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Fronteiras da Ciencia da Informação, Notas de estudo de Biblioteconomia

Este livro propõe-se a apresentar um panorama atualizado de temas que constituem o que se chama aqui de “fronteiras da ciência da informação”. Com este termo pretende-se designar tanto questões que se desenvolvem a partir da interlocução com áreas de interface interdisciplinar com o campo, como questões novas e emergentes que se colocam à própria área.

Tipologia: Notas de estudo

2015

Compartilhado em 31/01/2015

jose-paulo-dos-santos-6
jose-paulo-dos-santos-6 🇧🇷

4.7

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Baixe Fronteiras da Ciencia da Informação e outras Notas de estudo em PDF para Biblioteconomia, somente na Docsity! Sarita Albagli (Org.) FRONTEIRAS DA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO FRONTEIRAS DA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO « . bi Instituto Brasileiro de Informação lá I ict em Ciência e Tecnologia R” © 2013 Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) Copidesque e revisão texto Ana Maria Grillo Padronização de texto Margaret de Palermo Silva (IBICT) Assistentes de edição Davilene Ramos Chaves (IBICT) Gislaine Russo de Moraes Brito (IBICT) Patrícia Saldanha Coátio (IBICT) Capa Adriana Ballesté Ficha catalográfica Gabriella Lima Dantas (IBICT) Mônica Aparecida Gonçalves de Oliveira (IBICT) IBICT SAUS, Quadra 5, Lote 6,Bloco H 70070-914 – Brasília, DF www.ibict.br F935 Fronteiras da Ciência da Informação / Sarita Albagli, organizador. – – Brasília : IBICT, 2013. 260p. eISBN 978-85-7013-098-3 1. Ciência da Informação. 2. Ciência da Informação no Brasil. 3. Comunicação Científica. 4. Webometria. I. Albagli, Sarita. II. Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia. CDU 02:167 SUMÁRIO Apresentação .....................................................................................6 1 Fronteiras e horizontes da pesquisa em ciência da informação no Brasil .....7 Lena Vania Ribeiro Pinheiro 2 Sobre Comte, Durkheim e Tarde em Otlet: o papel do positivismo na consolidação dos estudos da informação ................................................34 Arthur Coelho Bezerra e Gustavo Silva Saldanha 3 Ética, política e epistemologia: interfaces da informação .........................57 Marco Schneider 4 Cultura informacional: demarcações de uma linha de estudos de cultura, informação e sociedade ............................................78 Regina Marteleto, Nanci Nóbrega e Denise Morado 5 Informação, saber vivo e trabalho imaterial ..........................................107 Sarita Albagli 6 Uma análise sobre a importância e a urgência de controle dos conteúdos em formato digital na Internet .............................................127 Aldo de Albuquerque Barreto 7 O futuro do passado: desafios entre a informação e a memória na sociedade digital ...........................................................................146 Ricardo M. Pimenta 8 Da webometria à altmetria: uma jornada por uma ciência emergente .....172 Fábio Castro Gouveia e Pamela Lang 9 Comunicação científica e redes sociais .................................................196 Eloisa Príncipe 10 Mudança no fluxo informacional e gêneros discursivos ..........................217 Maria Cecilia de Magalhães Mollica e Vânia Lisboa da Silveira Guedes 11 Capital social e biblioteca pública ........................................................236 Gilda Olinto e Ana Ligia Silva Medeiros Sobre os autores .......................................................................................257 6 APRESENTAÇÃO Este livro propõe-se a apresentar um panorama atualizado de temas que constituem o que se chama aqui de “fronteiras da ciência da informação”. Com este termo pretende-se designar tanto questões que se desenvolvem a partir da interlocução com áreas de interface interdisciplinar com o campo, como questões novas e emergentes que se colocam à própria área. Fronteiras são entendidas como interfaces interdisciplinares, a relação com “o outro” e, logo, consigo mesmo. Fronteiras são também compreendidas como aberturas, áreas de expansão e espaços de criatividade, novos espaços, espaços pioneiros, a rigor frentes que avançam no desconhecido, o qual tem de ser ainda conquistado, compreendido e assimilado. A ciência da informação tem, desde sua gênese, uma natureza interdisciplinar. Uma interdisciplinaridade que é dinâmica, que se faz no processo de relações que se estabelecem dinamicamente com outros e novos campos. Ela já nasce no contexto de mudança social, tecnológica e de transformação do próprio estatuto epistemológico das ciências em seu conjunto. É um campo que lida fundamentalmente com o fluxo, que busca e constrói seu estatuto científico no fazer e no (inter)agir. Este livro pretende somar para o esforço, do qual o Instituto Brasileiro de Informação e Ciência e Tecnologia (IBICT) e o Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação/IBICT-UFRJ têm sido pioneiros, de situar as fronteiras em movimento da ciência da informação. Esforço este em permanente construção. 9 apresentada em 1987 na Universidade de Brasília, e na tese de doutorado de Nanci Odonne (2006), sobre Lydia de Queiroz Sambaquy e a informação científica no Brasil, defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCI), convênio Ibict-UFRJ. Silva (1987) reafirma o papel de Lydia de Querioz Sambaquy como idealizadora, responsável pelo planejamento e definição do IBBD, ela que vinha de uma experiência em catalogação cooperativa no Serviço de Intercâmbio de Catalogação (SIC), do antigo Departamento Administrativo de Serviço Público (Dasp) e, posteriormente, na Fundação Getulio Vargas, atuação detalhada por Odonne (2004, 2006) e fundamental para o traçado na nova instituição, o IBBD. O relato de Odonne (2006) foca a introdução, no Brasil, de informação científica, uma nova terminologia que representava sobretudo as bibliografias e rompia com os serviços tradicionais de bibliotecas. Para a autora, nesse período estava sendo instaurado um novo modelo de fluxo de informação ou o que viria a ser definido por Frohman como regime de informação, e posteriormente aprofundado por GONZÁLEZ DE GÓMEZ (2003). Também foi Lydia de Queiroz Sambaquy a criadora do Curso de Pesquisa Bibliográfica, em 1955, como [...] um reflexo do surgimento da documentação e da bibliografia e do novo campo de trabalho aberto por essas disciplinas, para profissionais de diferentes formações que trabalhassem com informação especializada. (PINHEIRO, 1997, p. 87). Posteriormente denominado Curso de Documentação Científica (CDC), em 1964, essa experiência redundou no nascimento do mestrado em Ciência da Informação, em 1970, o primeiro na América Latina e Caribe, do IBBD em comodato com a UFRJ. Grande foi também a participação de Hagar Espanha Gomes e Célia Ribeiro Zaher. Por essa iniciativa, e por ser um instituto nacional de informação científica e tecnológica, órgão de pesquisa responsável pelas políticas da área, naturalmente integra a história da ciência da informação em nosso país. O CDC foi responsável pela introdução no Brasil, na capacitação de recursos humanos, 10 do que era denominado, à época, documentação - nos moldes do pensamento e atividades de Paul Otlet, pioneiro da ciência da informação no mundo. Assim, a criação do IBBD, em 1954, pode ser considerada um ato de vanguarda, tanto no cenário internacional como no nacional. A impressão de vanguardismo da fundação do IBBD é fortalecida ao compararmos o período de criação de institutos congêneres em países avançados, como o Canada Institute for Scientific and Technical Information (NRC-CISTI), vinculado ao Canada’s National Science, em 1945; o VINITI, na antiga União Soviética, em 1952; o Institut de l’Information Scientifique et Technique (INIST), em 1988, no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS); e o Institute for Scientific Information (ISI), nos Estados Unidos, fundado em 1960 por Eugene Garfield e adquirido pela Thomson, Reuters, em 1992. O Brasil seguiu o modelo desses institutos, em geral vinculados a um conselho nacional de ciências, como foi o caso do Ibict, até a criação, em 1985, do Ministério de Ciência e Tecnologia - a partir de agosto de 2011, Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Essa mudança ocorreu com os demais institutos de pesquisa brasileiros, anteriormente órgãos do CNPq. Encerrada a breve introdução histórica, cabe explicitar que os “horizontes” de que trata esta pesquisa estão relacionados tanto às perspectivas nacionais - e ao papel das políticas públicas de C&T do Governo, especificamente o fomento à pesquisa em ciência da informação, no CNPq - quanto aos avanços da área internacionalmente. Por sua vez, a comunidade científica deste campo, com seus grupos e projetos de pesquisa, é o núcleo da geração de pesquisas. Comunidade científica é, no conceito de Schawartzman (2001, p. 16), a partir da noção de “paradigma científico” de Khun: um grupo de indivíduos que compartilham valores e atitudes científicas e que se inter-relacionam por meio das instituições científicas a que pertencem [...] tem em comum habilitações, conhecimento e premissas tácitas sobre algum campo específico do saber. 11 O objetivo desta investigação é, pois, vislumbrar os horizontes e fronteiras das pesquisas em ciência da informação no Brasil, tomando como parâmetro análises de pesquisas na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, onde a área é, reconhecidamente, mais desenvolvida. No primeiro caso, por meio de investigações publicadas na coletânea que reuniu artigos, por sua vez, publicados em fascículos no Journal of Information Science, comemorativo dos 50 anos do Institute of Information Scientists da Grã-Bretanha. No segundo, analisando os artigos mais lidos e citados no periódico da mais importante sociedade científica desse campo, a ASIS&T, a partir de 2013 denominada Association for Information Science and Technology, título que substituiu o de American Society for Information Science and Technology, devido ao âmbito internacional que passou a ter. Portanto, o Journal of the Association for Information Science and Technology (JASIST) é credenciado como um dos mais representativos periódicos científicos desse campo do conhecimento e também por seu fator de impacto, 2,005, além de outras qualidades científicas e editoriais. No Brasil, as fontes são os projetos de pesquisa atualmente apoiados pelo CNPq, fruto do esforço dos pesquisadores dessa comunidade científica, complementados pelo estudo das categorias do Tesauro Brasileiro de Ciência da Informação,2 elaborado pela autora deste estudo, juntamente com Helena Dodd Ferrez, cujas bases teóricas sustentam a análise qualitativa dos temas mais novos, sobre os quais serão traçadas as novas fronteiras da ciência da informação. O Tesauro será lançado em versão eletrônica no segundo semestre de 2013, e em versão impressa no próximo ano. Esse instrumento tem origem na pesquisa de doutorado de Pinheiro (1997), portanto, iniciado em torno de 1992, quando foram delineadas as categorias de disciplinas da ciência da informação que viriam a formar sua espinha dorsal, numa visão epistêmica da área, agora devidamente atualizada. No percurso do amadurecimento das ideias, há mais de 20 anos, foi possível sedimentar alguns conhecimentos e, a partir daí, realizar um exercício de 2 O Tesauro Brasileiro de Ciência da Informação foi elaborado como parte do projeto Desenvolvimento e Implantação do Laboratório de Pesquisa em Comunicação Científica (Labcom), financiado pela Finep. 14 em diferentes tipos de bases de dados e sistemas, tendo a precisão e revocação como parâmetros para avaliações, além de linguagens alternativas de indexação, métodos, experimentos com gráficos e figuras de texto. Esses métodos de recuperação tornaram-se mais sofisticados com os recursos eletrônicos, e o conceito de relevância está muito presente, o que se evidencia pelo fato de continuar a ser tema de pesquisa e discussão. Na publicação, alguns temas foram pesquisados por longo período de tempo, como, por exemplo, o capítulo de Stella G. Dextre Clarke, “The last 50 years of knowledge organization: a journey through my personal archives”. As revisões podem indicar que questões como a já citada organização do conhecimento, além de história da avaliação de recuperação da informação, usuário da informação, da documentação em química à informática em química e políticas de informação estão consolidadas na área. Outras questões muito pesquisadas foram: fundamentos da ciência da informação, a virada sociológica da área, informática em saúde, informática social e pesquisa sociotécnica, evolução da recuperação da informação visual, qualificação profissional na Europa, publicações científicas eletrônicas e acesso livre, e software social. Meadows (2009) explicita que os estudos aplicados à Química, iniciados na década de 1960, correspondem a um aspecto especializado da recuperação da informação, direcionado aos componentes químicos. A informação sobre estruturas químicas evoluiu muito com os recursos da computação, a ponto de promover o desenvolvimento da informática química, que, por sua vez, contribuiu para a formação de um novo campo, a bioinformática. Eugene Garfield (2009), cientista americano e um dos pioneiros do campo, encerra a publicação. Ele também é considerado um dos pesquisadores mais criativos por algumas de suas obras, marcos na história da ciência da informação, especialmente pelas fontes e estudos que desenvolveu para análises bibliométricas e cientométricas. Merecem ser citados o Current Contents, instrumento para essas análises, além do Science Citation Index (SCI) e o periódico Journal of Citation Reports, concretizados na sua obra maior, o Institute for Scientific Information (ISI), criado em 1958. No capítulo que escreveu, cujo título expressa bem o conteúdo, 15 “How I learned to love the Brits”, Garfield reverencia os feitos