos acesso direto a não ser marginalmente, ou muito especialmente, mas apenas àquela pequena parte dele que os nossos informantes nos podem levar a compreender. Isso não é tão fatal como soa, pois, na verdade, nem todos os cretenses são mentirosos, e não é necessário conhecer tudo para poder entender uma coisa. Todavia, isso torna a visão da análise antropoló- gica como manipulação conceptual dos fatos descobertos, uma reconstrução lógica de uma simples realida- de, parecer um tanto incompleta. Apresentar cristais simétricos de significado, purificados da complexidade material nos quais foram localizados, e depois atribuir sua existência a princípios de ordem autógenos, atributos universais da mente humana ou vastos, a priori, Weltanschauungen, é pretender uma ciência que não existe e imaginar uma realidade que não pode ser encontrada. A análise cultural é (ou deveria ser) uma adivinhação dos significados, uma avaliação das conjeturas, um traçar de conclusões explanatórias a partir das melhores conjeturas e não a descoberta do Continente dos Significados e o mapeamento da sua paisa- gem incorpórea. *Ou mais uma vez, mais exatamente, “inscreve”. Aliás, a maior parte da emografia é encontrada em livros e artigos, em vez de filmes, discos, exposições de museus, etc. Mesmo neles há, certamente, fotografias, desenhos, diagramas, tabelas e assim por diante. Tem feito falta à antropologia uma autoconsciência sobre modos de representação (para não falar de experimentos com elas). *Na medida em que reforçou o impulso do antropólogo em engajar-se com seus informantes como pessoas ao invés de objetos, a noção de “observação participante” foi uma noção valiosa. Fodavia, ela se transforma na fonte mais poderosa de má fé quando leva o antropólogo a bloquear da sua visão a natureza muito especial, culturalmente enquadrada, do seu próprio papel e imaginar- se algo mais do que um interessado (nos dois sentidos da palavra) temporário. 16 Cartruto UM premissas para sua maior relevância — se pudessem capturar o mundo amplo no pequeno — eles não teriam qualquer relevância. Todavia, isso não ocorre realmente. O Jocus do estudo não é o objeto do estudo. Os antropólogos não estudam as aldeias (tribos, cidades, vizinhanças...), eles estudam nas aldeias. Você pode estudar diferentes coisas em diferentes locais, e algumas coisas — por exemplo, o que a dominação colonial faz às estruturas estabelecidas de expectativa moral — podem ser melhor estudadas em localidades isoladas. Isso não faz do lugar o que você está estudando, Nas remotas províncias do Marrocos e da Indonésia eu lutei com as mes- mas questões com que outros cientistas sociais lutaram em lugares mais centrais — por exemplo, por que as alegações mais insistentes dos homens em favor de humanidade são feitas em termos de orgulho grupal? — e chegamos quase que à mesma conclusão. Pode acrescentar-se uma dimensão — especialmente necessária no atual clima de levante-sc-e-resolva da ciência social —, mas isso é tudo. Se você tiver que discorrer sobre a exploração das massas, há um certo valor em ter visto um meeiro javanês revolvendo a terra durante um temporal tropical ou um alfaiate marroquino bordando kajtans à buz de uma lâmpada de 20 watts. Mas a noção que isso lhe dá (e que o coloca numa situação moral vantajosa, de onde você pode olhar para os menos privilegiados eticamente) é no seu todo uma idéia que somente alguém que ficou muito tempo no mato pode ter, possivelmente. A noção de “Iaboratório natural” tem sido igualmente perniciosa, não apenas porque a analogia é falsa — que espécie de laboratório é esse onde nenhum dos parâmetros é manipulável? —, mas porque ela leva à noção de que os dados obtidos com os estudos etnográficos são mais puros, ou mais fundamentais, ou mais sólidos, ou menos condicionados (a palavra favorita é “elementar”) do que aqueles conseguidos através de outras espécies de pesquisa social. A grande variação natural de formas culturais é, sem dúvida, não apenas o grande (e desperdiçado) recurso da antropologia, mas o terreno do seu mais profundo dilema teórico: de que maneira tal variação pode enguadrar-se com a unidade biológica da espécie humana? Mas não se trata, mesmo metaforicamente, de uma variação experimental, uma vez que o contexto na qual ela ocorre varia simultaneamente com ela e não é possível (embora haja aqueles que tentam) isolar os y's dos x's para escrever a função adequada. Os famosos estudos que se propuseram mostrar que o complexo de Édipo funcionava ao contrário nas ilhas Trobriand, que os papéis do sexo estavam invertidos em Tchambuli e que faltava agressividade aos índios Pueblo (é característico que todos eles eram negativos — “mas não no Sul”), qualquer que seja a sua validade empírica, são hipóteses não “testadas e aprovadas cientificamente”. São interpretações, ou