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Machado de Assis
O enigma do olhar
Machado de Assis
O enigma do olhar
Alfredo Bosi
1º edição
3º impressão
I O enigma do olhar
Sócrates: E uma cor será semelhante a uma cor, meu
amigos pois, ao menos enquanto ela é, sempre e em
toda parte, uma cor, não conotará nenhuma dife-
rença; não obstante, todos sabemos que do negro ao
branco vai não só diferença, mas uma oposição abso-
tuta. De todo modo, uma figura é semelhante a uma
figura. Falando por gêneros, de fato, o todo que es-
sas figuras formam é uno, mas nem por isso as par-
tes desse todo são menos absolutamente contrárias,
ou estão carregadas de um número ilimitado de di-
ferenças, encontrando-se também muitas ontras coi-
sas que apresentam este mesmo contraste,
Platão, Filebo, 12e
Limagination ne sanrait inventer tant de diverses
contrariétés qu'il y en a naturellement dans le coeur
de chaque personne.
La Rochefoucauld, Maximes, 478
Por que escrever ainda sobre o significado da ficção macha-
diana? Um século de leituras já não terá descido ao fundo
da questão, examinando-a pelos ângulos biográfico, psico-
lógico, sociológico, filosófico, estético? Não seria o caso de
revisitar essa ampla e díspar bibliografia que já conta com
intérpretes notáveis pela argúcia e erudição, em vez de ten-
tar, uma vez mais, decifrar enigmas que já estariam afinal
aclarados?
A empresa, confesso, também a mim me pareceu às
vezes temerária; mas se a ensaio de novo, ciente dos riscos
que a envolvem, é porque, lidos os melhores estudos sobre
Machado, advirto ainda, em face do problema central da
perspectiva, um resíduo de insatisfação cognitiva e descon-
forto moral. E voltando pela enésima vez aos seus roman-
ces e contos, sempre me aparece um hiato entre os concei-
tos da crítica e as figuras do texto-fonte. Talvez esse intervalo
seja mesmo infranqueável, se individuum est ineffabile. No
entanto, tudo está em diminuí-lo até os limites do possível
e procurar responder à questão crucial do sentido, que está
no horizonte de toda interpretação literária.
Dizem que a formulação justa de um problema já é
meio caminho andado para resolvê-lo. Neste caso, trata-se
de entender o olhar machadiano, o que é um modo existen-
cial de lidar com a perspectiva, a visão do narrador, o pon-
to de vista ou, mais tecnicamente, com o foco narrativo.
Olhar tem a vantagem de ser móvel, o que não é o ca-
so, por exemplo, de ponto de vista. O olhar é ora abrangen-
te, ora incisivo. O olhar é ora cognitivo e, no limite, defi-
nidor, ora é emotivo ou passional. O olho que perscruta e
quer saber objetivamente das coisas pode ser também o olho
que ri ou chora, ama ou detesta, admira ou despreza. Quem
diz olhar diz, implicitamente, tanto inteligência quanto
sentimento.
* Estendi-me sobre o tema em “Fenomenologia do olhar”, em A. Novais
(org.), O olhar, S. Paulo, Cia. das Letras, 1988.
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de encará-los: a intencionalidade do autor desloca-se, e é
preciso acompanhar cada uma das suas visadas.
Começo pelo degrau inferior, mais longo e mais lar-
go que os demais. Machado se compraz na mimese incisiva
de certos tipos representativos de uma sociedade como a do
Segundo Império, repartida grosso modo em proprietários,
funcionários, agregados e escravos. É a cota do seu realis-
mo, em senso estrito, apontado e louvado como materialis-
ta por um dos pioneiros da crítica marxista entre nós, o mi-
litante Astrojildo Pereira. A sua estimável coletânea de
estudos machadianos, que timbra pela coerência ideológi-
ca, concentra-se toda na idéia da tipicidade das personagens.
Um dos seus apoios teóricos, o ortodoxo Plekhanov, é cita-
do em abono da tese da arte como reflexo da sociedade:
“A psicologia das personagens adquire enorme im-
portância aos nossos olhos, exatamente porque é a psicolo-
gia de classes sociais inteiras, ou pelo menos de certas cama-
das sociais; e sendo assim, podemos verificar que os processos
que se desenvolvem na alma das diferentes personagens são
o reflexo consegiiente do movimento histórico a que per-
tencem (L'art et la vie sociale, Ed. Sociales, 1953, p. 216)”.
Comenta Astrojildo Pereira: “Eis aí uma boa chave
para a compreensão das íntimas conexões que existem en-
tre a obra de Machado de Assis e a história social do tempo
que ele reflete”.
A tipicidade repropõe-se em outro estudioso de
Machado, o ensaísta Raymundo Faoro. Aqui, porém, em
vez de um fiel arauto da esquerda histórica, temos um li-
2 Em Machado de Assis. Ensaios e apontamentos avulsos, 2º ed., Oficina
de Livros, 1991, p. 93
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beral-democrata forrado de sociologia weberiana. Machado
de Assis: a pirâmide e o trapézio é um alentado recenseamen-
to das personagens do romancista. E como todo censo feito
com pessoas físicas, o levantamento não prescinde da espi-
nha dorsal da pesquisa demográfica: a classificação. Classes
sociais, grupos de status, camadas ou estamentos, corpora-
ções militares, maçônicas ou religiosas; fazendeiros, nego-
ciantes, banqueiros, políticos, funcionários e empregados;
comendadores e conselheiros do Império... estas seriam as
peças do sistema, as marcas de identidade que explicariam,
pela dinâmica dos seus interesses, os comportamentos pú-
blicos e as intenções secretas da vasta população observada
pelo bruxo de Cosme Velho.
Raymundo Faoro, compondo o seu largo painel fun-
cionalista, cumpriu, sem que fosse este o seu intuito ideo-
lógico, a proposta de Astrojildo Pereira: situar cada perso-
nagem no seu respectivo nicho social. A teoria do reflexo
não encontrou entre nós uma aplicação mais sistemática.
Literatura é espelho. O signo é transparente. Os olhos do
romancista refletem os objetos da sua observação. Quanto
à estilização, é um trabalho sobre o típico no plano literá-
rio: “A estilização fixa algumas condutas constantes, repe-
tições de relações sociais e as traduz em modelos”.
Mas ao fim deste vasto exemplário de partes e sub-
partes de um conjunto historicamente dado — de que a
narrativa seria documento —, atrai a nossa atenção a sensi-
bilidade de Faoro à presença de um veio diferenciador, que
ele chama “cultural”, e que corrigiria o enfoque dominante
* Em Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio, Cia. Ed. Nacional, 1974,
p. 505.
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ao longo do ensaio. A entrada tardia desse novo fator, que
lhe teria dado uma dimensão também nova, pela qual cons-
ciência e objeto não se espelhariam mas se enfrentariam,
não agiu, porém, como método operante no fazer-se da in-
terpretação. Caso um culturalismo aberto e livre tivesse pre-
sidido à composição do estudo, muito se poderia esperar de
um tópico intitulado “O moralismo em conflito com a his-
tória e a sociologia”. Que ao menos fique a promessa con-
tida nessa formulação dialética à qual valeria a pena voltar.