históricos da ciência da informação na Grã-Bretanha, como eventos e periódicos, espaços de discussão pioneira na área, reconhecendo até a sua influência nos Estados Unidos, em justa homenagem aos seus colegas cientistas da informação britânicos. Pesquisas de Pinheiro (1997, 1998, 2005, 2006) confirmam esses dados, tanto em relação à literatura estrangeira quanto à produzida no Brasil, exceto documentação em química e informática em química, realmente pouco pesquisadas em território nacional, onde os cientistas da informação ainda não despertaram para esse tema. Inversamente, informação em medicina e saúde tem grandes avanços em nosso país, basta citar o Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde, originalmente Biblioteca Regional de Medicina (Bireme); a LILACS (Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde); o SciELO - Scientific Electronic Library Online; o Grupo de Trabalho da Ancib, Informação em Saúde; e o Programa de Pós-Graduação de Informação e Comunicação em Saúde, da Fiocruz. Para conhecermos os temas de pesquisas nos Estados Unidos, o artigo de Bar-Ilan (2012) foi um achado providencial. A autora identifica a frequência de temas dos artigos publicados em dez anos do JASIST (2013) (a partir da alteração de seu título, quando passou a incorporar a palavra Technology), portanto, um estudo bibliométrico. Tendo como fontes as maiores bases de dados - Thomson-Reuters Web of Science (WoS), Elsevier’s Scopus e Google Scholar (GS) -, foram levantados os artigos mais citados e os mais lidos, estes recuperados pelo Mendeley (gestor de referências on-line), num total de 1.459 artigos, no período de 2001 a 2010. Sua pesquisa se soma a muitas outras que a própria pesquisadora (BAR- ILAN, 2012) enumera, especialmente sobre autores e sua distribuição geográfica, além de justificar a utilização de alternativas métricas pelo feedback imediato que proporcionam. Em um artigo de abordagem inovadora das metrias, de Mu-Hsuan Huang e Yu-Wei Chang (2012), a análise de citação direta e de coautoria é utilizada para 16 identificar mudanças na interdisciplinaridade da ciência da informação, de 1978 a 2012. Entretanto, por adotar parâmetros muito diferenciados do presente estudo, não é aqui enfocado. Os resultados de Bar-Ilan são apresentados em duas tabelas, a primeira sobre os artigos mais citados. Nessa tabela, a autora aponta as frequências mais altas: artigos relacionados à Web (5), informetria (5), seguidos de análises de link (2), teoria (1) e gestão do conhecimento (1). Bar-Ilan (2012) alerta para o fato de que muitas vezes os autores leem os artigos, mas não os citam. Na literatura, identificamos estudiosos das metrias da informação e comunicação que apontam as muitas idiossincrasias que envolvem as citações e as motivam ou, inversamente, levam um autor a não citar, seja por corrente de pensamento diferente ou contrária; por não considerar de boa qualidade um artigo; por ter alguma resistência em relação ao autor, científica ou até pessoal; enfim, questões profissionais e da condição humana. A segunda tabela representa os artigos mais lidos. Sete artigos são relacionados à Web, cinco tratam de teoria, e com frequência um, três temas: análises de link, informetria e bases de dados (BAR-ILAN, 2012). Em ambas as tabelas há um dado que chama atenção e merece ser ressaltado: a presença de Tefko Saracevic, um dos mais produtivos e influentes autores da ciência da informação, com uma trajetória de mais de 40 anos, em renovação intelectual constante, buscando questões atuais e promovendo avanços na área. Entre os artigos mais lidos está o sobre relevância, um dos temas que o notabilizaram, e outro no qual é colaborador (terceiro autor), sobre busca na Web, este último o mais citado de todos, bem como um dos mais lidos. Incluído também entre os mais lidos está Chaim Zins, da University of Haifa, de Israel, devido à sua ampla pesquisa sobre conceitos na ciência da informação, publicada em três fascículos do JASIST, sendo este artigo 19 específico sobre dado, informação e conhecimento. Zins é bastante conhecido no Brasil, onde esteve em eventos da Ancib (Enancib) e mantém relações acadêmicas com o Programa de Pós-Graduação da Unesp, no qual desenvolve pesquisa com professores brasileiros. Além dele, outra importante teórica da área, Márcia Bates, está entre os mais lidos, por seu artigo sobre formas de informação. Saracevic foi professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação-PPGCI (Ibict-UFRJ) nos anos 1970 e, mais recentemente, conferencista principal das comemorações dos 40 anos do mestrado deste programa, em 2009. No Brasil, também aparece como o autor mais citado em 278 artigos da revista Ciência da Informação, do Ibict, no período de 1995 a 2003, com 36 citações; seguido de Belkin, com 34, de acordo com pesquisa de Pinto e colaboradores (2006). Nicholas J. Belkin, teórico dedicado sobretudo às questões de recuperação da informação, autor de repercussão internacional, escreveu com Robertson um dos mais densos artigos sobre informação, em 1976: “Information Science and the phenomena of information”. Entre os autores da ciência da informação, Blaise Cronin, reconhecido mundialmente, também é um dos mais citados. Além dele, destaca-se a presença de autores orientais, o que antes era raro, conforme constatou Pinheiro (1997) em sua tese, tomando como fonte o ARIST - Annual Review of Information Science and Technology. Esse fato comprova não somente a penetração dos asiáticos na economia mundial, como também o desenvolvimento científico e tecnológico da China, do Japão e outros países, como os chamados tigres asiáticos (Hong Kong, Coreia do Sul, Cingapura e Taiwan). QUESTÕES DE PESQUISA NA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO DE HOJE, NO BRASIL Para o mapeamento da literatura produzida no Brasil, a fonte escolhida foram os projetos de pesquisa apoiados pelo CNPq (Anexo A), atualmente vigentes, de um conjunto representativo de pesquisadores de ciência da informação, considerando a 20 importância desse órgão de fomento, seus rigorosos critérios de avaliação e o difícil processo de inclusão no processo. No total são 46 pesquisadores e seus respectivos projetos, cujo prazo normal é de três anos. No entanto, considerando a frequente renovação dessas pesquisas, as temáticas têm certa continuidade, reforçada por linhas de pesquisa seguidas pelos pesquisadores, o que proporciona uma visão atual das questões que predominam hoje no Brasil, e suas respectivas abordagens. Como consequência natural da concentração dos Programas de Pós- Graduação em Ciência da Informação na Região Sudeste, 32 projetos são do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, onde estão os mais antigos programas: o do Ibict, em convênio com a UFRJ, pioneiro no Brasil e na América Latina, criado em 1970; o da USP (inicialmente junto com a comunicação e, a partir de 2006, programa autônomo de ciência da informação), de 1972; e o de Minas Gerais, de 1976. Da região Nordeste são seis projetos; do Centro-Oeste, cinco, concentrados na UnB; e do Sul, apenas três. Procurando seguir as categorias de Bar-llan, para efeitos de comparação, mas fazendo as adaptações necessárias, o resultado da análise de temas dos projetos de pesquisa brasileiros, financiados pelo CNPq, que totalizam 46, foi o seguinte: 22 artigos teóricos; 12 relacionados à Web; cinco à gestão da informação; quatro sobre aspectos culturais e sociais; e três abordando comunicação científica com aplicações da informetria/bibliometria. Nos projetos de caráter teórico, quase metade refere-se à organização do conhecimento. Esse resultado é bastante semelhante ao de Bar- llan, com a diferença de que no exterior predominam os vinculados às tecnologias de informação e comunicação (TICs), e no Brasil os artigos estão mais concentrados nos estudos teóricos. Isso significa que existe convergência de temática, mas com ênfases distintas, o que já tinha sido apontado por Pinheiro e colaboradoras (2005, p. 38): [...] os resultados nos permitem afirmar que no exterior os temas com enfoque tecnológico predominam, enquanto no Brasil têm maior incidência os de caráter teórico, de gestão da informação, político e de transferência da informação, conforme podemos constatar. 21 Os projetos enfocando os aspectos sociais e culturais abordam a inclusão informacional, mudanças sociais e culturais da informação etc. O pequeno número de projetos de pesquisa dedicados à comunicação científica e informetria/bibliometria indica que esta temática - em franco crescimento no exterior, conforme atestam as publicações e pesquisas analisadas no presente estudo - parecem estar numa fase de estagnação, em nosso país. No entanto, no resultado sobre os temas ou disciplinas de artigos da revista Ciência da Informação, em 32 anos, a bibliometria aparece no topo da lista (segunda maior frequência, depois de estudos teóricos), sem esquecer que, ao mesmo tempo, também foi observado o seu declínio, em número, sobretudo a partir dos anos 2000 (PINHEIRO; BRASCHER; BURNIER, 2005, p. 38-39). Dos resultados de todas essas pesquisas analisadas, o que podemos depreender sobre o estágio atual e futuro da ciência da informação, suas novas subáreas e fronteiras interdisciplinares? Essas questões fazem parte dos dois próximos tópicos. TRAÇADOS DE NOVAS FRONTEIRAS DA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO Para a análise das novas fronteiras da ciência da informação, a fonte escolhida foi o já mencionado Tesauro Brasileiro de Ciência da Informação, partindo da sua estrutura básica inicial, de divisão de disciplinas/subáreas nas seguintes categorias, considerando a sua natureza ou função: disciplinas estruturais, disciplinas de representação ou instrumentais, disciplinas gerenciais, disciplinas tecnológicas e disciplinas socioculturais, posteriormente denominadas também de transferência de informação (PINHEIRO, 1997). Na ocasião, esse esquema não foi desenvolvido e apenas algumas disciplinas foram identificadas em cada categoria, a título de exemplo. Alguns anos depois, em 2004, a autora do presente estudo voltou a pensar esse esquema, na realidade uma classificação de ciência da informação, quando participou da pesquisa coordenada por Chaim Zins, mencionada anteriormente, “Knowledge map of information science: issues, principles, implications”, ao lado 24 NOVAS DISCIPLINAS, FRONTEIRAS E HORIZONTES DA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO As muitas pesquisas analisadas e citadas neste texto, algumas da autora desta investigação, demonstram que a trajetória da ciência da informação - da sua germinação desde os tempos de Paul Otlet à sua formulação inicial nos anos 1961/1962, passando por Vannevar Bush, entre outros - foi marcada por algumas transformações que determinaram fronteiras que se modificaram; algumas se fortaleceram e outras ficaram esmaecidas ao longo do tempo. No primeiro caso estão a ciência da computação e a Biblioteconomia, e no segundo, a psicologia e a linguística, de acordo com pesquisas de Pinheiro, sobretudo a de 2006. No entanto, a linguística, nos anos mais recentes, está retomando seu lugar na interdisciplinaridade na ciência da informação em decorrência das ontologias e da semântica. No meio do caminho, dos anos 1990 em diante, a sociedade da informação marca uma nova era, da globalização, não somente da economia, mas também por meio das TICs. Com a competitividade internacional, e sobretudo com a Internet/Web, duas disciplinas novas - a inteligência competitiva e a gestão do conhecimento - fizeram emergir uma área de forte interdisciplinaridade com a ciência da informação: a Administração (PINHEIRO, 2006). Ao mesmo tempo, a intensidade do uso dos meios eletrônicos - na ciência, nas artes, na educação e na cultura, enfim, em todos os setores da vida - impulsionou temas como bibliotecas digitais, virtuais e repositórios, ou o estudo de disciplinas como a comunicação científica e bibliometria nos meios digitais. Como consequência, os direitos do autor e a propriedade intelectual na rede, o acesso livre à informação científica, a ética na informação emergiram, trazendo sobretudo o direito e a filosofia como fundamentos. Nessa nova e mais arrebatadora “explosão da informação”, chama a atenção a intensidade das pesquisas de antigas questões, como a recuperação da informação, que mantém seu espaço no coração da ciência da informação, juntamente com a organização do conhecimento, que reúne as representações da informação (resumo, indexação, classificação etc.), além de usuários da informação e políticas 25 de informação, indispensáveis na busca da informação. Ao mesmo tempo, novas questões surgem, como arquitetura de informação, voltada ao mundo da Web, agora incorporando a multimídia e tendo como centro as imagens, daí a relevância da preservação digital, especialmente de imagens. As tecnologias não são máquinas apenas - ganharam um novo papel, humanizador, com as preocupações da interação homem-máquina e a socialização do conhecimento, e passam a ser um poderoso instrumento político, educacional e social, voltado à formação da cidadania, além da inclusão digital e informacional e a informação para usuários portadores de deficiências. Em decorrência dessa “virada sociológica”, a competência em informação e a informação para usuários com necessidades especiais conquistam maior espaço na ciência da informação. Nesse processo, a educação está de braços dados com a ciência da computação, particularmente as tecnologias assistivas, além da informática social (software social) e engenharia eletrônica. Ao comparamos as pesquisa em ciência da informação no exterior - nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha - e no Brasil, é oportuno lembrar o pensamento de Saracevic sobre as ciências em geral e sobre esta em particular: não existe uma ciência da informação nacional. Todo e qualquer campo do conhecimento cumpre os pressupostos científicos que norteiam as ciências em geral, o que difere são a ênfase e as tendências a certas questões, em determinado país, por suas circunstâncias políticas, econômicas, sociais e culturais. Assim, a ciência da informação, em seu processo de mutação, foi ganhando novos contornos que, por sua vez, a transformaram epistemologicamente e modificaram o seu papel político, educacional, social e cultural, numa amplitude jamais atingida. Quem sabe isso não a fará ganhar espaço mais expressivo entre os campos do conhecimento mais antigos, consolidados e reconhecidos no mundo da ciência? Portanto, estudar as fronteiras epistêmicas da ciência da informação é um exercício indispensável para compreendê-la como campo do conhecimento, pois a interdisciplinaridade é transformadora e as relações entre as disciplinas determinam sua nova configuração epistemológica, fenômeno comum a todos os campos. 