inter- pretações errôneas, como tantas outras, a que chegamos da mesma maneira que tantos outros, e tão ineren- temente inconclusivas como tantas outras, é a tentativa de investi-las da autoridade da experimentação física não passa de uma prestidigitação metodológica. Os achados etnográficos não são privilegiados, apenas particulares: um outro país do qual se ouve falar. Vê-los como qualquer coisa mais (ou qualquer coisa menos) do que isso distorce a ambos e às suas implicações para a teoria social, muito mais profundas que o simples primitivismo. Um outro país do qual se ouviu falar: o motivo por que essas descrições alongadas sobre distantes incur- sões aos carneiros têm uma relevância geral (e um etnógrafo realmente bom chegaria a ponto de dizer que espécie de carneiros eram) está no fato de fornecerem à mente sociológica material suficiente para alimen- tar. O que é importante nos achados do antropólogo é sua especificidade complexa, sua circunstancialidade. É justamente com essa espécie de material produzido por um trabalho de campo quase obsessivo de peneiramento, a longo prazo, principalmente (embora não exclusivamente) qualitativo, altamente partici- pante e realizado em contextos confinados, que os megaconceitos com os quais se aflige a ciência social contemporânea — legitimamente, modernização, integração, conflito, carisma, estrutura... significado — UMa DESCRIÇÃO DENSA: POR UMA TRORIA INTERPRETATIVA DA Cultura 17 podem adquirir toda a espécie de atualidade sensível que possibilita pensar não apenas realista e concreta- mente sobre eles, mas, o que é mais importante, criativa e imaginativamente com eles. O problema metodológico que a natureza microscópica da etnografia apresenta é tanto real como crítico. Mas ele não será resolvido observando uma localidade remota como o mundo numa chávena ou como o equivalente sociólogo de uma câmara de nuvens. Deverá ser solucionado — ou tentar sê-lo de qualquer maneira — através da compreensão de gue as ações sociais são comentários a respeito de mais do que elas mesmas; de que, de onde vem uma interpretação não determina para onde ela poderá ser impelida a ir. Fatos pequenos podem relacionar-se a grandes temas, as piscadelas à epistemologia, ou incursões aos carneiros à revolução, por que eles são levados a isso. VII O que nos leva, finalmente, à teoria. O pecado obstruidor das abordagens interpretativas de qualquer coisa —— literatura, sonhos, sintomas, culturas — é que elas tendem a resistir, ou lhes é permitido resistir, à articu- lação conceptual e, assim, escapar a modos de avaliação sistemáticos. Ou você apreende uma interpretação ou não, vê o ponto fundamental dela ou não, aceita-a ou não. Aprisionada na imediação de seu próprio detalhe, ela é apresentada como autovalidante ou, o que é pior, como validada pelas sensibilidades suposta- mente desenvolvidas da pessoa que a apresenta; qualquer tentativa de ver o que ela é em termos diferentes do seu próprio é vista como um travesti — como etnocêntrico, o termo mais severo do antropólogo para o abuso moral. É claro que isso não serve para um campo de estudo que, embora timidamente (embora eu não seja tímido quanto ao assunto, em absoluto), afirma-se como ciência. Não há qualquer razão para que seja menos formi- «dável a estrutura conceptual de uma interpretação cultural e, assim, menos suscetível a cânones explícitos de aprovação do que, digamos, uma observação biológica ou um experimento físico — nenhuma razão, exceto que os termos nos quais tais formulações podem ser apresentadas são, se não totalmente inexistentes, muito próximos disso. Estamos reduzidos a insinuar teorias porque falta-nos o poder de expressá-las. Ao mesmo tempo, deve admitir-se que há uma série de características de interpretação cultural que tor- nam ainda mais difícil o seu desenvolvimento teórico. A primeira é a necessidade de a teoria conservar-se mais próxima do terreno do que parece ser o caso em ciências mais capazes de se abandonarem a uma abstração imaginativa. Somente pequenos vôos de raciocínio tendem a ser efetivos em antropologia; vôos mais longos tendem a se perder em sonhos lógicos, em embrutecimentos acadêmicos com simetria formal. O ponto global da abordagem semiótica da cultura é, como já disse, auxiliar-nos a ganhar acesso ao mundo conceptual no qual vivem os nossos sujeitos, de forma a podermos, num sentido um tanto mais amplo, conversar com cles. À tensão entre o obstáculo dessa necessidade de penetrar num universo não-familiar de ação simbólica e as exigências do avanço técnico na teoria da cultura, entre a necessidade de apreender e a necessidade de analisar, é, em consegiiência, tanto necessariamente grande como basicamente irremovível. Com efeito, quanto mais longe vai o desenvolvimento teórico, mais profunda se torna a tensão. Essa é a primeira condição para a teoria cultural: não é seu próprio dono. Como não se pode desligar das imediações que a descrição minuciosa apresenta, sua liberdade de modelar-se em termos de uma lógica interna é muito limitada. Qualquer generalidade que consegue alcançar surge da delicadeza de suas distinções, não da amplidão das suas abstrações. 