Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

Hereditariedade e a natureza da ciência, Notas de estudo de Enfermagem

HEREDITARIEDADE E A NATUREZA DA CIÊNCIA

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 18/11/2010

gerson-souza-santos-7
gerson-souza-santos-7 🇧🇷

4.8

(351)

772 documentos

Pré-visualização parcial do texto

Baixe Hereditariedade e a natureza da ciência e outras Notas de estudo em PDF para Enfermagem, somente na Docsity! Primeira aula (T1) Texto adaptado de: MOORE, J. A. Science as a Way of Knowing - Genetics. Amer. Zool. v. 26: p. 583-747, 1986. Além da racionalidade, uma segunda característica do conhecimento científico é a objetividade. Assim, em ciência deve-se fazer grande esforço no sentido de excluir ao máximo a rigidez de pensamento, a emoção, a aceitação prévia de afirmações, as opiniões pessoais não baseadas em informações científicas e as expli- cações sobrenaturais. O ideal seria acreditar só no que a natureza nos mostra e não no que gosta- ríamos que fosse verdade por razões pessoais, religiosas, políticas etc. O poder da ciência como caminho para o conhecimento reside no fato de que toda resposta, independentemente de como ela foi obtida, neces- sita ser confirmada por outros cientistas com igual sabedoria, perícia e receptividade. Assim, os procedimentos da ciência são autocorrigíveis. Nesse sentido, o caminho da ciência contrasta com o da filosofia, da religião e de muitas disci- plinas humanísticas em que a opinião freqüente- mente toma o lugar das conclusões verificáveis. O contraste entre esses dois modos de pensar é importante tendo-se em vista o objetivo da resposta que se procura. SENSO COMUM E CIÊNCIA Uma característica humana é a necessidade que as pessoas têm de interpretar a natureza, desde o universo mais amplo até a si mesmas. A maneira mais comum de se fazer essa interpretação é por meio do chamado senso comum. Senso comum é uma forma não-programada de conhecimento que se dá pela simples observa- ção dos fatos, em geral, sem um aprofundamento racional. Isto é, não há uma preocupação com as explicações para os fatos, ou, quando estas são propostas, não há uma preocupação em testá- las. Muitas vezes, as explicações propostas são de natureza mística ou sobrenatural. No entanto, a importância do senso comum não deve ser sub- estimada; foi essa forma de conhecimento que produziu as bases sobre as quais se sustenta a civilização moderna. Foi esse tipo de conheci- mento que levou à descoberta e ao melhoramento das plantas comestíveis e medicinais, ao melhora- mento dos animais para uso humano, à invenção da roda e da maioria das máquinas, apenas para citar alguns exemplos. A ciência difere do senso comum porque procura explicações sistemáticas para fatos (provenientes da observação e de experimentos), as quais possam ser submetidas a testes e a críticas por meio de provas empíricas1 . O objetivo do conhecimento científico é desvendar a ordem oculta que atrás das aparências das coisas ou fenômenos. 1 Empírico é relativo ao mundo natural observável. Na verdade, a ciência moderna lida com diversos fenômenos que não são diretamente observáveis, tais como as partículas fundamentais, genes, estados da mente, etc. Nesse contexto amplo, empírico refere-se ao uso de informações obtidas da observação direta ou indireta. 1 HEREDITARIEDADE E A NATUREZA DA CIÊNCIA Objetivos 1. Distinguir senso comum e ciência. 2. Explicar a hipótese da pangênese de Hipócrates. 3. Comparar o método baconiano, a maneira clássica (teológico-medieval) e a modo atual de analisar a na- tureza. 4. Conceituar os termos: indução, dedução, fato, hipóte- se, lei e teoria. 5. Comparar as idéias de Popper e de Thomas Kuhn so- bre o conhecimento científico. A ciência tem se mostrado um poderoso instru- mento para solucionar muitos dos problemas que surgem da interação entre seres humanos e o mundo não-humano ao nosso redor, e também alguns dos problemas das interrelações entre os próprios seres humanos. Contudo, não se pode desejar que a ciência nos diga o que é bom, justo, belo, ou mesmo prazeroso. Em muitos casos, no entanto, as informações científicas podem nos ajudar a prever o resultado de decisões humanas e, uma vez tomadas essas decisões, procedi- mentos científicos podem nos ajudar a atingir os objetivos desejados. Mais do que qualquer outro aspecto da civi- lização, a ciência está moldando nossas vidas e as perspectivas futuras. Essa é uma das razões pelas quais não se pode permitir que seu controle esteja unicamente nas mãos de uma elite. Cursos de ciências devem fornecer uma compreensão efetiva do alcance e das limitações dos procedimentos científicos. Os atuais estudantes, futuros líderes da sociedade, precisam entender que o conhecimento científico é uma condição necessária para o desenvolvimento de novas relações com o mundo natural. Se a humanidade deseja evitar um desastre terminal sem paralelo é fundamental o desenvolvimento de novos tipos de relações com a natureza. Precisamos entender que ciência é uma arma poderosa para atingir objetivos humanos, mas que é impossível para a ciência definir esses objetivos. AS ORIGENS DA TEORIA GENÉTICA A importância da teoria genética Em 1973, o famoso biólogo Theodosius Dobzhansky lançou um desafio aos criacionistas, “Nada em Biologia faz sentido a não ser sob a luz da evolução”. Isso é uma verdade, embora exista algo mais fundamental de onde derivam todos os principais conceitos em Biologia, a Genética. A característica fundamental de um ser vivo é sua capacidade de se replicar com grande exati- dão, transformando matéria e energia do mundo não-vivo em mais matéria viva. A replicação e todos os demais aspectos da vida são reflexos da estrutura e funcionamento do material genético – o ácido nucléico. A Genética é o campo de investigação que procura entender esse fenômeno de replicação e, portanto, deve ser considerada básica para toda a Biologia. Veja como da replicação genética está na base de todas as áreas da Biologia. A Biologia Evolu- tiva é o campo que investiga os aspectos da repli- cação ao longo do tempo. A Biologia do Desen- volvimento é o campo de investigação que lida com a replicação ao longo do ciclo de vida de um organismo. A Sistemática estuda a diversidade da vida que é uma conseqüência da replicação, modulada pelo ambiente ao longo do tempo. A Ecologia lida com as interações entre o ambiente e o indivíduo ou grupos de indivíduos, os quais são geneticamente programados. As conseqüên- cias estruturais e funcionais da atividade do ma- terial genético em todos os níveis de organização, desde a célula até o organismo, são estudadas pela Morfologia e Fisiologia. Assim, Genética, incluindo sua manifestação a longo prazo – a Biologia Evolutiva – é a disciplina integradora de todos os conceitos e informações biológicas. Hoje existem problemas especiais no ensino da Genética para principiantes. Esse ramo da ciên- cia está se desenvolvendo de modo tão espeta- cular e rápido que é grande a tentação de apresen- tar principalmente as descobertas mais recentes – quando existe tanta coisa interessante para ser dita é difícil não dizê-las. No entanto, quando isso é feito dessa maneira, sem fornecer inicialmente uma estrutura conceitual da área, as novidades podem ser memorizadas, mas é impossível compreendê-las e apreciá-las em toda sua profun- didade. O que é “antigo” para cientistas e profes- sores pode ser “novo” para os alunos. Assim, aprender sobre cromossomos sexuais ou como se descobriu que o DNA é o material hereditário podem ser histórias heróicas, importantes e esti- mulantes para aqueles que desconhecem como esses “quebra-cabeças” foram desvendados. Ou, como disse J. R. Baker: “Em muitos campos da ciência é necessário conhecer a embriologia das idéias: nossa visão moderna só pode ser comple- tamente compreendida e julgada se nós enten- dermos as razões que nos fizeram pensar como nós pensamos.” Esse conselho emitido há duas gerações é ainda mais importante hoje. A velocidade com que o progresso alimenta a estrutura conceitual da Biologia é tão grande que existe o perigo de a saturação de informação nos levar a esquecer a própria estrutura conceitual. Os estudantes não devem ser empanturrados com informações e privados de entendimento. 2 hipótese seria o limite conceitual para os dois milênios seguintes. Durante todo esse tempo, a falta de progresso na compreensão da heredita- riedade foi conseqüência principalmente da inca- pacidade de formular perguntas precisas que pudes- sem ser estudadas com a metodologia disponível. A questão da hereditariedade após Aristóteles O interesse pelas questões científicas pratica- mente cessou no mundo ocidental durante o longo período em que a Igreja exerceu hegemonia sobre o pensamento humano. Foi apenas bem depois do Renascimento que a observação e a experi- mentação passaram a ser aplicadas de maneira sistemática na tentativa de se compreender a here- ditariedade. Mesmo assim o progresso foi muito lento, novamente porque não se conseguia formu- lar uma pergunta adequada. Durante os séculos XVIII e XIX, o procedi- mento padrão de se procurar informações a respeito de hereditariedade era por meio de cruza- mentos. Eram feitos cruzamentos entre indivíduos com estados contrastantes das características e a descendência era analisada. Até hoje esse é um dos procedimentos mais poderosos para se obter informações a respeito de hereditariedade. Contudo, pouco progresso foi feito no campo da hereditariedade até o final do século XIX. Assim, poucas coisas relevantes no campo do estudo da hereditariedade aconteceram no período entre Aristóteles (384-322 a.C.) e Gregor Mendel (1822-1884), mas nesse período foram estabele- cidas as bases da investigação científica. AS ORIGENS DA CIÊNCIA A incapacidade dos antigos obterem avanços significativos no campo da hereditariedade causa surpresa, considerando a idéia generalizada de que existem procedimentos padrões em ciência – o método científico – que, se devidamente seguidos, levam inexoravelmente a novas desco- bertas e entendimentos profundos. Esses proce- dimentos são aquisições recentes que foram sendo formulados lentamente pelos filósofos durante séculos, mas como quase sempre acontece, as contribuições de alguns indivíduos se destacam. Admite-se que a ciência moderna teve início com Galileu em 1632 e que a filosofia da ciência foi iniciada por Francis Bacon (1561 - 1626), Lorde Chanceler da Inglaterra. Bacon é consi- derado por de Solla Price (1975), como sendo quem estabeleceu a revolução científica e orga- nizou o método científico. Francis Bacon e a Nova Era Em uma série de livros publicados entre 1606 e 1626, Bacon defende a ciência empírica e critica severamente o hábito clássico e teológico- medieval de começar uma investigação com um ponto de vista aceito como verdade, deduzindo a partir daí as conseqüências. Sua contribuição para o desenvolvimento da ciência está no fato que ele considerava tanto a observação empírica quanto a obtida por meio dos experimentos formais como o único caminho adequado para se testar hipóteses. Seus argumentos tiveram enorme influência e levaram ao rápido crescimento do número de cientistas profissionais nos dois séculos subseqüentes. A sugestão de Bacon era começar com as observações, não com a fé. Isto é, devia-se partir dos fatos conhecidos relacionados com algum fenômeno natural e tentar formular princípios gerais que explicassem esses fatos. Esse método lógico de raciocínio do particular para o geral é conhecido como indução – um procedimento que está na base da ciência moderna. As idéias de Bacon de como fazer ciência fo- ram descritas em seu livro Instauratio Magna de 1620. Ele começa apontando a ineficiência das tentativas anteriores de compreender a natureza e ressalta que, a menos que se tome muito cuidado, as coisas que a mente humana absorve, tendem a ser “falsas, confusas e abstraídas dos fatos”. Em boa medida, isso é conseqüência de observarmos o que já assumimos como sendo verdade. A conseqüência disso é que “a filosofia e outras ciências intelectuais ... mantêm-se como estátuas, são adoradas e celebradas, mas não se movem ou avançam”. Segundo essa visão, um conhecimento do mundo natural digno de confiança vem da observação da própria natureza e não de testes da mente humana. A natureza seria o juiz no plano de Bacon de “começar a reconstrução total das ciências, das Artes e de todo conhecimento humano”– sua “Grande Renovação”. Ele sugere que uma investigação comece pela reunião de todas as informações obtidas por 5 observações e experimentos relacionados com o tópico investigado. Deve-se tomar muito cuidado para evitar a inclusão de informações erradas, o que, é claro, levaria a conclusões falsas. Armadilhas da mente: ídolos a serem abominados Segundo Bacon, a mente precisa se proteger de idéias preconcebidas para que as informações sejam interpretadas com exatidão. Essa é uma tarefa quase impossível de ser cumprida uma vez que o que somos, pensamos e fazemos depende enormemente de nossa aceitação das crenças da sociedade onde vivemos e da ciência que profes- samos. Essas crenças tornam-se os ídolos aos quais nos submetemos, e a extensão dessa sub- missão pode levar a conclusões erradas. Bacon lista quatro grupos: ídolos da Tribo, da Caverna, do Mercado e do Teatro. (Bertrand Russell reconhece mais um grupo, que denominou ídolos da Escola). Os ídolos da Tribo são idéias erradas precon- cebidas e pensamento confuso, comuns a todo ser humano. Os ídolos da Caverna são as crenças erradas de cada mente individual – a mente da pessoa comportando-se como uma caverna isolada. Bacon aponta especialmente como cada pessoa tende a favorecer suas próprias opiniões e des- cobertas – um sério problema em nossos dias. Outros ídolos da Caverna decorrem de uma valori- zação indevida do que é antigo ou das novidades. Os ídolos do Mercado são os problemas semânticos que surgem quando as pessoas tentam se comunicar e utilizam palavras diferentes. As palavras de nossos idiomas foram criadas devido às necessidades do dia-a-dia e, com freqüência, são impróprias, ou não são específicas o sufici- ente, para serem usadas em ciência. Os ídolos do Teatro, isto é, dos sistemas filosóficos, consistem na utilização de modos de pensar religiosos ou filosóficos em que a “verdade” é deduzida de premissas pré- estabelecidas. Bacon aponta, por exemplo, o fato de algumas pessoas tentarem encontrar um sistema filosófico natural (isto é, Ciências Naturais) no primeiro livro da Gênese. Existem problemas mais gerais difíceis de serem combatidos, como a superstição, a cegueira aos fatos e o imoderado fervor religioso. O método hipotético – dedutivo O procedimento preconizado por Bacon evoluiu para o chamado método hipotético- dedutivo. Nessa concepção, um estudo científico começa pela observação e/ou experimentação de algum fenômeno natural, utilizando as informa- ções obtidas para se chegar a algum entendimento das causas fundamentais ou de associações entre eventos aparentemente não relacionados. Hipó- teses provisórias são formuladas com base nas informações selecionadas e, a partir dessas hipó- teses, são feitas deduções que permitem testá-las. Assim, a dedução continua a ser um poderoso componente da análise científica, mas a dedução dos cientistas modernos não é a mesma do pensa- mento dedutivo que Bacon considerava tão repugnante. Na ciência contemporânea, as dedu- ções a partir de uma hipótese são conclusões plau- síveis tiradas a partir da explicação provisória para o fato. Seu valor é sugerir que observações ou experimentos podem ser feitos para se validar ou refutar a hipótese, e nada mais além disso. As deduções dos antigos filósofos e teólogos eram com freqüência tomadas como conclusões defini- tivas tiradas de verdades eternas, mas na realidade elas se baseavam em crenças ou imaginação fértil e não em evidências. Os cientistas de hoje se esforçam no sentido de partir apenas das informações mais fidedignas e confirmáveis, fazendo a seguir uma constante interação entre procedimentos indutivos e dedu- tivos para chegar ao nível mais fundamental de compreensão do mundo natural. Essa compre- ensão não pode ser mais do que “essa é a afirmação mais precisa que pode ser feita com base nas evidências disponíveis.” Isso não sig- nifica que a ciência de hoje esteja “errada”; signi- fica que ela será substituída amanhã por uma ciên- cia melhor. Nossa análise do desenvolvimento dos conceitos de Genética fornecerão um excelente exemplo disso; a Genética de Mendel redesco- berta em 1900 não estava errada, ela apenas foi ampliada em uma Genética melhor de Sutton (1903), de Morgan (1912) e, finalmente, na vasta e abrangente Genética atual. Em resumo, a diferença fundamental entre o procedimento de Bacon e o procedimento por ele criticado é que as afirmações científicas preci- sam estar baseadas em informações tiradas de observações e/ou experimentos sobre fenômenos 6 naturais e não de idéias e princípios preconce- bidos, ou crenças de autores clássicos, ou da imaginação, ou da superstição. Não é correto dizer que Bacon acreditava que a indução fosse o único procedimento adequado para se chegar a afirmações científicas. Sua ênfase na indução foi mais no sentido de se opor à aparente total confiança que filósofos e teólogos tinham na dedução a partir de verdades pré-esta- belecidas. Sua insistência na indução e na defesa da ciência experimental fizeram com que nos séculos seguintes o método experimental se tor- nasse sinônimo de método científico. Infelizmente isso é uma confusão entre o geral e o particular. Experimentos não constituem o único caminho para se testar hipóteses; elas também podem ser testadas pela simples observação ou por sua consistência lógica interna, como faziam os grandes geômetras gregos). A vantagem da expe- rimentação é que por meio dela pode-se controlar a maioria da variáveis com exceção da que se está sendo testada. No entanto, o desenvolvi- mento da matemática estatística a partir do século passado forneceu técnicas poderosas que nos permitem realizar testes equivalentes aos experi- mentais com base apenas em dados da obser- vação. Nesse processo lançamos mão de técnicas matemáticas para separar a influência de dife- rentes fatores. Foi isso que provocou um aumento dramático no número de estudos empíricos não- experimentais, especialmente na segunda metade desse século. A CIÊNCIA NO SÉCULO XX Os séculos que se seguiram a Bacon foram dominados pela idéia de que as explicações cien- tíficas eram simples generalizações derivadas de uma série de observações. Isto é, a partir de uma série de observações de um fenômeno particular faz-se uma generalização - como todos os cisnes que já observei eram brancos concluo que “todos os cisnes são brancos”, ou, “toda vez que ocorre um relâmpago, segue-se um trovão”. O ponto central dessa idéia é que uma teoria científica desenvolve-se linearmente, em três estágios separados: observações —> hipótese —> teste da hipótese. Essa visão equivocada de ciência, denominada positivismo pelo filósofo-cientista francês Augusto Comte, perdurou em áreas das Ciências Sociais e da Biologia até o século XX. Muitas pessoas ainda hoje vêem a ciência dessa forma e consideram erroneamente que ela consiste na descoberta de novos fatos acerca do mundo. Desde o século XVII, no entanto, a visão posi- tivista da ciência já era questionada. Em meados do século XVIII o filósofo escocês David Hume apontou um sério problema na indução de gene- ralizações. Segundo ele, a única garantia que se tem para o sucesso do método indutivo é seu sucesso passado - o que nos faz supor que um próximo cisne que venhamos a encontrar seja branco é o fato de todos os anteriores terem sido brancos. Mas isso por si só é uma generalização e uma próxima observação - encontrarmos um cisne preto - pode derrubar essa generalização particular. Cria-se, assim, um círculo vicioso em que tentamos justificar uma generalização por uma outra igualmente incerta. A contribuição de Karl Popper A tentativa mais conhecida para resolver esse paradoxo foi a do filósofo austríaco Karl Popper (1902-1994). Reconhecendo que as tentativas de defender a ciência em termos lógicos por referên- cia à indução eram inevitavelmente inviáveis, Popper enfatizou que a idéia, até então vigente, de que os cientistas simplesmente acumulam exemplos de um fenômeno e, então, derivam generalizações a partir deles, estava errada. Na visão de Popper, os cientistas realmente fazem hipóteses sobre a natureza do mundo (às vezes, mas nem sempre, por meio de generalizações indutivas) e, então, submetem as hipóteses a tes- tes rigorosos. Esses testes, no entanto, não são tentativas para provar uma teoria particular (uma forma de indução) mas sim tentativas de negá- las. Provas, ele argumenta, é algo logicamente impossível de se obter. Nós podemos apenas negar algo com alguma certeza, pois pelas diversas razões que Hume apontou, um único exemplo contra é suficiente para negar uma gene- ralização; enquanto prová-la requereria a tarefa impossível de documentar todo exemplo de um fenômeno em questão (inclusive, presumivelmen- te, aqueles que ainda não aconteceram!). Na visão popperiana, a pesquisa científica tem início com problemas, quando há algo errado com os fatos, isto é, quando a natureza não se compor- ta de acordo com o previsto por nossa visão de mundo. Como diz Popper: “cada problema surge 7 10 não a cura, foi o auge da realização na Medicina. Os médicos eram muito mais capazes de identifi- car as doenças do que curá-las. Kuhn acredita que na maioria das vezes um paradigma não evolui para um novo. Em vez disso, a área toma uma nova abordagem inteira- mente diferente com um novo paradigma. Gra- dualmente os profissionais perdem interesse no velho paradigma e começam a trabalhar nos detalhes do novo, ou a maioria dos cientistas mais velhos sai de cena com seu velho paradigma e os jovens passam a fazer a ciência normal dentro dos parâmetros do novo paradigma. Isto aconteceu na Citologia. No último terço do século XIX uma nova abordagem estava em voga. O novo paradigma pode ser chamado de teoria da continuidade cromossômica. Buscava- se seguir o comportamento dos cromossomos na mitose, na meiose e na fertilização. Muitos citolo- gistas perderam o interesse em estabelecer se uma outra criatura tinha o corpo composto por células e, em vez disso, passaram a tentar descobrir qual era o papel dos cromossomos no ciclo celular. Mais uma vez, o novo paradigma fornecia uma base conceitual para um importante fenômeno biológico e guiava a pesquisa, a ciência normal, que analisava os detalhes. Aparente antagonismo entre as idéias de Popper e Kuhn A princípio as visões de Kuhn e de Popper parecem ser diametralmente opostas. Elas, no entanto, não podem ser comparadas nesses termos, pois se referem a coisas distintas. A con- cepção de Popper é uma declaração prescriptiva do que os cientistas devem fazer se eles desejam obter as coisas certas; a concepção de Kuhn é normativa sobre o que eles realmente fazem. Esse é o motivo, segundo o filósofo húngaro Imre Lakatos, de os cientistas parecem se comportar de acordo com a visão de Popper em certas ocasiões, mas de acordo com Kuhn em outras. Lakatos argumenta que essa aparente contradição decorre do fato de os filósofos de ciência não reconhecerem que esses dois casos envolvem tipos de teorias radicalmente diferentes. Cientistas, segundo ele, trabalham em um mundo com diversos níveis no qual algumas teorias fun- cionam de um modo programático enquanto outras estão mais relacionadas com os detalhes de como o programa funciona. Uma teoria programática fornece aos cientistas as razões para fazer um experimento particular ou um modo particular de ver o mundo: ela funciona como um paradigma kuhniano. Dentro desse programa, os cientistas geram hipóteses subsidiárias que especificam como a rede teórica funciona na prática: é isso que os cientistas testam em detalhe e aceitam ou rejeitam de um modo popperiano. A teoria de evolução de Darwin por meio da seleção natural, por exemplo, fornece uma rede teórica aos biólogos de como interpretar o mundo vivo. Isso estimula-os a interpretar suas observações em um certo tipo de caminho e sugere hipóteses particulares para serem testadas. A hipótese subsidiária pode ou não ser correta, mas sua rejeição não é por si só evidência de que a rede conceitual é errada. Ela meramente nos diz que a rede não produziu os efeitos na maneira como nós supúnhamos. Lakatos levanta outro ponto prático impor- tante quando ele diz que não há razão para rejei- tarmos uma teoria apenas porque existe evidência contra ela. Sem uma rede conceitual, nós não podemos fazer perguntas ou planejarmos experi- mentos. Assim não devemos abandonar uma rede teórica na ausência de uma melhor para substituí- la. Na verdade, o melhor caminho para se encontrar uma teoria alternativa é continuar fazendo testes de hipóteses geradas pelo velho paradigma. Fazendo isso, nós temos a chance de descobrir algum fato crucial que nos levará a um novo paradigma. Teorias são idéias ou modelos de como o mundo funciona. Nós trabalhamos dentro de um mundo estritamente teórico deduzindo que conse- qüências devem acontecer a partir das suposições e premissas do modelo; nós então testamos a vali- dade do modelo comparando as previsões con- tra o mundo real. Uma vez que o modelo fornece previsões que coincidem com o que realmente observamos, nós continuamos a desenvolver o modelo. Mas quando o modelo falha ao prever corretamente a realidade, nós alteramos o modelo ou procuramos elaborar um melhor. Ciência, em outras palavras, é um processo de retro-alimenta- ção: ela aprende a partir de seus próprios erros. Seu comportamento é darwiniano, no sentido de que apenas as teorias bem sucedidas sobrevivem. Essas mudanças na perspectiva de como os cientistas realmente trabalham levam-nos a uma importante reinterpretação das relações entre 11 Nota (texto extraído do livro Sementes da descoberta científica, de W. I. B. Beveridge, tradução de S. R. Barreto. T. A. Queiroz, Editor, Ltda e EDUSP, São Paulo, 1981): “Na serendipidade [ou, serendipismo], o cientista depara com um acontecimento incomum, ou uma coincidência curiosa de dois acontecimentos não incomuns, ou um resultado experimental inesperado. Não é o caso, aqui, de juntar idéias já meio formadas, ou procurar analogias sugeridas, porque o próprio observado é a descoberta, ou pelo menos um forte indício da descoberta; ela aparece de surpresa e pode ser recebida com dúvidas ou mesmo incredu- lidade. Enquanto uma intuição do tipo eureka provoca a exclamação “achei!”, isto é, uma solução intensamente procurada, na serendipidade se experimenta uma reação completamente diferente - alguma coisa foi encontrada, mas alguma coisa que não estava sendo procurada. Não é uma intui- teoria e dados. Somos obrigados a fazer uma separação bem definida entre o mundo teórico e o mundo dos dados empíricos. Isso cria uma concepção de ciência circular ao invés de linear. Ela envolve dois mundos distintos mas paralelos (o mundo teórico no qual residem as teorias, e o mundo empírico das observações), ligados por um processo de retro-alimentação de testes de hipóteses: MUNDO TEÓRICO rede teórica teoria subsidiária hipótese MUNDO EMPÍRICO fatos previsões . . /# # EXERCÍCIOS PARTE A: REVENDO CONCEITOS BÁSICOS Preencha os espaços em branco nas frases de 1 a 13 usando o termo abaixo mais apropriado. (a) ciência normal (g) lei (b) conhecimento científico (h) paradigma (c) dedução (i) prova empírica (d) fato (j) senso comum (e) indução (k) teoria (f) hipótese 1. Um conjunto de idéias inter-relacionadas que procura explicar fatos abrangentes constitui um(a) ( ). 