Igualmente sistemática, mas rente às modulações de
cada fala, de cada situação narrada e de cada intervenção do
narrador, é a obra crítica notável de Roberto Schwarz, a
mais atenta inspeção do romance de Machado feita pela óti-
ca da sociologia do texto literário. O conceito de tipo, de
cunho lukacsiano, nela impõe-se também, mas refina-se e
complica-se. As bases da interpretação e o seu horizonte são
macrossistemas ideológicos: o paternalismo, ou regime de
favor, que alegoriza o atraso em relação à Europa; e o libe-
ralismo, ou regime da autodeterminação individual, que
remete à modernidade. O regresso e o progresso se incrus-
tariam nas mentes e nos corações das personagens, guiariam
os enredos e ilustrariam as entradas discursivas do narra-
dor. À mensuração dos valores é recorrente. O tradiciona-
lismo, o familismo estreito, a superstição, a hipocrisia (ou
o seu avesso, o cinismo), a abjeção em suma, pesariam de
um lado. O progressismo, a autonomia do sujeito, o racio-
nalismo, a irreverência desabusada, a modernidade liberta-
dora, redimiriam o outro lado. A oposição, trabalhada ana-
liticamente em Ao vencedor as batatas, obra voltada para os
romances da primeira fase, mostraria a sua face mais dúctil
na análise das Memórias póstumas de Brás Cubas (em Um mes-
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sátira, serve de crítica à ferocidade das relações humanas
traz em si mesma um limite à denúncia, pois o que é natu-
ral e fatal se dá aquém do juízo ético.
A originalidade de Machado está em ver por dentro
o que o naturalismo veria de fora. Os seus tipos são e não
são parecidos com os dos seus contemporâneos, Eça de
Queirós e Aluísio Azevedo, brilhantes traçadores de carica-
turas. Vejo nessa diferença as potencialidades dos discursos
ficcionais que, mesmo se colocados sob o signo do realismo
histórico, não se deixam enrijecer em categorias. O cínico
eo hipócrita, figuras recorrentes nas estruturas sociais assi-
métricas, acabam merecendo, quando avaliados por dentro,
ao menos a complacência de um olhar ambivalente. Barro
sim, mas barro comum à humanidade e do qual todos so-
mos feitos, eles vacilam um pouco (só um pouco) antes de
se renderem ao puro interesse, e depois racionalizam, em-
prestando à argila mole da consciência alguma forma so-
cialmente aceitável. Esta é, no fundo, a reflexão de Machado
ao justificar a hipocrisia de Guiomar no trato com a sua
protetora, em A mão e a luva.
A condenação que o puro ethos romântico fizera recair
sobre os tipos sociais escarrados (caso dos vilões de Herculano
e de Alencar) alivia-se, embora não de todo, quando
Machado lhes concede a escusa da necessidade. Eis o álibi
que deveria emudecer os corações indignados. O mal é ex-
plicável, logo passível de juízos atenuantes sempre que é
tido por mal necessário, fórmula que já virou lugar-comum
no jargão do conformismo ilustrado. Que fazer, se as coisas
são assim e se os homens precisam agir assim para sobrevi-
ver? O olhar lúcido pode ser também um olhar concessivo,
desde que aceite o jogo onde têm força maior o destino e as
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circunstâncias. Este ceticismo que se quer realista atenua,
na raiz, a veemência da sátira moral.
A leitura mais convincente, nessa ordem de razões, é
ainda a de Lúcia Miguel Pereira” que mostra como o jovem
Machado foi elaborando, no corte de suas personagens fe-
mininas, a justificação do cálculo, o reconhecimento de que
“a segunda natureza é tão legítima e imperiosa quanto a
primeira”. A moça perspicaz e determinada, que busca fir-
memente a realização do seu projeto matrimonial e, por ta-
bela, patrimonial, é vista com singular complacência em A
mão e a luva e Iaiá Garcia. À jovem que soube no momen-
to azado ocultar os seus planos é como que alçada e promo-
vida a um grau mais alto na escala das personagens e não
se confunde com os figurantes do primeiro degrau, pois,
tratando de Guiomar ou de Iaiá, o narrador fará penetrar
na câmara escura do sujeito a consciência da necessidade
onde brilha o raio da autodeterminação. Nesse processo a
dialética interna de tipo e pessoa começa a esboçar-se, e com
ela o juízo de assentimento do demiurgo ficcional que do
barro comum fez Adão e toda a sua descendência.
Guiomar, embora viva sob a tutela da madrinha ba-
ronesa, não escolherá para marido o homem que esta prefe-
re: levantará os olhos para outro pretendente, ambicioso co-
mo ela e por isso mais promissor e apetecível, A tática e o
seu acerto prático serão objeto de discreta apologia do nar-
rador, que neles vê a vigência da segunda natureza, a ins-
tância do social, estilizada mais tarde na a/ma exterior do
conto “O espelho”.
* Em Machado de Assis. Estudo crítico e biográfico, 3º ed., Rio de Janeiro,
J. Olympio, 1955, p. 173-85.
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Iaiá Garcia, movida inicialmente pelo desejo de sal-
var o pai da sombra de um adultério, que a antiga paixão
da sua madrasta por Jorge poderia favorecer, empreende a
conquista deste último e usa de todas as suas artes femini-
nas para vencer. Efetivamente Iaiá triunfa e se casa com o
rico herdeiro de Valéria, que, de resto, já a dotara: será mui-
to feliz e dará o nome ao romance, como se fora, par droit
de conquête, a protagonista do enredo.
O fato de essas figuras voluntariosas e autocentradas
serem mulheres — e não arrivistas stendhalianos ou balza-
quianos — foi interpretado como obra de disfarce, de raiz
autobiográfica, pelo qual o Machadinho dos anos 70 em
plena ascensão convertia e sublimava a sua própria escolha
existencial. O medo à obscuridade o teria levado a recalcar
as origens familiares e a aproveitar, sem mancha de deson-
ra, as ocasiões de subir apropriadas ao seu mérito, e a viver,
enfim, assegurado e seguro, nos degraus intermédios da hie-
rarquia social. Essa leitura psicossocial de Lúcia Miguel
Pereira tem sólido poder de persuasão. Do ponto de vista
em que se articulam as hipóteses do presente ensaio, con-
viria ainda pesar a diferença entre o tratamento que Machado
acabou dando àqueles seus tipos menores de sátira rasteira-
mente aduladores (“a vulgaridade dos caracteres”) e o seu
modo de figurar essas jovens empenhadas na luta por um
lugar menos modesto à sombra da burguesia fluminense.
A absorção do natural (as graças do sexo) pelo social (o cál-
culo da pessoa que joga para vencer) lhes dá o poder irre-
sistível de nocautear o adversário com as tradicionais luvas
de pelica.
Jorge, a certa altura do romance, sentiu no braço os
dedos de Iaiá: eram dedos de ferro, sinal de que o corpo e a
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vigor: “O dia não sei. E depois de uma pausa: — Mas que
se há de fazer é certo. Ou eu não sou quem sou”.