26 REFERÊNCIAS BAR-ILAN, Judit. 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Disponível em: <http://revista.ibict. br/ciinf/i ndex.php/ciinf/article/view/131/112>. Acesso em: 13 jun. 2013. JASIST. Disponível em: <http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/asi.2013.64. issue-7/issuetoc>. Acesso em: 25 jul. 2013. MEADOWS, Jack. Fifty years of UK research in information science. In: GILCHRIST, Alan (ed.). Information Science in transition. London: Facet Publication, 2009. p. 1-21 MU-HSUAN, Huang; YU-WEI, Chang. A study of the evolution of interdisciplinarity in library and information Science: using three bibliometric methods. Journal of the American Society for Information Science and Technology, v.63, n.1, p.22-33, January 2012. Acesso em: 22/06/2013 ODDONE, Nanci. Ciência da informação em perspectiva histórica: Lydia de Queiroz Sambaquy e o aporte da Documentação (Brasil, 1930-1970). Rio de Janeiro, 29 ANEXO A CNPq: BOLSISTAS DE PRODUTIVIDADE - CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO, PROJETOS VIGENTES EM 2013 Qtde Pesquisador Nível Instituição Título de Projeto 1 Aldo de Albuquerque Barreto SR Ibict Mudança estrutural na escrita: um estudo da qualidade de documentos digitais em estoques eletrônicos específicos 2 André Porto Ancona Lopez 2 UnB Rede Fotoarq: ambiente científico virtual sobre documentos fotográficos de arquivo 3 Beatriz Valadares Cendón 1D UFMG Estudo do uso de periódicos eletrônicos: Portal Capes em universidades federais brasileiras 4 Carlos Henrique Marcondes de Almeida 2 UFF O papel das relações semânticas na organização e representação do conhecimento em ambientes digitais 5 Edberto Ferneda 2 Unesp Um método de indexação automática utilizando recursos da web semântica 6 Eduardo Ismael Murguia Marañon 2 UFF Discursividade da ciência da informação e sua institucionalização na biblioteconomia e a arquivologia 7 Ely Francina Tannuri de Oliveira 2 Unesp Produção e comunicação científica da informação em CT&I: análise bibliométrica a partir do GT7 dos Enancibs 8 Emir José Suaiden 1B UnB Estudos sobre a inclusão informacional como instrumento para a inclusão produtiva: aporte da ciência 9 Evelyn Goyannes Dill Orrico 2 Unirio A informação científica na media: a memória de um discurso identitário (Incime) 10 Gilda Olinto de Oliveira 1D Ibict Usos das tecnologias de informação e comunicação em bibliotecas públicas e desenvolvimento social 11 Guilherme Ataíde Dias 2 UFPB A ciência da informação aplicada em espaços informacionais digitais: desvendando as relações entre o direito da propriedade intelectual e a arquitetura de informação 12 Helen de Castro Silva Casarin 2 Unesp Comportamento informacional de pesquisadores em educação e sua influência sobre pós-graduandos 13 Icleia Thiesen 1D Unirio Entre informar, reter e conhecer: um estudo teórico- metodológico sobre documentos “sensíveis” (continua) 30 14 Isa Maria Freire 2 UFPB Ação de informação no Laboratório de Tecnologias Intelectuais (Lti) 15 João Batista Ernesto de Moraes 2 Unesp O percurso discursivo da ciência da informação através do estudo de periódicos da área 16 José Augusto Chaves Guimarães 1B Unesp A dimensão conceitual da organização do conhecimento no universo científico da ISKO 17 José Maria Jardim 2 Unirio A Lei de Acesso à Informação no Brasil: políticas arquivísticas, agências, atores e processos... 18 Leilah Santiago Bufrem 1D UFPE A prática da pesquisa e os quadros teóricos concorrentes no campo de produção científica em Ciência 19 Lena Vania Ribeiro Pinheiro 1B Ibict Correntes teórico-epistemológicas da Ciência da Informação no Brasil e dinâmica de afluentes e efluentes 20 Lídia Silva de Freitas 2 UFF Tecendo discursos e sujeitos: autoria e trajetos temático- discursivos dos GTs dos Enancibs - 1994 a 2012 21 Marco Antônio de Almeida 2 USP Mediações socioculturais da informação: tecnologia, inclusão e políticas culturais 22 Maria Aparecida Moura 2 UFMG Formações discursivas contemporâneas, gêneros digitais e socioterminologia 23 Maria Cláudia Cabrini Grácio 2 Unesp Análise de cocitação de autores em estudos métricos da informação no brasil 24 Maria Cristina Piumbato Innocentini Hayashi 2 UFSCAR Influmetria: as práticas e o papel dos agradecimentos na dinâmica da comunicação científica 25 Maria de Fátima Gonçalves Moreira Tálamo 2 USP Informação, bem cultural e espaços de informação 26 Maria Luiza de Almeida Campos 2 UFF Investigação sobre as bases epistemológicas e ontológicas da representação de domínios de conhecimento 27 Maria Nélida González de Gómez 1A Ibict Da validade da informação à validade dos conhecimentos. Inventariando recursos, normas e critérios 28 Mariângela Spotti Lopes Fujita 1C Unesp Política de indexação para bibliotecas 29 Marilda Lopes Ginez de Lara 1C USP Abordagens sobre a linguagem nos estudos de organização e representação do conhecimento 30 Marisa Brascher Basilio Medeiros 2 UnB Relações semânticas em sistemas de organização do conhecimento: em busca de referencial teórico (continua) ANEXO A (continuação) 31 31 Marta Lígia Pomim Valentim 2 Unesp Percepções do valor da informação: a importância da gestão da informação e do conhecimento em... 32 Miriam Figueiredo Vieira da Cunha 2 UFSC Quem forma o bibliotecário? Perfil dos professores dos cursos de biblioteconomia 33 Nair Yumiko Kobashi 1D USP Organização do conhecimento/organização da informação: emergência, condições de presença e desenvolvimento 34 Nanci Elizabeth Oddone 2 Unirio A ciência e o livro eletrônico: reinventando a comunicação científica 35 Plácida Leopoldina V. Amorim da Costa Santos 2 Unesp Descrição de recursos e acesso na Web (draw): metadados e o modelo FRBR 36 Raimundo Nonato Macedo dos Santos 2 UFPE Observatório da memória em C & T da UFPE na era virtual: a dimensão dinâmica do documento 37 Regina Maria Marteleto 1A Ibict Antropologia da informação e redes sociais na saúde 38 Rosali Fernandez de Souza 1B Ibict Área, campo e domínio do conhecimento: a organização e a representação da informação para finalidade 39 Rubens Ribeiro Gonçalves da Silva 2 UFBA Desafios e alternativas digitais p/ salvaguarda e difusão do patrim. púb. docum. arquiv. audiovisual 40 Sarita Albagli 1D Ibict Circulação e apropriação da informação e do conhecimento: tecnologia, política e inovação social 41 Silvana Aparecida Borsetti Gregorio Vidotti 2 Unesp Arquitetura de informação digital colaborativa: estudo da contribuição teórica e metodológica da CI 42 Silvana Drumond Monteiro 2 UEL As dobras do ciberespaço: da Web visível à Web profunda e os mecanismos de busca 43 Sueli Angelica do Amaral 1D UnB Marketing e inovação nos processos de gestão da informação e do conhecimento em unidades de informação para criação e validação de indicadores de desempenho para planejar, monitorar e avaliar a prestação de serviços dessas organizações 44 Suzana Pinheiro Machado Mueller 1A UnB Escolha e avaliação de periódicos das Listas Qualis/ Capes nas áreas sociais: em busca de padrões 45 Vera Lucia Doyle Louzada de Mattos Dodebei 2 Unirio Cultura digital: enquadramentos da memória em ambientes on-line 46 Virginia Bentes Pinto 2 UFC Aplicabilidade da terminologia para a representação de conceitos visando a interoperabilidade semântica Fonte: CNPq, 2013. ANEXO A (conclusão) 34 2 SOBRE COMTE, DURKHEIM E TARDE EM OTLET: O PAPEL DO POSITIVISMO NA CONSOLIDAÇÃO DOS ESTUDOS DA INFORMAÇÃO Arthur Coelho Bezerra Gustavo Silva Saldanha INTRODUÇÃO Uma das principais formas de desenvolvimento do pensamento científico consiste na observação de determinado objeto – a natureza, o universo, as sociedades – em busca de leis que expliquem a regularidade de certos aspectos ou fenômenos. No campo das ciências naturais, o conhecimento que desponta na Europa do século XVIII apoia-se na descoberta de padrões de origem natural que tenham validade universal. Assim, enquanto a biologia examina o comportamento dos organismos vivos em busca de características que apresentem alguma regularidade, a física vale-se da lógica matemática para definir leis imutáveis referentes à gravitação universal, mecânica, eletricidade e termodinâmica. Tais exemplos demonstram a importância histórica do modelo científico baseado na observação empírica e no pensamento indutivo, características que nortearam a concepção do método positivista de investigação não apenas da natureza, mas também do reino social. Desenvolvido por Auguste Comte, o positivismo lançou um olhar científico sobre os fenômenos sociais e foi fundamental para a consolidação da sociologia como disciplina autônoma na França do fim do século XIX, especialmente por meio das obras de Émile Durkheim e Gabriel Tarde. Na ciência da informação (CI) o positivismo se manifesta em diferentes práticas. Seja na construção conceitual recente da CI, após a afirmação do conceito que passa a nomear o campo no contexto sessentista do século passado, seja em 35 suas raízes filosóficas, que remontam ao citado século XIX, a filosofia positivista é evidenciada como modelo pioneiro para formalização dos estudos da informação. Desde já, cabe esclarecer que este capítulo não se propõe a uma exegese que esgote as diferentes apropriações do termo “positivismo”, cujos sentidos tomaram uma pluralidade de caminhos todavia distintos da concepção original proposta por Comte1. É a esta concepção que nos ateremos e da qual partimos, passando pelas apropriações de Durkheim e Tarde na busca das leis que regem os fatos sociais para, então, chegarmos ao olhar positivista que o filósofo Paul Otlet imprime aos estudos da informação. Para uma historiografia que se afasta das amarras e/ou das imprecisões da noção “ciência da informação”, encontramos no projeto bibliográfico de Otlet uma decisiva fonte para a compreensão do discurso do positivismo dentro dos estudos hoje predicados como “da informação”. Contemporâneo da procura pelo estabelecimento da cientificidade dos estudos sociais, o filósofo belga tomou o conceito de bibliologie de Gabriel Peignot com o propósito de construir um amplo olhar positivista a partir de uma subárea desta que seria, em sua visão, uma macrodisciplina dedicada à organização do conhecimento: a bibliografia. Entre Otlet e Comte, entre a ciência positiva e a bibliologia, existem tanto laços superficiais quanto profundos. Otlet busca realizar la sociedad positiva, científica, que Comte consideraba alcanzable en ese mundo industrial al que pertenecía Otlet. Pero esta búsqueda no la hace solo sino integrado a ese enorme grupo de científicos e intelectuales que, según estableció Comte, deberían dirigir los trabajos teóricos y prácticos de la sociedad porque sus capacidades eran adecuadas a ellos. (SANDER, 2002, p. 39, grifo nosso). 1 O leitor que tenha interesse em se aprofundar nas diferentes acepções do termo pode consultar a obra Positivism and Sociology (HALFPENNY, 1982), na qual o autor lista distintas noções de “positivismo” segundo Bacon, Comte, Spencer, Durkheim, Hempel, Popper e outros. 36 É possível estabelecer pontes entre o desenvolvimento de uma sociologia no Novecentos como contemporâneo à construção de uma metaciência social, dedicada à edificar a infraestrutura para preservação e para o fluxo dos saberes predicados como “sociais”. Essa relação está fundada, estruturalmente, no conceito de classificação, central no pensamento de Comte e também no de Otlet. A “classificação” em Comte, ainda mais próxima das classificações filosóficas, procura estabelecer um novo plano de organização da sociedade; em Otlet, busca sustentar a ordem do acesso ao conhecimento em uma escala internacional, com vistas ao progresso científico permanente, entendido como racionalização e ascensão da sociedade. Outros exercícios de revisão da presença da filosofia positivista nos estudos predicados como “da informação” já foram realizadas. Dentre os trabalhos, encontramos Araújo (2003), posicionando a constituição da ciência da informação no contexto das ciências sociais, e Rieusset-Lemarié (1998), situando o Mundaneum a partir de uma perspectiva internacional. Em ambos, a relação entre positivismo, ciências sociais e fundamentação científica da organização do conhecimento também se manifesta. O presente estudo vem se integrar a esse corpo de estudos, procurando, de forma distinta, aprofundar as relações epistemológicas pontuadas entre a formulação de leis sociais dos primeiros “sociólogos” e dos primeiros “epistemólogos da informação”. Para cumprir a proposta, em primeiro lugar, procuramos definir o modelo e as escolhas epistemológicas do positivismo em seu surgimento, no século XIX. Destacamos, nesse sentido, a produção sociológica de caráter francófono, tecida inicialmente na obra de Comte, e sua aproximação às visões sobre a teoria do conhecimento em Montesquieu. Em seguida, demarcamos o desenvolvimento do ponto de inflexão da epistemologia positivista em Durkheim e Tarde. Da procura pelas leis sociais passamos à corrida pelas leis sociais da informação. Iluminamos, aqui, a visão de Paul Otlet e seu diálogo direto e indireto com Comte, Durkheim e Tarde no contexto de formulação das ciências bibliológicas. A reflexão comparada, ao sublinhar os pressupostos filosóficos da