18 CarituLo Um A partir daí, segue-se uma peculiaridade no caminho: como simples tema de fato empírico, nosso conhe- cimento da cultura... culturas... uma cultura... cresce aos arrancos. Em vez de seguir uma curva ascendente de achados cumulativos, a análise cultural separa-se numa seqliência desconexa e, no entanto, coerente de incursões cada vez mais audaciosas. Os estudos constroem-se sobre outros estudos, não no sentido de que retomam onde outros deixaram, mas no sentido de que, melhor informados e melhor conceitualizados, cles mergulham mais profundamente nas mesmas coisas. Cada análise cultural séria começa com um desvio inicial e termina onde consegue chegar antes de exaurir seu impulso intelectual. Fatos anteriormente desco- bertos são mobilizados, conceitos anteriormente desenvolvidos são usados, hipóteses formuladas anterior- mente são testadas, entretanto o movimento não parte de teoremas já comprovados para outros recém- provados, ele parte de tateio desajeitado pela compreensão mais elementar para uma alegação comprovada de que alguém a alcançou e a superou. Um estudo é um avanço quando é mais incisivo — o que quer que isto signifique — do que aqueles que o precederam: mas ele se conserva menos nos ombros do que corre lado a lado, desafiado e desafiando. É por essa razão, entre outras, que o ensaio, seja de trinta páginas ou trezentas, parece o gênero natural no qual apresentar as interpretações culturais e as teorias que as sustentam e porque, se alguém procura tratados sistemáticos na área, logo se desaponta, principalmente se encontra algum. Mesmo artigos de inventário são raros aqui e, de qualquer forma, apenas de interesse bibliográfico. As principais contribuições teóricas não estão apenas no estudos específicos — o que é verdade em praticamente qualquer área —, mas é muito difícil abstraí-las desses estudos e integrá-las em qualquer coisa que se poderia chamar “teoria cultural” como tal. As formulações teóricas pairam tão baixo sobre as interpretações que governam que não fazem muito sentido ou têm muito interesse fora delas. Isso acontece não porque não são gerais (se não são gerais, não são teóricas), mas porque, afirmadas independentemente de suas aplicações, elas parecem comuns ou vazias, Pode-se, e isso é de fato como a área progride conceitualmente, assumir uma linha de ataque teórico desenvolvida em ligação com um exercício de interpretação etnográfica e utilizá-la em outro, levando-a adiante a uma precisão maior e maior relevância, mas não se pode escrever uma “Teoria Geral de Interpre- tação Cultural” ou se pode, de fato, mas parece haver pouca vantagem nisso, pois aqui a tarefa essencial da construção teórica não é codificar regularidades abstratas, mas tornar possíveis descrições minuciosas; não generalizar através dos casos, mas generalizar dentro deles. Generalizar dentro dos casos é chamado habitualmente, pelo menos em medicina e em psicologia profun- da, uma inferência clínica. Em vez de começar com um conjunto de observações e tentar subordiná-las a uma lei ordenadora, essa inferência começa com um conjunto de significantes (presumíveis) e tenta enquadrá- los de forma inteligível. As medidas são calculadas para as previsões teóricas, mas os sintomas (mesmo quando mensurados) são escrutinados em busca de peculiaridades teóricas — isto é, eles são diagnostica- dos. No estudo da cultura, os significantes não são sintomas ou conjuntos de sintomas, mas atos simbólicos ou conjuntos de atos simbólicos e o objetivo não é a terapia, mas a análise do discurso social. Mas a maneira pela qual a teoria é usada — investigar a importância não-aparente das coisas — é a mesma. Somos levados, assim, à segunda condição da teoria cultural: ela não é, pelo menos no sentido estrito do termo, profética. O diagnosticador não prediz o sarampo; ele decide que alguém o tem ou, no máximo, antecipa que alguém pode tê-lo em breve. Mas essa limitação, que é bem real, tem sido habitualmente mal compreendida e, ao mesmo tempo, exagerada, uma vez que foi assumida como significando que a interpre- tação cultural é apenas post facto: que, como o camponês na antiga história, primeiro fazemos os buracos na cerca e depois pintamos os olhos do touro em torno deles. É difícil negar que existe muito disso em torno de nós, às vezes em lugares importantes. Todavia, deve negar-se que seja esse o resultado inevitável de uma abordagem clínica ao uso da teoria.
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