Sofia e Capitu têm robustas inclinações dos sentidos,
exercem galhardamente os seus dotes, irritam-se e despi-
cam-se muito naturalmente quando topam com óbices, e
mantêm-se de todo coerentes, corpo e alma, com os seus
respectivos projetos de vida. Ambas, cada uma a seu mo-
do, almejam a plena inserção na sociedade conservadora on-
de vivem; sociedade em que o capital se vale comodamente
do trabalho escravo, e que, pelo ângulo das relações de de-
pendência, poderá qualificar-se de paternalista. Em ambas,
a primeira natureza revela-se na força dos instintos e na
pronta irascibilidade. A segunda natureza, que completa a
primeira e nesta se enxerta fundo, as torna, nos momentos
difíceis, reconcentradas, reflexivas, atiladas, capazes de dis-
farces rápidos, certeiras na invenção de expedientes. Não
vejo, rigorosamente, exemplos de modernidade nem de
avanço histórico nessa fusão de instinto e sagacidade, pois
os fins colimados, os valores que norteiam as suas expres-
sões ou silêncios, são, como se depreende do vetor narrati-
vo, a sobrevivência e, mais ainda, a ascensão dentro das expec-
tativas do mesmo sistema onde interagem todos, conquistadores
e conquistáveis, os que ainda não chegaram à sua meta e os
que já estão instalados.
Capitu, em plena lua-de-mel, mostra-se impaciente e
quer descer da Tijuca para a cidade. Apenas sete dias eram
passados de vida amorosa a sós, e já ansiava por publicar o
seu estado de casada: “A alegria com que pôs o seu chapéu
de casada, e o ar de casada com que me deu a mão para en-
trar e sair do carro, e o braço para andar na rua, tudo me
mostrou que a causa da impaciência de Capitu eram os si-
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nais exteriores do novo estado. Não lhe bastava ser casada
entre quatro paredes e algumas árvores; precisava do resto
do mundo também”.
As insígnias de status, “os sinais exteriores do novo
estado”, são a alma exterior: aqui é Bento quem a descreve.
No “Espelho”, será o alferes. Em ambos os textos, é Machado
de Assis.
Neste segundo degrau, o tipo comum da mocinha bo-
nita é viva, que o “equívoco da fortuna” fizera nascer em
berço modesto, se enriquece e se personaliza pela ação de
uma vontade potente. A densidade da personagem vem pre-
cisamente da ênfase que o narrador dá à força dos seus ins-
tintos e do seu querer, ou seja, à plena expressão da primei-
ra natureza, metade do ser humano. E é no coração da escrita
ficcional, no uso da imagem e da metáfora, que o escritor
explora essa verdade de sangue e nervos, mola do enredo.
Metáfora e tautologia no processo de individuação
Para a construção do tipo, com toda a “vulgaridade dos ca-
racteres” que implica, bastava ao narrador o desenho dos
gestos que se repetem. Bastava-lhe o esquema que abstrai
da empiria certos traços definidores, como fez a mão de Iaiá
desenhando com crueldade de adolescente talentosa a cari-
catura de Procópio Dias, vilão do romance. Mas na ima-
gem, diz Goethe, a idéia se faz inexaurível. À medida que
a personagem supera a tipificação, mediante o escavamen-
to das suas peculiaridades, são as imagens e as metáforas
que servem melhor ao processo da representação liberan-
do-a do risco da fôrma alegorizante.
Imagens e metáforas revelam aspectos e matizes de
sentimento não só graduados como opostos. Iaiá, menina e
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moça, é, no mesmo período, evocada como “aurora sem nu-
vens, leve, ágil, súbita” e “às vezes áspera”, atributo que se-
ria surpreendente se não fosse em seguida modificado pela
notação de seu “espírito ondulante, esguio”; tudo o que,
porém, não a impede de mostrar-se “não incapaz de refle-
xão e tenacidade”. As imagens que, presas entre as grades
de um conceito fechado, se contradiriam sucedem-se aqui
e se casam no ritmo da intuição livre, atenta só às cambian-
tes de uma individuação que se desgarra do estereótipo.
Essa bela variedade de traços na composição deste e
de outros perfis de mulher deve-se à experiência interiori-
zada das duas minas de toda personagem, a primeira e a se-
gunda natureza, das quais o olhar do narrador pôde extrair
os minérios da sua criação. Assim, os olhos de Iaiá, “se eram
límpidos como os de Eva antes do pecado, se eram de rola
como os de Sulamites, tinham como os desta alguma cousa
escondida dentro, que não era decerto a mesma cousa.
Quando ela olhava de certo modo, ameaçava ou penetrava
os refolhos da consciência alheia”. Tal como aquela aérea
leveza da aurora não faria supor nem aspereza nem pertiná-
cia, aqui o hialino e inocente dos olhos mal se combina com
a sua faculdade de ocultar ou com a incisividade ameaça-
dora que, mais adiante, será comparada ao corte do estilete.
O foco da intuição leva o narrador a postar-se em um
ângulo mais aderente ao espectro subjetivo; desse foco ele
vê mais fundo do que se lhe valesse apenas o olhar de so-
brevôo para o qual Iaiá é sempre o tipo da mocinha de ori-
gem modesta colocada em situação igualmente típica de
assimetria de classe. Em termos de complexidade, Iaiá, com
seus ímpetos e cóleras a custo sopitadas, prepara, melhor
que a “hirta e pausada” Guiomar, as figuras fortes e colean-
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nhecido de Brás Cubas, a quem ensinou que “a veracidade
absoluta era incompatível com um estado social adianta-
do”. Sentença que, se não é uma cortante denúncia do par
mentira-modernidade, tampouco chega a ser um elogio.
Digamos: será a aceitação de que a mascarada social se faz
cada vez mais necessária, logo desculpável; mas para bem
representá-la, não será preciso sair do círculo da nossa famí-
lia burguesa ampliada, mestra nas manhas de trapacear com
ou sem encanto. Foi este o palco que Machado conheceu”.
Da ilustração européia Machado extraiu menos a cren-
ça no progresso da razão do que a suspeita bem voltairiana
de que os homens de todas as épocas foram vítimas com-
7 Machado de Assis conviveu intimamente desde os seus anos de for-
mação com essa mentalidade, que só seria contrastada em alguns mo-
mentos fortes da campanha abolicionista por homens da têmpera de
Joaquim Nabuco (que cunhou a expressão Novo Liberalismo), Rui Barbosa,
José do Patrocínio, Luís Gama, André Rebouças e Raul Pompéia. Sobre
os fundamentos da ideologia burguesa-escravista do Segundo Império e
o seu aparente paradoxo fiz algumas considerações nos ensaios “A es-
cravidão entre dois liberalismos” (em Dialética da Colonização, 1992) e
“Formações ideológicas na cultura brasileira” (Estudos Avançados, nº 25,
1995).
Sendo, acima de tudo, um moraliste sem ilusões, Machado não acredi-
tou nem na rede de valores que conheceu de perto ao longo de toda sua
vida, nem nas bandeiras revolucionárias ou apenas republicanas de cujas
esperanças não partilhou. Da política do Segundo Império o olhar macha-
diano filtrou matizes psicológicos de atores presos a suas ambições ora
realizadas, ora frustradas. Não foi a prática política em si que Machado
colheu na sua ficção, mas atitudes esparsas nascidas do desejo de apa-
recer e brilhar, simulacros de poder que o teatro político engendra. Todo
e qualquer regime lhe parecia uma combinação de paixões e interesses,
um exercício de força ou de astúcia, uma extensão coletiva das relações
entre indivíduos voltados para a autopreservação. O que o afastou tanto
do saudosismo quanto do utopismo e deu ao seu olhar cético uma per-
cepção universalizante (mas não a-histórica) da sociabilidade humana
Mereceria estudo à parte a afinidade dessa visão do social com a dos mo-
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placentes das suas ilusões e de toda sorte de paixões crista-
lizadas em um conceito que é, ao mesmo tempo, natural e
social: o interesse. “Se o universo físico está submetido às leis
do movimento, o universo moral está submetido às /eis do
interesse. O interesse é, na Terra, o mago poderoso que muda
aos olhos de todas as criaturas, a forma de todos os objetos.”*
Mas o tipo da vizinha de extração mediana se apro-
funda e humaniza visto nos aspectos vários da pessoa dife-
renciada e singular. É desta pessoa única que fala o roman-
cista; dela falaria o historiador social se pudesse traçar a
quadratura do círculo que é resolver o problema do discur-
so individual.