2. Um “palpite” sobre o porquê da ocorrência de um fenômeno é um(a) ( ). 3. ( ) é qualquer dado da natureza. 4. Uma previsão do que irá ocorrer em determinada situação, tendo por base uma explicação provisória para um fato, é um(a) ( ). 5. A reunião de diversas informações sobre um fato, na tentativa de encontrar uma explicação para sua ocorrência, é um(a) ( ). 6. Uma realização científica universalmente reconhecida que, durante algum tempo, fornece problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência é, na visão de Kuhn, um(a) ( ). 7. Uma evidência baseada na observação de um fenômeno natural ou experimental é um(a) ( ). ção. Dois exemplos clássicos são os de Colombo, descobrindo o Novo Mundo enquanto procurava um caminho para o Oriente, e o da descoberta do raio- X por Röentgen, no qual poucos acreditaram no começo. A serendipidade é definida, em três dicio- nários que eu consultei, como “o dom de encontrar coisas valiosas em lugares inesperados por pura sorte”, “a faculdade de fazer felizes e inesperadas des- cobertas por acidente” e “um suposto dom de encontrar coisas valiosas e agradáveis que não se buscava.” A palavra serendipidade (serendipity) foi cunhada por Horace Walpole, em 1754, depois de ler um antigo conto de fadas oriental sobre três príncipes de Serendip [antigo nome do Ceilão]. Walpole escreveu: “eles estavam sempre fazendo desco- bertas, por acidente e sagacidade, de coisas que não estavam procurando [...] deve-se observar que nenhuma descoberta de algo que se está procu- rando surge como nesta descrição.” 8. A descrição das regularidades das manifes- tações de uma classe de fenômenos é um(a) ( ). 9. Uma definição de ( ) pode ser: “um corpo de conhecimento obtido através de inferências lógicas baseadas em observações empíricas.” 10. ( ) é uma forma de conhecimento que não se preocupa com as explicações para os fenô- menos naturais e quando as propõem não se preocupa em apresentar provas. 11. ( ), na visão de Kuhn, é o tipo de inves- tigação que procura consolidar realizações científicas passadas. PARTE B: LIGANDO CONCEITOS E FATOS Utilize as alternativas abaixo para completar as frases das questões 12 e 13. a. (1) dedução e (2) hipótese. b. (1) hipótese e (2) dedução. c. ambas hipóteses. d. ambas deduções. 12. (1) Se os bichos-da-goiaba surgem de ovos depositados por moscas na fruta, (2) goiabas ensacadas não devem ficar bichadas. As partes (1) e (2) dessa frase são ( ). 13. Há mais de 100 anos, Charles Darwin e seu filho Francis (1) imaginaram que as plantas percebiam a luz através da ponta do caule e, assim, se curvavam em direção à fonte lumi- nosa. (2) Se fosse esse o caso, plantas deca- pitadas, ou com a ponta do caule coberta, não se curvariam em direção a uma fonte luminosa. As partes (1) e (2) desse texto são ( ). Utilize as alternativas abaixo para completar as frases de 14 a 18. (a) dedução (c) hipótese (e) teoria (b) fato (d) lei 14. A idéia de que o universo surgiu entre 12 e 20 bilhões de anos atrás, a partir de uma grande explosão, explica e relaciona diversos fenôme- nos naturais. Por isso é considerada um(a) ( ). 15. Galileu, após realizar inúmeras observa- ções,firmou que a velocidade de um corpo que cai livremente, a partir do repouso, é propor- cional ao tempo e que o espaço percorrido é proporcional ao quadrado do tempo empregado para percorrê-lo. Isso é um(a) ( ). 16. A idéia de que a célula é a unidade morfo- fisiológica dos seres vivos é um(a) ( ). 17. Os aristotélicos diziam que as maçãs caem para baixo e não para cima por ser próprio da natureza das coisas terranas cair para baixo. Essa idéia pode ser considerada um(a) ( ). 18. Segundo dizem, Newton observou uma maçã se desprender da macieira e cair ao chão. Isso é um(a) ( ). Utilize as alternativas abaixo para completar as frases de 19 a 23. (a) Bacon (d) Kuhn (b) Dobzhansky (e) Popper (c) Hipócrates 19. A hipótese da pangênese foi proposta origi- nalmente por ( ). 20. A frase “Nada em Biologia faz sentido a não ser sob a luz da evolução.” é de autoria de ( ). 21. A idéia de que uma hipótese só pode ser credenciada por meio de testes de falseabi- lidade, pois é impossível demonstrar sua vera- cidade, está ligada a ( ). 22. ( ) é considerado um dos introdutores de uma nova forma de investigar a natureza, a qual está na origem da ciência. 23. As expressões paradigma e ciência normal estão ligadas ao pensamento de ( ) sobre como ocorre o progresso em ciência. Utilize as alternativas abaixo para completar as frases de 24 e 25. (a) conhecimento científico (e) teoria (b) senso comum (d) fato (c) dedução 24. A prática de salgar alimentos, como carne e peixe, para conservá-los pode ser conside- rada como ( ). 25. A idéia de que a presença de sal em alimen- tos, como carne e peixe, ajuda na sua conserva- ção porque destrói os microorganismos por cho- que osmótico, pode ser considerada como ( ). PARTE C: QUESTÕES PARA PENSAR E DISCUTIR 26. No que o caminho da ciência se diferencia dos da filosofia e da religião? 27. O que deve levar um pesquisador a iniciar uma investigação científica? 28. Qual é a essência do método científico, ou seja, no que ele difere do método clássico (teológico-medieval) de se pensar a natureza? 29. O que é a dedução no método científico? Qual é seu valor? No que ela difere da dedução dos antigos filósofos e teólogos? 12 dos tubos por uma tipo de diafragma.” Ele obser- vou estruturas semelhantes em muitos outros tipos de plantas. Muitos pensam que Hooke des- creveu aquelas caixas como vazias e parou por aí. Isso não é verdade, ele observou cortes de plantas vivas e verificou que as caixas microscó- picas eram preenchidas por um suco. A presença de células na cortiça e em outras plantas poderia ser uma característica geral ou poderia ser restrita a uns poucos tipos de organis- mo. A continuação das pesquisas iria mostrar que as plantas consistiam inteiramente ou quase intei- ramente de estruturas parecidas, semelhantes a caixas. Um outro membro da Royal Society, Nehemiah Grew (1641 - 1712), publicou uma monografia em 1682 que contém muitas pranchas belíssimas mostrando a estrutura microscópica das plantas. Com o tempo, a idéia de que os seres vivos são formados por células foi estendida para os animais. Hooke havia feito uma observação interessante que não foi importante na sua época – ela se tornou uma descoberta importante muito mais tarde, em função de pesquisas posteriores. Mais de dois séculos foram necessários para se chegar à conclusão que o conhecimento das células era essencial para a compreensão da here- ditariedade. Podemos ter certeza que, quando Robert Hooke sentou-se à frente de seu micros- cópio, ele não estava interessado em descobrir os mistérios da herança. Não havia maior razão para acreditar que as células tivessem algo a ver com a hereditariedade do que, por exemplo, as cerdas que ele descreveu em detalhe sobre o corpo de uma pulga. O ESTABELECIMENTO DA TEORIA CELULAR As células se tornaram verdadeiramente impor- tantes somente quando foi proposta a hipótese de que os corpos de todos os organismos eram consti- tuídos apenas de células ou de produtos de células. Essa hipótese foi formulada e testada no começo do século XIX e está associada principalmente a três cientistas: R. J. H. Dutrochet, Matthias Jacob Schleiden e Theodor Schwann. Mas como alguém poderia provar que “os corpos de todos os organismos são constituídos apenas de células ou de produtos de células?” Ao tentar responder essa questão pode-se aprender algo muito importante sobre ciência. A resposta é, obviamente, que não há nenhuma pos- sibilidade dessa afirmação ser comprovada. Como alguém poderia estudar todos os organismos? A maioria já se extinguiu há muito tempo e não seria nem mesmo possível estudar um indivíduo de cada uma das espécies viventes. Qual seria sua resposta se alguém lhe perguntasse se os corpos dos dinossauros eram constituídos de células? Mas lembre-se, tudo o que se pode desejar em ciência é que uma afirmação seja “verdadeira acima de qualquer suspeita.” Após as observações iniciais de Hooke, foi verificado que as células eram uma caracte- rística comum das plantas. Mais e mais plantas de uma quantidade crescente de espécies fo- ram estudadas e todas apresentavam estruturas semelhantes a células. Foi observado que essas estruturas microscópicas não tinham todas a forma de caixa como as células da cortiça. Descobriu-se que as células podiam ter diversas formas e tamanhos. Não podemos esquecer que esses microscopistas pioneiros não estavam observando células como as entendemos hoje, eles observavam paredes celulares. Schwann e as células nos animais Com poucas exceções, o corpo dos animais não continha estrutura alguma que se parecesse com “células”, isto é, com as paredes celulares das plantas. Assim, foi necessário muito trabalho e imaginação arrojada até tornar óbvio que o con- ceito de célula podia ser aplicado com sucesso aos animais. Isso foi conseguido principalmente por Theodor Schwann (1810-1882) em sua monografia de 1839, publicada quando ele tinha 29 anos de idade. Algumas de suas ilustrações estão reproduzidas na figura 2. 15 Figura 1. Desenhos de cortes de cortiça ao micros- cópio publicados por Hooke em 1665. Figura 2. Algumas das ilustrações apresentadas por Schwann em sua mono- grafia de 1839: A.) células de cebola; B.) de notocorda de um peixe; C.) de cartilagem de rã; D.) de cartilagem de girino; E.) de músculo de feto de porco; F.) de embrião de porco; G.) de gânglio de rã; H.) de um vaso capilar da cauda de girino; I.) de embrião de porco. Note que o núcleo e os nucléolos estão mostrados em quase todas as células. Schwann enfatizou a gran- de diferença entre as células das plantas e o que ele acredi- tava serem as células dos animais, mas sugeriu que elas representavam fundamental- mente a mesma coisa. Por que chamar todas essas estruturas tão diversas de células? Procure examinar fotomi- crografias de diversos tipos de células de plantas e especial- mente de animais, ou melhor, caso tenha oportunidade, ob- serve preparações citológicas desses tipos no microscópio. Como é possível dizer que cérebro, músculos, rins, pul- mões, sangue, cartilagens, ossos, parede intestinal etc. são feitos de um mesmo tipo de elemento? Já que essas estruturas são obviamente tão diferentes, por que afirmar que elas são constituídas pelos mesmos tipos de elementos? Qual seria a vantagem em se afirmar que as “células” animais correspondiam àquelas estruturas com aspecto tão diferente presentes nas plantas? Schwann nos fornece a resposta, “Se, no entanto, analisarmos o desenvolvimento desses tecidos, então parece que todas essas diversas formas de tecidos são constituídas apenas por células e são análogas às células das plantas ... O objetivo do presente tratado é provar essa idéia por meio da observação.” Isto é, apesar da grande diversidade, todas as estruturas que Schwann propunha chamar de células tinham em comum a característica de se desenvolverem a partir de estruturas muito mais simples que podiam ser melhor comparadas com as células das plantas. Mas, como se poderia definir “célula”? Se um neurônio e um leucócito são células, eles devem ter algo em comum para serem reunidos em uma mesma categoria. Schwann encontrou um critério: a presença de núcleo, que ele achava mais importante do que a origem de células alta- mente diferenciadas a partir de células simples. Apenas seis anos antes, em 1833, Robert Brown (1773 - 1858), o mesmo que descreveu o poste- riormente denominado “movimento Browniano”, havia descrito a presença de uma auréola circular, ou núcleo, em células de orquídeas e de muitos outros tipos de plantas. Antes dele, outros observa- dores já haviam visto e desenhado essas estruturas em suas publicações, mas não atribuíram nenhuma importância a elas. Brown verificou que muitos tipos de célula continham núcleo mas não especulou sobre seu significado. Schwann então mudou as regras para definir célula. Ao invés de se basear na forma, que nas plantas correspondia à estrutura da parede, ele escolheu como base para a definição, a presença de um núcleo. Embora Schwann fosse um observador cuida- doso, sua principal contribuição não foi o que ele viu mas como ele interpretou as observações. Seus antecessores haviam enfatizado as “caixas”; 16 A B C D H E F I G Schwann deu ênfase ao que estava dentro das “caixas”. Para ele a célula animal era uma porção de matéria viva envolta por uma membrana e contendo um núcleo, enquanto que as células vegetais eram ainda envoltas por uma parede. O que essa nova visão de célula tem a ver com hereditariedade? Muito pouco, tem que se admitir. Seriam necessárias outras duas informações antes que as células pudessem ser consideradas impor- tantes para a hereditariedade: a descoberta de que os gametas são células e o reconhecimento de que células só se originam de células pré-existentes. O reconhecimento dos gametas como células Schwann reconheceu os óvulos como células, uma vez que eles apresentavam a estrutura reque- rida por sua definição de célula – o núcleo. A natureza do espermatozóide era menos clara. Seu nome, que significa “animais do esperma”, indica- va essa incerteza. Em 1667, Antonie van Leeu- wenhoek havia descoberto e comunicado à Royal Society de Londres que o fluido seminal continha criaturas microscópicas que ele imaginou que entrassem no óvulo causando sua fertilização. Essa hipótese foi muito contestada e alguns cien- tistas imaginaram que os espermatozóides fossem parasitas. Na décima segunda edição do livro Systema Naturae (1766 - 1768), Linnaeus tentou classificar os “animais” encontrados no esperma por Leeuwenhoek, mas concluiu que a determi- nação de seu lugar correto no sistema de clas- sificação deveria ser deixado para quando eles tivessem sido mais pesquisados. Cerca de um século mais tarde, em 1784, Spal- lanzani realizou importantes experimentos com o objetivo de determinar a função do sêmen na reprodução de rãs. Durante o acasalamento, os machos abraçam as fêmeas e, como sabemos atual- mente, depositam esperma sobre os óvulos à medida que estes saem pela abertura cloacal. De início, Spallanzani não sabia disso, foi ele quem descobriu. Um outro pesquisador com quem ele se corres- pondia havia tentado, sem muito sucesso, descobrir o papel das rãs machos vestindo-as com calças. Spal- lanzani repetiu esse experimento e verificou que, quando o sêmen ficava retido nas calças, os ovos não se desenvolviam. No entanto, se os ovos fossem colocados em contato com o sêmen retirado das calças, em um processo de fecundação artificial, eles passavam a se desenvolver. Em um outro experi- mento, Spallanzani filtrou o sêmen e verificou que, com isso, ele perdia seu poder fecundante. Ele obser- vou o que hoje chamamos de espermatozóides, mas não os considerou essenciais para a reprodução. Foi somente em 1854 que George Newport, usando rãs, forneceu boas evidências de que os espermatozóides entram no óvulo durante a fecun- dação (Nesse caso, como em muitos outros, é difícil dar crédito ao cientista que descobriu um importante fenômeno biológico. Afinal, o descobridor do esper- matozóide, Leeuwenhoek, havia pensado que o espermatozóide era o agente da fertilização. Outros antecessores de Newport eram da mesma opinião, mas foi Newport quem fez as primeiras observações convincentes. Em 1841, Kölliker estudou a histologia dos testículos verificando que algumas das células testiculares eram convertidas em esper- matozóides. Os espermatozóides tinham uma aparência tão estranha que não eram considerados células. No entanto, quando se pôde demonstrar que eles se originavam de células típicas, sua verdadeira natureza tornou-se evidente. Os esper- matozóides passaram então a ser considerados como células altamente modificadas. Vejamos o que se pode concluir dessa análise: 1. Os gametas são a única ligação física entre as gerações, pelo menos em muitos organismos e possivelmente em todos. 2. Portanto, os gametas devem conter toda a informação hereditária. 3. Uma vez que óvulos e espermatozóides são células, toda informação hereditária precisa estar contida nestas células sexuais. Portanto, a base física da herança são as células sexuais. Isto não permite concluir que todas as células contenham informação hereditária. Poderíamos ainda pensar que os gametas são células especializadas onde os fatores responsáveis pela herança, talvez as gêmulas, entram. Nós ainda necessitamos de uma segunda informação: “Qual é a origem das células?” Omnis cellula e cellula A divisão celular foi observada em 1835, mas, nessa época, não se concluiu que fosse um fenômeno geral. Schwann, por exemplo, acreditava que as células podiam surgir espontaneamente por agluti- nação de substâncias amorfas. Essa hipótese assumia que a origem das células é um evento episódico no 17 Veremos a seguir como os microscopistas do último terço do século XIX foram capazes de usar a tecnologia disponível na época e estabelecer, como uma hipótese altamente provável, que a base física da hereditariedade está no núcleo da célula, ou mais especificamente nos cromossomos. Não devemos ficar imaginando que esses investigadores não faziam outra coisa senão examinar células vivas e fixadas com o melhor equipamento óptico disponível, descrevendo do modo mais preciso o que viam. Um problema constante era se uma dada estrutura observada em uma preparação citológica refletia ou não algo presente na célula viva, ou se era um simples arte- fato resultante do drástico tratamento a que as células eram submetidas para poderem ser observadas no microscópio. Uma preparação citológica realmente reflete a estrutura de uma célula viva? A resposta é “Não muito”; mas se o tratamento produz sempre o mesmo resultado é possível imaginar como eram as preparações quando vivas. Apesar disso, nenhuma descoberta importante em Citologia no século XIX foi aceita de imediato. As observações eram repetidas e as conclusões originais confir- madas por uns e contestadas com veemência por outros. Uma interpretação errada podia fazer com que muitos citologistas perdessem meses na tentativa de repetir as observações. Aconteciam debates intermináveis sobre a estrutura fina do protoplasma uma vez que, como era admitido, estava-se olhando para a base fundamental da vida. Muitos citologistas acreditavam que o protoplasma fosse granular, ou um retículo fibroso, ou alveolar (composto de gotas) ou alguma combinação disso. A Citologia como um caminho para o conheci- mento, especialmente no século XIX, nos mostra que a ciência não progride de maneira ordenada mas por meio de testes e retestes constantes das observações, dos experimentos e das hipóteses. Longe de ser uma linha direta em direção à verdade, esse caminho assemelha-se mais àquele retículo que alguns viam como a estrutura básica do protoplasma. (Devemos ressaltar que o termo protoplasma é raramente utilizado nos dias de hoje. Uma vez que ele significa nada mais do que “substância viva”, Hardin [1956] sugeriu que poderíamos passar sem ele.) O QUE EXISTE NAS CÉLULAS? Durante a última metade do século XIX, a hipótese de que os animais e plantas são compostos somente de células e produtos celulares estava estabelecida como uma verdade acima de qualquer suspeita nas mentes da maioria dos microscopistas competentes. Nós podemos falar, então, da teoria celular, usando o termo “teoria” como um corpo completo de dados, hipóteses e conceitos relativos a um impor- tante fenômeno natural. Até hoje a teoria celular é o mais importante conceito relacionado com a estrutura de animais e plantas e no século XX ele foi sendo gradualmente aceito também como o mais importante conceito relativo ao funciona- mento dos organismos. Essa enorme importância da teoria celular decorre do fato de ela estabelecer que as células são as unidades básicas de estrutura e função, que elas são as menores unidades capazes de ter vida independente, isto é, são capazes de usar substâncias obtidas do meio para manter e produzir o estado vivo. A célula é o denominador comum da vida. Existia uma outra razão importante para se estudar as células: a análise dos níveis mais sim- ples de organização contribuem para o enten- dimento dos níveis mais complexos. As interações das substâncias químicas são melhor entendidas quando se conhece sua estrutura molecular. Os movimentos do corpo humano podem ser estudados em muitos níveis. Pode-se observar e descrever os complexos movimentos de um bailarino ou de um arremessador de beisebol. A compreensão aumenta quando se obtém informações sobre os diversos músculos e seus locais de ligação, que tornam os movimentos possíveis. Outros tipos de entendimento surgem quando se estuda os músculos no nível molecu- lar. E, finalmente, mais informações ainda são obtidas quando se aprende sobre a atividade da miosina, da actina e de outras moléculas que parti- cipam da movimentação dos músculos. O conhecimento obtido em cada nível de organização contribui para um entendimento do fenômeno como um todo, enquanto cada nível mantém seu próprio valor. Entender a arte de um bailarino ou de um esportista meramente com o 20 conhecimento sobre actina e miosina seria tão impossível quanto predizer as propriedades da água a partir do conhecimento sobre os elementos hidrogênio e oxigênio. No entanto, pode-se conhecer melhor os níveis mais complexos se conhecermos os mais simples. Assim, os biólogos do século XX já pensavam que poderiam saber mais sobre a vida se conhecessem melhor as células. Quando examinavam as células, aqueles citolo- gistas pioneiros encontravam todo tipo de esferas, de grânulos e de fibras. Como seria possível determinar qual dessas estruturas teria um papel na hereditariedade? Ou melhor, como seria possível determinar a função de qualquer estru- tura presente nas células? Essa é uma questão difícil e os citologistas daquela época não conseguiam respondê-la. Eles não podiam fazer outra coisa senão investigar as células de modo aleatório. Este foi um estágio necessário no desenvolvimento da Citologia – a identificação de estruturas nas células e, quando possível, descobrir alguma coisa sobre seu comportamento. Aparentemente se pesquisavam células de todo animal e planta disponível à procura de exemplos de estruturas celulares e, um a um, todos os reagentes disponíveis nas estantes dos químicos foram colocados sobre as células e suas conseqüências observadas – em geral matavam as células. Esse período da Cito- logia foi de “procura e destruição.” O núcleo efêmero Como mencionado anteriormente, as dificul- dades em se analisar células vivas fizeram das preparações fixadas e coradas o material ideal de estudo. Nesse tipo de preparação, a estrutura mais proeminente é o núcleo descrito por Brown. Muitos corantes, especialmente os corantes básicos como o carmim e a hematoxilina, coravam o núcleo profundamente; isto, juntamente com a aparente presença universal do núcleo, sugeria que ele tivesse um papel importante. Mas qual seria a origem do núcleo da célula? Levou mais de meio século de observações e experimentações por parte de numerosos pesqui- sadores para que essa questão fosse respondida. Em 1835, Valentin sugeriu que o núcleo seria formado pela precipitação de substâncias no in- terior da célula. Três anos mais tarde, Schleiden e, em seguida, Schwann também sugeriram que o núcleo podia se originar de novo. Até por volta de 1870, alguns pesquisadores famosos acre- ditavam que pelo menos alguns núcleos podiam ter uma origem não-nuclear. Nessa mesma época, outros pesquisadores igualmente competentes estavam clamando que todos os núcleos surgiam de núcleos pré- existentes. Diversos processos foram sugeridos – em geral alguma forma de partição em dois ou fragmentação, um mecanismo que mais tarde foi denominado amitose. Não havia nenhuma razão, é claro, porque os núcleos teriam de surgir por apenas um tipo de mecanismo. Considerando a enorme variedade de fenômenos naturais, não seria surpresa se houvesse diversas maneiras de surgimento de núcleos. No entanto, os cientistas procuram regu- laridades na natureza e seria mais satisfatório intelectualmente se houvesse um mecanismo constante para a origem do núcleo. A DESCOBERTA DA DIVISÃO CELULAR Em 1873, A. Schneider publicou o que agora pode ser tomado como a primeira descrição razoável das complexas alterações nucleares, hoje chamadas de mitose, que ocorrem durante a divisão da célula. Neste ano, Otto Bütschi e Her- mann Fol fizeram descrições semelhantes. A descrição de Schneider foi a mais completa; seu objetivo era descrever a morfologia de Mesostoma sp., um platelminto. Quase todo seu trabalho é dedicado à estrutura desse verme mas, sendo um observador cuidadoso, ele descreveu tudo o que viu. A fertilização em Mesostoma sp. é interna e o início do desenvolvimento ocorre em um útero. As ilustrações do que ele viu estão mostradas na figura 3. Os primeiros desenhos mostram o ovo rodeado por células foliculares. Na região bem central está o pequeno núcleo com seu pequeno nucléolo. As estruturas espirais são espermato- zóides. O ovo é a área clara central da ilustração e os glóbulos menores ao seu redor são as células foliculares, que não foram representadas nos desenhos seguintes. Pouco antes da célula se divi- dir o limite do núcleo se torna indistinto. Schnei- der, no entanto, verificou que com a adição de um pouco de ácido acético ele se tornava visível, apesar de dobrado e enrugado. Mais tarde o nucléolo desaparecia e tudo o que restava do nú- cleo era uma área clara na região central da célula. 