epistemologia sociológica nascitura e da epistemologia bibliológica em sua formulação, permite- 39 ciências de observação, fundar a física social” (COMTE, [1830] 2005, p. 29). Este termo refere-se à ciência que deveria se ocupar do estudo dos fenômenos sociais, considerados à mesma luz dos fenômenos astronômicos, físicos, químicos e fisiológicos, estando, portanto, sujeitos a leis naturais e invariáveis. A partir do conhecimento das relações constantes entre os fenômenos, seria possível determinar seu desenvolvimento futuro. Tal perspectiva confere à filosofia positiva um caráter de previsibilidade, enunciado no desiderato “ver para prever” que enfileira os termos “ciência”, “previdência” e “ação”, sendo o primeiro a condição básica para o alcance do segundo, e o segundo a condição para o terceiro. O espírito positivista da filosofia de Comte foi assimilado por diversos pensadores importantes de sua época. Para os propósitos deste trabalho, interessa destacar a influência que a física social comtiana de caráter positivista exerceu no pensamento dos sociólogos Gabriel Tarde e Émile Durkheim, e, posteriormente, já no âmbito dos estudos da informação, em Paul Otlet. Tarde e Durkheim, cada um a sua maneira, dedicaram-se a encontrar as leis às quais estariam submetidos os fenômenos sociais; segundo Durkheim, a melhor forma de “provar que as sociedades estão, como tudo o mais, submetidas a leis, seria seguramente encontrar essas leis” (DURKHEIM, [1895] 1970, p. 79). A questão já havia sido colocada por Comte: [...] como proceder com segurança no estudo positivo dos fenômenos sociais, se o espírito não for antes preparado pela consideração aprofundada dos métodos positivos já comprovados para os fenômenos menos complicados? Se não for equipado, além do mais, com o conhecimento das leis principais dos fenômenos anteriores, leis que influenciam, de maneira mais ou menos direta, os fatos sociais? (COMTE, [1830] 2005, p. 31). A seguir, procuraremos identificar o modo de conceber as leis sociais em Durkheim e em Tarde. Em momento posterior, veremos como Otlet receberá as influências desses e de Comte na formulação das leis bibliológicas. 40 A busca por leis sociais Foi Émile Durkheim quem ministrou o primeiro curso de sociologia a ser oferecido em uma universidade francesa. Logo na lição de abertura do curso de 1888, o sociólogo lembra que “foi por Auguste Comte estar ao corrente de todas as ciências positivas, do seu método e dos seus resultados, que ele encontrou condições para fundar, desta vez em bases definitivas, a sociologia” (DURKHEIM, [1895] 1970, p. 82). Seguindo os passos de Comte, Durkheim admite que a realidade social é regida por leis de caráter natural, e entende que “toda ordem especial de fenômenos naturais, submetidos a leis regulares, pode ser objeto de um estudo metódico, isto é, duma ciência positiva” (DURKHEIM, [1895] 1970, p. 78). Ao admitir a sociedade como um ente concreto a ser conhecido por uma ciência específica, Durkheim lança-se na difícil tarefa de descobrir as leis que regem os fatos sociais, definidos pelo autor como o objeto por excelência do estudo sociológico. O método, no mesmo diapasão positivista, “é a observação e a experimentação indireta, ou, por outras palavras, o método comparativo” (DURKHEIM, [1895] 1970, p. 94). Foi mediante a adoção do modelo positivista que Durkheim conferiu à sociologia o estatuto de disciplina científica, e realizou com sucesso o corte epistemológico que separou a ciência social dos campos de estudos da biologia e da psicologia. Para tanto, o autor valeu-se de comparações entre os organismos vivos – formados por órgãos como coração, pulmão e fígado – e a sociedade, esta concebida como um “organismo social” cujos órgãos, enquanto elementos constituintes, seriam os indivíduos. O esforço empregado pelo autor no sentido de emancipar a sociologia de outros campos de estudo pode ser apreciado ao longo de sua obra As regras do método sociológico, publicada em 1895. Nela, Durkheim propõe que os fatos sociais sejam tratados como coisas, ou seja, “tratá-los na qualidade de data que constituem o ponto de partida da ciência”. Para o autor, “é coisa tudo que é dado, tudo que se oferece, ou melhor, se impõe à observação”, e “os fenômenos sociais apresentam incontestavelmente esse caráter” (DURKHEIM, [1895] 2007, p. 28). 41 Observando “de fora”, Durkheim aponta as três características que definiriam determinados fatos como tipicamente “sociais” (e, portanto, como objeto de investigação sociológica): a coercitividade, a externalidade e a generalidade. Para o sociólogo, os fatos são coercitivos na medida em que se impõem sobre o indivíduo de forma independente à sua vontade. Tal coerção se torna evidente “pela existência de alguma sanção determinada, seja pela resistência que o fato opõe a toda tentativa individual de fazer-lhe violência” (DURKHEIM, [1895] 2007, p. 10). A externalidade dos fatos sociais, por sua vez, revela-se nas regras, leis e costumes que são anteriores à existência dos indivíduos e mesmo independentes da vontade das consciências individuais. Finalmente, a generalidade dos fatos sociais estaria na repetição dos mesmos em diferentes sociedades e épocas. Conforme postula o autor, “para que a sociologia seja realmente uma ciência de coisas, é preciso que a generalidade dos fenômenos seja tomada como critério de sua normalidade” (DURKHEIM, [1895] 2007, p. 75). Muitas vezes lembrado pelos acalorados debates com Durkheim, Gabriel Tarde foi outro importante intelectual francês que, assim como seu interlocutor, procurou estabelecer conceitos fundamentais a respeito dos fenômenos naturais, aí incluídos os físicos, os biológicos e os sociais. Em uma série de conferências realizadas em 1897, e publicadas no ano seguinte sob o título As leis sociais, Tarde afirma que “a ciência consiste em considerar uma realidade qualquer sob três aspectos: as repetições, as oposições e as adaptações que ela encerra” (TARDE, [1898] 2011, p. 21). As repetições, segundo o autor, podem ser observadas nos “retornos periódicos dos mesmos estados do céu, das mesmas estações, o curso regularmente repetido das idades – juventude, maturidade, velhice – nos seres vivos, e os traços comuns aos indivíduos de uma mesma espécie” (TARDE, [1898] 2011, p. 19-20). Em relação às oposições, Tarde cita tanto fenômenos astronômicos – “o dia e a noite, o Céu e a Terra” – quanto características do reino da física e da química, como os quatro elementos fundamentais que “se opunham dois a dois: a água e o fogo, o ar e a terra” (TARDE, [1898] 2011, p. 51). Já a adaptação, concebida como “o aspecto mais profundo sob o qual a ciência aborda o universo” (TARDE, [1898] 2011, p. 83), pode ser verificada em “uma montanha, ou uma cadeia de colinas, adaptada 44 “teoria da ciência da informação” centrada no anos 1960 se pauta menos por um discurso positivista, e mais por um olhar neopositivista. Estas visões permitem a compreensão da extensa relação entre a epistemologia positivista, as ciências sociais e a construção dos estudos da informação entre o Oitocentos e o Novecentos. A medida da forma do discurso: o positivismo no coração da “ciência da informação” Tal como eram os fatos sociais para Durkheim, a informação para a CI é naturalizada como “coisa” nos primórdios de sua reflexão nos anos 1960, se adotada a historiografia que toma o significante como demarcação. O corpo de teorias e práticas que compõe as “análises métricas” da CI pode ser indicado como um dos territórios que mais contribuirão para definir o “específico” dos estudos informacionais. No olhar de Pinheiro (1997), trata-se de um dos principais campos de investigação dentro da área ou espaço discursivo mais solidamente estabelecido. Como na definição das leis sociais, todas as categorias desse modelo de apreensão informacional – representadas, dentre outras, pela bibliometria, cienciometria, informetria e webometria – constituem-se intimamente relacionadas aos princípios positivistas e à análise pura dos objetos investigados, ou seja, à procura de uma precisão que conduz a previsões de comportamento, como no desiderato comtiano “ver para prever”. A bibliometria investiga os aspectos quantitativos da produção, disseminação e uso da informação registrada. A partir de padrões e modelos matemáticos ela desenvolve estratégias de medição que colaborarão para elaboração de previsões e apoio a tomadas de decisão, bem como o mapeamento da produção intelectual. Tem por objetos de estudo, basicamente, livros, documentos, revistas, artigos, autores e usuários. A cienciometria estuda os aspectos quantitativos da ciência enquanto disciplina ou atividade econômica, sendo um segmento da sociologia da ciência. Essa outra “medida da informação” vai além da bibliometria e busca analisar a 45 atividade científica acima da informação registrada, apresentando como objetos de estudo disciplinas, assuntos, áreas e campos.2 A informetria, por sua vez, atua na apreensão dos aspectos quantitativos da informação em qualquer formato, não se especializando em registros gráficos ou bibliografias, referente não apenas à comunidade científica – aos grupos de pesquisadores – como a qualquer grupo social. Ou seja, a informetria ultrapassa os laços de abrangência da investigação, ampliando as possibilidades de observação. Seus objetos podem ser representados por palavras, documentos e bases de dados (MACIAS-CHAPULA, 1998). Como afirma Vanti (2002, s.p.), A informetria se distinguiria claramente da cienciometria e da bibliometria no que diz respeito ao universo de objetos e sujeitos que estuda, não se limitando apenas à informaçãoregistrada, dado que pode analisar também os processos de comunicação informal, inclusive falada, e dedicar-se a pesquisar os usos e necessidades de informação dos grupos sociais desfavorecidos, e não só das elites intelectuais. Segundo Macias-Chapula (1998), o termo “informetria” é mais recente, tendo se tornado “comum somente nos últimos dez anos, como um campo geral de estudo que inclui as áreas mais antigas da bibliometria e da cienciometria”. O corpo de estudos quantitativos da informetria não se preocupa com um formato específico, viajando além das fronteiras da “análise da análise científica”. Ou seja, sob a “sombra” do novo imaginário epistemológico de uma tradição pragmática percebe-se a reorientação dos ângulos de contemplação dos objetos de pesquisa 2 Conforme Vanti (2002), a bibliometria ou bibliotecometria é marcada pelos trabalhos de Lotka, Zipf e Bradford, identificados, cada um, por uma lei específica; a Lei de Lotka, ou Lei do Quadrado Inverso, aponta para a medição da produtividade dos autores, a partir do modelo de distribuição tamanho-frequência dos diversos autores em um conjunto de documentos; a Lei de Zipf – Lei do Mínimo Esforço – mede a frequência do aparecimento das palavras em vários textos; a Lei de Bradford – Lei de Dispersão – estabelece o núcleo e as áreas de dispersão sobre um assunto em um mesmo conjunto de revistas. 46 dentro da ciência social CI. Verifica-se a caminhada para um olhar que se aproxime mais de uma produção social do conhecimento, e menos do levantamento de dados que representam objetivamente possíveis construções. Esses desdobramentos, no entanto, são fruto do discurso de desenvolvimento do conceito de “Ciência da Informação”. Eles se confundem, nos anos 1960, com a recepção do neopositivismo dentro dos estudos informacionais. Em uma leitura raywardiana, necessariamente alteraríamos o curso da descrição historiográfica, contornando, para tal, nosso solo epistemológico. O movimento nos conduziria ao ponto inicial da discussão da “física informacional” ou, mais precisamente, da “física documental”. Chegaríamos à conceituação otletiana de “bibliometria”, da qual podem ser retirados os pontos centrais de desenvolvimento do discurso positivista dos “estudos da informação”. A seguir, pois, retomaremos a origem do que se tornou o “coração” da manifestação positivista dentro dos estudos da informação: Paul Otlet e seu pensamento demarcado no fim do século XIX. A grande bibliologia e seu método científico: circulando Otlet e a “física documental” Há várias formas de interpretar o pensamento de Paul Otlet. Em certa medida, suas ideias foram reduzidas ao positivismo. Podemos, no entanto, visualizar a construção de suas teorias a partir de diferentes ângulos, como o simbolismo, o tecnicismo e o utilitarismo. É fato, porém, que o pensamento otletiano desenvolveu- se sobre um contexto de forte predominância, no âmbito das ciências do homem, do olhar positivista sobre a realidade. O “Otlet positivista” pode ser identificado sob diferentes aspectos. Procuramos aqui descortinar as margens de interpretação da presença comtiana no filósofo belga, e, estruturalmente, identificar as aproximações às leis durkheimianas e tardianas em suas propostas para a organização do conhecimento. Em seu Tratado de documentação, Paul Otlet almeja estabelecer os pressupostos filosóficos e epistemológicos de construção da bibliologia, ou, em sentido amplo, das ciências bibliológicas. 