Ainda em termos de modos de conhecimento, é sig-
nificativo que, na figuração de Capitu, o narrador recorra à
ralistas dos Seis-setecentos, lidos, às vezes, por um prisma schopenhaue-
riano. Aproximações pertinentes foram feitas, nesse sentido, por Eugênio
Gomes em “Schopenhauer e Machado de Assis” e “O testamento esté-
tico de Machado de Assis”, em Machado de Assis, Rio, Livraria São José,
1958.
“A História”, dizia Fontenelle, “tem por objeto os efeitos das paixões e
os caprichos dos homens” (Oeuvres, Il, p. 484). Mandeville fundava a ci-
vilização sobre os sete pecados capitais, o que era uma constatação e
não um juízo de valor. “ Private vices, public benefits” é o subtítulo da sua
engenhosa Fábula das abelhas, alegoria das relações estreitas entre a vai-
dade, o interesse e o progresso material. Voltaire, por sua vez, reconhe-
cia a força universal do amor-próprio e a necessidade de mascará-lo: “Esse
amor próprio é o instrumento da nossa conservação; ele é necessário,
nos é caro, nos dá prazer, é preciso escondê-lo”. Machado estaria próxi-
mo dessa atitude realista, mas sociável e mediadora, que é anterior e, no
contexto do Brasil Império, ainda alheia à explosão do capitalismo avan-
çado, para o qual o egoísmo não deve ser moderado, mas excitado sem
limites pelas seduções da mercadoria.
º Helvétius, De /'esprit, ||, 2. Machado intitulou “O princípio de Helvétius”
o capítulo 133 das Memórias Póstumas de Brás Cubas. Trata-se de uma
passagem em que o narrador reflete sobre formas diversas de interesse.
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tautologia, desistindo de dar à namorada uma definição es-
treita e quadrada: “Capitu era Capitu, isto é, uma criatura
mui particular, mais mulher do que eu era homem”.
O singular em estado puro — Capitu era Capitu —
casa-se com o universal feminino (mulher), e daí nasce este
“mui particular”, intensivo, que leva ao extremo possível a
recusa à classificação. A crítica literária, como pensava Croce,
não consegue habitar esse lugar único e inconfundível da
figuração poética: contenta-se com tecer uma caracteriza-
ção nuançada, o mais contígua possível à intuição do artis-
ta, mas sempre assintótica quando confrontada com esta”.
Capitu era Capitu. E, ao lado da tautologia, há o pa-
pel de relevo que tem a metáfora na construção da perso-
nagem singular. O narrador o admite e nos instrui quan-
do, por exemplo, ao flagrar o verdadeiro sentimento de
Pádua (pai de Capitu), humilhado na procissão porque só
lhe coubera portar uma tocha, e não a vara do pálio, assim
º Em Benedetto Croce, La poesia, Bari, Laterza, 1953, p. 130. Na pré-
história da estética de Croce encontra-se o conceito viquiano de “univer-
sal fantástico”, que seria peculiar ao momento intuitivo do conhecimen-
to. Acrítica literária, procedendo mediante categorias, tentaria, ao discorrer
sobre entes ficcionais ou poéticos, perfazer a quadratura do círculo
Croce reconhece também em Kant um antecedente da sua tese de vi-
gência de um conhecimento intuitivo, isto é, o juízo estético, sem concei-
to nem interesse. Do teólogo Schleiermacher colhe a idéia da produção
de “imagens internas individuais”, comparáveis aos fantasmas oníricos,
que estariam para o poema assim como os termos estão para o discurso
lógico. Enfim, Croce depende diretamente do maior crítico literário italiano
do século XIX, Francesco de Sanctis, para quem a forma artística, a forma
viva, é um princípio ativo, uma potência de exprimir sentimentos e valo-
res que não se confunde com a redução da experiência a idéias gerais ou
alegorias: “O conteúdo é necessário para produzir a forma concreta; mas
a qualidade abstrata do conteúdo não determina a qualidade da forma ar-
tística” (Croce, Estetica, 10º ed., Bari, Laterza, 1958, p. 409)
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sódio dos olhos de ressaca tem desdobramentos. Bento pro-
cura fugir ao “fluido misterioso e enérgico” que emana da
menina-dos-olhos da moça. Era difícil resistir: “tão depres-
sa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescen-
do, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tra-
gar-me”. O tempo do relógio, sugere Bento, não conseguia
marcar o que só “os relógios do céu” saberiam medir, esse
tempo que o apaixonado sente infinito e breve. O presente
na sua urgência domina a cena toda e suspende ou afasta
para outros lugares e tempos a história miúda e pesada de
uma sociedade onde os ricos não costumam olhar para os
pobres senão com desdém, e os pobres não olham para os
ricos senão com inveja ou humilhação. Mas essa história
mesquinha feita de assimetrias volta a reproduzir-se quan-
do entra em cena José Dias, êmulo da gente do Pádua, que
ele crê interessado na união da filha com o sinhozinho da
casa pegada; ou então prima Justina, que malícia os cuida-
dos extremosos de Capitu com este epigrama de suspeita e
fel: “Não precisa correr tanto; o que tiver de ser seu às suas
mãos virá”.
Enquanto José Dias só vê sonsice, e prima Justina só
vê sofreguidão, atributos de gente marginal e cúpida, ciga-
na, Bentinho fita nos mesmos olhos o movimento irresistí-
vel da Natureza, o mar com suas vagas que vêm e vão.
O tipo tende sempre a classificar o outro como tipo;
mas quem ama cria para o ser amado imagens novas, úni-
cas, incomparáveis.
A intuição do caráter singular da pessoa amada resiste
até mesmo à conversão do amor em ódio que a suspeita da
traição instilou no parceiro que se crê enganado. Bento, no
auge dramático do romance (capítulo “Capitu que entra”),
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abriga em si, ao mesmo tempo, o personagem tomado de ciú-
me feroz, que já o levara à beira do assassínio, e o narrador
fenomenológico sensível às mínimas expressões de Capitu.
Acompanhemos de perto as direções desse olhar na
sua dialética interna de paixão cega e observação que se quer
compreensiva. O olhar e a atitude da mulher amada-odia-
da são apreendidos pelo personagem-narrador com uma
atenção contemplativa que surpreende, dado o ânimo acu-
sador que permeia a passagem inteira.
Chegamos ao instante que se segue à palavra, por tan-
to tempo abafada, de Bento a Ezequiel: “Não, não, eu não
sou teu pai!”. Quando Bento levantou a cabeça, viu que
Capitu estava à sua frente. “Desta vez, ao dar com ela, não
sei se era dos meus olhos, mas Capitu pareceu-me lívida.”