21 No entanto, o tratamento com ácido acético mos- trava uma massa de filamentos delicados e curvos. O segundo desenho mostra esses filamentos, os cromossomos (um termo que só seria proposto em 1888, por Waldeyer) alinhados em uma placa equatorial. A quantidade de filamentos parecia aumentar e quando a célula se dividia eles iam para as células-filhas. O que alguém faria com essas observações? A resposta está longe de ser clara. Se não era possível ver os filamentos nas células vivas e, se eles apareciam repentinamente quando as células 22 Figura 3. Ilustrações de Schneider (1873) das alterações nucleares durante a clivagem do ovo de Mesostoma. À esquerda, desenho de um ovo (zona clara central, onde se vê o núcleo com um nucléolo) rodeado por células foliculares. As outras figuras mostram os filamentos, hoje chamados de cromossomos, e seus movimentos durante a divisão da célula. Figura 4. Ilustrações de Flemming de mitoses em células fixadas e coradas de embrião de salamandra. A.) Duas células em intérfase: não existem cromossomos visíveis. B.) Célula em pró- fase: os nucléolos já desapa- receram, mas a membrana nuclear continua intacta; o citoplasma não está mostra- do. C.) Célula em início de metáfase: a membrana nu- clear desapareceu e os cen- trossomos se separaram. D.) Uma preparação de excelente qualidade, onde se vê os cromossomos meta- fásicos duplos, isto é, com- postos por duas cromátides. E.) As cromátides se sepa- ram e se movem para os pólos do fuso. F.) Célula em final de divisão com os cromossomos dos núcleos- filhos sendo envolvidos pela membrana nuclear. (Flem- ming, 1882) A B C D E F hipótese alternativa é que ocorresse redução do número de cromossomos durante a formação dos óvulos e dos espermatozóides nas gônadas. O significado dos corpúsculos polares. Vários pesquisadores tinham descrito, em diversas espécies animais, a eliminação de minús- culas esferas na região do pólo animal do óvulo, por ocasião da fertilização. Essas esferas logo desapareciam e, como pareciam não ter função alguma, foram denominadas corpúsculos polares. Observou-se também que na partenogênese for- mava-se um único corpúsculo polar, mas que nos óvulos fertilizados eles sempre pareciam ser dois. Em algumas espécies, um corpúsculo era formado antes da fertilização e um segundo, depois da entrada do espermatozóide. Em outras espécies, os dois corpúsculos polares eram formados após a fertilização. (Fig. 6) Em 1887, August Weismann propôs uma hipótese para explicar a constância da quanti- dade de material hereditário de uma geração para outra. Com base na observação de muitos citologistas, ele diz: “pelo menos um certo resultado sugere que exista uma substância hereditária, um material portador de tendências hereditárias, e que esta substância está contida no núcleo das células germinativas, no filamento enovelado no interior do núcleo [alguns citologistas pensavam que os cromossomos formavam um fio contínuo ou espirema durante a interfase], que em certos períodos aparece na forma de alças ou barras [estes eram os cromossomos nos estágios mitóticos]. Nós podemos, além disso, considerar que a fertilização consiste no fato de um número igual de alças [cromossomos] de cada genitor ser colocado lado a lado, e que o núcleo do zigoto é composto desta maneira. No que diz respeito a esta questão, não tem importância se as alças [cromossomos] dos dois pais se misturam mais cedo ou mais tarde ou se permanecem separadas. A única conclusão essencial necessária à nossa hipótese é que a quantidade de substância hereditária fornecida por cada um dos genitores seja igual ou aproximadamente igual entre si. Se for assim, as células germinativas dos descendentes conterão os germoplasmas de am- bos os pais unidos, isso implica que tais células só podem conter metade do germoplasma paterno, como estava contido nas células ger- minativas do pai, e metade do germoplasma materno, como estava contido nas células germinativas da mãe.” 25 Figura 6. Ilustrações da meiose em fêmea de Ascaris. Anteriormente às etapas mostradas nos desenhos, os cromossomos haviam se duplicado e se emparelhado, formando duas tétrades. Estas se separaram na primeira divisão meiótica e duas díades foram para o primeiro corpúsculo polar, enquanto que as outras duas permaneceram nos óvulos. Isto é mostrado no desenho 33 de Boveri. No desenho 36, as díades estão em rotação antes da sua separação na segunda divisão meiótica. O segundo corpúsculo polar pode ser visto na posição correspondente à das duas horas. Os desenhos 42 e 43 mostram as díades se separando. No desenho 45, a segunda divisão já terminou e o segundo corpúsculo polar com seus dois cromossomos aparece na superfície do óvulo; o primeiro corpúsculo polar está acima dele. Os dois cromossomos no óvulo estão para formar o pró-núcleo feminino. O desenho 46 mostra o primeiro corpúsculo polar na posição correspondente à das 3 horas, o segundo corpúsculo polar na superfície do óvulo, na posição correspondente à das 12 horas, o pró- núcleo. Fig. 33 Fig. 36 Fig. 42 Fig. 43 Fig. 45 Fig. 46 Weismann acreditava que a redução à metade do material hereditário da mãe, necessária à sua hipótese, ocorria quando o segundo corpúsculo polar era formado. Diz ele: “Minha opinião sobre o significado do segundo corpúsculo polar é, em poucas palavras, esta: a redução do germo- plasma acontece na sua formação, uma redução não só em quantidade, mas sobretudo na comple- xidade de sua constituição. Por meio da segunda divisão nuclear, evita-se o acúmulo de diferentes tipos de tendências hereditárias ou germoplas- mas que, sem isso, seria necessariamente produ- zido em excesso pela fertilização. Com o núcleo do segundo corpúsculo polar são removidos do óvulo tantos tipos diferentes de idioplasmas [um termo usado na época para designar o material hereditário] quantos serão posteriormente introduzidos pelo núcleo do espermatozóide; assim, a segunda divisão do núcleo do óvulo serve para manter constante o número de diferentes tipos de idioplasmas, que compõem o germoplasma durante o curso das gerações.” E, se a constância é mantida de geração a geração, Weismann supõe que um processo simi- lar precisaria ocorrer no macho. Ele diz: “Se o número de germoplasmas ancestrais contido no núcleo do óvulo destinado para a fertilização deve ser reduzido à metade, não pode haver dúvida que uma redução semelhante também deve ocorrer, em alguma época e de alguma maneira, nos germoplasmas das células germi- nativas do macho.” Na época em que essas surpreendentes predições foram feitas (surpreendentes porque se mostraram essencialmente corretas) os citolo- gistas estavam encontrando evidências que as apoiavam. A observação mais importante estava sendo feita no verme nematóide Ascaris, que tem a grande vantagem de possuir poucos cromos- somos e de grande tamanho, o que os torna fáceis de serem estudados. Meiose na fêmea de Ascaris Na penúltima década do século XIX, foram feitas importantes contribuições para o entendi- mento da formação dos gametas e da fertilização. Três citologistas merecem referência especial: Edouard van Beneden (1846-1912), Theodor Boveri (1862-1915) e Oskar Hertwig (1849- 1922). Eles descobriram que ocorrem duas divisões celulares diferentes durante a formação dos gametas, as quais resultam na redução do número de cromossomos à metade – como Weis- mann previu que deveria acontecer. Estas duas divisões são divisões mitóticas modificadas e fo- ram denominadas divisões meióticas – os nomes são tão parecidos que continuam a causar problema para os estudantes até hoje. Na descrição que se segue, utilizaremos a terminologia moderna. O ovário de Ascaris começa a se formar no início do desenvolvimento e o extraordinário aumento no número de suas células é conseqüên- cia de divisões mitóticas. Cada núcleo tem quatro cromossomos, o número diplóide, e pode-se notar que cada cromossomo aparece duplo já no início da prófase. Nessa fase, eles estão formados por duas cromátides, indicando que eles se duplicaram antes do início da divisão. Na mitose, as oito cromátides são divididas entre as duas células- filhas, o que resulta em quatro cromossomos em cada uma delas. À medida que a fêmea de Ascaris amadurece, seu ovário passa a conter células aumentadas, as ovogônias, ainda com o número diplóide de cromossomos. A célula reprodutiva feminina permanece diplóide até ser libertada do ovário e penetrada pelo espermatozóide. É somente então que a meiose começa e os corpúsculos polares são formados. A figura 6 (de Boveri, 1887) mostra o que acontece. No começo da meiose, cada um dos quatro longos cromossomos da ovogônia encurta e toma o aspecto de uma pequena esfera. Estes quatro cromossomos então se juntam em pares, um processo conhecido como sinapse. Quando isso ocorre, cada um dos cromossomos já está dupli- cado, pois a duplicação ocorreu na intérfase precedente. Assim, a célula em início de meiose terá dois grupos com quatro cromátides cada. Cada um desses grupos é denominado tétrade. As tétrades se separam em uma divisão celular altamente desigual que resulta em um pequeno corpúsculo polar e uma célula grande, o futuro óvulo. Cada uma dessas duas células contém dois cromossomos duplicados. Portanto, cada tétrade foi dividida em duas díades. Na segunda divisão meiótica, observa-se uma característica essencial da meiose: os cromos- somos não são duplicados. Então, cada díade se liga ao fuso e, na anáfase, suas duas cromátides 26 vão para pólos opostos. A célula se divide nova- mente de modo desigual. O resultado é um minúsculo corpúsculo polar com dois cromossomos e um grande óvulo também com dois cromossomos. Assim, no decorrer das duas divisões que compõem a meiose, o número diplóide de quatro cromossomos da célula feminina foi reduzido ao número monoplóide de dois cromossomos. A hipótese de Weismann provou ser verdadeira, pelo menos para as fêmeas de Ascaris. Meiose no macho de Ascaris A previsão de Weismann para os machos também mostrou-se correta. Quando os testículos foram estudados, verificou-se que, durante o início do desenvolvimento, as células aumentam em número por divisões mitóticas, isto é, as células que se originam desse processo tem o número diplóide de quatro cromossomos (Bauer, 1893). No entanto, no testículo maduro, as duas últimas divisões antes de as células se diferen- ciarem em espermatozóides são diferentes. É quando ocorrem as divisões meióticas no macho. No que se refere aos cromossomos, os eventos são os mesmos que os da fêmea, mas quando se considera a célula como um todo, existem diferenças entre as divisões meióticas de macho e de fêmea. (Fig. 7) Durante a meiose do macho, os quatro cromossomos já duplicados se juntam dois a dois, formando dois pares, ou duas tétrades. Na 27 Células que irão formar espermatozóides possuem 4 cromossomos, o número diplóide. No início da meiose os cromossomos homólogos se emparelham. Os cromossomos emparelhados formam tétrades, cada uma com 4 cromátides. Os cromossomos homólogos se separam na primeira divisão da meiose. Cada célula-filha da primeira divisão contém duas díades. Não há duplicação cromossômica antes da segunda divisão da meiose e as duas cromátides de cada díade se separam. Cada uma das células originadas na meiose diferencia-se em um espermatozóide. Em Ascaris, a fecundação é que desencadeia a meiose feminina. No início da meiose, ocorre o emparelhamento dos cromossomos homólogos. Os cromossomos emparelhados formam tétrades, cada uma com 4 cromátides. Os cromossomos homólogos separam- se na primeira divisão da meiose. O primeiro glóbulo polar e o futuro óvulo contêm duas díades cada. A formação do segundo glóbulo polar deixa o óvulo com um número haplóide de cromossomos. Os núcleos de origem paterna e materna se aproximam um do outro. Cada pró-núcleo contribui com dois cromossomos para o zigoto, restabelecendo o número diplóide da espécie. ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ Figura 7. Representação esquemática da meiose masculina, à esquerda, e da meiose feminina, à direita em ascaris de cavalos. 30 PARTE A: REVENDO CONCEITOS BÁSICOS Preencha os espaços em branco nas frases de 1 a 6 usando o termo abaixo mais apropriado. (a) anáfase (c) metáfase (e) prófase (b) meiose (d) mitose (f) telófase EXERCÍCIOS principalmente na Alemanha, forneceram um quadro geral para a transmissão de geração a geração das estruturas fundamentais responsáveis pela herança. Pode-se argumentar, com razão, que esses estudos não forneceram qualquer evidência cru- cial de que os cromossomos seriam, de fato, a base física da hereditariedade. Eles apenas suge- riam que os cromossomos poderiam desempenhar tal papel. Nem mesmo durante as últimas duas décadas do século XIX se chegou próximo à descoberta de como seria possível estabelecer o papel de uma estrutura celular na herança. Tanto a Citologia como o que atualmente chamamos de Genética estavam no estágio de ciência nor- mal Kuhniana, esperando pela chegada de um novo paradigma. Isso iria ocorrer, de uma forma dramática, no ano de 1900. Mas antes de entrarmos no século XX, podemos concluir com este sumário de E. B. Wilson sobre o que havia sido estabelecido du- rante o florescimento da Citologia no último quarto do século XIX. “O trabalho da Citologia neste período de estabelecimento de seus fundamentos construiu uma base ampla e substancial para as nossas concep- ções mais gerais de hereditariedade e seu substrato físico. Foi demonstrado que a base da heredita- riedade é uma conseqüência da continuidade genética das células pela divisão e que as células germinativas são o veículo da transmissão de uma geração para outra. Acumularam-se fortes evidên- cias de que o núcleo da célula desempenha um papel importante na herança. Descobriu-se o significativo fato de que em todas as formas ordinárias de divisão celular o núcleo não divide “em massa” mas que primeiro ele se transforma em um número definido de cromossomos; estes corpos, originalmente forma- dos por longos fios, dividem-se longitudinalmente para efetuar uma divisão merismática da subs- tância nuclear inteira. Provou-se que toda fertilização do óvulo, envolve a união ou estreita associação de dois núcleos, um de origem materna e o outro de origem paterna. Está estabelecido o fato, algumas vezes chamado de “lei de van Beneden” em home- nagem ao seu descobridor, que estes núcleos germinativos primários dão origem a grupos semelhantes de cromossomos, cada um contendo metade do número encontrado nas células do corpo. Demonstrou-se que quando novas células germinativas são formadas cada uma volta a receber apenas metade do número característico de cromossomos das células do corpo. Acumularam-se evidências, especialmente pelos estudos admiráveis de Boveri, que os cromossomos de sucessivas gerações de células, que normalmente não são vistos nos núcleos em repouso, na realidade, não perdem sua individualidade, ou que de uma maneira menos óbvia eles se adaptam ao princípio da continuidade genética. Desses fatos, tirou-se uma conclusão de que os núcleos das células do corpo são diplóides ou estruturas duplas, descendentes igualitários dos grupos de cromossomos de origem materna e paterna do ovo fertilizado. Esses resultados, continua- mente confirmados pelos trabalhos dos últimos anos [isto é, ciência normal], gradualmente tomaram um lugar central na Citologia; [...] Uma nova era de descobertas agora se abre [um novo paradigma]. Assim que o fenômeno mendeliano tornou-se conhecido ficou evidente que em linhas gerais, ele forma um complemento para aqueles fenômenos que a Citologia já tinha tornado conhecido a respeito dos cromossomos.” Esta citação é parte da famosa Croonian Lec- ture to the Royal Society of London proferida por Wilson em 1914. Nessa época as relações entre cromossomos e herança já haviam sido testadas e se mostrado verdadeiras acima de qualquer suspeita.. 1. ( ) é um tipo de divisão nuclear em que os núcleos-filhos conservam o mesmo número de cromossomos do núcleo original. 2. A migração dos cromossomos para os pólos ocorre na ( ). 31 3. ( ) é um tipo de divisão nuclear que reduz à metade o número de cromossomos nos núcleos-filhos. 4. Cromossomos arranjados na região equa- torial da célula caracteriza a fase da divisão chamada ( ). 5. ( ) é a primeira fase da divisão celular, na qual os cromossomos se tornam evidentes. 6. ( ) é a fase final da divisão celular, em que os núcleos se reorganizam. Preencha os espaços em branco nas frases de 7 a 11 usando o termo abaixo mais apropriado. (a) corpúsculo polar (c) haplóide (e) ovogônia (b) diplóide (d) ovócito 7. ( ) é uma célula que está sofrendo meiose e dará origem a um gameta feminino. 8. Uma célula animal feminina que irá sofrer meiose é chamada ( ). 9. ( ) é o termo usado para designar uma célula que possui dois conjuntos de cromossomos. 10. ( ) é o nome das minúsculas células que se formam no decorrer da meiose feminina. 11. ( ) é o termo que designa uma célula que possui apenas um conjunto de cromossomos. Preencha os espaços em branco nas frases de 12 a 17 usando o termo abaixo mais apropriado. (a) cromátide (d) pró-núcleo (b) díade (e) sinapse (c) fertilização (f) tétrade 12. Dois cromossomos emparelhados no início da meiose formam um(a) ( ). 13. O emparelhamento de cromossomos na meiose é chamado ( ). 14. ( ) é o nome do núcleo do espermatozóide ou do óvulo imediatamente antes de eles se fundirem para formar o núcleo do zigoto. 15. Um cromossomo duplicado, formado portanto por dois filamentos idênticos, é chamado ( ). 16. ( ) é nome que se dá a cada um dos dois filamentos que formam um cromossomo duplicado. 17. A fusão de dois gametas com formação de um zigoto é chamada ( ). PARTE B: LIGANDO CONCEITOS E FATOS Utilize as alternativas abaixo para completar as frases de 18 a 21. a. fertilização b. meiose c. mitose 18. Na ( ) ocorre uma replicação cromossômica para duas divisões celulares. 19. Na ( ) ocorre uma replicação cromossômica para uma divisão do citoplasma. 20. Apenas células diplóides se dividem por ( ). 21. Células diplóides e haplóides se dividem por ( ). Utilize as alternativas abaixo para completar as frases de 22 a 25. a. células diplóides b. células haplóides 22. Ovogônias são sempre ( ). 23. Gametas são sempre ( ). 24. Zigotos são sempre ( ). 25. Meiose produz sempre ( ). 26. Dos cinco eventos listados a seguir, quatro ocorrem tanto na mitose quanto na meiose. Indique qual deles acontece es- sencialmente na meiose? a. Condensação dos cromossomos. b. Formação do fuso. c. Emparelhamento dos cromossomos. d. Migração dos cromossomos. e. Descondensação dos cromossomos. Utilize as alternativas abaixo para completar as frase de 27 e 28. a. Antonie van Leeuwenhoek b. Nehemiah Grew c. Robert Brown d. Robert Hooke 27. ( ) é considerado o descobridor da célula. 28. ( ) foi o descobridor do núcleo celular. Utilize as alternativas abaixo para completar as frases de 29 a 33. a. August Weismann c. Theodor Schwann b. Rudolph Virchow d. Walther Flemming 29. A idéia de que a formação do corpúsculo polar é uma estratégia para a redução do material hereditário do óvulo foi lançada em 1887 por ( ). 32 30. Um dos formuladores da teoria celular foi ( ). 31. A célebre frase “omnis cellula e cellula”, indicando que toda célula provém da divisão de outra célula, foi cunhada em 1855 por ( ). 32. ( ) é considerado o descobridor da mitose pelo fato de ter demonstrado que os eventos cromossômicos observados em células fixadas e coradas ocorriam nas células vivas. 33. A teoria celular mostrou que, apesar das diferenças visíveis a olho nu, todos os seres vivos são iguais em sua constituição básica, pois a. são capazes de se reproduzir sexuadamente. b. são formados por células. c. contêm moléculas. d. se originam de gametas. 34. Os vírus não são exceções à teoria celular pois a. são formados por células. b. formam gametas. c. são organismos vivos. d. só conseguem se reproduzir no interior de uma célula viva. PARTE C: QUESTÕES PARA PENSAR E DISCUTIR O número diplóide de cromossomos da espécie humana é 46. Essa informação deve ser usada para responder as questões 35 e 36. 35. Determine o número de filamentos cromossômicos (cromátides) presentes em um núcleo celular humana em a. prófase mitótica. d. telófase mitótica. b. prófase I da meiose. e. telófase I da meiose. c. prófase II da meiose. f. telófase II da meiose. Obs. No caso das telófases, considere apenas um dos núcleos em formação. 36. Determine o número de filamentos cromossômicos (cromátides) presente em cada um dos tipos celulares relacionados a seguir. a. Espermatozóide. b. Óvulo. c. Primeiro corpúsculo polar. d. Segundo corpúsculo polar. e. Ovócito primário. f. Ovócito secundário. 37. Qual é a hipótese central da teoria celular? 38. Por que foi difícil estender o conceito de célula para os animais? 39. Que critério Schwann utilizou para estabelecer relações de semelhança entre as unidades microscópicas que compõem o corpo dos animais e das plantas? 40. Que tipo de observação permitiu concluir que espermatozóides eram células? 41. Por que não se deve chamar o núcleo interfásico de núcleo em repouso, como faziam os antigos citologistas? Por que era usado aquele nome? 42. O que Weismann imaginou ser necessário para manter a constância do número de cromossomos através das gerações? 43. Identifique as principais diferenças entre mitose e meiose. 44. Analise os tipos de argumento usados para justificar a idéia de que a informação hereditária estaria contida nos gametas. 45. Que tipo de raciocínio dedutivo levou os antigos citologistas a concluir que a mitose não poderia ser o único tipo de divisão celular? 46. Qual é o significado da meiose e da fertilização no ciclo de vida dos organismos? 47. Que importantes paradigmas direcionaram as pesquisas citológicas nos primeiros dois terços e no último terço do século XIX, respectivamente? ou, se ele deixasse as flores intactas, a próxima geração seria resultado da autofecundação. A análise matemática Aqueles que já ensinaram Genética mendeliana sabem que muitos estudantes têm dificuldade com a Matemática. Isso poderá se tornar mais fácil quando chegarmos a 1903 e colocarmos as unida- des hereditárias nos cromossomos, mas vale fazer um pequeno esforço agora para entender alguns aspectos críticos do modelo mendeliano como, por exemplo, a proporção 3 : 1 para um par de estados contrastantes de um caráter pode ser ex- pandida para a proporção 9 : 3 : 3 : 1 quando se trata de dois pares de estados de dois caracteres. Em minha experiência, um dos princípios mais difíceis para os estudantes é aprender que 1/4 de 1/4 não é 1/2 nem 1/8, mas 1/16. Além disso, os estudantes devem perceber que a proporção 3 : 1 é A B C D E Pétalas que for- mam a carena Anteras Estigma Carena ➤ Estandarte Ala ➤ Estandarte Estandarte Estilete Filete Óvulo Ala Carena ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤➤ Óvulo ➤ ➤ Ala ➤ Sépalas Figura 9. Representação esquemática da flor de ervilha (Pisum sativum). A. Flor inteira. B. Corte longitudinal da flor. C. Pétalas isoladas. D. Estames envolvendo o pistilo. E. Pistilo. (Redesenhada de Rawitscher, F. Elementos básicos de Botânica. São Paulo: Nacional, 1967) o mesmo que dizer que 3/4 da amostra é de um tipo e 1/4 da amostra é de outro tipo ou então que 75% é de um tipo e 25% de outro. Na discussão do experimento de Mendel que se segue procurou-se apresentar o tópico de uma maneira que auxilie a compreensão e permita uma apreciação a altura do que Mendel fez. OS RESULTADOS DE MENDEL As características estudadas Por meio de cruzamentos gené- ticos tenta-se descobrir a base heredi- tária das diferenças; ao mesmo tempo as informações obtidas podem nos ajudar a entender porque indivíduos de uma mesma espécie se parecem tanto entre si. Não se cruzam indiví- duos geneticamente idênticos na esperança de se descobrirem leis da herança. Por isso Mendel escolheu variedades de ervilhas que diferiam entre si. A diferença era em relação aos estados das características entre as diversas variedades. Assim, algumas de suas variedades tinham sementes lisas enquanto que em outras as sementes eram rugosas (angulosa seria a melhor tradução do termo usado por ele); algumas das suas variedades tinham sementes amarelas e outras, verdes. Ao todo, ele usou 7 caracteres, que apresentavam estados contrastantes, como se segue: Variedades apresentando estados contrastantes de caracteres foram cruzadas por meio da remo- ção das anteras ainda imaturas das flores de uma variedade e colocação de pólen de outra varie- CARÁTER AFETADO ESTADO Textura da semente lisa ou rugosa Cor da semente amarela ou verde Revestimento da semente colorido ou branco Textura da vagem inflada ou enrugada Cor da vagem verde ou amarela Posição da flor axilar ou apical Comprimento do caule longo ou curto 35 dade, sobre seus estigmas. A primeira geração híbrida, ou F 1 ( abreviatura para first Filial gen- eration) para usarmos um termo introduzido mais tarde, dava um resultado uniforme: todos as plantas F 1 exibiam o estado da característica de um dos genitores. Mendel chamou de dominante o estado da característica que aparecia nas plantas F 1 , em contraste com o estado da característica que não aparecia, por ele chamado de recessivo. Estes resultados, tão familiares hoje em dia, eram bastante inesperados naquela época. Embora outros casos semelhantes ao obtido por Mendel já houvessem sido descritos, a regra geral era a de que os indivíduos de F 1 apresentassem estados de caracteres intermediários aos dos pais. E na maioria dos casos, isso ocorria por uma simples razão: se as variedades diferirem em diversas características os indivíduos F 1 serão, em geral, mais ou menos intermediários entre os tipos parentais. Mas Mendel concentrou-se na análise da herança dos detalhes, ou seja, dos caracteres isolados, e não do indivíduo como um todo. Nesse sentido, ele esqueceu da planta como um todo e questionou somente se as ervilhas tinham semen- tes lisas ou rugosas, se eram altas ou baixas etc. As plantas F 1 foram protegidas para não serem polinizadas pelos insetos e, em conseqüência se autofecundaram. De novo, os resultados foram uniformes. Para cada um dos sete tipos de cruza- mento originais entre plantas com estados de caráter contrastantes, a descendência F 2 asse- melhava-se a um ou outro genitor da geração P. Ele nunca encontrava intermediários. A proporção 3 : 1 Enquanto que a maioria dos cultivadores de plantas tinha descrito somente o reaparecimento de ambas as variedades em F 2 ( abreviatura para second Filial generation), Mendel fez uma coisa simples e extraordinária. Ele contou o número de indivíduos com cada característica. Os resul- tados para os sete tipos de cruzamentos foram os mesmos: a proporção de três plantas com a carac- terística dominante para uma com a recessiva. Ou nós podemos dizer 3/4 (75%) de F 2 apresen- tava o estado dominante e 1/4 (25%), o estado recessivo da característica analisada (Tab. 1). Estas proporções e porcentagens eram derivadas dos dados brutos observados. Por exemplo, no caso do cruzamento de plantas puras de sementes lisas com plantas puras de sementes rugosas, Mendel obteve 7324 sementes F 2 das quais 5474 eram lisas e 1850, rugosas – uma proporção de 2,96 para 1. O cruzamento de plantas “puras” de sementes ama- relas com plantas “puras” de sementes verdes produ- ziu 8023 sementes F 2 das quais 6022 eram amarelas e 2001, verdes – uma proporção de 3,01 para 1. Podemos ver que Mendel tinha razão em suspeitar que a resposta teórica deveria se 3 : 1 e não 3,01 para 1. Estes eram cruzamentos mono- íbridos, isto é, envolviam só um carácter com dois estados contrastantes. 