49 (2002), da realização de uma síntese das ciências e um meio para tornar as ciências sociais um índice para a ciência geral, ou conhecimento total. Para Otlet (1934), existe, a priori, entre os homens, a “necessidade” de uma ciência bibliológica. Ela busca, assim como outros saberes que se querem positivos, uma unidade, o “comum”, o “mesmo”, para análise de seu objeto. Desse modo, assim como há um língua comum, uma lógica comum, uma matemática comum, far-se-ia necessário a constituição de uma “bibliologia comum”: arte de criar, de publicar e de difundir os dados da ciência. Visivelmente, busca-se no pensamento do filósofo belga uma ciência total da organização do conhecimento, entendido este último como saber científico. A primeira das tarefas dessa ciência é analisar, generalizar, classificar, sintetizar os dados adquiridos nos entornos do “Livro” e promover novas investigações. “Livro”, aqui, é tomado em um sentido totalizante: tudo aquilo que se pode chamar de produto da e fonte para a investigação científica. BIBLIOLOGIA COMO CIÊNCIA POSITIVA: NA DIREÇÃO DE COMTE Para o pensamento otletiano, o livro e o documento compõem uma só imagem do conhecimento científico, de caráter empírico-indutivo. Para se estabelecer como “ciência”, a bibliologia necessitaria ter: um objeto geral ou especial (ser, entidades, fatos); um ponto de vista específico ou um objeto intelectual distinto para contemplar os fatos e coordená-los; generalização, fatos gerais, conceitos fundamentais, leis; sistematização, resultados coordenados, classificação; método (que deve comportar métodos de pesquisa, provenientes da lógica e do raciocínio, classificação, terminologia, sistema de medidas, instrumentos, registro e conservação de dados, organização do trabalho – incluindo divisão do trabalho, cooperação nacional e internacional, associações, comissões, congressos, discussão, ensino e difusão); história; aplicação das diversas ordens de estudo e de atividades. Paul Otlet afirma que a bibliologia se institui sobre o mesmo grau de generalização da lógica e da linguística (OTLET, 1934, p. 9). A comparação busca 50 compreender a identificação de ciências gerais com objetos extremamente simples, porém ilimitados em sua extensão. A busca por um objeto simples nos estudos bibliológicos significaria sua possibilidade de extensão para todas as demais ciências. Temos aqui a relação direta com a busca de cientificidade das ciências sociais: Le point de vue propre a la Bibliologie générale est celui du Livre considéré dans son ensemble, de la totalité des Livres. De même que la Sociologie s’occupe, non des phénomènes qui se passent dans la société, mais des phénomènes qui réagissent socialment, de même la Bibliologie s’occupe des faits qui ont une action générale sur le Livre. (OTLET, 1934, p. 12, grifo nosso). O desenvolvimento “positivo” de uma bibliologia recai, no pensamento de Otlet, em uma apropriação do ideal científico a partir da comparação com as ciências naturais e com as próprias ciências sociais em rápido desenvolvimento. Essa epistemologia de caráter comtiano terá, também, relação direta com as visões tardianas e durkheimianas referentes às leis sociais, como adiante identificamos. DA BIBLIOMETRIA À BIBLIOSSOCIOMETRIA: NO ENCALÇO DE DURKHEIM O modelo mais imediato para a percepção do discurso positivista na justificativa epistemológica dos estudos da organização do conhecimento está na elaboração do domínio de estudos métricos do livro. Nas palavras de Otlet, “en tout ordre de connaissance, la mesure est une forme supérieure que prend la connaissance. Il y a lieu de constituer en un ensemble coordonné les mesures relatives au livre et au document, la Bibliométrie.” (OTLET, 1934, p. 13, grifo nosso). Estabelece-se nesse momento o conceito de “bibliometria” como teoria, método e identidade científica da bibliologia. Paul Otlet toma o estudo métrico como modelo superior de observação da realidade, incluindo aquela de ordem social. No já citado Tratado de documentação, o autor procura justificar o ponto de vista a partir da correlação com os demais domínios de estudos da sociedade, como criminologia e antropologia, e o uso que esses realizam das descrições quantitativas para 51 estabelecer suas categorias de análise. Conforme destaca, “la sociologie tend aussi a devenir quantitative. Elle opere sur des groupes et les groupes sont susceptibles de dénombrements, dont statistique établit les méthodes et enregistre les résultats.” (OTLET, 1934, p. 13, grifo nosso). Desdobra-se, do conceito de “medida do livro”, a chamada bibliosociométrie. A noção amplia as possibilidades de identificação das relações de justificação epistemológica das ciências bibliológicas como, em um primeiro momento, uma “ciência de fato” e, em um segundo momento, como outro modelo de “ciência social”. Como medir a ação do livro e do documento sobre o homem e a sociedade? Esta é a questão-problema para uma episteme dentro da epistemologia da Bibliologia colocada por Paul Otlet que demarca a visão positivista do campo da organização do conhecimento. Trata-se da construção de uma “bibliossociometria”, ou o estudo métrico da realidade que se estabelece entre os documentos e a sociedade. DAS LEIS UNIVERSAIS DA BIBLIOLOGIA: A CAMINHO DE TARDE Em sua “síntese bibliológica”, ao final do Tratado de documentação, Paul Otlet elenca diversas leis universais que são fontes para compreensão da cientificidade positiva das ciências bibliológicas. O primeiro conjunto de leis apresentado é dividido em três linhas de universalidade: leis da mudança e da evolução; leis da adaptação, da repetição e da oposição; e lei da “repetição amplificante”. Na visão do filósofo, tais conjuntos de leis se justificam em toda ciência, incluindo, pois, aquelas de natureza bibliológica. Em primeiro lugar, as leis da mudança e da evolução estabelecem que todas as coisas estão em transformação permanente, passando, por isso, por transições em seu decurso. Para compreensão dessas leis, é necessária a observação da série de estados anteriores que permitem remontar a origem dos eventos sucessivos. Na visão de Otlet (1934, p. 422), “Cette loi, on a pu le constater, se vérifie dans le livre”. As leis de adaptação, repetição e oposição são esquematizadas segundo o quadro reproduzido. 54 no âmbito da filosofia e da sociologia da ciência, procuraram reabilitar a teoria em vez de reduzi-la ao fato, como queriam os positivistas de outrora (ALEXANDER, 1999). Em que pesem todas as críticas ao positivismo e seu consequente obscurantismo nas últimas décadas, não devemos perder de vista a relevância que tal método desempenhou no momento de consolidação dos estudos da sociedade, através de nomes como Durkheim e Tarde, e dos estudos da informação, através da bibliologia proposta por Otlet. Se a própria hesitação em esquecer seus fundadores pode parecer um tanto contraditória para os moldes de uma ciência orientada para o mundo empírico e para o acúmulo de conhecimento objetivo, observamos que a manutenção da importância dos clássicos revela justamente a possibilidade, facultada às ciências sociais, de “adquirir conhecimento a partir de pontos de vista diferentes e opostos – e mesmo sustentar leis explicativas relativamente antecipatórias a partir de orientações gerais que difiram em substância” (ALEXANDER, 1999, p. 36). Naquilo que diz respeito à epistemologia e à historiografia da CI, essa breve revisão nos permite duas linhas críticas de reflexão. A primeira, de natureza retrospectiva, nos coloca a necessidade de uma análise mais ampla do papel histórico-teórico do positivismo nos estudos da informação. É preciso compreender que os anos 1960 demarcam já uma releitura positivista da unidade de investigação do campo, uma vez que o discurso comtiano se encontrava, então, no fazer da organização do conhecimento havia meio século. A segunda reflexão, de natureza prospectiva, nos evidencia o reposicionamento da discussão sobre as estratégias de definição da cientificidade dos estudos da informação no contexto das ciências sociais e humanas, em seu diálogo permanente com filósofos sociais. Se existiram aproximações entre “cientistas sociais” e “cientistas da informação” na origem da cientificidade desses saberes, hoje tais aproximações continuam a se manifestar, cabendo ao campo científico a permanente observação dessas trocas e apropriações. 55 REFERÊNCIAS ALEXANDER, Jeffrey. A importância dos clássicos. In: GIDDENS, Anthony; TURNER, Victor. Teoria social hoje. São Paulo: Unesp, 1999. ARAÚJO, C. A. A. A ciência da informação como ciência social. Ci. Inf., v. 32, n. 3, Brasília, set./dez. 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_ arttext&pid=S0100->. Acesso em: 3. set. 2013. CAPURRO, R. Epistemologia y ciencia de la información. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO, 5., 2003, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: Escola de Ciência da Informação da UFMG, 2003. COMTE, Auguste. Curso de filosofia positiva. In: Os pensadores. São Paulo: Abril, 2005. DURKHEIM, Émile. A ciência social e a acção. Lisboa: Bertrand, 1970. 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(SALDANHA, 2010, p. 301). Iremos adiante explorar o potencial heurístico dessa perspectiva de Saldanha, com o intuito de construir um olhar específico da CI sobre o nosso objeto. Antes, porém, é necessário problematizar um pouco mais a “informação”. “Informação”, como é notório, é um conceito polissêmico. Em uma ou outra abordagem teórica, ou ainda de forma combinada, ela pode ser concebida em termos (política e economicamente) estratégicos (BOLAÑO, 2000), físicos, cognitivos, documentais, testemunhais (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2009), institucionais, rizomáticos (MARTELETO, 2007), como formação ou mensagem (CAPURRO, 2004) etc. Todas as acepções anteriores possuem valor explicativo, e nenhuma delas esgota, isoladamente, a polissemia do termo. Tampouco é nossa intenção fazê- lo; queremos apenas identificar qual acepção mostra-se operacionalmente mais produtiva no estudo de nosso objeto. 60 Nesse sentido, optamos por trabalhar a informação enquanto saber, ao mesmo tempo representacional e performático, cujo ciclo de vida sofre as seguintes metamorfoses: percepção, pensamento, registro, circulação, acesso, decodificação, pensamento,5 uso. Caberia à CI estudar e gerenciar esse ciclo, minimizando seu potencial entrópico, tecendo a crítica e propondo soluções para os problemas relacionados à qualidade, ao uso, à restrição, à circulação e ao acesso, o que envolve questões de ordem política, econômica, técnica e cognitiva. Por essa via, chegamos a uma conclusão um tanto surpreendente: a “informação”, em si mesma, não seria o principal objeto da CI, e sim a OS, enquanto conjunto de práticas e teorias voltadas à produção, gestão e crítica da “metainformação”, da informação sobre a informação: A diferença deste campo, a CI, para os demais, no trato com a informação, está na preocupação com a elaboração de uma “metainformação”. O pedagogo, o historiador, o físico também “transferem” informação e “geram” conhecimento. No entanto, o organizador dos saberes está preocupado em desdobrar as possibilidades de preservação, representação e de transmissão desta “informação” do pedagogo, do historiador, do físico. (SALDANHA, 2012, p. 23-4). O “organizador dos saberes”, portanto, deve executar suas tarefas não apenas munido de competências técnicas, mas principalmente de erudição crítica – Saldanha (2012) remonta essa erudição à ecdótica dos primeiros bibliotecários – e de uma perspectiva humanista. Aqui, a interdisciplinaridade do campo mostra-se absolutamente necessária. E é aqui também que a CI aproxima-se mais intimamente de nosso objeto, dado que a ética, a filosofia política e a epistemologia podem ser concebidas como metainformação, metadiscursos, enquanto discursos – que são um momento do ciclo de vida dos saberes – sobre os discursos (e sobre seus referentes) 5 Vale frisar que, nesse processo, o segundo pensamento não necessariamente reproduz o primeiro em sua integralidade. Ver Hall (2003). 61 de natureza moral, política e científica. A CI, então, pode produzir um metadiscurso crítico sobre a história da relação entre esses metadiscursos. Nessa história, a propósito, a informação, a metainformação e a OS – localização, classificação, arquivamento, disponibilização, reprodução, legitimação, hierarquização, eliminação, restauração, combinação, confrontação etc. –, ainda que com outros nomes, têm desempenhado papéis nada desprezíveis. INTERFACES A dimensão ética dos saberes diz respeito a seu valor moral; a dimensão política, a seu valor poder, isto é, a seu valor teleológico estratégico; a dimensão epistemológica, ao seu valor verdade. Situamos a ética no início da investigação, partindo do princípio de que seu território deve ter primazia na interação dialética com os demais, dado que tanto a política (a gestão do poder) quanto a epistemologia (a gestão da racionalidade) podem ser pensadas como meios para se atingir aquilo que a ética estabelece como correto ou desejável (e neste segundo sentido, ela se aproxima da estética). Tão logo adentramos o território da ética, porém, vemo-nos na fronteira com o da política, ou melhor, percebemos quanto os territórios interpenetram-se, pois se o dilema central de toda e qualquer ética diz respeito à superação das contradições que se colocam entre o bem de cada um e o do(s) outro(s), à compatibilização das teleologias singulares divergentes e, em última instância, do particular (que envolve as diversas singularidades enquanto partes de algum modo isoláveis de um todo, seja individualmente, em pares ou em grupos maiores) com o universal (no caso, a coletividade), a política, em macro ou micro escala, mostra-se como ética em ato: não existe nem pode existir política sem ética, isto é, produção, compartilhamento, disputa ou gerenciamento de poder sem que se vise algum bem, e isso vale inclusive para os piores bandidos e assassinos, cujo próprio bem requer ou gera o mal alheio. O que se pode e deve discutir é a qualidade da ética atualizada em determinada prática política; sua legitimidade, não sua existência: aqui é o próprio bem que deve prestar contas. A política, portanto, é o território da efetividade da ética – seja de que ética for –, já que a ética sem a política é inócua, é potência sem ato. 64 demonstraram que a epistemologia científica é também política, cultural e circunstancial, o que minou em parte o status dos cientistas e especialistas como detentores últimos da verdade. Um dos resultados ou reflexos destes estudos é que a ciência e a tecnologia perderam o status moderno de fonte de verdade e melhoria do bem estar social para serem reconhecidas como um mecanismo de exercício de poder que pode agravar problemas ambientais e sociais. (2012, p. 152). Chegamos, aqui, por assim dizer, a uma “tríplice fronteira”, a