O narrador lembra-se de que, embora possuído pela
comoção da cena vivida um minuto antes, notara palidez
no rosto da mulher. Mas o tempo passou e o controle que a
escrita presente tem sobre a memória exige certa cautela
cognitiva; por isso é com atenuações de dúvida que Bento
descreve a reação de Capitu: “não sei se era de meus olhos”,
“pareceu-me lívida”. Daí em diante, o juiz implacável, pa-
ra quem Capitu teria sido apenas mais um exemplar do ti-
po feminino que subiu na vida seduzindo e enganando, con-
viverá com o homem que ainda ama e cujo olhar se detém
perplexo naquela que será sempre diferente de todas as mu-
lheres, única, enigma indecifrado.
Lívida embora, e lançada no âmago da crise, “Capitu
recompôs-se”. O verbo conota autodomínio, lembra com-
postura social, atributo que convém à imagem da mulher
capaz de mascarar seus sentimentos. Êo que o comentário
do narrador vai sublinhar quando põe em dúvida a afirma-
34
ção de Capitu de que não ouvira bem as palavras de Bento
a Ezequiel. “Capitu respondeu que ouvira choro e rumor
de palavras. Eu creio que ouvira tudo claramente, mas con-
fessá-lo seria perder a esperança do silêncio e da reconcilia-
ção.” Ainda cálculo, portanto, neste negaceio? Bento repe-
tea terrível denúncia. A reação de Capitu é interpretada
pelo narrador em termos de necessária bivalência: a “natura-
lidade” da acusada traz aquele caráter espontâneo do ins-
tinto de defesa que é, afinal, um dos pilares da vida em so-
ciedade, o que reafirma a hipótese bem machadiana da
indissolúvel união das duas instâncias da existência huma-
na, a primeira e a segunda natureza, o desejo e a persona.
Assim, a veracidade das expressões de Capitu continua sen-
do um desafio à nossa especulação: “Grande foi a estupefa-
ção de Capitu, e não menor a indignação que lhe sucedeu,
tão naturais ambas que fariam duvidar as primeiras teste-
munhas de vista do nosso foro”.
É significativo que o advogado Bento Santiago acio-
ne aqui, a seu favor, a linguagem da lei e dos tribunais, fôr-
ma esfriada da vida ética. As frases seguintes aludem a de-
mandas perdidas e testemunhas alugadas. Não se deve,
porém, perder o olhar que Bentinho deitou à estupefação e
à indignação de Capitu, qualificando-as de “tão naturais
ambas”, o que é sempre um lampejo de contemplação tan-
to cognitiva quanto moral: a dura opacidade do promotor
parece suspensa, posto que por brevíssimos instantes, quan-
do atravessada por uma sensação de transparência.
Capitu, nota ainda o narrador, “podia estar um tanto
confusa, o porte não era de acusada” — observação feita de
matizes e que remeterá ao desejo secreto de sondar na pes-
soa amada-odiada um fundo “natural” de integridade.
35
A hipótese da dissociação autor-narrador
Para entender os romances em primeira pessoa, as Memórias
Póstumas e particularmente Dom Casmurro, uma vertente da
crítica machadiana formulou uma hipótese controversa, mas
crucial: haveria nesses romances uma dissociação da pers-
pectiva em duas dimensões: de um lado, o foco narrativo
explícito; de outro, a consciência autoral. O foco explícito
não corresponderia ao verdadeiro olhar do autor e assumi-
ria o papel de narrador trapaceiro capaz de confundir o lei-
tor, dizendo ou sugerindo o que o autor não diria, pensan-
do o que o autor não pensaria e omitindo as reais intenções
do seu criador".
A hipótese é engenhosa, mas, se não for relativizada,
corre o risco de usos arbitrários e sobreinterpretativos. Para
o leitor que nela crê, o dilema reponta a cada momento. Em
face de um determinado passo do romance, as percepções e
os sentimentos declarados do narrador são confiáveis e co-
lam aos do autor? Ou, ao contrário, o autor malicioso teria
aqui engendrado uma voz narrativa que daria pistas falsas
das quais o romancista, no segredo da sua consciência, di-
vergiria eticamente? O narrador mente, de propósito, e só
o autor e alguns leitores mais avisados conhecem a verdade
verdadeira e historicamente irrefutável? Mas onde essa du-
2 Ahipótese deriva basicamente do livro de Helen Caldwell, The Brazilian
Othello of Machado de Assis (University of California, 1960). Retomaram
sob ângulos diversos o caráter dúplice da perspectiva ficcional: Silviano
Santiago, em “Retórica da verossimilhança” (Uma literatura nos trópicos,
S. Paulo, Perspectiva, 1978); John Gledson, The deceptive realism of
Machado de Assis, Liverpool, Francis Cairn, 1984 (tradução brasileira:
Machado de Assis — Impostura e realismo, Cia. das Letras, 1991); e
Roberto Schwarz, Duas meninas, cit.
38
plicidade é inconteste? E onde ela não teria cabimento?
Como e o quê escolher no interior do romance? Quem en-
gana não o faz sistematicamente, caso em que bastaria pen-
sar O inverso do que está dito para conhecer o certo.
É provável que a solução desses dilemas pouco avan-
ce se posta em termos genéricos: será preciso examinar cada
obra e cada episódio sem nenhum a priori interpretativo.
Começando por Brás Cubas, supor que a sua fala re-
presente uma auto-sátira, isto é, o desenvolvimento de um
ponto de vista oposto ou, de algum modo, alheio à percep-
ção que Machado de Assis tinha da sociedade brasileira ou
da humanidade em geral, engendra mais dificuldades do
que resolve. Parece mais razoável ver no defunto autor um li-
mite estilizado do ceticismo do escritor, um mosaico só aparen-
temente caótico das certezas desabusadas a que chegara
aquela altura o romancista na sua análise da indiferença per-
versa, mas ubíqua, que separa e fere os homens: aquela ati-
tude cruel, disseminada em toda parte, e que a posição de
classe de Brás Cubas permitiu levar à “desfaçatez”, como
bem a caracterizou Roberto Schwarz, que, de resto, se in-
clina para a tese do narrador embusteiro. Mas o narrador,
em última análise, não ocultou nem sequer embaçou o olhar
implacável com que Machado observa e encena a mascara-
da da vida em sociedade; apenas fantasiou e universalizou,
a seu modo e o quanto pôde, o seu caráter injusto, arbitrá-
rio ou aparentemente aleatório.
Em outras palavras: o /ugar ideológico de onde o autor
viu e julgou as relações interpessoais do seu contexto flu-
minense era suficientemente amplo para abrigar e situar as
cabriolas exibicionistas de Brás Cubas. Não se tratava de
um jogo de exclusões, de preto e branco, de mentira e ver-
39
dade, de narrador vs. autor, mas de um movimento de in-
clusão de Brás Cubas em Machado de Assis. É como se o
cético autor estivesse passando ao leitor esta mensagem: “O
mundo é assim mesmo, caro leitor, e merece ser afrontado;
por isso, o meu narrador e protagonista pensa, age e fala
sem biocos, mostrando-se tal qual o consente a sua condi-
ção singular de morto, já 'desafrontado da brevidade do sé-
culo”. Em vida, ele era livre, rico e fazia tudo ou quase tu-
do o que desejava, pois o mundo é dos livres, fortes e ricos.