36 1. Textura das sementes Lisa X Rugosa Sementes lisas 2. Cor das sementes Amarela X Verde 3. Cor da casca das sementes Cinza X Branca 4. Textura das vagens Inflada X Comprimida 5. Cor das vagens Verde X Amarela 6. Posição das flores Axilar X Terminal 7. Comprimento do caule Longo X Curto Sementes amarelas Semente de casca cinza Vagens infladas Vagens verdes Flores axilares Caule longo Lisa X Lisa Amarela X Amarela Cinza X Cinza Inflada X Inflada Verde X Verde Axilar X Axilar Longo X Longo 5474 lisas 1850 rugosas 7324 (total) 6022 amarelas 2001 verdes 8023 (total) 705 cinzas 224 brancas 929 (total) 882 infladas 299 comprimidas 1181 (total) 428 verdes 152 amarelas 580 (total) 651 axilaress 207 terminais 858 (total) 787 longos 277 curtos 1064 (total) 2,96 : 1 3,01 : 1 3,15 : 1 2,95 : 1 2,82 : 1 3,14 : 1 2,84 : 1 Tipos de cruzamento entre plantas “puras” Características das plantas F 1 Autofecundação de F 1 Plantas F 2 Razão entre os tipos F 2 Tabela I. Resultados obtidos por Mendel em cruzamentos entre variedades de ervilha. A proporção 9 : 3 : 3 : 1 Quando Mendel seguiu a herança de duas características com dois pares de estados contras- tantes, no cruzamento diíbrido, foram obtidos novamente, resultados uniformes. As plantas da geração F 1 exibiam os dois estados dominantes das características analisadas e, em F 2 , apareciam quatro tipos de planta na proporção de 9 : 3 : 3 : 1. Isto é, 9/16 de F 2 mostrava ambos os estados domi- nantes, 3/16 mostrava um dominante e outro recessivo, 3/16 mostrava o outro dominante e o primeiro recessivo e 1/16 tinha ambos os estados recessivos dos caracteres. Assim, quando as plantas cruzadas na geração original P eram do tipo liso-amarelo e rugoso- verde, todos os F 1 apresentavam sementes do tipo liso-amarelo. Na geração F 2 , Mendel obteve 315 sementes do tipo liso-amarelo, 108 liso-verde, 101 rugoso-amarelo e 32 rugoso-verde. Para um total de 556, a proporção dos diferentes tipos foi de 9,8 : 3,4 : 3,2 : 1. Estas proporções represen- tam os dados reais, mas Mendel propôs a hipótese de que o resultado teórico esperado deveria ser 9 : 3 : 3 : 1. Agora nosso problema é analisar como a proporção 3 : 1 está relacionada com a 9 : 3 : 3 : 1. No cruzamento amarelo com verde, a geração F 2 seria 3/4 amarela e 1/4 verde; no cruzamento liso e rugoso, F 2 seria 3/4 lisa e 1/4 rugosa. Uma pergunta que se pode fazer nesse ponto é se com base nessas informações seria possível prever a proporção de 9 : 3 : 3 : 1 obtida em F 2 ? Para muitos essa pergunta parecerá um problema insolúvel, mas a análise a seguir resolve a questão. Quando duas ou mais características com estados contrastantes estão envolvidas, pode-se verificar que a proporção 3 : 1 ainda é mantida se considerarmos cada característica individual- mente. Verifique no cruzamento mencionado acima (liso-amarelo x rugoso-verde) que a proporção 3 : 1 é mantida para cada um dos pares de estados das características consideradas. [Não devemos nos esquecer que Mendel era professor de Física; teria havido aqui uma influência do pensamento de Galileu? “Para Galileu, o objetivo da investigação era o conhecimento da Lei, captada na própria natureza, pela observação dos fenômenos, confirmada pela experimentação e matematicamente quantificada”] Isso pode ser verificado também matematica- mente. Considere a proporção 9/16 liso-amarelo: 3/16 liso-verde: 3/16 rugoso-amarelo: 1/16 rugoso-verde. Considerando o par liso/rugoso separadamente, temos 9/16 + 3/16 = 12/16 de sementes do tipo liso e 3/16 + 1/16 = 4/16 do tipo rugoso. Desde que 12/16 = 3/4 e 4/16 = 1/4, nós observamos a proporção 3:1 para esse par de características. O mesmo é verdadeiro para o par amarelo-verde. Assim, se nós perguntarmos em que freqüên- cias aparecerão os indivíduos F 2 de um cruza- mento diíbrido, a resposta pode ser obtida com uma simples multiplicação de frações. Assim, dos 3/4 que serão lisos, 3/4 serão também amarelos e 1/4 será verde; portanto 3/4 x 3/4, ou 9/16, serão lisos e amarelos e 3/4 x 1/4, ou 3/16, serão lisos e verdes. Do 1/4 de F 2 que será rugoso, 3/4 serão também amarelos e 1/4 será verde. Logo, 1/4 x 3/4 (ou 3/16) serão rugosos-amarelos e 1/4 x 1/4 (ou 1/16) será rugoso-verde. Esta é a derivação da proporção 9 : 3 : 3 : 1. Estas regularidades foram observadas por Mendel em todos os seus cruzamentos. Por isso, ele achou que devia haver um princípio funda- mental responsável por elas. E havia. MODELO PARA CRUZAMENTO MONOÍBRIDO A figura 10 é um modelo que explica a hipótese que Mendel propôs para os cruzamentos mono- íbridos. Tanto o esquema quanto a terminologia seriam padronizados meio século mais tarde, no início do século XX. A primeira coisa que um leitor atento notaria é um “erro” nos genótipos da geração P. Eles estão mostrados como haplóides ao invés de diplóides e isto levanta um ponto muito impor- tante em nosso estudo sobre conceitos genéticos. Mendel usou os símbolos de genótipo para indicar os tipos de fatores hereditários, e não seu número por gameta. Os gametas parentais lisos poderiam conter inúmeros fatores R, e não somente um, como se acredita hoje. A autopolinização de linhagens puras lisas produzia apenas descendência lisa, pois seus gametas só podiam conter fatores R. (As letras maiúsculas e minúsculas indicam que um alelo é dominante ou recessivo, respectivamente.) 37 de gametas. Cada moeda representará um gene e, em uma delas, “cara” representará, por exemplo, o alelo dominante R enquanto “coroa” será o alelo recessivo r. Na outra moeda, “cara” representará o alelo dominante V e “coroa”, o alelo recessivo v. As moedas são então lançadas e os resultados anotados. Se arremessos suficientes forem feitos, espera-se 1/4 de “caras” para ambas as moedas (ou seja, a categoria RV acima); 1/4 de “coroas” para ambas as moedas (o que corresponde à categoria rv); 1/4 será “cara” para uma das moedas e “coroa” para a outra (= Rv) e 1/4 será o contrário (= vR). Quando há quatro classes de gametas não é prático usar as linhas indicativas utilizadas na figura 10; assim, na parte inferior da figura 11 há um quadro indicando todas as possíveis combinações de grãos de pólen e óvulos na produção de F 2 (para simplificar, todos os genótipos foram representados como diplóides). Há 16 combinações possíveis e, se considerarmos os fenótipos, 9 das 16 são amarelo-lisas, 3 são verde-lisas, 3 são amarelo-rugosas e 1 é verde- rugosa. Isto representa uma proporção de 9:3:3:1. Note que somente os fenótipos amarelo-liso e verde-rugoso estavam presentes nas gerações P e F 1 . O modelo predizia, no entanto, que dois novos tipos de sementes deveriam aparecer: verde-lisas e amarelo-rugosas. A seguir estão os resultados registrados por Mendel para F 2 : Os números observados correspondiam aos obtidos experimentalmente por Mendel e os números esperados correspondiam à proporção exata de 9:3:3:1. A concordância entre os dois valores é extraordinária, como Weldon e Fisher notariam anos mais tarde. Outros testes da hipótese O modelo do cruzamento diíbrido permitiu testes ainda mais requintados para a hipótese. A 40 Fenótipo Obtido Esperado lisa - amarela 315 313 lisa - verde 108 104 rugosa - amarela 101 104 rugosa - verde 32 35 hipótese predizia que, exceto as 32 sementes verde-rugosas, todas as outras classes consisti- riam de indivíduos geneticamente diferentes, apesar de iguais na aparência. Isto pôde ser testado, plantando-se as sementes F 2 , permitindo a autopolinização das plantas adultas e, então, contando-se as sementes F 3 . Primeiramente, considere as 32 sementes verde-rugosas. O modelo prevê que estas manteriam suas características, se autofecun- dadas. Tais sementes foram plantadas e 30 atingiram a fase adulta. Todas comprovaram ser verde-rugosas. As 101 sementes amarelo-rugosas eram idên- ticas quanto à aparência. Podemos ver, no entanto, a partir do modelo da figura 11, que dois genótipos estão aí representados dentre os 3/16 desta categoria: um dos três é rrVV e os outros dois são rrVv ( Mendel usaria rV, ao invés de rrVV, mas, para facilitar, estou usando a mesma representação da figura 11). Desta forma, uma em cada três destas sementes, o grupo rrVV, manteria suas características, produzindo apenas sementes amarelo-rugosas, por autofecundação. Já o grupo rrVv ( duas das três), deveria produzir sementes em uma proporção de 3 amarelo- rugosas para 1 verde-rugosa. As 101 sementes foram plantadas, sendo que 96 atingiram a maturidade. Destas, 28 (onde o esperado era 32) produziram apenas sementes amarelo-rugosas, enquanto 68 (o esperado era 64) produziram tanto sementes amarelo-rugosas como verde- rugosas em uma proporção de 3:1. Assim, a dedução a partir da hipótese foi confirmada. A mesma análise foi realizada com as sementes verde-lisas. A proporção de 3/16 desta classe deveria ser composta por 1/3 RRvv e 2/3 Rrvv. O 1/3, representado por RRvv, deveria produzir prole idêntica. Os 2/3 restantes deveriam produzir sementes em uma proporção de 3 verde-lisas para 1 verde-rugosa. As 108 sementes foram plantadas e 102 atingiram a maturidade. O número esperado de indivíduos que originariam descendentes todos verde-lisos era 34, enquanto 68 resultariam na proporção de 3 : 1. Os números observados fo- ram 35 e 67, respectivamente. O teste mais complexo para a hipótese baseou- se nos 9/16 de F 2 que eram amarelo-lisos. A distribuição no quadro é a seguinte: 1 dos 9 é RRVV, 2 são RRVv, 2 são RrVV e 4 são RrVv. Assim, somente 1/9, o grupo RRVV, deveria 41 produzir prole ‘pura’. A descendência de RRVv estaria em uma proporção de 3 amarelo-lisas para 1 verde-lisa. Os RrVV deveriam produzir 3 amarelo-lisas para 1 amarelo-rugosa. E final- mente, os RrVv, que são iguais aos F 1 na figura 11, deveriam resultar na proporção de 9:3:3:1. As 315 sementes foram plantadas e 301 chegaram à fase adulta. O modelo predizia que os números esperados em cada classe seriam, na ordem apre- sentada acima, 33, 67, 67 e 134. Por exemplo, 1/9 ou 33 sementes deveriam manter suas caracte- rísticas, uma vez que o modelo previa que esse número de sementes corresponderia à RRVV. Mendel observou o seguinte resultado: 38, 65, 60 e 138. O fato de F 2 resultar em uma F 3 que não difere significativamente da hipótese, em testes tão preci- sos quanto estes, é um argumento muito forte em favor da validade da hipótese. Em todos os casos os números observados foram bem próximos dos esperados. E os valores esperados basearam-se na probabilidade dos gametas se comportarem de acordo com regras precisas. No entanto, os núme- ros observados e esperados nunca foram idênticos. A probabilidade disto ocorrer equivaleria à proba- bilidade de obtermos 5 “caras” e 5 “coroas” em 10 lançamentos de moedas. AS CONCLUSÕES DE MENDEL Os experimentos de Mendel com cruzamentos de variedades de ervilha e a notável análise que ele fez dos resultados levaram a oito importantes conclusões, arroladas a seguir. Deve-se ressaltar que, em 1865, tais conclusões eram válidas para ervilhas e somente para ervilhas. Para ter certeza, Mendel realizou alguns cruzamentos preliminares com feijão, mas os resultados foram confusos. 1. A conclusão mais importante era a de que a herança parecia seguir regras definidas e relativamente simples. Mendel propôs um modelo que poderia explicar os dados de todos os seus cruzamentos. Além disto, o modelo tinha um grande poder de previsão – um objetivo de todas as hipóteses e teorias em Ciência. 2. Quando dois tipos diferentes de plantas eram cruzados, não havia mistura dos estados das características individuais. Nos sete pares de estados contrastantes de caracteres estudados, um estado era dominante e o outro recessivo. Isto significava que em um cruzamento de uma linhagem pura de plantas com uma característica dominante com outra pura recessiva, o híbrido formado seria idêntico ao parental dominante e uniforme na aparência. 3. Já que o híbrido descrito acima era idêntico em aparência ao parental puro dominante, era possível concluir que não havia relação exata entre genótipo e fenótipo. Assim, o fenótipo liso poderia ser conseqüência tanto do genótipo RR (Mendel diria R) quanto do Rr. 4. Os fatores da hereditariedade responsáveis pelas condições de dominância e recessividade não eram modificados quando ocorriam jun- tos no híbrido. Se dois destes híbridos fossem cruzados, a descendência seria constituída tanto por indivíduos manifestando o estado dominante da característica quanto por aqueles apresentado o estado recessivo, não havendo evidência de que os fatores hereditários responsáveis por eles fossem modificados por sua associação nos híbridos parentais. Qualquer indivíduo recessivo de F 2 deveria ser fenotipicamente idêntico à geração recessiva original P. 5. Quando híbridos tais como Rr eram cruzados, os dois tipos de unidade heredi- tária (R e r) segregavam um do outro e recombinavam-se aleatoriamente na fertili- zação. A proporção fenotípica na descen- dência seria de 3 : 1, enquanto que genotipi- camente, usando a nomenclatura atual, seria de 1 RR, 2 Rr e 1 rr. A segregação dos fatores de um mesmo par ficou conhecida como “Primeira Lei de Mendel”. 6. Essa proporção somente poderia ocorrer se cada gameta recebesse apenas um tipo de fator de hereditariedade – no caso, R ou r. 7. Quando um cruzamento envolvia dois pares de unidades hereditárias contrastantes, tal como RrVv x RrVv, cada par se comportava independentemente. Isto é, os diferentes tipos de unidades hereditárias associavam-se inde- pendentemente uns dos outros. Então, os gametas podiam ser somente de quatro tipos: RV, Rv, rV ou rv. Desta maneira, todas as combinações possíveis seriam obtidas, com base estritamente na regra de que cada gameta podia apresentar somente um tipo de cada um dos pares de unidades hereditárias. As diferentes classes de gameta estariam em freqüências iguais. Este fenômeno de associa- 42 ção independente ficou conhecido como “Segunda Lei de Mendel”. 8. A hipótese mendeliana, e sua formulação em um modelo, era tão específica que deduções podiam ser feitas e testadas pela observação e experimentos. Nenhum outro campo da Biologia experimental havia atingido equiva- lente nível de desenvolvimento em 1865. O trabalho de Mendel não é compreendido Mas, como vimos, naquela época nenhum biólogo parecia ter consciência de que esse era o caso. Certamente, o trabalho de Mendel não seria tão importante, se ele valesse apenas para ervilhas, do mesmo modo que se a descoberta das células por Hooke se aplicasse apenas à cortiça. O campo do conhecimento relativo aos cruzamentos de plantas estava cheio de dados que não permitiam conclusões gerais. Mendel escreveu cartas para um grande estudioso na área, Nägeli, explicando seus resultados. Nägeli deve ter considerado os dados para ervilhas apenas como mais um exemplo da enorme variação nos resultados obtidos em experi- mentos de hibridação. Nägeli sugeriu que Mendel utilizasse outra planta, a chicória ( Hieracium sp.). Mendel assim o fez e falhou em encontrar regras consistentes para a herança. (Ocorre que Mendel não estava realizando os experimentos que acreditava estar). Era extremamente dificil realizar experimentos de hibridação com as pequenas flores de Hieracium. Contudo, Mendel acreditou ter conseguido em muitos casos, e surpreendeu-se com a falta de uniformidade dos resultados. O problema estava, na realidade, com Hieracium, e não com Mendel. Muito depois de sua morte, descobriu-se que, em Hieracium, ocorre um tipo de desenvolvimento partenogenético, em que há a formação de um novo indivíduo a partir de um óvulo não fecundado. Assim, nenhuma proporção uniforme era de se esperar se parte da prole era resultado de fertilização e parte, de apomixia. Deste modo, o próprio Mendel passou a acreditar que seus primeiros resultados tinham aplicação restrita, e o fato é que seu modelo foi ignorado nas três últimas décadas do século XIX. Durante esse período, os principais estudiosos de hereditariedade abandonaram o paradigma do cruzamento experimental e se concentraram principalmente no comportamento dos cromos- somos na meiose, mitose e fertilização. Eles acre- ditavam estar construindo uma base física para a herança, e pesquisas posteriores viriam a mostrar que eles estavam corretos. EXERCÍCIOS PARTE A: REVENDO CONCEITOS BÁSICOS Preencha os espaços em branco nas frases de 1 a 8 usando o termo abaixo mais apropriado. (a) autofecundação (e) hibridação (b) espécie (f) híbrido (c) fecundação cruzada (g) óvulo (d) grão-de-pólen (h) variedade 1. A estrutura da flor que contém os gametas masculinos, ou núcleos gaméticos, é o ( ). 2. O ( ) das plantas angiospermas é uma estrutura multicelular onde se forma o gameta feminino, a oofera. 3. Na ervilha ocorre ( ) , isto é, o gameta masculino fecunda o gameta feminino da mesma flor. 4. O desenvolvimento do pólen de uma planta no estigma da flor de outra planta é um (a) ( ). 5. A ( ) em ervilha é feita removendo-se as anteras de uma flor, antes de sua maturação e, mais tarde, colocando-se pólen de outra planta sobre o seu estigma. 6. O termo ( ), empregado por Mendel, refere- se ao indivíduo proveniente do cruzamento entre duas plantas de linhagens diferentes. 7. ( ) era o termo usado para designar plantas cultivadas que diferiam entre si quanto a uma ou algumas características contrastantes, trans- missíveis aos descendentes. 8. ( ) é o termo usado para designar grupos de populações naturais capazes de se cruzar, produzindo descendência fértil. A REDESCOBERTA E A EXPANSÃO DO MENDELISMO Texto adaptado de: MOORE, J. A. Science as a Way of Knowing - Genetics. Amer. Zool. v. 26: p. 583-747, 1986. Quarta aula (T4) Objetivos da Unidade 1. Identificar os motivos que fizeram com que o trabalho de Mendel permanecesse ignorado por 35 anos. 2. Explicar os motivos do antagonismo entre mendelistas e biometristas. 3. Conceituar os seguintes termos: alelo, homozigoto, heterozigoto, loco gênico e gene. 4. Resolver problemas sobre variações nas proporções mendelianas. MENDELISMO, UM NOVO PARADIGMA Muita importância é dada ao fato de que o trabalho de Mendel foi publicado em uma obscura revista de uma sociedade também obscura, de tal modo que foi esquecido ou desconhecido por 35 anos, durante os quais floresceram a Citologia e um enorme interesse pela hereditariedade. Um julgamento mais acurado, eu acredito, nos levaria à conclusão de que sua publicação foi desconside- rada, e não desconhecida. Essa publicação era do conhecimento de Focke (1881), que a discutiu brevemente em seu criterioso tratado de hibrida- ção em plantas, e também foi mencionada mais tarde por Bailey (1895). Como já mencionado, Mendel se correspondia com um dos mais proemi- nentes estudiosos de hereditariedade daqueles tempos, Karl Wilhelm von Nägeli, o qual não se mostrou impressionado com os resultados dos cruzamentos em ervilhas. A explicação de Bateson, em sua introdução à publicação de Mendel (Mendel, 1902, p.2), foi a seguinte: “Pode parecer surpreendente que um trabalho de tal importância não tenha tido reco- nhecimento por tanto tempo, e não tenha se difundido no mundo científico. É bem verdade que a revista em que ele foi publicado era pouco divulgada, mas circunstâncias como esta rara- mente tem retardado o reconhecimento de um trabalho pela comunidade. A causa será, sem dúvida, encontrada na negligência em relação aos estudos experimentais sobre o problema de Espécie, decorrente da aceitação geral das doutrinas darwinianas. O problema da Espécie, conforme concebido por Gartner, Kölreuter, Naudin, Mendel e os demais hibridistas da primeira metade do século XIX, não mais atraia os pesquisadores. A questão, acreditava-se, já havia sido respondida e o debate concluído. Ninguém mais tinha interesse no assunto [uma mudança de paradigma!]. Várias outras linhas de pesquisa haviam sido repentinamente abertas e, em 1865, os pesquisadores mais entusiastas naturalmente consideraram esses novos métodos mais atraentes do que as observações tediosas dos hibridistas, cujos questionamentos tinham, além do mais, levado a resultados inconclusivos. Entretanto, se pretendemos avançar no estudo da hereditariedade e levar adiante o problema de “O que é uma Espécie?” como uma questão diferente de “Como uma espécie sobrevive?” devemos voltar e retomar a linha de questiona- mento exatamente como Mendel a tomou.” E, como podemos ver, foi exatamente o que Bateson fez. O trabalho de Mendel com ervilhas não é o único exemplo de uma importante descoberta não compreendida pela comunidade científica de seu tempo. Novos paradigmas dificilmente são prontamente identificados e adotados. A maioria 45 dos cientistas de qualquer época, estará ocupada fazendo sua ciência normal, seguindo os para- digmas preexistentes. A dificuldade em mudar o que se faz e como se pensa gera resistência às novas idéias e ao empreendimento de novos pro- gramas de pesquisa. Isto não foi problema para de Vries e Correns em 1900. A razão pela qual eles entenderam a importância das conclusões de Mendel foi terem feito o mesmo tipo de trabalho e desenvolvido hipóteses semelhantes, antes mesmo de lerem a publicação de Mendel. Eles estavam trabalhando no novo paradigma antes de conhecerem seu paradigmático autor. O mesmo pode ser dito de Bateson. Ele havia estudado variação e hibridação em plantas por anos e, apesar de nunca ter observado as regulari- dades do modelo mendeliano, ele sabia os tipos de experimentos que deveriam ser feitos. Considere o parágrafo a seguir, sobre as idéias de Bateson. Em 11 e 12 de julho de 1899, uma terça e uma quarta-feira, a “Royal Horticultural Society” realizou uma “Conferência Internacional sobre Hibridação (cruzamento entre espécies) e sobre Cruzamento de Variedades” em Chiswick, Londres. O volume 24 da revista da Sociedade consiste do registro da conferência. Assim, temos acesso às opiniões de importantes pesquisadores em hibridações com plantas, da época imediata- mente antes de Mendel mudar sua Ciência. A maioria dos artigos da revista descrevem resultados de cruzamentos, mas Bateson preferiu um discurso mais teórico, como podemos notar no trecho seguinte (Bateson, 1900a): “O que precisamos inicialmente saber é o que acontece quando uma variedade é cruzada com outras variedades próximas. Se pretendemos que o resultado tenha algum valor científico, é quase absolutamente necessário que a descendência de tais cruzamentos seja então examinada estatisti- camente. Deve ser registrado quantos descen- dentes se parecem com cada um dos parentais e quantos mostram o caráter intermediário entre eles. Se os parentais diferem em vários carac- teres, a descendência deve ser examinada estatis- ticamente e classificada, considerando cada um dos caracteres separadamente.” É como se Bateson estivesse aconselhando um estudante de graduação, que atendia pelo nome de Mendel, como planejar o programa de pesquisa para seu Ph.D. (doutorado em filosofia)! 46 Há vários aspectos da história de Mendel que são interessantes. Um deles é a atenção quase uni- versal que é dada ao cientista que fez a descoberta. Até recentemente, cientistas, especialmente biologistas, raramente poderiam ter a expectativa de fazer fortuna como cientistas – isto é, ganhar uma grande soma de dinheiro. A recompensa para um cientista era o próprio prazer de investigar a natureza e a aprovação de seus pares pela pesquisa bem feita e pela formulação de hipóteses arrojadas e imaginativas. Hoje, cientistas vêem o trabalho de Mendel com admiração. Como poderia ter ele avançado tanto em relação aos paradigmas da época e feito observações que, logo após sua morte, revolucionariam as Ciências Biológicas? Outro ponto interessante é que, repetidamente na história, parece que quando o campo está “pronto” a descoberta será feita. Se Mendel não tivesse nascido, o caminho da Genética não seria muito diferente. Ao redor de 1900, alguém chega- ria às mesmas conclusões. Apenas aconteceu de serem de Vries e Correns. Tschermak estava tão perto da resposta que geralmente é incluído com de Vries e Correns como co-redescobridor. Bateson, em mais ou menos um ano, poderia ter descoberto independentemente as regras mende- lianas da herança. Como parece, o progresso da Ciência é inevitável. OPOSIÇÃO INICIAL AO MENDELISMO No decorrer da história de Mendel, podemos ser levados a acreditar que em 1900, com a publicação dos artigos de de Vries e Correns, a “Ciência pura” tinha finalmente triunfado. Mas não foi bem assim. Havia vigorosa, muitas vezes sarcástica, oposição às conclusões de Mendel (Provine, 1971). Esse duelo científico envolveu principalmente três ingleses - William Bateson versus Karl Pearson e W. F. R. Weldon, cada lado apoiado por um grupo de seguidores. As duas escolas eram fundamen- talmente diferentes em suas propostas. Bateson procurava informações sobre herança através de cruzamentos experimentais. Weldon, Francis Galton e Karl Pearson procuravam aplicar métodos mate- máticos, especialmente estatísticos, aos problemas biológicos. A oposição destes biometristas é real- mente surpreendente, se lembrarmos que Mendel se baseou na matemática. A disputa básica começou antes de 1900 e estava relacionada com a temática evolutiva. Mais 47 uma vez era o caso de paradigmas conflitantes. Weldon, Galton, Pearson e outros eram segui- dores de Darwin, acreditando que a evolução dos seres está baseada em alterações filogenéticas graduais. Em populações naturais a variação tende a ser contínua. Quando organizados pelo tamanho ou outra característica qualquer, os indi- víduos de uma espécie parecem mostrar uma variação contínua. Não surpreende que se consi- derasse a evolução envolvendo mudanças tão pequenas que, apenas após longo intervalo de tempo, seria possível observar qualquer diferença. A lei da herança ancestral de Galton Uma importante asserção desta escola da variação contínua era a “lei da herança ancestral” de Galton. Ele considerava a herança na sua tota- lidade e realçava que cada característica hereditária de um indivíduo não provinha apenas dos pais, mas também dos ancestrais mais remotos. Galton (1897) propôs sua famosa lei, baseando-se em cuidadoso estudo de genealogias de cães basset. “A lei a ser examinada pode parecer à primei- ra vista muito artificial para ser verdadeira, mas uma análise mais acurada mostra a predisposi- ção advinda dessa impressão superficial é infun- dada. O assunto será mencionado novamente, por enquanto a lei deve ser enunciada. Ela diz que os dois genitores contribuem ambos com aproximadamente metade, ou (0,5) do total da herança da descendência; os quatro avós, com um quarto, ou (0,5)2; os oito bisavós, com um oitavo, ou (0,5)3, e assim por diante. Assim, a soma da contribuição ancestral é expressa pela série {(0,5) + (0,5)2 + (0,5)3 + ....)