da dimensão ético-política da ciência, que diz respeito a seu (des)compromisso com o bem, mas desta vez com o bem geral, se concordarmos com Aristóteles (2007) sobre ser este o objetivo maior da “arte” política. Já a dimensão epistemológica da política encontra- se em sua pretensão à verdade de determinado modo de exercício do poder, isto é, à sua eficácia teleológica. Pois na política, para além da imperativa necessidade da análise correta e precisa da correlação de forças em jogo em uma circunstância dada – o que requer acesso à informação o mais completa e precisa possível, bem como acuradas competências analíticas –, trata-se agora de uma questão de efetividade teleológica, de planos cuja execução assegure ou no mínimo favoreça que sejam bem-sucedidos, o que exige a adequação eficiente dos meios aos fins. Isto envolve a questão da imprevisibilidade não só como fonte de risco, mas também de inovação e invenção,10 o que nos coloca novamente, mas por outro ângulo, diante da dimensão 10 Sobre a imprevisibilidade como fator de inovação, agradeço a Sarita Albagli esta observação, por ocasião de sua leitura crítica da primeira versão deste texto. Quanto à dimensão política da imprevisibilidade, cabe lembrar que Maquiavel (1513) já a tinha problematizado em sua categorização de virtu e fortuna, consistindo a maior “virtude” do “príncipe” em sua habilidade de maximizar as benesses e minimizar os danos produzidos pela fortuna (sobre a relação entre virtu e fortuna em Maquiavel, ver também Negri, 2002). No presente contexto, propomos então, com certa liberdade, traduzir fortuna por “imponderável” ou “imprevisível”. Isso nos remete ainda aos atualíssimos dilemas éticos decorrentes da interação sistêmica, ao redor do mundo, de múltiplos agentes, incluindo alguns não humanos – artefatos autônomos, “inteligentes” –, sobre os quais discorre Floridi (no prelo) em estudo recente sobre “distributed morality” (“DM”) e “artificial agents” (“Aas”). Mais uma vez, a virtu do agente humano irá consistir em maximizar os benefícios e minimizar os danos deste imponderável. Esses benefícios e malefícios, contudo, não estão dados de antemão, requerendo, portanto, reflexão ética constante. 65 ética da política, neste caso imbricada com sua dimensão epistemológica, num desdobramento das imbricações anteriores, na medida em que o velho problema da teleologia impõe o igualmente velho – embora importantíssimo e sempre atual – problema de os fins justificarem (ou não) os meios, cuja solução positiva, conforme Negri (2002, p. 154), “os franceses” erroneamente atribuíram a Maquiavel. Aqui, porém, mais uma questão impõe-se – uma que, na verdade, antecede a anterior, pois sua resposta é necessária para que a maior ou a menor justificabilidade dos meios possa ser adequadamente avaliada: o que justifica os fins? Qual bem, que verdade? E, afinal, o que entendemos por “bem”, “poder”, “verdade”? O que de mais relevante foi pensado sobre esses temas?11 Mais precisamente, o que de mais relevante foi registrado sobre sua relação? E qual tem sido o papel da OS e da informação (ou de sua ausência relativa), em termos físicos (maior ou menor disponibilidade de suportes e dados), cognitivos (maior ou menor compreensão dos conteúdos) e estratégicos (seu uso mais ou menos eficaz em meio a um conflito), em cada um desses campos e em suas interfaces? De que modo a CI pode contribuir para a elucidação desses dilemas na atualidade? Voltemos à ética: se ela, em qualquer uma das acepções que se queira, consiste na busca racional do bem viver, a primeira contradição que encontramos nesta busca, ainda na escala individual, é de ordem temporal, aquela que aparece entre dor e prazer (de ordem física ou psíquica), ou entre sacrifícios que geram 11 Evidentemente, não se pretende esgotar essas questões – inesgotáveis, ao que tudo indica. Pode-se, porém, queremos crer, mapear os pontos fortes do debate filosófico ao longo da história. Teremos, assim, por exemplo, o “bem” visto como coragem, saúde física e psíquica, sabedoria (racional ou prática), ausência de dor, beatitude, compaixão, utilidade, prazer, felicidade, liberdade e dever, justiça social, potência, “sucesso”; o “poder”, como dom, direito civil, direito natural, direito divino, abuso, conquista, o Estado, essência constitutiva do ser, o sistema, fator que atravessa o conjunto das relações sociais, potência coagulada etc.; a “verdade”, como adequação do discurso aos fatos, melhor argumento, revelação, adequação experimentalmente verificável do discurso aos fatos, resultante da práxis, versão vitoriosa das potências em disputa, jogo de ocultamento e revelação do ser, dispositivo de poder, quimera. 66 gratificações e gratificações que geram sofrimento – certas práticas esportivas são uma boa ilustração do primeiro processo; o abuso de drogas, do último. A segunda contradição, esta na escala coletiva, diria respeito àquele que provavelmente constitui o problema central da ética, de todas as éticas: entre prazeres ou gratificações de um (uns) / sofrimentos de outro(s).12 Esta contradição tem, nas diversas formas históricas de exploração do trabalho, seu fundamento e sua expressão máxima, dada a centralidade do trabalho na conquista do bem viver, ou de seu contrário (a ética mais uma vez encontra-se com a política, mas agora mediadas pela economia). Os desdobramentos políticos (referentes a relações de poder) e epistemológicos (referentes à acuidade do conhecimento, à sua legitimação e hierarquização em mais ou menos legítimos, e destes entre si) dos discursos referentes a essas duas contradições, em especial à segunda, são o fio condutor em nossa busca, no âmbito da CI, pelo papel da OS e da informação em cada um desses campos e, sobretudo, em suas separações e imbricações. Teríamos então, no campo da ética, o compromisso, o cuidado e a competência dos pesquisadores e profissionais da CI na avaliação crítica e na gestão da dinâmica global do processo informacional como um todo, tendo em vista a promoção de acessibilidade universal à informação (correta e adequada) para o bem viver, bem como a formação também universal de competências cognitivas. A principal ligação desta questão com o campo da política seria, como ventilado anteriormente, de ordem econômica, partindo da premissa de que o problema do poder tem por base a questão da propriedade e das relações de produção ou trabalho. Assim, diz respeito ao papel da CI na geração e distribuição da informação enquanto poder, cujo cerne encontrar-se-ia no problema da reificação do atual sistema de propriedade e de relações de produção, isto é, da maneira como se dá o planejamento, a direção e a execução do trabalho, material ou “imaterial”, bem como, naturalmente, a distribuição e o consumo de seus frutos. 12 Ver Schneider (2011). 69 Entretanto, tal vigilância, como propõe Morin (1982), requer uma abertura aos saberes não científicos: para que a razão não se reduza à racionalidade técnica, há que estabelecer um diálogo com o pensamento não sistemático, com o mito, com a arte, com os valores, com o não racional, isto é, com tudo aquilo na vida que não é redutível ao cálculo instrumental. Não para igualar-se a esses saberes, mas para aprender com eles. Hegel, a seu modo, já sabia disso, e este saber encontra-se no cerne de sua concepção do que vinha a ser a própria lógica, conforme veremos agora. HEGEL, MARX E GRAMSCI: A LÓGICA DIALÉTICA, A PRÁXIS, A LUTA CULTURAL Fora do campo da filosofia, o adjetivo “lógico” é empregado, sem maiores esclarecimentos, como sinônimo de “evidente”, “claro”, “óbvio”, reportando às aparências e às relações causais mais facilmente perceptíveis e cognoscíveis. É empregado também como crítica ou deboche, àqueles que interpretam as coisas de modo ingênuo ou equivocado. Mas o que, afinal, é a “lógica”? Aprofundar essa questão foge ao escopo deste trabalho. Podemos, entretanto, explorar a hipótese de que há um ângulo de investigação heuristicamente promissor, tanto para o trato de nosso objeto quanto para a CI em geral, e que é, pelo que pudemos constatar até o presente momento, pouco trabalhado entre nós: a perspectiva da lógica dialética de Hegel e sua apropriação transformadora, primeiro por parte de Marx, em seguida por Gramsci. Essas apropriações fornecem algumas pistas para a elaboração de uma teoria sócio-histórica do conhecimento, eticamente comprometida, politicamente atuante, epistemologicamente fecunda. Tentaremos, agora, retraçar algumas de suas principais linhas de desenvolvimento. É Ilyenkov (1974) quem nos guia nesse momento da investigação: [...] o que é hoje chamado de lógica são doutrinas que diferem consideravelmente em sua compreensão dos limites dessa ciência. Cada uma delas, é claro, não só se confere o título 70 como o direito de ser considerada o único estágio moderno no desenvolvimento mundial do pensamento lógico.15 O autor soviético ilustra a afirmação com os exemplos de Kant e Schelling. Para o primeiro, “a esfera da lógica é delimitada com bastante precisão: só lhe compete fornecer uma exaustiva exposição e uma prova estrita das regras formais de todo pensamento.” Já para Schelling, a lógica não seria “um esquema para produzir conhecimento”, mas um meio para comunicá-lo “através de um sistema de termos rigorosamente definidos e não-contraditórios”.16 Com Hegel, porém, a matéria de estudo da lógica é radicalmente redimensionada. Não consiste mais nas regras formais de todo o pensamento, nem em um sistema terminológico rigoroso, mas na “história da ciência e da técnica coletivamente criadas pelas pessoas, um processo praticamente independente da vontade e da consciência dos indivíduos separados, embora concebido a cada uma de suas etapas precisamente na atividade consciente dos indivíduos”.17 Trata-se, então, de uma concepção da lógica como uma gnosiologia sócio-histórica, que engloba o problema da técnica e da prática: “[...] Este processo, de acordo com Hegel, também envolvia, como uma fase, o ato de conceber o pensamento na atividade objetiva, e através da atividade na forma de coisas e eventos externos à consciência.”18 15 ILYENKOV. Dialectical Logic. Documento eletrônico: <http://marx.org/archive/ilyenkov/ works/essays/index.htm>. Acesso em: jun. 2013. 16 Idem. Neste sentido, a “lógica” de Schelling de certo modo antecipa o primeiro Wittgenstein, do Tractatus. 17 Ibidem. Grifos de Ilyenkov. 18 Ibidem. Desnecessário lembrar que tanto a CI como formas anteriores de OS vêm participando ativamente, em seus níveis mais conscientes e sofisticados, dessa “história da ciência e da técnica”, que compõe o “estudo da lógica”, enquanto investigação, produção e gestão metainformacionais dos saberes, bem como da parte que lhe cabe em seus ciclos de vida. Cabe também destacar que a presença da “técnica” como momento da “lógica”, em Hegel, antecipa questões centrais da atualidade, em meio à qual a fusão dos dois termos designa um conjunto de fenômenos que vem adquirindo uma notável, crescente, promissora e problemática pregnância em todos os setores da vida. No caso da CI, essa centralidade das tecnologias, em particular as de informação e comunicação, tem provocado desafios e gerado transformações profundas, tanto no universo teórico do campo quanto nas práticas profissionais correlatas, bem como no das políticas (públicas e privadas) de informação. 71 A lógica, então, para Hegel, seria não um conjunto de regras formais do pensamento (aplicáveis especulativamente a bel-prazer do pensador), nem um sistema de classificação terminológica rigoroso para a comunicação do pensamento, mas a ciência cujo objeto é o próprio pensamento, individual e coletivo, em sua interação objetiva com o mundo e consigo mesmo, em sua historicidade. Categorias lógicas, por sua vez, são “etapas no processo de diferenciação do mundo, ou seja, de seu conhecimento, e pontos nodais auxiliando a conhecê-lo e dominá-lo”.19 A lógica seria, portanto, mais do que a racionalidade que fundamenta o conhecimento do tipo científico, a ciência que estuda sua gestação e amadurecimento – o que envolve o diálogo permanente com os saberes não científicos –, bem como suas aplicações. A dialética é o seu método: A dialética, de acordo com Hegel, era a forma (ou método ou esquema) do pensamento que envolvia tanto o processo de elucidar contradições quanto o de solucioná-las concretamente no corpus de um estágio mais elevado e profundo de conhecimento do mesmo objeto, rumo a uma investigação da essência do assunto.20 A dialética hegeliana, além disso, já traz em si uma potência de superação da dicotomia (mencionada anteriormente) entre o caráter representacional e o performático dos discursos em geral, e daqueles de tipo científico em particular, por considerar a prática como momento do conhecimento. É somente, porém, com a elaboração, por parte de Marx, da categoria práxis que essa superação torna-se madura, pois ela dá 19 ILYENKOV. Dialectical Logic. Documento eletrônico: <http://marx.org/archive/ilyenkov/ works/essays/index.htm>. Acesso em: jun. 2013. Sobre esta relação entre conhecimento e dominação do mundo, nela, de certo modo, concentra-se a crítica de Heidegger (2002) à técnica, bem como a de Adorno e Horkheimer (1985) à razão instrumental. Mészáros (2002 e 2004) refuta ambas as críticas, que hipostasiam e entificam a técnica e a razão instrumental, perdendo de vista, no primeiro caso, e ignorando, no segundo, a subordinação de ambas à relação de capital, o que efetivamente converte essa “dominação” num problema grave. 20 Ibidem. 74 c) o papel da OS e da informação em suas interfaces; d) a dimensão ética, política e epistemológica da OS e da informação em geral; e) a dimensão ética, política e epistemológica da CI. Tivemos também a intenção de fundamentar a pertinência de uma busca dessa natureza no campo epistêmico da CI, partindo de uma reflexão de cunho epistemológico sobre a própria natureza do campo. Por fim, aventou-se a hipótese de que a dialética hegeliana e sua depuração na categoria marxiana de práxis, desdobradas nas reflexões de Gramsci sobre os intelectuais e a organização da cultura, podem abrir frentes alternativas e promissoras de investigação para a CI. Pretendemos seguir explorando esta hipótese. REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor W. e Max Horkheimer. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2007. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. BOLAÑO, César. Indústria cultural, informação e capitalismo. São Paulo: Hucitec, 2000. CAPURRO, Rafael. Desafíos Teóricos y Prácticos de la Ética Intercultural de la Información. Conferencia inaugural en el I Simpósio Brasileiro de Ética da Informação, João Pessoa, 18 de março de 2010. Documento eletrônico. Disponível em: <http:// www.capurro.de/paraiba.html>. Acesso em: jul. 2013. _______. 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O foco das pesquisas projetou-se para a possível combinação entre as formas culturais, teóricas, históricas e práticas de conhecer e as suas configurações comunicacionais e informacionais, como meios de criação de políticas de gestão dos conhecimentos pelos grupos, agentes e entidades da sociedade, em seus diferentes segmentos e ambientes culturais. Os estudos com foco na interpenetração de diferentes formas de conhecimentos deram origem à categoria empírica “terceiro conhecimento”, empregada nas pesquisas para investigar as práticas de informação associadas às ações de intervenção e participação social. Entre os anos de 2002 e 2006, associado ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da ECI/UFMG, o Grupo de Pesquisa Antropoinfo continuou a abordar a informação como fenômeno sociocultural e como elemento integrante de redes sociais configuradas por diferentes atores acadêmicos e não acadêmicos, nas ações de intervenção e participação social em saúde, estudando as redes em sua tripla dimensão – social, cognitiva e semântica – de modo a estudar tanto os elos entre os atores quanto a configuração de suas narrativas, capazes de expressar o movimento social e textual das informações. Atuando desde os anos 1990 na vertente da informação e comunicação em saúde, entre 2008 e 2012 o Grupo de Pesquisa Antropoinfo vincula-se ao Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde do Icict/Fiocruz, alterando seu nome para Cultura e Processos Infocomunicacionais (Culticom), antes de retornar, a partir de 2013, ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação do Ibict-UFRJ, locus institucional onde havia se formado e se firmado, desde os anos 1980. O esforço inicial das pesquisas do grupo foi o de procurar realizar a reconstrução histórica e social da elaboração da ideia de informação, a partir de dois eixos principais: a) como um problema de ordem prática e política para as 80 sociedades ocidentais nos processos de modernização cultural e de modernização social (M. Weber; J. Habermas; P. Bourdieu; A. Gramsci); b) como objeto de estudo da ciência, ambos associados aos modos de produção, disseminação e aquisição de conhecimentos sistematizados e veiculados pela escola, enquanto vetor principal da dinâmica cultural do Ocidente, portanto promotora de uma “cultura informacional” (SODRÉ, 1983; MARTELETO, 1987; 1994). No mesmo caminho da leitura contextual e histórica da conformação de uma cultura informacional, estudaram-se diferentes configurações dos sujeitos nela inseridos, em relação aos quadros sociais, políticos, econômicos e científico-técnicos. A primeira formulação é a do “leitor”, elaborada pela modernidade iluminista entre os séculos XVIII e XIX na Europa. O leitor é aquele que se desloca em direção aos espaços do saber, da comunicação e da informação: os salões, os cafés, as escolas, as bibliotecas, e que se dedica, por gestos e atitudes, aos atos da leitura e da conversação. A escola, a ciência, a imprensa, a literatura fornecem os modelos de leitura e de consumo de obras, controlados pelo Estado (CHARTIER, 1990; BURKE, 2003; GINZBURG, 1990). A segunda demarcação é a do “usuário”, com o desenvolvimento de modelos de conhecimento apoiados no positivismo e suas variantes, como o taylorismo e o fordismo, na atmosfera política e econômica do Estado-providência. Os cidadãos-leitores agora são considerados usuários e consumidores dos serviços e produtos de informação-comunicação ofertados pelo Estado ou por ele geridos ou controlados. A terceira formulação dos sujeitos da cultura informacional é fornecida pela associação entre informação-comunicação e o “cliente”, “consumidor” ou “decisor”, no quadro mais recente da globalização dos mercados econômicos e da mundialização da cultura, quando a produção do conhecimento e do saber parece incorporar atores múltiplos, sobretudo econômicos, além das esferas tradicionais de produção, circulação e apropriação afetas ao Estado. Finalmente, no próprio contexto da globalização do mundo e do desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, assiste-se à interação dos sujeitos-indivíduos no assim denominado ciberespaço, envoltos nas infinitas redes de comunicação e na 81 abundância informacional. Entretanto, essas diferentes representações dos sujeitos da cultura informacional encontram-se presentes no cenário contemporâneo, por uma convivialidade discursiva, epistemológica e política que permite entrever as diferentes e conflituais facetas dos sujeitos e o mundo de signos, imagens e sentidos que promovem suas identidades e representações. O que interessa essencialmente à visão socioantropológica da informação é a ideia de “sujeito coletivo”, aquele que define o espaço da cidadania. No Brasil, como em outros países da América Latina e de outras partes periféricas do mundo, o sentimento de uma tripla exclusão relativa – econômica, política e cultural – forma a base de um conjunto de ações locais, regionais ou internacionais em movimentos sociais que vêm se organizando ao longo do tempo para exigir os direitos que não são respeitados em relação à população pobre: trata-se da “consciência de direitos”, da qual uma das mais relevantes nas sociedades regidas por uma cultura informacional é a do direito de expressão e acesso ao conhecimento, à comunicação e à informação. Nesses diferentes caminhos interdisciplinares e interinstitucionais, e sem perder de vista o seu intento principal de estudar os processos de produção, circulação e apropriação de informações para a construção de um “conhecimento social”, o Grupo Culticom sedimentou, em diferentes pesquisas, teses, dissertações, monografias, publicações, a firme mediação da teoria social e suas metodologias no estudo das práticas informacionais, em diferentes contextos de aplicação. Entendendo o contexto, nesse caso, não somente enquanto uma área ou campo do qual se extrai a empiria, e mais como um terreno prático e epistemológico, com o qual os estudos da informação criam diálogos interdisciplinares com a mediação das ciências sociais e humanas. Neste capítulo serão apresentados três recortes dos modos de construção dos objetos interdisciplinares de estudo do grupo em interação com as áreas da saúde, da literatura e da arquitetura e urbanismo, elegendo-se os conceitos de saúde- doença, leitura e espaço urbano, próprios a cada um desses campos ou disciplinas. 84 de Saúde”. O objetivo desses dispositivos é representar os diálogos narrativos e as vivências dos participantes de redes sociais em saúde, em diferentes suportes, selecionados e produzidos coletivamente, onde os saberes e as falas populares ocupam um lugar central para se perceberem os traços e as mediações das informações e saberes compartilhados. As pesquisas nas quais se produzem de maneira compartilhada os dispositivos de informação e comunicação em saúde têm levado à identificação das mídias de comunicação como um dos polos discursivos que conformam certa visão de saúde, de doença, de direitos, dentre outras, vigentes na sociedade. Nesse sentido, a mídia pode ser entendida como um campo social, composto por atores, discursos, veículos, instituições que estão o tempo todo disputando sentidos sociais e hegemonia. Está em jogo, portanto, a circulação de concepções de saúde que balizam projetos terapêuticos diversos, nem sempre coerentes com aqueles que orientam a condução das políticas públicas de Estado. No outro polo está a população, cujas demandas emergenciais em saúde parecem não ser capazes de pressionar o Estado para respostas rápidas, como no caso da desorganização social provocada pelas epidemias, por exemplo. A população tende a ser considerada pouco ou insuficientemente informada pelos profissionais e gestores dos serviços de saúde, com o reforço das mídias tradicionais. Assim, explica-se a insistência em aumentar a veiculação de informações nos períodos de crise, como meio de atender a uma suposta “carência informacional”. No entanto, saber quais são as necessidades de informação das pessoas que vivem em áreas periféricas e comunidades demanda uma compreensão sobre o mundo cotidiano das relações e processos sociais objetivos e subjetivos, o que inclui a apropriação e o uso político da informação veiculada pelos serviços de saúde e pelas mídias, configurando um conhecimento informacional circulante e vivo, o qual passa a se constituir em “informação-estratégia”. Essa temática tem sido debatida no contexto de reorganização do sistema de saúde brasileiro articulada ao tema da democratização e ampliação dos espaços de participação da população. Esse debate tem implicado, também, a redefinição 85 de objetos e metodologias de pesquisas que objetivam compreender as maneiras como se constrói a informação local em saúde, por entender que estas apontam para outras lógicas de construção de saberes em saúde, e por sua capacidade de induzir a ação social. Essa crítica, no entanto, parece estar presente, embora ainda de modo incipiente, apenas no âmbito da produção acadêmica, sem atingir os níveis de formulação de políticas públicas de informação e comunicação e o controle social na saúde. Um campo conceitual a ser discutido, revisto, ampliado: trivialidade e objetos culturais A categoria-noção “terceiro conhecimento” é empregada nas pesquisas para estudar as mediações e as disputas simbólicas entre os atores institucionais do campo da saúde (pesquisadores, técnicos, agentes do Estado), as mídias e a população, sobre os sentidos culturais, biológicos, sociais e políticos de saúde e doença, associadas às condições de vida. A “terceridade” do conhecimento está pois relacionada aos diferentes pesos de legitimidade e de poder das formas de conhecer, bem como às possibilidades de formação de elos cognitivos e simbólicos entre os saberes de cada parte para intervir nas políticas públicas e no controle social da saúde. A abordagem socioantropológica da informação em saúde procura perceber certos elementos presentes nesses conflitos e alianças, como a tensão entre o discurso (ou linguagens autorizadas e de poder dos especialistas, gestores e técnicos da saúde) e as narrativas (ou linguagem do mundo da vida e da experiência), os quais dão origem a contrastes e interações, construindo um tipo de prática social que se pode denominar “narrativas informacionais” (RIBEIRO, 2005). Outro aspecto relevante refere-se às identidades e representações comunitárias, que se originam a partir de uma ambientação externa da informação, como, por exemplo, das mídias e do poder público, que podem gerar ou estimular esses estereótipos, capazes de impulsionar tanto quanto frear as ações. Portanto, um dos objetivos principais da informação e comunicação em saúde é confrontar, interpretar e reeditar saberes, projetos e representações para encontrar modo de sistematização dos 86 conhecimentos práticos construídos no meio ambiente da cultura e do cotidiano comunitário e institucional da sociedade. Para tanto, buscando novos elementos teóricos e metodológicos, como o conceito de trivialidade/trivialité (JEANNERET, 2008), associado à circulação social dos “seres culturais”, isto é, das ideias e objetos (saberes, valores morais, categorias políticas, experiências estéticas, sentidos humanos e históricos como o meio ambiente, o patrimônio, a saúde, por exemplo), produzidos e perenizados pelos sujeitos. O percurso dos seres culturais na vida da sociedade permite não apenas sua apropriação, mas igualmente sua transformação: os seres culturais se dotam de valor nos processos de transmissão. O conceito de trivialidade é elaborado para analisar e interpretar esses fenômenos, que não são dos dias de hoje, como fazem crer os discursos das sociedades da informação e da comunicação, mas constituem problemáticas clássicas das ciências sociais e humanas, agora estudados pelos ângulos epistemológicos, teóricos e metodológicos das ciências da informação e da comunicação. No entanto, o que se pretende analisar por meio da trivialidade “não concerne apenas à circulação de objetos e de produtos, nem somente à história das ideias. Trata-se de processos ao mesmo tempo difusos e bem concretos, produtores de saberes e de representações, empregando recursos múltiplos, técnicos, simbólicos e de memória” (JEANNERET, 2008, p. 15). Por isso mesmo, trata-se de considerar a importância dos elos entre as “disciplinas de arquivo”, associadas aos textos, seus registros e conservação, às disciplinas voltadas aos fluxos, difusões e transmissões. Daí a inseparabilidade dos conceitos de informação e comunicação no estudo dos fenômenos da trivialidade. Em outro eixo reflexivo associado às mudanças mais recentes na economia material da cultura, Jeanneret (2007, 2008) procura estudar como a invenção de novos objetos afeta a circulação social das informações e dos saberes, assumindo a dificuldade, para o pesquisador que observa e estuda esses fenômenos, de realizar uma iniciação racional e sintética sobre a pluralidade de questões referentes à relação entre dispositivos técnicos e socialização dos saberes e informações – e de adotar uma postura cultural diante das inovações. Observa-se que a noção vigente de 89 globalizados e