Ai dos pobres, fracos e dependentes! Agora, eu o farei di-
zer tudo quanto pensa”.
Não se veja, portanto, um autor idealista que resolveu
fabricar um narrador realista para melhor condená-lo à luz
de uma visão moral exemplar pela qual os maus devem ser
e serão escarmentados pela sua conduta. De resto, a impu-
nidade é o traço permanente das diabruras do menino Brás
e das suas espertezas de adulto. No texto e na vida, esta é a
lição desenganada do autor, que Brás Cubas exprime de mil
modos com a sua petulante desenvoltura. O narrador pode
bem ser o lado demoníaco do autor, e este é um dos signifi-
cados da expressão “o homem subterrâneo” que Augusto
Meyer tomou a Dostoievski para sondar a relação profunda
entre Machado e o seu narrador e defunto autor Brás Cubas.
Este, enquanto rico ocioso, pode alargar até extremos de ci-
nismo as margens de liberdade daquele “eu detestável” que
o olho do moralista descobrira em si mesmo e no coração do
semelhante. Eu construo o outro que está em mim.
No caso de Dom Casmurro a idéia de divisão autor-nar-
rador envolve outra ordem de dificuldades. O romance tem
a sua lógica própria: Bentinho não é uma réplica de Brás
Cubas, sendo necessário refletir sobre a diferença para não
40
Quando o olhar descobre a pessoa
A própria realidade é ampla, vária, cheia de
contradições; a história cria e rejeita modelos.
Brecht
Pergunto-me se isso é tudo, se não há para o nosso ob-
servador infatigável algum outro objeto digno da sua con-
templação. A busca não é vã. Há personagens que melhor
se chamariam pessoas e que resistem tanto às suas paixões
quanto à comum tentação de subir na hierarquia do meio
em que lhes foi dado viver. Também para estas ergue-se o
olhar do narrador, e é nelas que se projetam, sóbria e fir-
memente, os seus valores por hipótese menos precários e
friáveis. É nelas que um sentimento raro de dignidade e um
ethos severo de estoicismo acham meios de exprimir-se.
Antes de passar ao exemplário, forçosamente escasso,
dessas figuras de exceção, convém refletir sobre a condição
de possibilidade da sua existência na obra de Machado. Elas
são possíveis na medida em que a perspectiva do narrador
não está q priori limitada pela viseira de uma teoria incon-
dicionalmente destrutiva do ser humano. De resto, a nega-
ção absoluta de valores no comportamento do semelhante
suporia a vigência de um senso moral igualmente absoluto
que tudo julgaria e tudo condenaria à luz de um ideal ex-
tra-humano cuja perfeição lhe vedaria até mesmo o atribu-
to da existência neste mundo sublunar. Não é este, manifes-
tamente, o caso de Machado de Assis, que apenas relativiza
o que vulgarmente aparece sob a veste de bem ou de mal,
de verdadeiro ou de falso; assim fazendo, nada afirma nem
denega com o ar peremptório dos dogmáticos ou dos nii-
listas. Em razão deste senso do relativo, que, na história da
cultura ocidental, assinala a crise (mas não a morte) do idea-
lismo romântico, Machado pôde voltar livremente os olhos
para as mais variadas formas de conduta. O romance é o rei-
no do possível: inclui não só o real historicamente testemu-
nhável mas o que poderia ter acontecido ou vir a acontecer.
No exercício de quem observa finamente, mas inter-
preta cautamente, o narrador sabe diferençar por dentro até
mesmo a constelação dos tipos mais homogênea, como é o
caso dos agregados. Leia-se o que diz de prima Justina; tal
como José Dias, ela vive de favor em casa de Dona Glória,
mas, diversamente do superlativo adulador, tinha a índole
seca e reservada: “Não penso que aspirasse a algum legado,
as pessoas assim dispostas excedem os serviços naturais, fa-
zem-se mais risonhas, mais assíduas, multiplicam os cui-
dados, precedem os fâmulos. Tudo isso era contrário à na-
tureza de prima Justina, feita de azedume e implicância”.
Aqui a percepção da peculiaridade corrige, uma vez mais,
o preconceito da uniformidade psicológica do grupo social.
Ou seja, para o narrador há agregados e agregados.
Nem sempre a cor final da página resultou de pince-
ladas cinzentas espalhadas sobre o cinzento, tirante a ne-
gro. O tom dominante não exclui matizes, aliás os supõe.
Neste movimento de atenção para o que não é esquema do
social ossificado, Machado acabou inventando figuras de
resistência.
É instrutivo notar — o que Lúcia Miguel Pereira já
fez com acuidade — a forjadura ainda romântica da pri-
meira das “heroínas” machadianas: ela se sacrifica por obra
da consciência moral em um meio onde só a prudente au-
topreservação teria futuro. Trata-se de Helena, protagonis-
ta do romance homônimo. Helena prefere morrer a ser jul-
44
gada aventureira, isto é, capaz de ter ocultado a sua filiação
e aceito o equívoco de passar por herdeira legítima de um
abastado conselheiro do Império. Helena efetivamente mor-
rerá “de pundonor”, tal o constrangimento que a situação,
enfim aclarada, causou na sua alma ingênua. E “fé ingênua”
é a expressão que Machado de Assis empregará na adver-
tência que faria preceder o romance para recordar o espíri-
to com que o compôs “naquele ano de 1876”.
Mas se lembrarmos que Helena foi escrito depois de
A mão e a luva, romance em que não há lugar para sacrifí-
cios romanescos, diremos que a alternativa da criatura de-
sapegada e digna na sua modéstia ainda se fazia possível na
imaginação de Machado, mesmo depois que se mostrara
complacente com “o cálculo e a fria eleição do espírito” da
outra jovem protagonista.
Em outras palavras: o olhar do primeiro Machado já
era móvel, subindo do interesse para o desinteresse e, em
seguida, na construção complexa de Iaiá Garcia, contem-
plando as organizações opostas de Iaiá e Estela, a competi-
ção solerte e a estóica isenção, ambas operantes no mesmo
meio familiar. Assim, no interior da mesma teia de relações
sociais, o contexto burguês-paternalista fluminense, é a di-
ferença que move a história.
Em Helena é o ser de exceção que importa. Em A mão
ea luva prevalece a regra. Em Iaiá Garcia interagem a ex-
ceção e a regra.
O desfecho de Helena atinge a fronteira que separa o
possível do improvável. Dizer que é um final româútico se-
rá meia verdade. À questão de fundo é saber o que signifi-
caria, no universo da ficção machadiana, uma personagem
que morre em razão de uma crise moral. Uma resposta viá-
Em Machado a percepção do social médio leva, em
geral, a nivelar por baixo o comportamento das suas cria-
turas, e nisto guarda sempre algum ar de família com a vi-
são “realista” do ser humano, que é a do seu tempo, em que
o evolucionismo se enraíza em um radical pessimismo em
relação aos móveis da própria evolução. O que se poderá in-
ferir do romance é que este social médio trazia em si ger-
mes de violência que poderiam, no limite, levar à morte o
indivíduo que não se conformasse integralmente com o seu
padrão. Mas para ver com lucidez esse nexo secreto, era ne-
cessário ter a garra do inconformismo, que marcou a nega-
tividade do ex iluminista-romântico em face da hegemonia
do burguês utilitário. Para este último, a dignidade do su-
jeito é uma expressão retórica vazia, um resíduo imperti-
nente de valores caducos.