}, que, sendo igual a 1, dá conta de toda a hereditariedade.” Assim, traços de nossos mais remotos ances- trais poderiam ser encontrados em nós e esta herança passada frearia mudanças repentinas. As exigências darwinianas de um mecanismo para mudanças imperceptíveis e lentas na evolução estariam então satisfeitas. Mas, como funcionaria a Lei de Galton? Atual- mente, a noção de que nossos genes são herdados apenas dos nossos pais, exatamente metade de cada, está tão fixada em nossas mentes, que não podemos imaginar um mecanismo de herança de ancestrais veneráveis, sobrepondo-se à paterna. A resposta é que Galton estava se referindo a fenótipos, e não genótipos. Já era bem conhecido que um indivíduo pode expressar certas caracte- rísticas fenotípicas que seus pais não expressam. Variação contínua e descontínua em debate A noção de variação contínua em evolução e, claro, em herança, foi contestada por Bateson e outros. Ele havia estudado evolução e hereditarie- dade por muitos anos. Em 1894, produziu o imenso volume Materials for the Study of Varia- tion Treated with Especial Regard to Disconti- nuity in the Origin of Species (“Materiais para o Estudo da Variação voltado especialmente para a Descontinuidade na Origem das Espécies”). Ele desejava descobrir se as evidências sugeriam que a evolução é produto de variação contínua ou descontínua, e concluiu que esta última é possível. Sobre isso, escreveu, em 1900: “Nós aprendemos que Evolução é um processo muito lento, aconte- cendo por passos infinitesimais. Na horticultura é raro acontecer algo desse tipo .... O melhora- mento de organismos anda a galope. Nesse caso, portanto, em que pode ser mostrado que a varia- ção dos organismos é descontínua, não é mais necessário supor que para sua produção foram necessárias inúmeras gerações de seleção e acúmulo gradual das diferenças, e o processo de Evolução torna-se assim mais fácil de ser entendido. De acordo com o que pode ser descrito como a visão mais aceita, esse processo consiste na transição gradual de um tipo normal para outro tipo normal. Essa suposição implica na hipótese quase impossível de que cada tipo intermediário apareceu sucessivamente entre as duas formas extremas. Se existir descontinuidade essa hipótese é totalmente dispensável.” Não é de admirar que Bateson acreditou ser o paradigma mendeliano tão aceitável. Diferenças hereditárias poderiam ser marcantes, isto é, as variações pareciam ser descontínuas. Para Bateson e seus seguidores o modelo de Mendel era compatível com o seu paradigma. (Como um aparte, seria interessante notar que o motivo deste debate ainda hoje é pertinente. Alguns evolucionistas acreditam que o padrão principal seguido pela evolução é baseado em mudanças pequenas. Outros acreditam ser o padrão comum de pequenas mudanças, ocor- rendo durante longos períodos de tempo, seguidas por mudanças bruscas de curta duração – equilíbrio pontuado. Parte da confusão é conse- Nestas páginas eu apenas toquei as fronteiras desse novo campo que está se descortinando diante de nós, de onde em um período de dez anos deveremos olhar para trás, para o cativeiro dos dias atuais. Logo, toda a ciência que lida com animais e plantas estará repleta de desco- bertas que o trabalho de Mendel tornou possí- veis. O criador, seja de plantas ou de animais, não mais se desgastando nos velhos caminhos tradicionais, será superado apenas pelo químico em recursos e em capacidade de previsão. Cada concepção de vida da qual fizer parte a heredita- riedade - e qual delas estaria isenta? - deverá mudar antes do desencadeamento de fatos que está por vir.” A previsão de Bateson sobre o que se veria dez anos mais tarde estava correta - Morgan esta- beleceria as bases para um desenvolvimento espantoso em Genética. Bateson, o campeão e o profeta, fez muito para proteger e promover o mendelismo em sua fase inicial. Ele agiu de maneira similar a seu compatriota, Thomas Henry Huxley, que meio século antes, havia sido vigoroso e efetivo defensor do darwinismo. DEFININDO ALGUNS TERMOS GENÉTICOS No ano de 1902 surgiu uma outra publicação de fundamental importância - a primeira das comunicações ao Comitê de Evolução da Royal Society, realizada por Bateson e pela senhorita Saunders (1902). Em 1897 eles deram início a uma série de cruzamentos em uma grande variedade de plantas e animais. Seu objetivo inicial era aprender mais sobre os fenômenos de herança contínua e descontínua, e também sobre o fenô- meno da “predominância”, que mais tarde seria denominado dominância. Naquela época eles pensaram que, “Do que foi averiguado até o momento sobre o fenômeno da hereditariedade, não se pode evitar a inferência de que não há uma lei universal, mas que, por meio do estudo de diversos casos específicos, diferentes leis podem ser descobertas.” Um empreendimento muito grande para Dar- win, Nägeli, Weismann e Galton! Por outro lado, Bateson e Saunders, antes de publicarem seus resultados, perceberam que “todo o problema da hereditariedade estava sofrendo uma completa revolução”. Essa visão permitiu que eles usassem o paradigma mendeliano para explicar seus resultados. 50 Bateson (em Bateson e Saunders, 1902) forneceu-nos algumas das terminologias básicas para a Genética mendeliana: “Esta pureza da linhagem germinativa, e sua incapacidade de transmitir simultaneamente as duas caracterís- ticas antagônicas, é o fato central do trabalho de Mendel. Nós chegamos assim à concepção de unidades de caráter existentes em pares anta- gônicos. Nós propomos para tais caracteres a denominação de alelomorfos, e para o zigoto formado pela união de gametas portadores de alelomorfos antagônicos, a denominação de heterozigótico. De modo semelhante, o zigoto formado pela união de gametas portadores de alelomorfos semelhantes deve ser chamado homozigótico”. Mais tarde, o termo alelomorfo foi encurtado para alelo. Distinguindo gene e alelo Nesse ponto irei explicar como planejo usar os termos gene, loco gênico , e alelo . Os professores com larga experiência no ensino de Genética em cursos introdutórios sabem o quanto é difícil para os estudantes lidarem com essa terminologia. Esta dificuldade se deve mais ao modo inexato como muitos geneticistas usam estes termos, do que à falta de competência do aluno. E, atualmente, apareceu um complicador adicional: quanto mais se sabe a respeito das bases moleculares de um loco gênico, mais complicado se torna o conceito de gene. No momento, vamos ignorar o presente e discutir os genes como eles eram concebidos nos Anos Dourados da Genética Clássica: pequenas contas de um colar – na verdade, não exatamente isso. O principal problema é o uso freqüente dos termos alelo e gene como sinônimos. Eu tentarei não fazer isso, mas como muitos de meus amigos geneticistas, eu poderei algumas vezes incorrer nesse erro. Gene será a menor porção do cromos- somo (os átomos da hereditariedade!) que produz um efeito definido que, é claro, precisa ser detec- tável (ou nós nunca poderiamos saber de sua existência). A posição que o gene ocupa no cromossomo será seu loco. Alelos serão as dife- rentes variantes detectáveis de um dado gene. Cada gene deve ter pelo menos dois alelos – de outro modo nós não saberíamos de sua existência. Um gene revela sua existência quando ele muta de tal modo que o novo alelo mutante tenha um efeito detectável. 51 VARIAÇÕES NAS PROPORÇÕES MENDELIANAS Os resultados dos cruzamentos entre varie- dades de ervilhas - dominância e recessividade, segregação e segregação independente, com suas conse-qüências, ou sejam, a proporção 3 : 1 em F 2 de um cruzamento monoíbrido e a proporção 9 : 3 : 3 : 1 no F 2 de um cruzamento diíbrido - exibiram um alto grau de uniformidade e, por isso, levantaram a questão da universalidade dos resultados. Um caso típico de monoibridismo Em sua primeira comunicação ao Comitê de Evolução, Bateson e Saunders (1902) descreve- ram vários cruzamentos, muitos dos quais inicia- dos antes deles tomarem conhecimento do trabalho de Mendel. Saunders descreveu seus experimentos com plantas de espécies selvagens do gênero Lychnis. Algumas das espécies são pubescentes, isto é, com pêlos, e outras são glabras, isto é, sem pêlos. a. Cruzamentos de plantas pubescentes com plantas glabras produziram em F 1 1006 plantas pubescentes e nenhuma glabra. b. Quando indivíduos F 1 foram cruzados entre si, obteve-se um F 2 constituído por 408 plantas pubescentes e 126 glabras. Esses resultados podem ser explicados assumindo-se a existên- cia de um gene condicionante do caráter, que se apresenta sob a forma de um alelo domi- nante, condicionante do traço pubescente, e de um alelo recessivo, condicionante do traço glabro. Essa conclusão se baseia no fato de o caráter glabro não ter aparecido em F 1 , mas ter reaparecido em 1/4 dos indivíduos de F 2 . c. Quando um indivíduo F 1 foi cruzado com uma planta pubescente pura, a descendência continha 41 plantas pubescentes e nenhuma glabra. d. Quando um indivíduo F 1 foi cruzado com uma planta glabra pura, a descendência obtida era formada por 447 plantas pubes- centes e 433 glabras. Esses tipos de cruzamento, em que o indivíduo é cruzado com um ou outro dos tipos parentais recebe o nome de retrocruzamento. O fato de no retrocruzamento com o parental recessivo (d) ter sido produzido 50% de indivíduos pubescentes e 50% glabros corrobora a hipótese da produção de dois tipos de gameta (nas mesmas proporções) pela geração F 1 , a qual é, portanto, formada por indivíduos heterozigóticos. Com base nesse raciocínio, quando se deseja determinar o genótipo de um indivíduo com fenótipo dominante faz-se o cruzamento dele com um indivíduo com fenótipo recessivo. No caso dos descendentes serem todos de fenótipo domi- nante, conclui-se que o indivíduo em teste formou apenas um tipo de gameta, sendo, portanto, homozigótico. No caso de se obter os dois fenó- tipos na progênie, conclui-se que o indivíduo em teste formou dois tipos de gameta, sendo, portanto, heterozigótico. Esse tipo de cruza- mento, com o intuito de se determinar o genótipo de um indivíduo, é chamado cruzamento-teste. Herança da forma da crista em Gallus gallus Na mesma publicação Bateson descreveu seus primeiros experimentos com Gallus gallus. Ele estudou muitos tipos de características, incluindo a forma da crista desses galináceos. (Fig. 12) Um dos tipos de crista era ervilha e o outro, simples. a. Quando ervilha foi cruzada com simples, todo o F 1 apresentou crista ervilha. Figura 12. Tipos de crista em Gallus gallus: A. crista simples; B. crista ervilha; C. crista rosa; D. crista noz. A B C D b. Quando indivíduos F 1 foram cruzados entre si, a descendência foi composta por 332 indivíduos com crista ervilha e 110 com crista simples. Esses resultados podem ser explicados assu- mindo-se a existência de um gene condicionante do caráter, que se apresenta sob a forma de um alelo dominante, condicionante de crista ervilha, e de um alelo recessivo, condicionante de crista simples. Em uma segunda publicação (Bateson et al., 1905), Bateson relatou outros experimentos sobre herança da forma da crista em Gallus gallus. c. Quando indivíduos com um terceiro tipo de crista, denominada rosa, foram cruzadas com indivíduos de crista simples obteve-se um F 1 totalmente composto por rosa. d. Quando os F 1 foram cruzados entre si, obteve- se um F 2 formado por 221 rosa e 83 simples. e. Quando indivíduos F 1 foram cruzados com indivíduos de crista simples, a descendência foi composta de 449 rosa e 469 simples. (Fig. 13) Esses resultados podem ser explicados assu- mindo-se a existência de um gene condicionante do caráter, que se apresenta sob a forma de um alelo dominante, condicionante de crista rosa, e de um alelo recessivo, condicionante de crista simples. Assim, rosa e ervilha são ambos dominantes sobre simples. Mas como pode haver três alelos: simples, rosa e ervilha? 52 Rosa X Simples RR rr ➤ ➤ R r X ➤ ➤ ➤ ➤ R r Rosa Rr Rosa RR Rosa Rr Rosa Rr simples rr ➤ Rosa Rr ➤ ➤ ➤ P 1 F 2 Fenótipo Fenótipos e Genótipos Genótipo Genótipo dos gametas F 1 Fenótipo Genótipo Genótipo dos gametas R r Ervilha X Simples EE ee ➤ ➤ E e X ➤ ➤ ➤ ➤ E e Ee EE Ee Ee simples ee ➤ Ee ➤ ➤ ➤ P 1 F 2 Fenótipo Fenótipos e Genótipos Genótipo Genótipo dos gametas F 1 Fenótipo Genótipo Genótipo dos gametas E e Ervilha Ervilha Ervilha Ervilha Ervilha Figura 13. Diagramas genéticos de cruzamentos entre galináceos com diferentes tipos de crista. f. A situação se tornou mais complicada com o resultado do cruzamento entre animais de uma linhagem pura de crista ervilha com animais de uma linhagem pura de crista rosa. A geração F 1 foi uniforme mas todos os animais apresentavam um tipo de crista diferente da dos tipos parentais – crista noz. Esse tipo de crista já era conhecido de outros cruzamentos. g. Quando os F 1 com crista noz foram cruzados entre si, obteve-se, em F 2 , 99 noz, 26 rosa, 38 ervilha e 16 simples. Pode-se perceber que a proporção em F 2 é aproximadamente 9 : 3 : 3 : 1. Esta proporção pode ser tomada como significando o envolvimento de dois genes cada um deles com um par de alelos. Estes alelos estão cumprindo as regras mendelianas de dominância, segregação e segregação indepen- dente. A situação é enigmática apenas porque am- bos os pares estão afetando a mesma característica, a forma da crista. (Figs. 13 e 14) h. Quando indivíduos noz foram cruzados com simples, a descendência foi de 139 noz, 142 rosa, 112 ervilha e 141 simples. Esse foi um cruzamento teste, onde um indivíduo recessivo (crista simples) foi cruzado com um indíviduo cujo genótipo se deseja determinar (crista noz). O fato de terem sido produzidos quatro tipos de descendente nas 55 PARTE A: REVENDO CONCEITOS BÁSICOS Preencha os espaços em branco nas frases de 1 a 6 usando o termo abaixo mais apropriado. (a) biometrista (d) hibridista (b) evolução gradual (e) variação contínua (c) evolução em saltos (f) variação descontínua 1. A escola ( ) se caracterizava por procurar obter informações sobre hereditariedade por meio de cruzamentos experimentais. 2. A escola ( ) se caracterizava por procurar compreender hereditariedade por meio da aplicação de métodos matemáticos. 3. Um caráter com ( ) apresenta diferenças pequenas e graduais entre os indivíduos de uma população. 4. Um caráter com ( ) apresenta diferenças contrastantes, facilmente identificáveis, entre os indivíduos de uma população. 5. Pequenas mudanças, lentas e relativamente constantes ao longo do tempo caracteriza a ( ). 6. Períodos de mudanças lentas e graduais seguido de períodos curtos de mudanças bruscas caracteriza o ( ). Preencha os espaços em branco nas frases de 7 a 10 usando o termo abaixo mais apropriado. (a) alelo ou alelomorfo (c) loco (b) gene (d) mutação 7. ( ) pode ser definido como a porção do cro- mossomo (um segmento da molécula da hereditariedade) que produz um efeito detectável no indivíduo. 8. Uma alteração hereditária em uma característica é chamada ( ). 9. Cada uma das formas detectáveis de um ( ) é chamada ( ). 10. A posição que um determinado ( ) ocupa no cromossomo é seu (sua) ( ). Preencha os espaços em branco nas frases de 11 a 15 usando o termo abaixo mais apropriado. (a) dominância (b) interação gênica com epistasia (c) heterozigótico EXERCÍCIOS (d) homozigótico (e) interação gênica sem epistasia (f) codominância 11. O zigoto, e conseqüentemente o indivíduo, resultante da união de gametas portadores de um mesmo tipo de alelo é chamado ( ). 12. O zigoto, e conseqüentemente o indivíduo, resultante da união de gametas portadores de alelos diferentes de um mesmo gene é denominado ( ). 13. O fenômeno de dois ou mais genes atuarem na determinação de uma mesma característica é chamado ( ). 14. O fenômeno de a expressão de um alelo de um gene mascarar o efeito de um alelo de um outro gene é chamado ( ). 15. O fenômeno de um alelo de um gene mascarar o efeito de um outro alelo do mesmo gene é chamado ( ). PARTE B: LIGANDO CONCEITOS E FATOS Indique os termos que completam ou respondem as questões de 16 a 28. 16. Para Weldon e Pearson, seguidores de Galton, o mendelismo era incompatível com a teoria darwinista e por isso o combatiam. Esse pensamento era defendido pela chamada escola a. evolucionista. c. hibridista. b. biometrista. d. darwinista. 17. A “lei da herança ancestral” de Galton dizia que a. as características adquiridas eram hereditárias. b. as regras da herança podiam ser expressas matematicamente pelas fórmulas 3:1 e 9:3:3:1. c. a contribuição ancestral na formação de um indivíduo era de 1/2 dos pais, 1/4 dos avós, 1/8 dos bisavós e assim por diante. d. as mudanças hereditárias eram lentas e graduais e dependiam da ancestralidade. 18.Para Bateson a explicação mendeliana para a hereditariedade não se contrapunha ao darwinismo, pois o processo de evolução po- dia envolver características a. adquiridas. b. com variação contínua. c. com variação descontínua. d. com efeito aditivo. Utilize as alternativas abaixo para completar as frases de 19 e 20. a. dominância c. interação gênica b. epistasia d. variação contínua 19. Em galinhas, como observado por Bateson e colaboradores no início do século, o cruzamento entre indivíduos de crista noz produz descendência com crista tipo noz, rosa, ervilha e simples, na proporção de 9:3:3:1, respectivamente. Trata-se de ( ). 20. Em ervilha-de-cheiro, Bateson e colabora- dores obtiveram, no cruzamento entre plantas híbridas com flores coloridas, plantas com flores coloridas e plantas com flores brancas na proporção de 9:7. Trata-se de ( ). 21. O cruzamento de um indivíduo com fenótipo dominante com outro de fenótipo recessivo, com o objetivo de se determinar o genótipo do primeiro, é denominado a. cruzamento teste. c. monoibridismo. b. diibridismo. d. retrocruzamento. Utilize as alternativas abaixo para responder às questões de 22 e 25. a. diplóide. c. heterozigótico. b. haplóide. d. homozigótico. 22. No cruzamento entre um indivíduo com um caráter hereditário dominante eoutro com o caráter recessivo, todos os descendentes apresentaram o caráter dominante. Pode-se dizer, portanto, que, muito provavelmente, o tipo parental dominante é ( ). 23. Em um cruzamento entre um indivíduo com um caráter hereditário dominante e outro com o caráter recessivo, foram produzidos des- cendentes com o caráter dominante e descen- dentes com o caráter recessivo. Esse resultado permite concluir que o tipo parental dominante é ( ). 24. Um indivíduo que apresenta em suas células apenas um alelo de cada gene é ( ). 25. Um indivíduo que apresenta em suas células um par de alelos de cada gene é ( ). Utilize as alternativas abaixo para responder às questões de 26 a 28. a. 1 : 2 : 1 c. 9 : 7 b. 9 : 3 : 4 d. 12 : 3 : 1 26. Nos casos em que alelos diferentes de um gene se expressam na condição heterozigótica, a proporção fenotípica esperada em um cruzamento entre dois híbridos é ( ). 27. No caso de uma interação entre dois genes com segregação independente, em que o alelo dominante de um dos genes mascara ou inibe a expressão do outro gene, a proporção fenotípica esperada no cruzamento de dois duplo-heterozigotos é ( ). 28. No caso de uma interação entre dois genes com segregação independente, em que o par de alelos recessivos de um dos genes mascara ou inibe a expressão do outro gene, a proporção fenotípica esperada no cruzamento de dois duplo-heterozigotos é ( ). PARTE C: QUESTÕES PARA PENSAR E DISCUTIR 29. Qual a explicação que se costuma dar para o fato de o trabalho de Mendel não ter sido entendido durante 35 anos? 30. Por que Moore admite que o antagonismo entre o mendelista Bateson e os biometristas Weldon e Pearson era uma questão de conflito de paradigmas? 31. Por que algumas pessoas levantaram a questão de que Mendel pode ter falsificado seus resultados? 32. Como surgem os diferentes alelos de uma gene? 33. Quais serão as proporções fenotípicas esperadas em um cruzamento entre dois duplo- heterozigotos em que os dois genes apresentam segregação independente e interagem das seguintes maneiras: a. um dos genes na condição homozigótica recessiva, independentemente da condição do outro gene, condiciona o fenótipo A; em qualquer outra situação o fenótipo do indivíduo será B. b. os alelos recessivos não produzem nenhum tipo de pigmento e cada alelo dominante condiciona a produção de uma quantidade X de um mesmo pigmento. c. basta ter um alelo dominante de qualquer dos dois genes para apresentar o fenótipo A; no caso dos dois genes estarem na condição homozigótica recessiva, o fenótipo será B. 34. Em rabanetes, a forma da raiz pode ser arredondada, ovalada ou alongada. Cruza- mentos entre plantas de raiz alongada e plantas de raiz arredondada produziram apenas indi- víduos com raiz ovalada. Em cruzamentos desses indivíduos entre si foram obtidos 400 56 descendentes, dos quais 100 apresentaram raízes alongadas, 195 apresentaram raízes ovaladas e 105 apresentaram raízes arredondadas. a. Proponha uma hipótese para explicar esses resultados. b. Com base na sua hipótese faça um diagrama do cruzamento e compare os resultados observados com os esperados de acordo com o diagrama. c. Os resultados obtidos estão de acordo com as leis mendelianas? Explique d. De acordo com a hipótese, se cruzássemos rabanetes de raiz ovalada com rabanetes de raiz arredondada, quais as proporções fenotí- pica e genotípica esperadas na descendência? 35. Em abóboras, a forma do fruto pode ser discóide, esférica ou alongada. Uma variedade pura de frutos discóides foi cruzada com uma variedade pura de frutos alongados. A geração F 1 foi inteiramente constituída por plantas de frutos discóides. A autofecundação das plantas F1 produziu 80 descendentes, dos quais 30 tinham frutos esféricos, 5 tinham frutos alon- gados e 45 tinham frutos discóides. a. Proponha uma hipótese para explicar esses resultados. b. Com base na sua hipótese faça um diagrama do cruzamento e compare os resultados observados com os esperados de acordo com o diagrama. c. Os resultados obtidos estão de acordo com as leis mendelianas? Explique. 36. Em uma certa linhagem de animais foram identificados dois genes com segregação independente afetando a massa. Os alelos dominantes condicionam, cada um, um acréscimo de 10 gramas à massa básica de 50 gramas do duplo-recessivo. Determine a massa máxima e a mínima na descendência de um cruzamento Aabb X AaBB. 37. A pigmentação da plumagem em uma certa linhagem de galinhas é condicionada por dois genes com segregação independente. O alelo dominante de um dos genes (C) condiciona a produção de pigmento enquanto o alelo recessivo (c) é inativo, condicionando cor bran- ca. O alelo dominante do outro gene (I) inibe a formação de pigmento, enquanto o alelo recessivo (i) não o faz. Determine a proporção fenotípica em um cruzamento entre dois indivíduos duplo-heterozigóticos. 57 60 nhotos do gênero Brachystola. Em seu artigo, ela afirma que “As células de Brachystola,, como as de muitos anfíbios, seláquios, insetos e plantas com flores, exibem um conjunto cromossômico cujos componentes possuem tamanhos bastante diferentes. Isso permitiu que um dos pontos do [meu] trabalho fosse o exame criterioso de um grande número de células em divisão (princi- palmente dos testículos) a fim de determinar se, como em geral se pensa, essas diferenças são meramente casuais, ou se, de acordo com as idéias recentes de Montgomery [1901], baseadas em um determinado par de elementos do núcleo de uma espécie de Hemiptera, as relações carac- terísticas de tamanho são um atributo constante dos cromossomos considerados individualmente. Com o auxílio de desenhos feitos em câmara clara do conjunto cromossômico em várias gerações de células, eu irei descrever brevemente a evidência que me levou a optar pela última conclusão.” A análise inovadora de Sutton precisava apenas de duas informações adicionais: que os cromossomos eram estruturas celulares permanentes e que eram estruturas individual- mente específicas (isto é, geneticamente diferen- tes entre si e não, como acreditava Weismann, cada um contendo toda a informação hereditária). Como obter estas informações? Sutton trabalhou em uma época em que não era possível o estudo da estrutura fina dos cromos- somos. O material com que lidava eram os cromossomos corados de células em mitose ou meiose, os quais podiam ser identificados apenas pelo tamanho. Mesmo este procedimento apresentava problemas, pois os cromossomos mudam de tamanho durante as divisões celulares, aparecendo como fios longos e delicados na prófase e tornando-se curtos e grossos na metáfase. Sutton se baseou nos tamanhos relativos dos cromossomos, já que aparentemente eles mudavam de tamanho de modo sincrônico. As espermatogônias de Brachystola sofrem uma série de divisões mitóticas antes de entrar em meiose. A esperma- togônia jovem contém 23 cromosso- mos. Um deles é o chamado “cromos- somo acessório”, que já havia sido observado em outras espécies e repre- sentava um problema a ser resolvido. Vamos ignorar por um momento este “cromossomo acessório” e nos restringir aos outros 22, cujos desenhos em câmara clara mostravam diversos tamanhos e formas. Quando Sutton mediu cuidadosamente estes cromosso-mos, verificou que não existiam 22 tamanhos diferentes, mas apenas 11. Em outras palavras, havia 11 pares de cromossomos, sendo que os do mesmo par apresentavam tamanhos iguais. (Fig. 16) Mesmo não sendo fácil identificar cromos- somos individuais, Sutton conseguiu reconhecer que os 11 pares consistiam de oito pares grandes e três pequenos. Um estudo minucioso mostrou que a espermatogônia sofria oito divisões mitó- ticas e, na metáfase de cada uma delas, existiam oito pares de cromossomos maiores e três menores. Esta foi a evidência que Sutton aceitou como indicadora de que os 22 cromossomos de Brachystola eram de 11 tipos. Meiose e fertilização em Brachystola A espermatogônia diferencia-se, então, em espermatócitos que sofrem meiose. Ocorre o emparelhamento dos cromossomos de mesmo tamanho, formando 11 bivalentes – oito grandes e três pequenos. Depois da segunda divisão A B C x Figura 16 Ilustrações de Sutton dos cromossomos de Brachystola. (A) Conjunto haplóide de cromossomos do macho. (B) Conjunto diplóide de cromossomos da fêmea. (C) Cromossomos mostrados em (A) arranjados em ordem de tamanho. 