abandonar o caráter de permanência, arquivamento e, portanto, de controle e poder de significação das informações. Mas, sim, considerar os espaços sociais concretos ou virtuais como cultura, ou seja, territórios onde se desenvolvem negociações, conflitos e interações produtores de novos sentidos e de saberes. O termo redes sugere ainda a adoção de uma observação relacional das interações e práticas sociais, o que requer a reconversão dos instrumentos epistemológicos, metodológicos, técnicos e práticos dos pesquisadores, além de uma atitude reflexiva e crítica sobre a sua própria atuação em redes da ciência. INFORMAÇÃO E ESPAÇO URBANO Referindo-se aos debates interdisciplinares do grupo Culticom com o campo da arquitetura e urbanismo, parte-se do pressuposto de que a informação é construída pelo sujeito que se relaciona com outros sujeitos, em sua totalidade vinculada às práticas sociais urbanas. Se essas estão relacionadas ao contexto social, entende- se que são fruto do crescimento urbano, industrial e comercial, da diferenciação de classes, da especialização do trabalho, das inovações tecnológicas, do acesso educacional, do bem-estar social e do entretenimento, no quadro da modernidade ocidental. Desse ponto de vista, as dimensões históricas, culturais, econômicas, tecnológicas, sociais e políticas são precondições para o entendimento do que seja informação. A informação, assim, é constituída como força produtiva da sociedade, incorporando seu significado ontológico de dar forma a alguma coisa. Esse é o ponto de partida para as questões teóricas e as propostas práticas que aqui são apresentadas no que se refere ao recorte informação-espaço, incorporadas ao Grupo Culticom por meio dos projetos de pesquisa realizados pelo grupo Práticas Sociais no Espaço Urbano (PRAXIS).1 Na linha do horizonte está a possibilidade de 1 PRAXIS é um grupo de pesquisa do CNPq, sediado pelo Departamento de Projetos (PRJ) e pelo Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo (NPGAU) da Escola de Arquitetura da UFMG (EA/UFMG), com projetos financiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), CNPq e Pró-Reitoria de Extensão (Proex/ UFMG). Mais informações sobre o grupo podem ser encontradas no site: <http://www.arq. ufmg.br/praxis>. 90 provocar a produção do terceiro conhecimento, não linear, mas circular, que valorize as inter-relações culturais, ambientais, sociais, econômicas e políticas construídas para enfrentar de modo mais coerente e atuante os desafios atuais da sociedade, especialmente aqueles atrelados à cidade. As bases de reflexão do grupo orientam- se pela premissa de que o direito à cidade, mais do que o direito ao que já existe, refere-se ao direito de transformar radicalmente aquilo que já existe, no contexto das transformações das cidades pelo capital, mais do que pelas pessoas (HARVEY, 2009). Essa premissa geral evidencia o ponto de partida de discursos mais amplos ante o modo como as cidades têm sido regidas pelo capital e a urgência da ação coletiva no enfrentamento do atual modelo de desenvolvimento econômico, caso se queira acessar o espaço urbano como aquele que satisfaça às necessidades humanas. Nesse contexto, certamente inclui-se a teorização de Bourdieu (1997) sobre a apropriação socioespacial do espaço urbano, constituído pela relação de forças entre os atores sociais que o alimentam, o conservam ou o transformam em função de seus interesses diante dos objetos de disputas – entre eles moradia, serviços urbanos, museu, escola, hospital, equipamentos públicos, parques, praças, transporte, espaço público etc. Assim, a sociedade contemporânea se estrutura por meio da disputa pelo espaço urbano como igualmente estrutura a mesma disputa, sendo o espaço urbano determinado por forças produtivas. O conceito marxista de força produtiva remete à relação entre o sujeito e a natureza material e ao modo como os sujeitos coletivos se organizam socialmente e tecnicamente para produzir. Infere-se, portanto, que as relações de trabalho contemporâneas vêm se transformando em razão da passagem da máquina- ferramenta para a máquina informacional, já que o modo de pensar, de agir e de viver também se transformou. Sabe-se que a informação sempre esteve presente na sociedade; mas apenas recentemente a informação e as tecnologias passaram a agir sobre os sujeitos em sociedade, organizando as interações técnicas, sociais e espaciais, quando os sujeitos passaram a agir sobre a informação e as tecnologias, concebendo e conduzindo máquinas, instalações, sistemas de produção e espaços – por isso, a chamada revolução informacional, termo cunhado por Lojkine (2002). 91 Tal revolução informacional é caracterizada “por sua penetrabilidade, ou seja, por sua penetração em todos os domínios da atividade humana, não como fonte exógena de impacto, mas como o tecido em que essa atividade é exercida.” (CASTELLS, 1999, p. 68). O espaço urbano, imerso em processos de mediações, torna-se, então, suporte social que implementa o processo informacional, mas muito além da aplicação simplista das ferramentas de tecnologias em um espaço específico. Esse processo, incorporado em todas as dimensões da realidade cotidiana, rearranja os fragmentos da sociedade por uma via tecnologizada (REYES, 2005), conferindo sentido à miríade de informações que a saturam – as condições sociais, históricas, políticas, econômicas, culturais e tecnológicas vivenciadas pelo ator social que usa, representa, atua, aprende, ensina, transforma, opta, produz e consome. A informação e suas tecnologias aliadas aos processos sociais alteram as práticas espaciais e temporais, constituindo novas formas de interacionalidade social (REYES, 2005). Entende-se que a revolução informacional, sendo componente das forças produtivas da modernização, atinge e transforma o espaço de modo altamente seletivo e desigual. A interposição e a limitação ao acesso e ao uso de informações, atributos presentes na produção do espaço urbano, têm alimentado processos excludentes, descumprindo os propósitos constitucionais e internacionais sobre a produção e o uso democráticos da cidade. Quando a informação se estende como força produtiva potencializada essencialmente pelo capital, torna o espaço urbano mercadoria desenhada, materializada e controlada por seus detentores, evidenciando a distinção social. Ao contrário, a possibilidade de processos colaborativos e horizontais, quando acompanhados pela mediação da informação entre todos os envolvidos, sinaliza a produção do espaço urbano assentada nas bases da coexistência socioespacial. O relacionamento horizontalizado de saberes, promovido com base no compartilhamento de informações, insere-se no paradigma participativo desenvolvido pelo educador Paulo Freire, a partir do reconhecimento dos sistemas de conhecimento (técnico-científico, sociocultural, tradicional ou “experiencial”, referenciados pela realidade socioeconômica) de todos os envolvidos nos processos de produção e uso do espaço urbano. 94 se incorporam ao que o espaço urbano constitui, ou seja, o que a cidade é, amplia-se a potencialidade de iniciativas e de estratégias como “forças propulsoras da ativação e renovação do território urbano negligenciado” (HEHL, 2011, p. 150). As conexões sociais entre os atores envolvidos na produção do espaço urbano, estabelecidas em redes e fundamentais nas práticas sociais urbanas, têm a informação mediada como input de uma “caixa-preta” (HEHL, 2011), constituída por modos de pensar, hábitos, tecnologias, forças e objetos, presente em plano ou programa que pode ou não ser traduzido em realidade com resultados mais ou menos controlados pelos interessados envolvidos no processo. Ou, em outras palavras, a dinâmica diálogo-apropriação postulada por Santos (2005). Nesse bojo, a informação mediada entre todos os envolvidos na produção do espaço urbano rompe com a dicotomia – autoridades e grupos marginalizados, governo e interesses locais, formal e informal – por meio do compartilhamento em rede. As redes sociais existentes, ainda que nem sempre visíveis, se constituem entre atores social, cultural e politicamente diferentes, associados pelos processos de mediação da informação. As redes constituídas, assim, se empoderam para falar (LATOUR, 2005). O terceiro conhecimento que emerge das redes transforma, traduz, distorce e modifica o significado dos elementos que supostamente carrega, propiciando situações, circunstâncias e precedentes, tanto previstas quanto inusitadas, em prol da efetivação de ações (LATOUR, 2005). Nas ações conjuntas entre moradores e pesquisadores do grupo Praxis está o estabelecimento de uma metodologia de ação, mas sem uma receita preestabelecida, a partir da mediação de informações entre a universidade e as famílias envolvidas na autoconstrução da moradia e do espaço urbano, baseada no diálogo comunicativo, recíproco, não hierárquico e desejado entre todos.4 Parte-se da legitimação do saber prático das famílias, incluindo-se valores, ideias e opiniões, e do compartilhamento 4 Diálogos é um projeto de pesquisa alinhado com a disciplina de graduação “Requalificação e Urbanização de Assentamentos Precários”, inseridos no curso de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Arquitetura da UFMG, Belo Horizonte, apoiado pela Fapemig, CNPq e Proex/ UFMG. Ver: <http://www.arq.ufmg.br/praxis/blog/dialogos/dialogos.html>. 95 do acesso a saberes técnicos, permitindo-se, assim, o posicionamento crítico na tomada de decisão sobre o espaço urbano. As primeiras ações giraram, naturalmente, em torno de soluções alternativas de esgotamento sanitário que podem ser imediatamente incorporadas pela concessionária local; ao contrário, as condições políticas e jurídicas impostas limitam suas ações, tornando-a mero espectador das práticas em andamento. A postura assumida pelos moradores e pesquisadores é a de compartilhar informação, relacionada tanto ao saber científico quanto ao saber popular, em formatos e linguagens não codificados de modo a se promover a informação construída por todos os envolvidos, ou seja, o terceiro conhecimento. Inseridos no universo da autoconstrução, as práticas seguem somente em razão da disponibilização de recursos financeiros e de mão de obra provindos de moradores, parentes, amigos, voluntários, alunos e pesquisadores. Em vários momentos, divergências e conflitos acontecem, revelando, por um lado, a inexperiência dos envolvidos na participação de processos horizontais mas, por outro lado, a potencialidade da informação como aquilo que aciona ou dispara, ou melhor, simplesmente medeia as relações entre objetos, conteúdos e atores. INFORMAÇÃO E LEITURA Para se estabelecer uma relação de interdisciplinaridade entre informação e leitura, um dos pressupostos fundamentais diz respeito à exigência de se repensar o conceito tradicional de leitura, sobretudo aquele colado à sua “escolarização”. Nesta, as mensagens textuais são frequentemente indecifráveis, apesar de foneticamente recuperáveis pelos alfabetizados e sua necessidade de decodificação. Outra premissa é a compreensão de que a leitura deixa de ser percebida como a recepção passiva de conteúdos preestabelecidos, imanentes ao texto, para ser encarada como um processo de criação de sentidos, provocando uma conscientização sobre a linguagem. O aporte inicial, vindo dos estudos literários, avança desde uma teoria da recepção (ISER, 1996) para uma teoria do efeito (JAUSS, 1979), até chegar à centralização do sujeito leitor. Assim, são questões do debate que contemporaneamente cerca a área: o leitor, inserido no social e com ele dialogando, como um novo objeto 96 de estudo mais relevante do que o texto literário; o contexto como negociação, mais do que interação, para o receptor da obra literária; a abordagem empírica como novo paradigma para a investigação; a interdisciplinaridade como instrumental; a articulação entre o sistema sujeito, o sistema literatura e o sistema sociedade, em lugar da análise de textos literários; uma teoria da literatura cujo objeto seja outro que não um conjunto de obras isoladas; a literatura como necessidade da sociedade; a autopoiese (autorreferências articulando-se a eventos externos e à linguagem); a questão do sujeito neste processo cognitivo – um indivíduo histórico em permanente interação. Essas bases teórico-metodológico-pedagógicas com enfoque interdisciplinar se construíram no Programa Nacional de Incentivo à Leitura ( Proler), da Fundação Biblioteca Nacional (gestão 1992-1996), entendendo que, para a formação de um leitor crítico, antes tinha sido necessária sua sensibilização, depois se precisou pensar acerca de sua recepção como força propulsora, para chegar-se à fundamental interação entre leitor e contexto. O trabalho feito pelo Grupo Culticom igualmente destaca essa circularidade dos saberes proporcionada pela faceta interdisciplinar da informação. Informação e leitura são, portanto, processos no quadro dos fenômenos que se inscrevem na esfera social. A atual indagação é sobre o valor de ambas como práticas de significação em nossa sociedade. Seus pressupostos dirigem-se à reflexão sobre a interpretação, a centralidade dos sujeitos como tema e finalidade, o papel da linguagem (fala, discurso, silêncio, narrativas), e sobre a ação. Assim, informação e leitura conformam redes possibilitadoras em suas estratégias de apropriação, produção e comunicação dos sentidos do viver; constituem-se como campos propícios ao questionamento sobre as práticas do cotidiano. Nesse sentido, a hipótese de que leitura e informação, enquanto processos simbólicos, podem configurar-se como territórios de (re)significação para os sujeitos sociais, na medida em que servindo-lhes tanto como possibilidade de apropriação e produção quanto de compartilhamento de saberes, oportunizam a constituição de singularidades que se vão conscientizando articuladas (no) com o contexto, tecendo comunidades intersubjetivas, transformando realidades. A noção de
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