O olho crítico do escritor penetra o seu objeto e o
transcende. A configuração local — no caso, a estreita es-
fera de burguesia fluminense — não teria sido representa-
da como foi, com os seus limites e mazelas, se o olhar que
a intuiu não houvesse sido trabalhado por valores que dife-
riam, em mais de um aspecto, dos reinantes naquele peque-
no mundo observado. O olho que só reflete é espelho, mas
o olhar que sonda e perscruta é foco de luz. O olhar não de-
calca passivamente, mas escolhe, recorta e julga as figuras
da cena social mediante critérios que são culturais e mo-
rais, saturados portanto de memória e pensamento. A dife-
rença entre o olhar-espelho e o olhar-foco é vital na forma-
ção da perspectiva. No primeiro, teríamos a narrativa como
reflexo de uma realidade já formada e exterior à consciên-
cia. No segundo, temos a narrativa como processo expres-
sivo, forma viva de intuições e lembranças que apreendem
48
estados de alma provocados no narrador pela experiência
do real. Para o leitor de Machado de Assis, o problema está
em avaliar o grau de distanciamento que o narrador crítico
(embora, na aparência, concessivo) guarda em relação a ca-
da personagem e a cada situação. Um narrador que, mes-
mo quando parece culpar, parece desculpar, pois sabe o
quanto é imperioso o aguilhão do instinto ou do interesse.
De todo modo, o que confirma a generalidade da regra são
as exceções; vejamos como se comportam.
No processo de sublimação o sujeito como que se re-
tesa inteiro e coloca-se acima da sua circunstância, não mais
recitando papéis batidos, mas forjando o próprio destino.
Luís Garcia e, ainda mais decididamente, Estela são expres-
sões sóbrias, de corte estóico, do que o narrador chama vi-
rilidade moral, modelo que implica embate interior e recu-
sa de ceder quer ao império das emoções, quer à atração do
interesse. “Apatia”, “máscara imóvel”, é assim que o narra-
dor descreve o rosto impassível de Luís Garcia. Tampouco
se consuma nessas figuras raras a inerência de uma norma
capitalista avançada que engendraria (por hipótese) a auto-
nomia do indivíduo e a livre escolha do seu futuro. Seria
problemático situar Luís e Estela à frente das coordenadas
brasileiras dos meados do século XIX.
Parece mais adequado reconhecer nas suas condutas a
introjeção do valor nobreza, caro a uma vertente central da
Ilustração sete-oitocentista (em Rousseau já proto-român-
tica), a qual começou a estender para o Terceiro Estado cer-
tas qualidades milenarmente atribuídas à aristocracia co-
mo o sentimento de honra pessoal e a dignidade do sujeito.
Essa extensão, em si humanizadora, não significava,
porém, generalização aberta dos valores éticos ditos nobres:
49
e, na realidade, se fez pagando tributo a uma estilização de
costumes e de linguagem que imitou, em todo o século
XIX, alguns traços considerados distintos do Antigo
Regime. A burguesia oitocentista, européia e brasileira, rei-
ficou tudo quanto lhe parecesse signo de status. Machado
não foi menos sensível do que Alencar à forma pública des-
ses valores, de resto não tão discreta que não fosse objeto
de aprovação geral; ao contrário, enobreceu não poucas das
suas personagens com o apuro, a elegância, o alinho, o es-
mero, o garbo e a compostura do gesto, o donaire e o “ar de
senhora”, “um acordo de virtudes domésticas e maneiras
elegantes”, “enfim, a polidez que obedecia à lei do decoro
pessoal, ainda nas menores partes dele”... Dona Carmo, fi-
lha de relojoeiro e casada com um guarda-livros, “teria in-
ventado, se fosse preciso, a pobreza elegante”.
Ser nobre não dependeria, portanto, do sangue ou do
estamento em que se nasce (hipótese manifestamente pro-
gressista), mas de qualidades íntimas e disposições éticas
raríssimas em qualquer tempo e lugar, o que é, por sua vez,
pressuposto do moralismo clássico quando atribui ao barro
humano um egoísmo universal. O paradoxo aparente desse
progressismo pessimista já se gestava no discurso crítico
dos Setecentos, quando a burguesia ilustrada em ascensão
temperava os seus ardores iconoclastas com o ceticismo in-
duigente da nobreza mais lúcida, que declinava consciente
da crise que abalaria para sempre os seus brasões de sangue
e terra. Desse burguês culto, ansioso pela conquista da pró-
pria autonomia e pela extinção de velhos preconceitos, e
desse nobre, ao qual só restava o culto da dignidade pes-
soal, derivou um dos modelos ideais do indivíduo român-
tico-liberal do século XIX, nobre e burguês conjuntamen-
50
nosso meio conservador, o único que Machado manteve sempre
sob a sua mira.
De tado mado, a face interna, o lado subjetivo daque-
le enobrecimento extrapatrimonial e não-hereditário, não
deixou de ser uma conquista que os românticos progressis-
tas tinham herdado dos Setecentos; e é provável que esses
modelos ideais de longa duração tenham operado na cons-
ciência do narrador machadiano sobretudo na hora de se-
parar o trigo do joio, a pessoa do tipo.
Incorporando, com a devida sobriedade, à imanência
das nossas acanhadas relações burguesas os ideais de desa-
pego e pureza da consciência, decerto anteriores à invenção
da máquina a vapor, Machado fazia penetrar no tecido do
seu romance um modelo resistente ao conformismo da ideo-
4 Nesse meio, a partir dos meados do século, os especuladores e ban-
queiros não representavam senão elos financeiros do nosso complexo
agrocomercial. A ideologia dessa reduzida fauna urbana não se opunha
estruturalmente à dos fazendeiros com a qual interagia. É o que o narra-
dor deixa entrever quando faz Cristiano Palha, "zangão da praça”, futuro
banqueiro e aspirante à baronia, maldizer a iniciativa de D. Pedro Il que,
em 1867, “introduzira na fala do trono uma palavra relativa à propriedade
servil” (Quincas Borba). Raymundo Faoro analisou em detalhe essa mis-
tura de golpes financeiros, jogos da Bolsa, manutenção do regime escra-
vista e espertezas miúdas no âmbito familiar e profissional. Leia-se o es-
tudo que o ensaísta fez das personagens Procópio Dias, Cotrim, Palha,
Santos e Nóbrega, em um arco que vai de laiá Garcia a Esaú e Jacó. Em
todos o endinheiramento é adubo do conservadorismo ora hipócrita, ora
cínico: o que reforça a hipótese da travada correlação que mantiveram
entre si capitalismo agrocomercial, escravismo e paternalismo, forma-
ções todas costuradas por uma classe que precisava tanto do liberalismo
econômico (para a sua integração no mercado internacional) quanto de
uma forma restringida de liberalismo constitucional para garantir a sua re-
presentação junto às Câmaras e ao ministério. Em outras palavras: a nos-
sa burguesia imperial não podia exercer o seu poder fora dos quadros do
velho liberalismo utilitário. Dinheiro e progressismo não são sinônimos
53
logia utilitária. E aqui vale a palavra franca de Bertolt Brecht
replicando ao dogmatismo de Lukács: “Não é a idéia de es-
treiteza, mas a de amplitude que convém ao realismo. A
própria realidade é ampla, vária, cheia de contradições; a
história cria e rejeita modelos””.