61 meiótica, cada espermátide contém apenas um representante de cada um dos oito pares de cromossomos grandes e um de cada um dos três pares pequenos. O desenho A da figura 16 mostra o número haplóide de cromossomos após a segunda divisão meiótica. Na figura 16C, estão representados os cromossomos metafásicos, mostrando o “cromossomo acessório”, à esquer- da, e os grupos de oito cromossomos grandes e três pequenos, à direita. As células da fêmea eram mais difíceis de serem estudadas. Sutton regis- trou, no entanto, que as fêmeas possuiam 22 cromossomos; nova-mente oito pares de cromos- somos longos e três, curtos. Na figura 16B está apresentado um conjunto diplóide de cromos- somos de uma célula do folículo ovariano. O fato de tanto o núcleo do macho quanto o da fêmea conterem o mesmo número de pares de cromossomos longos e curtos era uma evidência adicional da especificidade dos cromossomos. Sutton propôs que a diferença de tamanho era real e não meramente casual como se considerava naquela época. Assim, tudo indicava que no macho o número diplóide fosse de 11 pares de cromossomos mais o “cromossomo acessório” e que na fêmea existiriam apenas os 11 pares cromossômicos. (Sutton cometeu um erro. Estudos posteriores revelaram 24 cromossomos na fêmea: oito pares longos, três pares curtos e um par de cromossomos acessórios). No ano anterior, McClung (1901) havia sugerido que o “cromossomo acessório” (ou “elemento X”, como denominado por Henking em 1891) devia estar envolvido na determinação do sexo masculino, um assunto que voltaremos a discutir. De acordo com as observações de Sutton, os óvulos maduros de Brachystola deveriam, portanto, apresentar um número haplóide de 11 cromossomos. Os espermatozóides poderiam ser de dois tipos, metade contendo apenas 11 cromos- somos e a outra metade, contendo 11 mais o cromossomo acessório. A fertilização resultaria, portanto, em dois tipos de descendentes. Parte teria 22 cromossomos, sendo fêmeas, e parte teria, além desses 22 cromossomos, o “cromos- somo acessório”, sendo machos. Análise dos resultados Afinal, o que significaria tudo isso? Aqui está a parte extraordinária da análise de Sutton: “Em seu conjunto, as evidências fornecidas pelas células de Brachystola permitem concluir que um cromossomo só se origina pela divisão longi- tudinal de um cromossomo pré-existente e que os membros de um grupo cromossômico filho conservam, uns em relação aos outros, a mesma relação que existia no conjunto materno – isso significa, em outras palavras, que cada cromos- somo é uma individualidade morfológica. Essa conclusão levanta a questão inevitável se existe também uma individualidade fisiológica, i.e., se os cromossomos representam respectivamente séries diferentes, ou grupos de qualidade, ou se eles são meramente agregados de tamanhos diferentes de um mesmo tipo de material e, portanto, qualitativamente semelhantes. Sobre essa questão minhas observações não fornecem evidências diretas. Mas é bastante improvável que as constantes diferenças morfológicas que nós observamos existam a não ser como conseqüência de diferenças mais funda- mentais das quais elas seriam uma expressão; e, além disso, a distribuição desigual do “cromos- somo acessório” nos permitiu comparar as possibilidades de desenvolvimento das células que o possuiam e das células onde o “cromos- somo acessório” estava ausente. Considerando a constituição normal das células femininas exa- minadas e a semelhança do processo de redução cromossômica nos dois sexos, tal comparação mostra que o “cromossomo acessório” tem um poder não compartilhado por qualquer dos outros cromossomos – o poder de imprimir nas células que o contêm a estampa de mascu- linidade, de acordo com a hipótese de McClung. A generalização dessa evidência para o caso dos demais cromossomos é mais uma sugestão do que uma prova, mas ela é feita nesse caso como um complemento morfológico das belas pesquisas experimentais de Boveri [nós volta- remos a esse assunto em breve]. Nesse trabalho Boveri mostra como ele obteve artificialmente para os vários cromossomos de ouriço-do-mar os mesmos resultados que a natureza está cons- tantemente nos fornecendo no caso dos “cromos- somos acessórios” de Orthoptera. Ele foi capaz de produzir e estudar o desenvolvimento de blastômeros deficientes em certos cromossomos da série normal. Por série normal entende-se aqui aquela que ocorre no núcleo de cada um dos produtos germi- 62 nativos maduros, uma vez que foi demonstrado claramente, pelos bem conhecidos trabalhos de fertilização de fragmentos anucleados de óvulos e de partenogênese induzida por substâncias químicas, que ambos os produtos germinativos maduros são necessários para fornecer toda a cromatina necessária para a produção de uma larva normal.... Todo ovo fertilizado, portanto, assim como toda célula derivada pela divisão dele, precisa ter cada caráter coberto por dois cromossomos – um de cada genitor.... Se, como os fatos em Brachystola sugerem tão fortemente, os cromossomos são entidades persistentes, no sentido de que cada um possui uma relação genética com outro da geração precedente, é necessário aceitar a probabilidade de que cada cromossomo é da mesma qualidade que aquele do qual se originou. Um dado tamanho relativo deve, portanto, ser considerado como uma característica física de um determi- nado lote de qualidades definidas. Mas cada elemento da série cromossômica do espermato- zóide tem o seu correspondente na série cromos- sômica do óvulo maduro e disso se conclui que ambos cobrem o mesmo campo no desenvolvi- mento. Quando os dois se reúnem, portanto, na sinapse (a sugestão de que cada cromossomo materno se une a um paterno foi feita primeira- mente por Montgomery, 1901) toda a base cromatínica para um dado conjunto de quali- dades herdadas dos dois genitores fica localizada pela primeira e única vez em uma massa cromatí- nica contínua; e quando, na segunda divisão do espermatócito, as duas partes novamente se separam, cada uma vai inteiramente para um dos pólos da célula fornecendo às células-filhas o grupo correspondente de qualidades do estoque materno ou paterno como devia acontecer. Não ocorre, portanto, em Brachystola qual- quer divisão qualitativa dos cromossomos mas apenas uma separação dos dois membros de cada par, os quais, uma vez que coexistem em um mesmo núcleo, podem ser considerados como controlando juntos certas porções restritas do desenvolvimento do indivíduo. Sob à luz dessa concepção nós somos capazes de ver uma expli- cação desse até agora problemático processo, a sinapse, que faz com que os dois cromossomos que representam os mesmos caracteres especí- ficos nunca entrem juntos no mesmo núcleo de uma espermátide ou de um óvulo. Eu devo, finalmente, chamar a atenção para a possibilidade de que a associação dos cromos- somos paternos e maternos em pares e sua subse- qüente separação durante a divisão reducional, como indicado acima, pode constituir a base física das leis mendelianas de herança. A esse assunto eu espero voltar em breve em uma outra publicação. Sutton realmente voltou a esse assunto no ano seguinte (1903), em um artigo ainda mais admirável, The Chromosomes in Heredity (“Os Cromossomos na Hereditariedade”). O TRABALHO DE SUTTON DE 1903 O trabalho de Sutton de 1903 discute o signi- ficado do que ele e outros pesquisadores observa- ram sobre cromossomos e mostra que existe uma impressionante semelhança entre o comporta- mento dos cromossomos e o comportamento dos hipotéticos fatores hereditários postulados por Mendel. As conclusões básicas do estudo de Sutton sobre os cromossomos de Brachystolasp. foram: 1. Os cromossomos de uma célula diplóide podem ser agrupados em dois conjuntos morfologica- mente semelhantes. Isto é, cada tipo de cromos-somo está representado duas vezes ou, como dizemos atualmente, os cromosso- mos apresentam-se como pares de homólogos. Havia fortes razões para se acreditar que, por ocasião da fertilização, um conjunto era deri- vado do pai e o outro, da mãe. 2. Os cromossomos homólogos se emparelham numa fase da meiose. 3. A meiose resulta em gametas que portam apenas um cromossomo de cada par de homólogos. 4. Os cromossomos mantêm sua individualidade no decorrer da mitose e da meiose, apesar das grandes mudanças de aspecto que sofrem du- rante esses processos. 5. Na meiose, a distribuição dos cromossomos de um par de homólogos para as células-filhas é independente da distribuição dos cromosso- mos dos outros pares. Se uma célula recebe um cromossomo de origem paterna de um par de homólogos, poderá receber tanto o cromos- 65 variação no comportamento usual dos cromos- somos deveria se refletir nos resultados genéticos. Da mesma forma, se os resultados genéticos obtidos não fossem os esperados de acordo com as leis mendelianas, deveria ser encontrada uma base cromossômica para o desvio. Algumas das deduções a partir dessa hipótese já foram mencionadas anteriormente. Outras estão mencionadas a seguir. Assumamos como verdade o que Sutton disse sobre os cromossomos e o que Mendel disse sobre hereditariedade. Nesse caso, a segregação de alelos diferentes, A e a por exemplo, deve signi- ficar que também há uma segregação dos cromos- somos meióticos. E isso é realmente observado na primeira divisão da meiose. Além disso, o fato aparentemente inexplicável da pureza dos gametas, isto é, de cada gameta possuir apenas um alelo de um par contrastante, significa que apenas um membro de cada par de cromossomos homólogos pode entrar no gameta. Observações citológicas sugerem fortemente a veracidade desse fato. De modo semelhante, a segregação independente de alelos de dois ou mais pares de genes pode ser justificada pela segregação inde- pendente dos cromossomos na anáfase da primeira divisão meiótica. Isto, entretanto, perma- neceu apenas como provável, pois a segregação dos cromossomos não pôde ser demonstrada enquanto não foi possível distinguir entre os membros de um par de cromossomos homólogos. Sutton conclui (1903, negrito dele): “Assim, os fenômenos da divisão das células germinativas e da hereditariedade parecem ter as mesmas características essenciais, viz., pureza das unidades (cromossomos, fatores) e a trans- missão independente dos mesmos; enquanto como um corolário, segue-se em cada caso que cada uma das unidades antagônicas (cromos- somos, fatores) está contida em exatamente metade dos gametas produzidos.” As deduções mencionadas até agora puderam ser testadas porque tanto os resultados citológicos quanto os genéticos estavam disponíveis. Sutton continuou sua dedução prevendo que resultados diferentes do observado por Mendel deveriam ser esperados caso sua hipótese estivesse correta: “Nós encontramos razões, nas considerações precedentes, para acreditar que há uma relação definida entre cromossomos e alelomorfos ou unidades de caráter mas nós não nos pergun- tamos se um cromossomo inteiro ou apenas parte dele é considerado como base de apenas um ale- lomorfo. A resposta deve ser, inquestionavel- mente, em favor da última possibilidade, pois de outra maneira o número de características diferentes de um indivíduo não poderia exceder o número de cromossomos nos gametas: o que é indubitavelmente contrário aos fatos. Nós devemos, assim, assumir que pelo menos alguns cromossomos estão relacionados a um certo número de diferentes alelomorfos. Se for esse o caso, e tendo em vista que os cromossomos mantêm permanentemente sua individualidade, os alelomorfos presentes em um mesmo cromos- somo devem ser herdados juntos. Por outro lado, não é necessário assumir que todos devam se manifestar em um organismo, porque aqui entra a questão da dominância e ainda não é sabido se dominância é uma função de um cromossomo inteiro. Pode ser que o cromossomo possa ser divisível em entidades menores (como Weismann assume), as quais representariam os alelomorfos e podem atuar como dominantes ou recessivas de modo independente. Nesse caso, o mesmo cromossomo pode portar simultaneamente alelo- morfos recessivos e dominantes.” Assim, Sutton estava deduzindo que devia haver muitos genes no mesmo cromossomo e, se fosse esse o caso, que eles deveriam ser herdados juntos. Se os genes de um mesmo cromossomo fossem herdados juntos, não haveria a possibi- lidade de segregação independente e não observa- ríamos, nesse caso, as proporções genéticas do tipo encontrado por Mendel - e por muitos outros autores na época. Pode-se deduzir então que uma exceção às razões mendelianas originais deveria ocorrer caso existissem mais pares de alelos do que pares de cromossomos homólogos. SUTTON - WILSON - MORGAN Sutton tinha 25 anos e era estudante de E. B. Wilson no Laboratório de Zoologia da Columbia University, quando publicou seu trabalho em 1902. Essa publicação termina assim: “É um prazer expressar aqui minha gratidão ao Prof. E. B. Wilson pelos muitos conselhos valiosos e por sua assistência na pesquisa sobre Brachystola e na preparação da presente publicação” 66 Como mencionado anteriormente, Wilson estava há muito interessado na possibilidade de os cromossomos serem a base física da heredita- riedade. Além disto, ele possuia um grande conhe- cimento de Citologia e Embriologia, já tendo publicado as primeiras duas edições do livro The Cell. Um de seus amigos mais chegados era Th. Boveri, cuja brilhante pesquisa havia contribuído muito para o conhecimento dos cromossomos e sua possível participação na hereditariedade. Wilson foi para a Columbia University direta- mente do laboratório de Bryan Mawr em 1891 e foi seguido por Thomas Hunt Morgan que deixou o mesmo laboratório em 1904 (Crampton, 1942). As complexas e sinergísticas interrelações de Wilson, Sutton e Morgan chegaram ao seu clímax na década seguinte com o trabalho em Drosophila melanogaster. Uma vez mais, entretanto, nós iremos notar a enorme dificuldade destes cientistas, neste caso Wilson e Morgan, que estavam fazendo “ciência normal” dentro do paradigma aceito no momento, para compreender um novo paradigma. Um brilhante cientista, a despeito de muito jovem, com a mente não saturada por uma tremenda quantidade de hipóteses competidoras e fatos confusos, foi capaz de ver ordem conceitual onde os eminentes pesquisadores não conseguiram. E.B.Wilson descreve como Sutton explicou sua hipótese: “Eu me lembro bem, quando, no início da primavera de 1902 [o primeiro trabalho de Sutton saiu no número de dezembro de 1902 do Biological Bulletin, e o segundo no número de abril de 1903], Sutton mostrou-me pela primeira vez suas principais conclusões, dizendo que ele acreditava que realmente havia desco- berto “porque o cachorro amarelo é amarelo”. Eu também me lembro claramente que, naquele momento, eu não compreendi completamente sua concepção nem mesmo percebi a enorme importância de sua descoberta.” “Nós passamos juntos o verão seguinte (1902) fazendo estudos zoológicos na costa, primeiro em Beaufort, N.C., mais tarde em South Harpswell, Me, e foi somente então, no curso de muitas discussões, que eu pela primeira vez percebi a extensão e o significado fundamental de sua descoberta. Hoje, a base citológica das leis de Mendel, da maneira como foi elaborada por ele, forma a base de nossa interpretação de muitos dos mais intrincados fenômenos da hereditariedade, incluindo a separação e a recombinação de caracteres em gerações suces- sivas de híbridos, o fenômeno da correlação e ligação gênicas, do sexo e da herança ligada ao sexo e uma vasta série de processos relacionados que eram completamente misteriosos antes que sua explicação fosse concebida. Em seguida ao aparecimento das publicações de Sutton, Boveri afirmou, em 1904, que na época em que esses trabalhos foram publicados ele próprio já havia chegado à mesma conclusão geral. Isto, no entanto, não desmerece em nada a façanha de Sutton, que tomará seu lugar na história da Biologia como um dos mais importantes avanços de nosso tempo. Ele deixou uma marca indelével no progresso científico, e seu nome é conhecido onde quer que se estude Biologia...” “Durante aquele verão, Sutton trabalhou em tempo integral em sua teoria sobre a relação entre cromossomos e as leis de Mendel e ao retornar a Nova York ele imediatamente preparou sua publicação. Seu primeiro trabalho, como já comentado, foi publicado no final de 1902, e o segundo no início da primavera do ano seguinte. Estes dois curtos trabalhos seriam de natureza preliminar, uma apresentação mais completa de suas conclusões, juntamente com um grande número de belos desenhos, já concluídos naquela época, seriam apresentados em uma publicação posterior, que ele pretendia apresentar como tese para a obtenção do título de Ph.D. (doutor em Filosofia) na Columbia University. Foi um grande pesar para nós que as circunstâncias impediram a realização deste plano e provocaram o término de suas investigações citológicas. Apesar de seu brilhante talento como pesquisador – talvez fosse mais correto dizer por causa desse talento – a carreira de professor não o atraia. Se tivesse sido possível assegurar-lhe um apoio financeiro para uma vida devotada apenas à pesquisa, ele não teria, eu acredito, hesitado em aceitá-la. Mas ele teve de seguir seu próprio caminho no mundo e desde o início tinha uma forte inclinação para o estudo da Medicina. A combinação de circuns- tâncias foi irresistível; após um ano ou dois tra- balhando em negócios, ele retornou à Columbia University, ingressou na Escola de Medicina e graduou-se com nota máxima dois anos depois.” Os comentários de Wilson foram extraídos de um volume histórico publicado em 1917 (Sutton, 1917). Após uma brilhante carreira como médico, 67 Sutton morreu com a idade de 39 anos. Em sua breve vida na pesquisa biológica ele produziu dois trabalhos que podem, provavelmente, ser compa- rados em importância e brilho com os de Mendel e de Watson e Crick. Uma vez convencido da hipótese de Sutton, Wilson tornou-se um forte defensor da idéia. Apesar de antes de 1900, a maioria de seu trabalho ter sido no campo da Biologia do Desen- volvimento, após as publicações de Sutton, a pesquisa de Wilson voltou-se para o estudo citológico dos cromossomos. A clareza e a talentosa explicação da hipótese de Sutton não implicaram em sua imediata aceita- ção. Antes da Segunda Guerra Mundial era muito grande o intervalo de tempo entre uma importante descoberta científica e sua aceitação como verda- de acima de qualquer suspeita razoável. Esse intervalo é muito mais curto agora que existem muito mais cientistas trabalhando nos mesmos problemas, por isso o progresso é tão rápido. A CONTRIBUIÇÃO DE BOVERI Foi mencionado anteriormente, que a Citologia na virada do século era uma Ciência bastante descritiva. Ela se baseava no tratamento das células com diversos reagentes químicos que coravam diferencialmente algumas estruturas celulares. Naquela época, não era possível testar a hipótese de que a base física da hereditariedade residia nos cromossomos com base na previsão que dela decorre; ou seja, se a hipótese fosse verdadeira, a retirada de cromossomos individuais deveria resultar em alguma alteração no orga- nismo. No entanto, Boveri (1902 e, especial- mente, 1907) conseguiu executar tal façanha. Por mais de uma geração, os ovos e os embriões de equinodermos haviam sido estudados pelos citologistas e embriologistas e sabia-se como obter artificialmente seus óvulos e esperma- tozóides. Pesquisadores pioneiros haviam obser- vado que se um concentrado de espermatozóides fosse usado para fertilizar os óvulos, dois esper- matozóides podiam entrar no mesmo óvulo. Cada espermatozóide carregava um centro de divisão (centríolos e centrossomo) que se dividia. Assim, formavam-se quatro centros de divisão, que se dispunham na forma de um quadrilátero no ovo. As fibras do fuso estendiam-se a partir desses centros, não apenas ao longo dos lados do quadrilátero, mas também diagonalmente entre cantos opostos. Os cromossomos eram, então, separados de uma maneira anormal para as primeiras quatro células resultantes da primeira divisão. Boveri percebeu que ali estava um procedimento que podia alterar o conjunto de cromossomos que uma célula recebe. (Fig. 18) Na espécie de ouriço-do-mar utilizada por Boveri, o número diplóide de cromossomos era 36. Esses cromossomos eram pequenos e aparen- temente uniformes. Em princípio, não havia razão para se supôr que os cromossomos individuais diferissem uns dos outros. Lembre-se que Weis- mann havia sugerido que cada cromossomo continha toda a informação hereditária. Entretan- to, Boveri quis testar a hipótese de que os cromos- somos diferiam uns dos outros e que um conjunto completo de 36 cromossomos era necessário para o desenvolvimento normal. Num zigoto monoespermático normal, os 36 cromossomos se duplicam antes da primeira divisão para formar 72 cromossomos e estes são distribuídos equitativamente na primeira divisão mitótica, indo 36 para cada célula-filha. As divisões mitóticas subseqüentes, durante o desenvolvimento, mantêm este número. Uma vez que o número monoplóide de cromossomos é 18, um embrião diespérmico teria 54 cromossomos: 18 de cada um dos dois pro- núcleos espermátidos e 18 do pronúcleo do óvulo. Cada cromossomo se duplicaria antes da primeira divisão do zigoto originando108 cromossomos. O embrião sofreria então a primeira divisão atípica que resultaria em quatro células. Não haveria como cada uma dessas células receber um ➤ ➤ ➤ ➤ ➤➤ ➤➤ ➤➤ ➤➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤➤ ➤ ➤ ➤ ➤➤➤➤➤➤➤➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ Figura 18. Fuso quadripolar em ouriço-do-mar, que resulta da fecundação de um óvulo por dois espermatozóides. 70 importantes nas observações e interpretações de Montgomery. Na época em que nenhuma das hipóteses men- cionadas a seguir era amplamente aceita, Montgo- mery interpretou seus resultados sugerindo que os cromossomos eram estruturas celulares perma- nentes; que eles existiam em pares de homólogos sendo que um deles era herdado do pai e outro da mãe; que a sinapse consistia no emparelha- mento desses cromossomos homólogos; que na meiose cada espermátide recebia um cromossomo de cada tipo. Ele descreveu os cromossomos acessórios, mas não os relacionou com a determi- nação do sexo. As espécies de Hemiptera são, sob vários pontos de vista, ideais para esse tipo de estudo. Os cromossomos não são muito numerosos, com freqüência diferem estruturalmente uns dos outros, e a maioria das espécies pode ser facil- mente coletada. Entretanto, uma das caracterís- ticas mais importantes é a organização dos testí- culos. As células imaturas estão localizadas em uma das extremidades do órgão e, à medida que se avança para a extremidade oposta, os vários estágios da espermatogênese ocorrem em seqüên- cia, finalizando com o espermatozóide maduro. Assim, em um único testículo, pode-se estudar todo o processo da espermatogênese e se ter certeza da ordem de ocorrência dos vários estágios. Montgomery começou pela elaboração de uma lista dos problemas de interesse: “o significado das mudanças no estágio da sinapse, o signi- ficado da cromatina dos nucléolos, as razões para uma divisão reducional, o significado da seqüência de estágios no ciclo germinativo, e a questão do porquê diferentes espécies possuem diferentes numeros de cromossomos... É impossível responder estes problemas pelo exame de uma única espécie e, por esta razão, estão apresentados aqui os resultados de um estudo comparativo da espermatogênese de 42 espécies de Hemiptera heteroptera, pertencentes a 12 famílias diferentes. Este estudo comparativo evidenciou certos fenômenos completamente inesperados como a descoberta de quatro espécies com um número ímpar de cromossomos [refere-se a cromossomos sexuais]; esta descoberta forneceu fatos para explicar-se como o número de cromossomos pode mudar com a evolução das espécies, e como a cromatina do nucléolo deve se originar. E somente tal estudo comparativo pôde fornecer fatos para mostrar que no estágio de sinapse os cromossomos bivalentes são formados pela união dos cromossomos paterno e materno - ou seja, que há um estágio de conjugação dos cromossomos. O método comparativo na Citologia não pode ser superestimado, a menos que, é claro, cuidadosas e detalhadas observações tenham sido realizadas simultaneamente. Uma vez que apenas uma análise é raramente capaz de servir como base de explicação para todos os problemas, uma investigação de um certo número de formas sempre mostra que umas são mais favoráveis que outras para responder certas questões, e então há chance de que uma descoberta completamente inesperada possa ser feita e que tenha um grande significado. Justifica-se assim a utilização do método comparativo em Citologia....” Os comentários de Montgomery chamam a atenção para um importante princípio de pesquisa científica: com freqüência enfatizam-se certos tipos de evidências ao invés de considerar todas as evidências indiscriminadamente. Se os cromossomos de apenas uma espécie de Hemiptera mostraram um comportamento peculiar, por que usar este fato para apoiar uma hipótese em detrimento das outras 41 espécies que não mostraram tal comportamento? Este procedimento pode parecer “não científico”, mas nós iremos verificar que o grande sucesso dos geneticistas foi conseqüência do fato deles terem dado ênfase aos resultados que concordavam com a hipótese de Mendel e ignorado aqueles que estavam em desacordo com aquela hipótese. No devido tempo, as exceções foram entendidas e incorporadas na teoria da Genética. O desenvolvimento conceitual da Genética pode ser comparado com a formação de um cristal em uma solução supersaturada. Os íons em solução são como os fatos desorganizados acu- mulados a respeito de cromossomos, de cruza- mentos e de Biologia em geral. Um pequeno cristal, a hipótese de trabalho, começa a se formar e gradativamente, todos aqueles íons distribuídos aleatoriamente incorporam-se em um todo organizado. Montgomery tinha 28 anos de idade quando seu trabalho clássico foi publicado. Quase a mesma idade de Sutton. Ambos morreram antes dos 40 anos. 71 PARTE A: REVENDO CONCEITOS BÁSICOS Preencha os espaços em branco nas frases de 1 a 6, usando o termo mais apropriado: (a) célula diplóide (e) origem paterna (b) células haplóides (f) origem materna (c) espirema (g) meiose (d)fertilização 1. Existe um paralelismo entre o compor- tamento dos cromossomos na ( ) e o comporta- mento previsto por Mendel para as unidades hereditárias. 2. Em todas as células originadas por mitose, a partir do ovo fertilizado, uma metade dos cromossomos é de ( ) e a outra metade é de ( ). 3. Em uma ( ) os cromossomos podem ser agrupados em dois conjuntos morfologicamente semelhantes. 4. Da meiose resultam ( ) que portam apenas um cromossomo de cada par de homólogos. 5. A ( ) resulta na formação de uma célula com pares de cromossomos homólogos. 6. Muitos citologistas pioneiros acreditavam qua os cromossomos, na intérfase, ficavam unidos pelas extremidades, formando um fio contínuo ao qual davam o nome de ( ). Preencha os espaços em branco nas frases de 7 a 11, usando o termo mais apropriado: (a) centro de divisão (b) divisão reducional (c) zigoto diespérmico (d)zigoto monoespérmico (e) disjunção mendeliana 7. A fecundação de um óvulo por um único espermatozóide origina um ( ). 8. ( ) é aquele resultante da entrada de dois espermatozóides em um único óvulo. 9. ( ) é a denominação genérica da estrutura localizada nas extremidades do fuso de uma célula em divisão. 10. Os membros de um par de fatores se separam no(a) ( ). 11. A segregação dos alelos é conhecida também como ( ). PARTE B: LIGANDO CONCEITOS E FATOS Indique a alternativa mais apropriada para completar as frases 12 a 17. EXERCÍCIOS 12. Se nas células espermatogoniais do gafanhoto Brachystola sp. existem 22 estruturas cromossômicas (sem contar o cromossomo acessório), quantos bivalentes ou tétrades estarão presentes na primeira divisão meiótica? a. 22. b. 11. c. 44. d. 10. 13. Se nas ovogônias do gafanhoto Brachysto- la sp. existem 24 estruturas cromossômicas (contando o par de cromossomos acessórios), quantos bivalentes ou tétrades estarão presentes na primeira divisão meiótica? a. 24. b. 12. c. 48. d. 22. 14. A espermatogênese no gafanhoto Brachystola sp. produz espermatozóides com a. 11 cromossomos apenas. b. 12 cromossomos apenas. c. 23 cromossomos apenas. d. 11 e com 12 cromossomos. 15. O fundamental na hipótese de Sutton era que a. cada cromossomo portava um único gene. b. genes faziam parte dos cromossomos. c. genes se segregavam na meiose. d. cromossomo era sinônimo de gene. 16. De acordo com a hipótese de Sutton, a pureza dos gametas se deve ao fato de a. apenas um cromossomo de cada par de homólogos entrar em cada gameta. b. cada par de cromossomos portar apenas um gene. c. os alelos de dois ou mais genes poderem interagir. d. os cromossomos homólogos se empare- lharem na prófase I da meiose. 17. Indique a alternativa que combina corretamente as observações I e II com as conclusões A e B. Observações: I - Em uma espécie de Ascaris o número diplóide de cromossomos é 2 (2n = 2). II - Ovos de uma espécie de ouriço-do-mar com número diplóide de cromossomos (2n = 36) desenvolvem-se normalmente. Conclusões: A - Os cromossomos de uma célula diferem geneticamente entre si. B - Um único cromossomo pode portar todos os genes de uma espécie. a. A conclusão A pode ser tirada da observação I e a conclusão B, da observação II. 72 b. A conclusão A pode ser tirada da observação II e a conclusão B , da observação I. c. A conclusão A pode ser tirada da observação I, mas a conclusão B não tem suporte em nenhuma das observações. d. A conclusão B pode ser tirada da observação I, mas a conclusão A não tem suporte em nenhuma das observações. e. A conclusão B pode ser tirada da observação II, mas a conclusão A não tem suporte em nenhuma das observações. PARTE C: QUESTÕES PARA PENSAR E DISCUTIR 18. Qual foi a hipótese proposta por Sutton? 19. No que Sutton se baseou para formular sua hipótese? 20. Quais eram duas das premissas da hipótese de Sutton? 21. O que Sutton observou na espermatogê- nese de Brachystola? 22. Que tipos de gameta seriam produzidos pelos machos de Brachystola, com relação ao número de cromossomos? Por que? 23. Partindo-se da hipótese de que os genes estavam nos cromossomos, como se explicava o fato de um indivíduo duplo-heterozigótico formar quatro tipos de gameta? 24. Que tipo de previsão pode ser feita a partir da hipótese de Sutton? 25. Qual seria um teste da hipótese de Sutton não realizável na época? 26. O que levou Sutton a supor que cada cromossomo portaria diversos genes? 27. Segundo Sutton, como seria a segregação de genes localizados em um mesmo cromossomo? 28. Por que Wilson achou importante o trabalho de Sutton? 29. Como se pode obter ovos de ouriço-do-mar fecundados por mais de um espermatozóides? 30. O que acontece na primeira divisão de um ovo de ouriço-do-mar diespérmico? 31. Que hipótese Boveri queria testar em seus experimentos com ovos diespérmicos? 32. Qual a dedução feita por Boveri e que foi testada em seus experimentos? 33. Como Boveri obtinha ovos com fusos mitóticos tripolares? 34. Que resultados Boveri obteve em seus experimentos com ovos de ouriço-do-mar tri e tetra polares? 35. Qual a conclusão final de Boveri? 36. Por que se considera que a abordagem de Sutton foi melhor do que a de Boveri? 37. Quais as principais conclusões de Montgom- ery sobre cromossomos? 38. Por que Montgomery escolheu insetos hemípteros para seus estudos cromossômicos? 39. Por que Montgomery defendia a necessidade de se estudar um grande número de espécies para se tirar conclusões sobre cromossomos? 40. Onde ocorre mitose e meiose nos seguintes organismos: samambaia, musgo, goiaba, pinheiro, cogumelo, rã, mosca e caracol? 41. Considere uma célula heterozigótica quan- to a três genes (Aa Bb Dd) localizados em três pares de cromossomos homólogos. Quais serão os genótipos das células resultantes de uma mitose e de uma meiose? 42. Considere que os alelos para semente rug- osa e lisa da ervilha estejam no par 1 de cromossomos homólogos. Suponha também que os alelos para semente amarela e verde estejam no par 2. Faça um esquema da distribuição desses alelos, juntamente com os cromossomos portadores, em F1 e F2 de um cruzamento em que os parentais eram liso- verde e rugoso-amarelo. 43. Que tipos de células, em termos de número de cromossomos, são esperados na divisão de ovos tripolares de uma espécie com 2n = 2? 44. Em Drosophila melanogaster, o alelo que condiciona a cor castanha (selvagem) do corpo é dominante sobre o que condiciona cor preta; e o alelo que condiciona asa normal é dominante sobre o que condiciona asa vesti- gial. Quando fêmeas de corpo preto e asas vestigiais são cruzadas com machos selvagens puros, toda a descendência apresenta fenótipo selvagem. Quando os machos dessa geração F1 são retrocruzados com as fêmeas parentais, 50% da descedência apresenta corpo castanho e asas longas e 50% apresenta corpo preto e asas vestigiais. Explique esses resultados com base na hipótese de Sutton. 75 do cromossomo acessório. Subseqüentemente, foi descoberto que a fêmea de Brachystola, ao invés de não possuir o cromossomo acessório, possui dois. Portanto, McClung propôs uma hipótese frutífera. WILSON 1905 - 1912: CROMOSSOMOS SEXUAIS Na época em que McClung propôs que os cromossomos acessórios ou cromossomos X estavam de alguma forma envolvidos na deter- minação do sexo, esses cromossomos já haviam sido observados em uma variedade de espécies. Uma vez que esta era uma das mais importantes hipóteses da época, muitas espécies de plantas e animais foram estudadas com o objetivo de se verificar até que ponto esta hipótese podia ser corroborada. Durante a primeira década do século XX, o estudo dos cromossomos sexuais seguiu um padrão comum em Ciência; uma hipótese impor- tante, provavelmente de larga aplicação, foi proposta – embora com base em evidências inadequadas. Esta era a situação da hipótese de McClung (1901) de que os cromossomos acessórios deviam determinar a masculinidade. A partir desta sugestão inicial seguiu-se um período bastante ativo de pesquisa. Disso resul- taram observações conflitantes, que deixaram claro que a sugestão original de que os machos têm um cromossomo extra não era válida para todas as espécies. Alguns pesquisadores que não conseguiam encontrar cromossomos acessórios, propuseram uma variedade de hipóteses para explicar este fato. Alguns acreditavam que estes eram cromossomos em degeneração, outros que eram um tipo especial de nucléolo, outros ainda pensavam que McClung estava provavelmente correto. O estágio de controvérsias terminou quando um ou alguns poucos indivíduos, cuidadosos na seleção dos dados experimentais e cautelosos em suas conclusões, trouxeram ordem conceitual ao campo que estava sendo investigado. E, nova- mente, como sempre acontece, dois ou mais indivíduos, trabalhando independentemente, chegam essencialmente a uma mesma conclusão simultaneamente. E. B. Wilson foi o principal responsável pela solução do problema dos cromossomos acessórios, mas o anúncio de sua descoberta coincidiu com uma publicação de Nellie M. Stevens que havia chegado a conclusões semelhantes. Wilson (1905c) inicia seu trabalho do seguinte modo: “O material pesquisado durante o último verão demonstrou com grande clareza que os sexos em Hemiptera apresentam diferenças cromossômicas características e constantes. A natureza dessas diferenças não deixa nenhuma dúvida da existência nesses animais de algum tipo de relação definitiva entre cromossomos e determinação do sexo. As diferenças cromos- sômicas entre os sexos são de dois tipos. Em um deles, as células das fêmeas possuem um cromossomo a mais em relação às dos machos; no outro, ambos os sexos possuem o mesmo número de cromossomos, mas um dos cromos- somos dos machos é muito menor que seu corres- pondente nas fêmeas (o que concorda com as observações de Stevens no besouro Tenebrio molitor). Esses tipos podem ser conveniente- mente designados como A e B, respectivamente. [Mais tarde, o tipo A passou a ser chamado Sistema XX (fêmea) / X0 (macho) e B de Sistema XX (fêmea) / XY (macho) de determinação do sexo.] .... Esses fatos admitem, eu acredito, uma interpretação. Desde que todos os cromossomos da fêmea (oogônia) podem se emparelhar simetricamente, não resta dúvida de que a sinapse neste sexo dá origem ao número reduzido de bivalentes simétricos, e que em conseqüência disso todos os óvulos recebem o mesmo número de cromossomos. Este número ... é o mesmo que aquele presente nos espermatozóides que contêm os cromossomos ‘acessórios’. É evidente que ambos os tipos de espermatozóides são funcio- nais, e que, no tipo A, as fêmeas originam-se de óvulos fertilizados por espermatozóides porta- dores do cromossomo ‘acessório’, enquanto que os machos originam-se de óvulos fecundados por espermatozóides desprovidos desse cromossomo (o reverso da idéia de McClung)”. A situação em espécies do tipo B era essencialmente a mesma, exceto pelo fato de uma classe de espermatozói- des conter um cromossomo X e a outra, um Y. Stevens(1905) resumiu suas conclusões do seguinte modo: “Do ponto de vista da deter- minação do sexo, nós temos em Tenebrio molitor a mais interessante das formas consideradas neste trabalho. Tanto nas células somáticas 76 quanto nas germinativas de ambos os sexos existe uma diferença não no número de cromossomos, mas no tamanho de um deles, o qual é muito pequeno nos machos e do mesmo tamanho que os outros 19 nas fêmeas. Os núcleos de todos os óvulos devem ser iguais em relação ao número e tamanho de seus cromossomos, enquanto é absolutamente certo que as espermátides são de dois tipos quanto ao conteúdo cromatínico do núcleo – metade delas possui 9 cromossomos grandes e 1 pequeno, enquanto a outra metade possui 10 c r o m o s s o m o s grandes. Uma vez que as células somá- ticas dos machos têm 19 cromossomos grandes e 1 pequeno, enquanto as células somáticas das fê- meas possuem 20 c r o m o s s o m o s grandes, parece certo que um óvulo fertilizado por um e s p e r m a t o z ó i d e contendo o cromos- somo pequeno pro- duz um macho, enquanto um óvulo fertilizado por um e s p e r m a t o z ó i d e contendo 10 cromos- somos de igual tamanho produz uma fêmea.” Nem os trabalhos de Wilson, nem os de Stevens falam da grande dificuldade em se estudar os cro- mossomos sexuais. Em Tenebrio molitor, por exemplo, todos os autossomos são muito pequenos e idênticos na aparên- cia. O macho difere pela presença de um cromossomo muito pequeno – e muitos observadores poderiam não ter notado. A figura 21, do trabalho de Stevens, mostra o tipo de ilustração que era usado nos trabalhos de Citogenética da época. Cortes de tecido eram analisados na procura de células que mostrassem o lote inteiro de cromossomos. Seu corte 207 mostra uma célula do folículo ovariano com 20 cromossomos grandes. Nos cortes 208a e 208b, parte dos cromossomos estavam em um dos cortes e o restante no corte vizinho. Figura 21. Desenhos de Stevens (1905) dos cromossomos de Tenebrio molitor. 169 170 171 172 173 178177176175174 179 180 181 182 183 184 184 a 185 186 187 188 195 194 193 192191 190189 196 197 198 199 200 201 202 203 204 205 206 207 208 a 208 b S S a b S S S S S S S S 77 O conjunto diplóide de cromossomos do macho está mostrado nos cortes 169 e 170. O de número 196 mostra o número haplóide nas espemátides com 9 cromossomos grandes e 1 pequeno e o 197 mostra espermátides com 10 cromossomos grandes. Considerando a dificuldade em se trabalhar com tal tipo de material, não é surpresa que a maioria dos problemas em Citologia tenha tido um início marcado por controvérsias. As mais importantes contribuições de Wilson estão contidas em 8 longos trabalhos, Studies in Chromosomes I-VIII, publicados entre 1905 e 1912. Suas observações, juntamente com as de outros pesquisadores, revelaram uma complexi- dade não imaginada por McClung e Sutton. Na maior parte dos animais, a fêmea tem um par de cromossomos X e é chamada de XX. Os machos de diversas espécies, por outro lado, variam consi- deravelmente. Alguns tem somente um X, sendo denominados X0 – o “0” indica a ausência de um cromossomo. Em outras espécies os machos podem ter dois cromossomos sexuais, um como o X da fêmea e outro, em geral diferente em tamanho ou forma, denominado Y. Por isso estes machos são chamados XY. (Fig. 22) Em relação aos cromossomos sexuais, os ma- chos nesse último caso produzem dois tipos de espermatozóides, um tipo que possui um cromos- somo X e outro com um cromossomo Y. Pelo fato de produzirem esses dois tipos de gametas, esses machos são denominados heterogaméticos. As fêmeas produzem apenas um tipo de óvulo, sendo, portanto, homogaméticas. [Foi verificado mais tarde que seres humanos e Drosophila mela- nogaster apresentam sistemas cromossômicos de determinação do sexo tipo XX / XY]. Estes dois padrões de cromossomos sexuais, embora sejam os mais freqüentemente encontrados, não esgo- tam a gama de possibilidades. Algumas espécies podem ter cromossomos sexuais múltiplos. Em aves e em Lepidoptera (borboletas e mariposas) as fêmeas são heterogaméticas e os machos homogaméticos no que se refere aos cromos- somos sexuais. Algumas das conclusões que podem ser tiradas a partir dos numerosos estudos de Wilson, Stevens e outros são relacionadas a seguir. 1. O sexo cromossômico de um indivíduo é determinado no momento da fertilização. 2. O sexo de um indivíduo será irreversível se for baseado somente nos cromossomos sexuais – a não ser que se possa alterar os cromossomos. 3. Se a meiose é normal e a fertilização é casual, os dois sexos devem ser produzidos em números aproximadamente iguais. 4. A relação entre sexo e cromossomos, firmemente estabelecida por volta de 1910, é uma evidência adicional que apóia a hipótese de Sutton de que os cromossomos são a base da hereditariedade. X X X X X X X X ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤➤ Complemento cromossômico diplóide do macho Complemento cromossômico diplóide da fêmea Meiose produz dois tipos de espermatozóide Meiose produz um único tipo de óvulo Sexo é determinado pelo tipo de espermatozóide fecundante DETERMINAÇÃO DO SEXO TIPO XX / X0 = autossomos = cromossomo sexual ➤ ➤ X Y X X X X X X ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤➤ Complemento cromossômico diplóide do macho Complemento cromossômico diplóide da fêmea Meiose produz dois tipos de espermatozóide Meiose produz um único tipo de óvulo Sexo é determinado pelo tipo de espermatozóide fecundante DETERMINAÇÃO DO SEXO TIPO XX / XY = autossomos = cromossomos sexuais ➤ ➤ Y X Y Figura 22. Esquemas mostrando os mecanismos de determinação do sexo dos tipos XX/X0 e XX/XY. 80 espécie o sistema de determinação do sexo é do tipo XX/X0, espera-se que a.100% dos óvulos tenha 10 cromossomos e que 100% dos espermatozóides tenha 9 cromossomos. b.100% dos óvulos e 100% dos espermato- zóides tenham 10 cromossomos. c. 100% dos óvulos e 50% dos espermato- zóides tenham 10 cromossomos, e que 50% dos espermatozóides tenha 9 cromossomos. d.100% dos espermatozóides e 50% dos óvulos tenham 10 cromossomos, e que 50% dos óvulos tenha 9 cromossomos. 12. Considere duas espécies, uma com sistema XX/XY e outra com sistema XX/XO, quem determina o sexo da prole é a.a fêmea em ambos os casos. b.a fêmea no primeiro caso e o macho no segundo. c. o macho em ambos os casos. d.o macho no primeiro caso e a fêmea no segundo. PARTE C: QUESTÕES PARA PENSAR E DISCUTIR 13. O que Henking observou em 1891 sobre o comportamento meiótico do cromossomo que ele chamava de elemento X? 14. Que argumentos McClung usou para sugerir que o elemento X estava relacionado com a determinação do sexo? 15. No que a explicação de Wilson sobre o papel do cromossomo X na determinação do sexo diferia da hipótese de McClung? 16. Como é determinado o sexo nos organismos com sistema XX/X0? 17. Como é determinado o sexo nos organismos com sistema XX/XY? 18. No que o sexo homogamético difere do heterogamético? 19. Os resultados obtidos por Doncaster e Raynor no cruzamento entre machos escuros e fêmeas claras de mariposa estavam de acordo com o esperado pela primeira lei de Mendel? Por que aqueles resultados chamaram a atenção dos pesquisadores? 20. Por que se concluiu que as fêmeas escuras de mariposas sempre se comportavam como heterozigóticas para esse caráter? 21. Por que a herança da cor em mariposas foi chamada de “herança ligada ao sexo”? 22. Qual foi a hipótese de Doncaster para explicar a herança ligada ao sexo em mariposas e aves? 23. Admitindo-se como verdadeira a teoria cromossômica da herança, qual seria o padrão de herança de genes presentes no cromossomo X? E de genes presentes no cromossomo Y? 24. Admitindo-se como verdadeira a teoria cromossômica da herança, qual seria a explicação para a herança ligada ao sexo em mariposas e em aves? 25. Represente, por meio de esquema, a segregação do par de cromossomos sexuais em um indivíduo do sexo heterogamético. 26. O heredograma abaixo representa a transmissão de uma anomalia que apresenta 100% de penetrância ( Uma característica têm penetrância reduzida quando a freqüência de expressão de um genótipo é menor que 100%, ou seja, nem todos os indivíduos que têm um determinado genótipo o manifestam fenotipica- mente. Em geral, esse conceito é utilizado para estados dominantes de uma característica em indivíduos heterozigóticos. a.Numere os indivíduos de cada geração de acordo com as regras apresentadas na aula sobre análise de heredogramas. b.O padrão de herança mais provável desta anomalia é ( ) ligada ao cromossomo X, dominante. ( ) ligada ao cromossomo X, recessiva. ( ) autossômica, dominante. ( ) autossômica, recessiva. ( ) holândrica. c. Se o indivíduo V-2 casar-se com um indiví- duo não-afetado, qual é a probabilidade deles virem a ter a primeira criança portadora da anomalia? 27. Considere o heredograma abaixo. a.Numere os indivíduos de cada geração de acordo com as regras apresentadas na aula sobre análise de heredogramas. b.Qual é o padrão de herança mais consistente para a anomalia em questão? 81 c. Supondo que o indivíduo V-2 case-se com um indivíduo não-afetado e que a anomalia tenha penetrância de 85%, qual é a probabilidade de uma segunda criança que eles venham a ter expressar a anomalia? d.Na terceira geração, qual é o significado do losango com o número 10 em seu interior? 2 3 10 2 23 5 OS PRIMEIROS TRABALHOS COM DROSOPHILA MELANOGASTER Objetivos 1. Analisar o experimento de Morgan (1910) com o mutante white de Drosophila melanogaster. 2. Comparar os resultados de Morgan (1910) com os de Doncaster e Reynor (1906). 3. Discutir as hipóteses de Morgan para explicar os resultados dos experimentos com o mutante white. 4. Explicar herança ligada ao sexo com base na teoria cromossômica da herança. Nona aula (T9) Texto adaptado de: MOORE, J. A. Science as a Way of Knowing - Genetics. Amer. Zool. v. 26: p. 583-747, 1986. O MUTANTE DE OLHO BRANCO A mais famosa mosca na história da Ciência é um macho da espécie Drosophila melanogaster, a mosca-da-banana, ou mosca-do-vinagre [inadequadamente chamada de mosca-das-frutas] (Fig. 24). Este indivíduo tornou-se famoso porque tinha olhos brancos e não vermelhos como as moscas da sua espécie, mas tão importante quanto isto foi o fato dele ter aparecido na Sala 613 do Schermerhorn Hall na Columbia University, na primavera de 1910. Esta era a “Sala das Moscas”, o laboratório de Thomas Hunt Morgan e de um notável grupo de jovens estudantes. Abaixo, no mesmo edifício, ficava o laboratório de Edmund B. Wilson, que estava terminando a sua série de artigos intitulada - Studies on Chromosomes. A mosca “escolheu” o momento e o lugar exatos para prolongar a sua vida curta e alcançar a imortalidade. Morgan conta essa história da seguinte forma: “Em uma linhagem de Droso- phila [melanogaster] que estava sendo acompa- nhada por aproximadamente um ano, após um considerável número de gerações, apareceu um macho de olhos brancos. As moscas selvagens têm olhos vermelho-brilhantes. O macho de olhos brancos, cruzado com suas irmãs de olhos vermelhos, produziu 1237 descendentes de olhos vermelhos e 3 machos de olhos brancos na geração F 1 – o aparecimento desses três machos de olhos brancos (F 1 ) (devido evidentemente a novas alterações) será ignorado na presente comunicação. Os indivíduos da geração F 1 , cruzados entre si, produziram: 2459 fêmeas de olhos vermelhos, 1011 machos de olhos vermelhos, 782 machos de olhos brancos. Não apareceu fêmea alguma de olhos brancos. O novo [estado do] caráter mostrou ser, portanto, limitado ao sexo masculino no 82 Figura 24. Imagos de Drosophila melanogaster: macho, à esquerda, e fêmea, à direita . ➤ idênticas na aparência, deviam ter dois genótipos, WWXX e WwXX. Se várias dessas fêmeas fossem cruzadas individualmente com machos de olhos brancos, seriam esperados dois tipos de resultado como se pode ver nos itens 2 e 3 da figura 26. Aproximadamente metade dos cruzamentos deveria resultar em descendência apenas com olhos vermelhos, enquanto a outra metade deveria produzir moscas de olhos ver- melhos e de olhos brancos, tanto machos quanto fêmeas. Esses cruzamentos foram feitos e os resultados previstos foram obtidos. 3. Esperava-se que o genótipo das fêmeas F 1 do cruzamento original (Fig. 25) fosse WwXX. Nesse caso, o cruzamento dessas fêmeas com um macho de olhos brancos daria os mesmos resultados mostrados no item 3 da figura 26. Novamente o cruzamento foi feito e os resultados previstos foram obtidos. 4. A hipótese exigia que os machos F 1 originais (Fig. 25) fossem WwX. Se esses machos fossem cruzados com fêmeas de olhos brancos, a previsão seria a obtenção de fêmeas de olhos vermelhos e machos de olhos brancos, como mostrado no item 4 da figura 26. Os cruzamen- tos foram feitos e a previsão verificada. Mais uma vez, entretanto, a hipótese exigia um tipo não-usual de meiose nos machos WwX: o fator W deveria estar sempre associado ao X, para formar espermatozóides WX; não poderia haver espermatozóides wX nesses machos. VERDADEIRO, ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA ? Das hipóteses levantadas no início da Genética, com exceção da de Mendel, poucas foram tão exaustivamente testadas como essa. Quase tudo da primeira hipótese de Morgan estava baseado em princípios genéticos bem estabelecidos: domi- nância e recessividade, segregação e comporta- mento dos cromossomos sexuais. Suas quatro deduções eram explícitas e críticas. Em cada um dos casos os experimentos efetuados para testar as deduções forneceram os resultados esperados nas previsões. Para se ter certeza, aquela premissa sobre a espermatogênese dos machos WwX deveria ser esclarecida, porém, por volta de 1910, seu colega Wilson e outros citologistas já haviam registrado a ocorrência de comportamentos inesperados de certos cromossomos durante a meiose. Por isto, 85 não havia razão a priori para excluir a hipótese da associação apenas do fator dominante W (mas nunca do recessivo w) com o X, na meiose dos machos heterozigóticos da geração F 1 do primeiro cruzamento. Morgan publicou uma outra descoberta que era difícil de explicar: “Um fato ainda mais surpreendente aconteceu quando uma fêmea de olhos brancos foi cruzada com um macho selva- gem (de olhos vermelhos), isto é, com um indi- víduo de uma linhagem diferente. A previsão (antes da realização dos experimentos) era de que tanto machos quanto fêmeas selvagens tivessem apenas o fator para olhos vermelhos e não o fator para olhos brancos; porém, os experi- mentos mostraram que todos os machos de linha- gens selvagens deveriam ser heterozigóticos para olhos vermelhos e todas as fêmeas selvagens, homozigóticas para aquele [estado do] caráter. Deste modo, quando uma fêmea de olhos brancos é cruzada com um macho de olhos vermelhos, todos os descendentes do sexo feminino apresentam olhos vermelhos, enquanto que todos do sexo masclino apresentam olhos brancos.” Estes resultados apresentavam uma dificul- dade. Se todos os machos de uma população natural eram heterozigóticos quanto a esses alelos para cor dos olhos, seria de se esperar que nume- rosas moscas de olhos brancos estivessem presentes nas populações naturais e nas culturas de laboratório. No entanto, Morgan já estava criando D. melanogaster por muitos meses e nunca tinha observado tal fato. Morgan tenta uma explicação para esse fato nos seguintes termos: “Até o momento eu não encontrei evidência alguma do aparecimento de mutantes de olhos brancos. É possível que este fenômeno esteja relacionado com fertilização seletiva.” Há muitos pontos interessantes a respeito desta famosa publicação que deu início à linha de pesquisa que revolucionou a Genética. O mais intrigante reside no fato do porquê Morgan não foi capaz de perceber, inicialmente, que os resul- tados poderiam ser explicados simplesmente assu- mindo que os alelos para cor dos olhos fossem parte integrante do cromossomo X. Em vez disso ele tratou o problema quase como se fosse um cruza-mento diíbrido. Em 1910, seguramente Morgan ainda tinha muitas dúvidas sobre a hipótese de Sutton mas, não teria ele discutido seus resultados com seu 86 colega Wilson ? G. E. Allen (1978, p.153) estima que o macho de olhos brancos tenha sido desco- berto por volta de janeiro de 1910, quando os experimentos foram feitos. O trabalho foi termi- nado em 7 de julho de 1910, após Morgan ter ido para Woods Hole, e foi publicado no número de 22 de julho de 1910 da revista Science. É de grande interesse pedagógico o fato desse trabalho ter sido escrito em uma forma que corresponde à visão popular do “método cientí- fico”. Primeiro, há as observações de um fenô- meno natural, neste caso os resultados dos cruza- mentos envolvendo a estranha mosca com olhos brancos recém-surgida. Em seguida, é formulada uma hipótese. Finalmente, são feitas deduções a partir da hipótese, e estas são testadas. Admite-se que os resultados dos testes apóiem a hipótese, de modo que o cientista prossegue para os próximos problemas. Estas etapas são raramente mencionadas em publicações de trabalhos científicos, embora alguma coisa seme- lhante ao “método científico” esteja acontecendo na cabeça do pesquisador. O trabalho de Morgan de 1910 é incomum neste aspecto porque estes passos estão explicitados no trabalho publicado. A SEGUNDA HIPÓTESE DE MORGAN Levou somente um ano para Morgan perceber que a sua primeira hipótese para explicar a heran- ça, limitada ao sexo, da cor dos olhos tinha falhas fundamentais. Outros mutantes de D. melanogaster haviam sido encontrados e eram herdados da mesma maneira que o alelo white para cor dos olhos. Os resultados foram “anunciados pela primeira vez em uma aula pública ministrada no Laboratório de Biologia Marinha de Woods Hole, no estado de Massachusetts, em 7 de julho de 1911”. A nova hipótese era mais simples: ao invés de pensar em alelos limitados ao sexo como sendo associados aos fatores sexuais (primeira hipótese) porque não pensar neles como sendo parte do cromossomo X? Morgan propôs uma segunda explicação para seus resultados da seguinte maneira: “Os experimentos com D. melanogaster me permitiram tirar duas conclusões: Primeira, que a herança limitada ao sexo pode ser explicada admitindo-se que um dos fatores que determinam um caráter limitado ao sexo é transportado pelos mesmos cromossomos que transportam o fator para feminidade; Segunda, que a “associação” observada na transmissão de certas caracterís- ticas é devida à proximidade, nos cromossomos, das substâncias químicas (fatores) que são essenciais à produção daquelas características.” Portanto, se admitirmos que o alelo recessivo para olhos brancos e o alelo dominante para olhos vermelhos são parte do cromossomo X, os resultados de todos os cruzamentos podem ser explicados pela distribuição do cromossomo X na meiose e na fertilização. Seria, então, desneces- sário invocar pressupostos, tais como o alelo w não sendo capaz de se associar com o X na meiose de machos WwX ou que todos os machos fossem obrigatoriamente heterozigóticos. A segunda hipótese de Morgan foi submetida a todos os testes possíveis e pôde ser aceita, acima de qualquer suspeita, como verdadeira. A figura 27 mostra como ela explica a herança dos olhos brancos. Esta figura não mostra o cromossomo Y pois só alguns anos mais tarde se verificou que o macho de D. melanogaster era XY e não X0. A NÃO-OBVIEDADE DO “ÓBVIO” Mais uma vez nós encontramos um exemplo do “óbvio” não sendo tão óbvio assim. Deve-se lembrar da observação feita por Thomas Henry Huxley quando o conceito de seleção natural tornou-se claro para ele: “My reflection, when I first made myself master of the central idea of the ‘Origin’ [ele se refere ao livro Origem das espécies de Charles Darwin e à idéia de seleção natural] was: ‘How extremely stupid not have thought of that.’ Morgan fazia suas pesquisas no Zoology De- partment, onde sete anos antes Sutton havia sugerido que os genes deviam ser partes dos cromossomos. Seu colega E. B. Wilson tinha continuado a trabalhar no paradigma suttoniano. Entretanto, Morgan não estava convencido de que os cromossomos representassem a base física da hereditariedade e não iria aceitar essa hipótese até que seus próprios experimentos o conven- cessem. De fato, ele tinha uma opinião bastante crítica sobre as explicações que os geneticistas davam para os resultados obtidos em experi- mentos genéticos. Em janeiro de 1909, o ano anterior à publicação de seu primeiro trabalho sobre a mosca de olhos brancos, ele disse o seguinte em uma conferência na American Breed- red X white XW XW ➤ ➤ X ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ P 1 F 2 Fenótipos Fenótipos e genótipos Genótipos Gametas F1 Fenótipos Genótipos ➤ ➤ red ➤ red red red red ➤ white Gametas Xw XW Xw XW Xw XW Xw XW XW XW Xw XW XW Xw XW ➤ redXwhite Xw Xw ➤ ➤ X ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ ➤ P1 F 2 Fenótipos Fenótipos e genótipos Genótipos Gametas F 1 Fenótipos Genótipos ➤ ➤ red ➤ red red ➤ white Gametas XW Xw XW XW Xw Xw Xw XW Xw Xw Xw XW Xw Xw XW ➤ Figura 27. Representação esquemática da segunda hipótese de Morgan para explicar a herança do estado olhos brancos do caráter cor dos olhos em Droso- phila melanogaster. white white ers’ Association: “Na interpretação moderna do mendelismo, os fatos estão sendo convertidos em fatores à uma grande velocidade. Se apenas um fator não explicar os fatos, propõem-se a existên- cia de dois; se estes são insuficientes, a explica- ção pode, às vezes, ser atribuída ̀ a três. O grande malabarismo, que às vezes se torna necessário para explicar os resultados obtidos, se elaborado com muita ingenuidade, pode nos levar a crer que, como geralmente ocorre, os resultados possam ser muito bem explicados porque a interpretação foi feita exatamente para explicá- los. Nós partimos dos fatos para chegarmos aos fatores, e então, como em um passe de mágica, explicamos os fatos pelos mesmos fatores que criamos para explicá-los. Eu não posso senão temer que estejamos desenvolvendo uma espécie de ritual Mendeliano, por meio do qual procu- ramos explicar os fatos excepcionais das heranças alternativas”. Esta era a opinião de alguém que em poucos anos iria ser reconhecido como o “Expoente da Genética” de nosso século – e que certamente seria o último dos “eminentes” geneticistas a estudar a hereditariedade acima do nível molecular. Em 1909, Morgan, juntamente com muitos outros, ainda tinha problemas com a noção de “pureza dos gametas”. Ele continua seu seminário na American Breeders Association nos seguintes termos: “Eu gostaria de chamar a atenção para certas implicações sobre o fato de que, como atualmente se admite, os fatores (às vezes consi- derados como sendo os próprios caracteres ou ainda unidade-caráter) são separados, na condição de seus alelomorfos, nas células germi- nativas dos híbridos. Por exemplo, uma planta alta de ervilha cruzada com uma anã produz apenas plantas altas na primeira geração, que quando cruzadas entre si produzem 3 plantas altas para cada planta anã. Estes fatos são real- mente surpreendentes. Mendel chamou a atenção de que estes resultados numéricos poderiam ser explicados se admitirmos que as plantas híbridas produzam dois tipos de células germinativas, as produtoras de plantas altas e aquelas produtoras de plantas baixas. A simplicidade da explicação, sua ampla aplicabilidade e aquilo que eu chama- ria de probabilidade intrínsica, sugere esta interpretação a todos aqueles que têm pesquisado problemas semelhantes de hereditariedade. A partir desta suposição é que surgiu a hipótese 87 90 8.Os genes localizados exclusivamente no cromossomo Y seguem um padrão de herança denominado ( ). 9. ( ) é o fenômeno pelo qual um alelo não se manifesta fenotipicamente, porém mantém a sua individualidade. 10. Os genes localizados no cromossomo X seguem um padrão de herança denominado ( ). 11. ( ) é a situação em que ambos alelos de um indivíduo heterozigótico se manifestam igualmente no fenótipo, por exemplo, o que ocorre nos grupos sangüíneos do sistema MN. 12. ( ) é a condição na qual o indivíduo heterozigótico tem um fenótipo intermediário entre os dos dois homozigóticos que lhe deram origem, por exemplo, o que ocorre com a cor da semente em certas variedades de trigo. PARTE B : LIGANDO CONCEITOS E FATOS Utilize as alternativas abaixo para responder às questões 13 e 15. (a) herança ligada ao sexo recessiva. (b) herança autossômica recessiva. (c) herança ligada ao sexo dominante. (d) herança autossômica dominante. 13. Nos cruzamentos entre drosófilas fêmeas de asas curtas com machos de asas longas, todos os descendentes machos apresentaram asas curtas e todas as fêmeas, asas longas. Um cruzamento recíproco (fêmea de asas longas com machos de asas curtas) produziu apenas descendentes de asas longas, tanto machos como fêmeas. Esses resultados sugerem a hipótese de que o estado de caráter asas curtas siga um padrão de ( ). 14. Carneiros pretos cruzados com ovelhas brancas produziram apenas descendentes brancos, de ambos os sexos. Alguns cruzamen- tos recíprocos produziram apenas machos e fêmeas brancos: enquanto outros produziram metade da descendência branca e metade preta, de ambos os sexos. Esses resultados permitem levantar a hipótese de que o estado de caráter cor preta da lã em carneiros segue um padrão de ( ). 15. Um homem afetado por certa doença casa- se com uma mulher não-afetada. Eles têm oito filhos (quatro meninas e quatro meninos); todas as meninas têm a doença do pai, mas nenhum dos meninos a tem. Trata-se provavelmente de uma caso de ( ). 16. Um homem é heterozigótico para um par de alelos autossômicos Bb e portador de um alelo recessivo d ligado ao cromossomo X. Que proporção de seus espermatozóides será bd? a. zero. c. 1/4. e. 1/16. b. 1/2. d. 1/8. PARTE C : QUESTÕES PARA PENSAR E DISCUTIR 17. Qual é a proproção fenotípica esperada entre os descendentes do cruzamento de fêmeas de drosófila de olhos vermelho-claros com ma- chos de olhos vermelho-escuros, sabendo-se que o fenótipo destas fêmeas é determinado por um alelo recessivo ligado ao sexo? 18. De acordo com a hipótese de Sutton (teoria cromossômica da herança), como deveriam se comportar na meiose os genes localizados em um mesmo cromossomo? 19. Por que os resultados de Morgan nos cruza- mentos com o mutante white não puderam ser interpretados como um caso de monoibridismo típico? 20. Qual foi a primeira hipótese proposta por Morgan para explicar a herança do sexo e da cor dos olhos em Drosophila melanogaster? 21. O que levou Morgan a substituir a sua primeira hipótese para explicar a herança ligada ao sexo? 22. Em camundongos, um alelo dominante B, ligado ao sexo, é responsável pelo fenótipo cauda curta e retorcida, enquanto seu alelo recessivo b, é responsável pelo fenótipo cauda longa e reta. Se uma fêmea de cauda longa é cruzada com um macho de cauda curta, que proporção fenotípica deve ser esperada na geração F1? 23. Na espécie humana, o alelo recessivo e ligado ao sexo (d) produz um tipo de daltonismo (cegueira às cores vermelho-verde). Uma mulher de visão normal, cujo pai era daltônico, casa-se com um homem daltônico. a) Quais são os genótipos possíveis da mãe do homem daltônico? b) Qual é a probabilidade de o primeiro descen- dente desse casal ser daltônico? c) Que porcentagem de daltonismo podemos prever entre as filhas nascidas deste casal? d) De todos os descendentes deste casal (sem considerarmos o sexo) que proporção provavel- mente terá visão normal? 24. O alelo m (miniature) que determina asas curtas em Drosophila melanogaster é recessivo e ligado ao sexo. Seu alelo dominante + deter- mina a formação de asas longas. Que propor- ções fenotípicas podemos prever nos seguintes cruzamentos: a)macho de asas curtas com fêmea de asas curtas. b)fêmea de asas curtas com macho de asas longas. c) fêmea de asas longas (homozigótica) com macho de asas curtas. d)fêmea de asas longas (heterozigótica) com macho de asas longas. e) fêmea de asas longas (heterozigótica) com macho de asas curtas. 25. Em galináceos, o alelo dominante B , que é ligado ao sexo, produz penas com padrão barrado. O seu alelo recessivo b, em homozi- gose produz penas de cor uniforme. O alelo autossômico dominante R produz crista com forma rosa e seu alelo recessivo r, produz crista 91 com forma simples, quando em homozigose. Uma fêmea de penas barradas, homozigótica para crista com forma rosa é cruzada com um macho de penas de cor uniforme e crista com forma simples. Qual é a proporção fenotípica esperada na geração F1? 26. A distrofia muscular Duchenne é ligada ao sexo e geralmente só afeta os homens. A doença se manifesta na infância e as vítimas perdem progressivamente os movimentos dos membros e morrem antes da adolescência. a) Qual é a probabilidade de uma mulher cujo irmão sofre de Duchenne ter um descendente do sexo masculino afetado? b) Supondo que o tio materno de uma pessoa teve Duchenne, qual é a probabilidade de essa pessoa ter recebido o alelo causador da enfermidade? c) Suponha que o tio paterno de uma pessoa teve a doença, qual é a probabilidade de essa pessoa ter recebido o alelo causador da enfermidade? GRUPOS DE LIGAÇÃO E CROMOSSOMOS Décima aula (T10) Objetivos 1. Conceituar ligação gênica. 2. Analisar o experimento de Bateson, Saunders e Punnett sobre o fenômeno da ligação incompleta. 3. Explicar a teoria da quiasmatipia de Janssens. 4. Explicar acoplamento e repulsão por meio da teo- ria cromossômica da herança. 5. Conceituar gene pleiotrópico. 6. Descrever o experimento de Curt Stern em que se demonstrou a relação entre permutação e recom- binação gênica. Texto adaptado de: MOORE, J. A. Science as a Way of Knowing - Genetics. Amer. Zool. v. 26: p. 583-747, 1986. 92 GENES LIGADOS Em 1903, quando Sutton deu início às pesqui- sas relacionando genes e cromossomos, ele argu- mentava que deveriam haver mais pares de alelos do que pares de cromossomos homólogos. Em um trecho de seu trabalho ele diz: “Nós devemos, portanto, admitir que pelo menos alguns cromos- somos estejam relacionados à um número maior de alelos. Se os cromossomos retém permanente- mente as suas individualidades, então todos os alelomorfos presentes em um mesmo cromossomo devem ser herdados juntos.” Não se pode ler as publicações deste extraor- dinário jovem cientista sem se estarrecer com o brilhantismo de suas análises. Repare no trecho: os diferentes alelos devem ser herdados juntos no caso de os cromossomos reterem sua indivi- dualidade. Suspeita-se que quando a proporção peculiar que foi denominada “acoplamento” e “repulsão” foi descoberta, Sutton teria reconhe- cido que, de alguma forma, isto estava associado com a presença de diferentes genes no mesmo cromossomo. E que quando o “acoplamento” não era completo, ele deve ter também percebido que um mecanismo deveria ser pensado para a explicar a observação de que os cromossomos nem sempre retêm a sua individualidade. Era óbvio para os geneticistas que aceitavam as hipóteses suttonianas, que o esquema mende- liano original não podia explicar os resultados quando um ou mais pares de diferentes alelos esti- vessem localizados no mesmo par de cromos- somos homólogos. ACOPLAMENTO E REPULSÃO Bateson, Saunders e Punnett (1906) não aceitaram a hipótese de Sutton e tiveram grande dificuldade para explicar alguns dos seus cruzamentos que não davam as proporções mendelianas esperadas. Eles dizem o seguinte sobre isso: “Logo no início da retomada dos expe- rimentos de cruzamento, especialmente Correns, havia chamado a atenção para o fenômeno do acoplamento entre certos caracteres. Até aquela época, acoplamento completo havia sido mais comumente encontrado entre os caracteres de natureza fisiológica semelhante. Exemplos de acoplamentos parciais não tinham até então sido adequadamente estudados.” Eles então deram um exemplo. Em um dos experimentos com ervilhas-de-cheiro envolvendo dois pares de alelos, foi obtida em F 2 a proporção de 11,8 : 1 : 1 : 3,26. Em ervilhas-de-cheiro o estado azul (B) do caráter cor da flor é dominante 95 considerados separadamente. Além disso, embora misterioso, o fato de terem sido observadas freqüências constantes sugere a existência de uma mesma causa, a ser descoberta, para explicar estes fatos. Note também que na figura 28 os alelos dos parentais originais estavam acoplados. Um processo ordenado, embora não-mendeliano, parecia estar acontecendo. Poderia ser um exemplo das previsões de Sutton para o comportamento de diferentes alelos que fazem parte do mesmo cromossomo? ACOPLAMENTO E A REPULSÃO PODEM SER EXPLICADOS PELA HIPÓTESE DE SUTTON? Na tentativa de explicarmos os resultados inesperados obtidos nos cruzamentos de ervilha- de-cheiro, usaremos a hipótese de Sutton, admitindo que os locos dos genes B e L estejam no mesmo cromossomo e que o parental azul- longo do cruzamento da figura 28 seja homozigótico quanto a esses locos. Admitiremos que o outro parental seja homozigótico para b e l. A figura 29 seria, então, a representação esquemática para os cruzamentos das figuras 28, de acordo com as idéias de Sutton. Segundo este esquema, quando um indivíduo da geração F 1 do tipo azul-longo for cruzado com um do tipo vermelha-redondo a descendência esperada será constituída por apenas duas classes fenotípicas: azul-longo e vermelha-redondo. Entretanto, não foi isso que foi observado. Lembre-se que os resultados reais foram 43,7% para cada uma dessas duas classes, além de 6,3% de azul-redondo e 6,3% de vermelha-longo. Não haveria possibilidade, entretanto, de qualquer destas classes menos freqüentes aparecer se admitíssemos o modelo suttoniano representado na figura 29. Assim, a resposta para a questão colocada no início deste tópico seria “Não”. No entanto, uma modificação na hipótese de Sutton poderia fornecer a resposta. Na fervilhante atividade da “Sala das Moscas”, Morgan e seus associados estavam descobrindo dezenas de novas moscas mutantes. Estes novos mutantes eram testados, dois a dois, em cruzamentos com outros mutantes. Em muitos casos, os cruzamentos diíbridos produziam em F 2 a proporção mendeliana esperada de 9:3:3:1 , Fenótipos Genótipos Gametas azul - longo X vermelho - redondo B L B L b l b l B L b l azul - longo vermelho - redondoX B L b l b l b l Fenótipos Genótipos B L b l Gametas b l azul - longo vermelho - redondoFenótipos B L b l b l b l Genótipos esperado 50% 50% Figura 29. Uma hipótese para explicar os cruzamentos das figuras 28A e 28B, assumindo ligação completa entre os dois genes. o que indicava que os dois pares de alelos estavam se segregando independentemente. Entre muitos outros pares de mutantes de Drosophila, no entanto, eram observados os fenômenos de acoplamento e repulsão que tanto intrigavam Bateson e seus colaboradores. A hipótese de Sutton podia explicar o acopla- mento mas não a repulsão. Como Morgan já estava convencido da veracidade da hipótese suttoniana de que os genes são parte dos cromossomos, ele imaginou que deveria haver algum mecanismo por meio do qual partes de cromossomos pudessem ser trocadas entre os homólogos. Aqui estava um caso em que os resultados genéticos necessitavam de uma explicação citológica. Para explicar a repulsão entre diferentes alelos, podia-se imaginar muitos modos pelos quais partes de cromossomos pudessem ser trocadas. De fato, na época, não fazia muito tempo, havia sido descrito um fenômeno citológico que poderia fornecer uma resposta convincente. 96 JANSSENS E A TEORIA DA QUIASMATIPIA Em 1909 – um ano antes do aparecimento da mosca de olhos brancos - o citologista F. A. Janssens (1863-1924) descreveu um fenômeno cromossômico que Morgan necessitava para sua hipótese. (Fig. 30) Este fenômeno, que ocorre durante a meiose, é atualmente denominado permutação (crossing- over). Na sinapse os cromossomos homólogos se aproximam, emparelhando-se ao longo de todo seu comprimento. Ambos os cromossomos aparecem duplicados (hoje sabemos que eles já estão duplicados desde a intérfase precedente) e formam uma tétrade de quatro cromátides, que podem ser observadas ao microscópio. A seguir, segundo Janssens, há um conside- rável enrolamento das cromátides umas sobre as outras e em alguns casos duas das cromátides se quebram em lugares correspondentes. As cromátides quebradas se juntam de tal modo que um pedaço de uma cromátide fica inserido numa cromátide homóloga e vice-versa. Como resul- tado, são produzidas “novas” cromátides que são verdadeiros mosaicos de segmentos das cromá- tides originais. A quebra e união não puderam ser observadas, de modo que este evento perma- neceu como uma hipótese não testada. A teoria da quiasmatipia de Janssens é um caso relativamente comum em ciência, de uma hipótese, embora correta, ser sustentada por dados provavelmente incorretos (a hipótese de McClung sobre a relação entre cromossomos e sexo é um outro exemplo). As evidências em que se baseava a hipótese de Janssens deixavam muito a desejar, embora A B a b A B A B A B A A B Aa b a b a a b a a bb B b B ➤ ➤ ➤ Figura 30. A hipótese da permutação de Janssens. Hoje sabemos que, do ponto de vista citológico, este modelo está incorreto; pois se sabe que os cromossomos se duplicam antes da sinapse, que o quiasma é conseqüência e não causa da permutação, e que o emparelhamento envolve as 4 cromátides e não apenas duas delas. fosse a única maneira aceitável de se explicar os dados. Esta é a apreciação de E. A. Wilson em 1925: “Uma interpretação mais apropriada do fenômeno da permutação foi elaborada por Morgan e colaboradores, inicialmente com base na Teoria da Quiasmatipia de Janssens (1909). Infelizmente, embora correta em princípio, esta engenhosa teoria entretanto se apóia em uma base citológica inadequada; na realidade, ela foi originalmente proposta com base em interpretações, hoje consideradas erradas, de certos aspectos citológicos.” A EXPLICAÇÃO DE MORGAN PARA O ACOPLAMENTO E A REPULSÃO Morgan (1911) propôs, em um artigo de apenas uma página, uma nova hipótese que, após ter sido testada muitas vezes, pôde ser conside- rada, sem sombra de dúvida, como “verdadeira”. Ele iniciou sua análise chamando a atenção para o fato de que, embora as exceções à proporção 9:3:3:1 tivessem sido verificadas com muita freqüência, elas não podiam ser explicadas satis- fatoriamente pela hipótese proposta por Bateson. Nesse artigo Morgan diz: “No lugar de atrações, repulsões, hierarquia e elaborados sistemas de acoplamento, eu ouso sugerir uma explicação relativamente simples com base nos resultados sobre a herança da cor dos olhos, da cor do corpo, das mutações das asas e do fator para feminidade em Drosophila. Se os materiais que representam estes fatores estão nos cromossomos e se aqueles fatores que se acoplam estão próximos e em uma ordem linear então, quando os pares parentais (no heterozigoto) se conjugam 97 [ isto é, entram em sinapse] , regiões semelhantes ficarão lado a lado. Há boas evidências que apóiam a idéia de que durante o estágio de estrepsinema [quando a tétrade começa a se separar] os cromossomos homólogos ficam presos em certos pontos, porém quando os cromossomos se separam (quebram) a quebra se dá em apenas um plano, como afirma Janssens. Como conseqüência, o material origi- nal, para distâncias pequenas, terá maiores probabilidades de ficar do mesmo lado da quebra, enquanto que regiões mais distantes terão a mesma probabilidade de ficar tanto do mesmo lado como em lados opostos. Como conseqüência, nós encontraremos acoplamento entre certas características, e pouca ou mesmo nenhuma evidência de acoplamento entre outras características; a diferença dependerá da distância linear que separa os materiais, que representam os fatores, nos cromossomos. Tal explicação se aplica a todos os fenômenos que eu tenho pessoalmente observado e acredito, irá explicar também os demais casos descritos até o momento. Os resultados refletem simplesmente o resultado mecânico da localização dos mate- riais nos cromossomos, e do tipo de união dos cromossomos homólogos, e as proporções resultantes não dependeriam tanto do resultado da expressão de um sistema numérico [ como proposto por Bateson], mas simplesmente da localização relativa dos fatores nos cromos- somos. Em vez de segregação independente no sentido mendeliano, nós encontramos “associação de fatores” que se localizam próximos nos cromossomos. A Citologia fornece o mecanismo necessário para explicar a evidência experimental.” O termo ligação gênica foi proposto para aqueles casos nos quais genes diferentes estão localizados em um mesmo cromossomo. A permutação, que ocorre durante a meiose, consiste no emparelhamento dos cromossomos homólogos por intermédio da sinapse, na quebra de cromátides não-irmãs e, finalmente, na religação das cromátides em uma nova condição que resulta em associações modificadas dos genes. Assim, é possível questionar se seria justo creditar a Thomas Hunt Morgan o esclarecimento de que as intrigantes exceções à herança mendeliana simples são uma mera conseqüência do fato de que genes podem eventualmente ser partes do mesmo cromossomo e que, às vezes, eles podem ser separados por permutação du- rante a meiose. Na realidade, isso não pode ser dito. Tudo o que se pode concluir é que a ligação poderia ser uma explicação para o acoplamento e que a permutação poderia explicar a repulsão. Nós atribuímos à Morgan a explicação destas impor- tantes idéias porque pesquisas posteriores mostraram que sua hipótese estava correta. Este é um padrão comum na evolução do conheci- mento a respeito dos fenômenos da natureza. As grandes hipóteses dos homens intelectualmente privilegiados são aquelas que, eventualmente dentre muitas hipóteses concorrentes, foram consideradas “verdadeiras” pelas pesquisas subseqüentes. A percepção que Morgan teve de que a hipótese de Janssens sobre a quebra e a fusão de cromátides em novas combinações poderia explicar os dados obtidos, não foi imedia- tamente aceita por outros pesquisadores. Era impossível uma observação direta da quebra e da fusão. Sturtevant (1959) relembra porque a hipótese de Janssens era tão atrativa: “A evidência citológica não era conclusiva, e a idéia não era aceita por todos – apesar de estar se tornando claro que apenas desse modo a interpretação cromossômica do mendelismo podia ser salva.” Entretanto, havia um modo de testar a hipótese de que a ligação seria uma conseqüência do fato de diferentes genes fazerem parte de um mesmo cromossomo. GRUPOS DE LIGAÇÃO GÊNICA E PARES DE CROMOSSOMOS Por volta de 1911 não havia mais qualquer dúvida de que os cromossomos se encontravam aos pares nos organismos diplóides, com exceção dos cromossomos sexuais, onde poderia haver diferenças com relação a essa regra. Como obser- vado anteriormente, Sutton (1903) havia pro- posto a hipótese de que “todos os alelos presentes em um mesmo cromossomo deveriam ser herdados juntos”. Se isso fosse verdadeiro, o número de grupos de alelos herdados juntos não poderia exceder o número de pares de cromos- somos homólogos. Essa hipótese poderia ser testada em Drosophila melanogaster, onde um número crescente de genes estava sendo descoberto.
Docsity logo



Copyright © 2024 Ladybird Srl - Via Leonardo da Vinci 16, 10126, Torino, Italy - VAT 10816460017 - All rights reserved