Se passamos de Helena a Estela, deparamo-nos com
uma personagem igualmente digna e estóica, mas despida
de aura trágica. Helena morre “de pundonor”, o que faz sus-
peitar que, para o seu criador, a família paternalista trazia
em si componentes vexatórios, pois obrigava os dependen-
tes ora a simular, ora a dissimular; caso contrário, perece-
riam. Esse é um dos traços mais fugidios e inquietantes da
fisionomia machadiana: o seu olhar passa de aparentemen-
te conformista, ou convencional, a crítico, sem que o tom
concessivo deixe transparecer qualquer impulso de indig-
nação. O humor corrosivo, sentimento dos contrastes (se-
gundo a definição de Pirandello), iria explorar nas obras de
maturidade essa ambivalência de juízos de valor, conferin-
do-lhe certa unidade tonal; de todo modo, como registro
estilístico, o humor não se comporia com perfeição antes
das Memórias póstumas. Só a partir destas o narrador em pri-
meira pessoa vestirá, despirá, tornará a vestir e a despir com
desenvoltura as próprias máscaras da virtude e da razão,
com uma labilidade tal que o leitor poderá ver ora a más-
cara, ora a fenda por onde brilham de malícia olhos de hu-
morista. Mas uma unidade subterrânea de tom, aquele “sen-
'º Bertolt Brecht, “Amplitude e variedade do modo de escrever realis-
ta”, publicado inicialmente na revista Das Wort, em Moscou, 1938. O tex-
to de Brecht põe a nu o teor unilateral do conceito de realismo proposto,
naquela altura, por Lukács. Há tradução brasileira feita por Marcus Vinicius
Mazzari (Estudos Avançados, nº 34, dez. 1998)
54
timento amargo e áspero” a que o autor se refere no prólo-
go, enformará e mediará a mobilidade do seu olhar: é por
isso que o saldo final será negativo. Labilidade não é sinô-
nimo de atonalidade.
Em nosso autor a ironia condescendente e o humor
melancólico são mediações tonais de um espírito alerta que
não se entrega; quando parece fazê-lo, é só concessivamen-
te, na medida em que reconhece o império dos interesses e
a correlata urgência de salvar as aparências.
A mobilidade, que revela e esconde, acusa e atenua,
era evidentemente menor e tendia a zero quando o narra-
dor ainda preferia soldar aparência e sentimento, atitude
pública e consciência. Em Iaiá Garcia, a virtude de Estela
é coesa e inabalável, ditada por um sentimento confesso de
orgulho que não cederá a nenhuma isca de cooptação. À sua
dignidade não só a isenta de qualquer deslize interesseiro
como a torna refratária ao mínimo ato de menosprezo co-
metido contra os que estejam abaixo dela na escala social.
É significativo desta sua nobreza (que não lhe vem do san-
gue, nem dos bens, mas da consciência) o episódio em que
o moço rico Jorge lhe segreda ao ouvido palavras de caçoa-
da da pronúncia de um operário: Estela “cerrava entretanto
o gesto aos epigramas”. Convém lembrar que o pai de Estela,
agregado da família de Jorge, é descrito como uma nature-
za oposta à da filha, o que dá um dos aduladores mais típi-
cos e enjoativos da obra de Machado: “Estela era o vivo con-
traste do paí, tinha a alma acima do destino”.
A diferenciação ocorre no âmbito do mesmo regime de de-
pendências e revela a capacidade que tinha o narrador de des-
locar a sua atenção de um nível para outro da escala moral.
O importante é notar não só a disparidade dos objetos obser-
55
seguinte por um golpe de conjuntura de alguns liberais pos-
tos à margem pelo Regressismo; o que certamente não al-
terou a estrutura social da nação. Ao contrário, os ideais re-
publicanos do Padre Feijó não mais vingariam. O Segundo
Império, assentado na escravidão e no comércio de bens pri-
mários, manteria por largos anos a estrutura de base herda-
da da colônia com as eventuais correções de rota exigidas
pelo imperialismo inglês. Quanto ao jogo político, o meio
do século assistiu ao pacto de conciliação dos dois partidos,
o Liberal e o Conservador.
As relações de assimetria social e as manhas do pre-
conceito que Machado captou nesta história de 1839 rea-
parecem nos romances e contos que se passam vinte, trinta
ou quarenta anos depois. O que podia variar, e que a sensi-
bilidade do escritor saberia registrar com precisão, eram as
reações morais à assimetria; reações dispostas em uma escala
que vai do típico, pesadamente típico, ao diferenciado; da
peça humana que reproduz os mecanismos do sistema à
consciência pessoal que se nega a fazê-lo. De Guiomar a Iaiá
Garcia e destas a Helena, Estela, Lalau.
Assim, o romance é o lugar da intersecção dos dois
modelos narrativos, o realista convencional e o realista resis-
tente ou estóico. A intersecção adensa até o limite do enigma
o sentido do olhar do autor, que é sempre um problema e
requer sempre uma interpretação. Pascal, jansenista, e os
moralistas céticos dos Seiscentos, como La Rochefoucauld
e La Bruyêre, também admitiam, ao elaborar a sua fenome-
nologia ética, a existência de almas raras que resistem a si
próprias e ao “mundo” (por obra da graça ou por íntimo or-
gulho), ao lado da maioria absoluta que verga ao peso da
58
condição comum dos mortais feita de egoísmo com toda a
sua segjúela de trampas e vilanias.
O fato de os primeiros interagirem com os últimos
na mesma sociedade e até no mesmo círculo familiar dá ao
realismo de Machado uma amplitude e uma diversidade de
modulações psicológicas que tornam problemática qual-
quer definição unitária e cortante da sua perspectiva. Talvez
seja viável afirmar que a visada universalizante de Machado,
tão aguda no exercício de desnudar o “moi haissable”, consi-
ga superar dialeticamente (conservando em outro nível a
matéria superada) os grandes esquemas tipológicos pelos
quais só haveria duas personagens em cena: o paternalismo
brasileiro e o liberalismo europeu. Estas figuras do enten-
dimento, abstratas e necessárias, resultam insuficientes pa-
ra captar a riqueza concreta dos indivíduos ficcionais.
Uma digressão: o liberalismo dos ricos e o caiporismo
dos pobres
Para a filosofia da práxis as ideologias nada
têm de arbitrário; as ideologias são fatos bis-
tóricos reais que é preciso combater e desvendar
na sua natureza de instrumentos de domínio.
Gramsci, 1] materialismo storico e la
filosofia di Benedetto Croce
A ideologia da aberta competição capitalista e do self-made
man seria, de fato, tão estranha ao mundo da pobreza ob-
59
servado pelo primeiro Machado que, ao ser alegada pelo jo-
vem e abastado Estácio (em Helena), sai prontamente des-
qualificada pelo seu interlocutor, que aparece como homem
válido, sagaz, mas quase indigente:
(Estácio) — “[...] eu creio que um homem forte, mo-
ço e inteligente não tem o direito de cair na penúria”.
(Salvador) — “Sua observação, disse o dono da casa
sorrindo, traz o sabor do chocolate que o senhor bebeu na-
turalmente esta manhã antes de sair de casa. Presumo que
é rico. Na abastança é impossível compreender as lutas da
miséria, e a máxima de que todo homem pode, com esfor-
ço, chegar ao mesmo brilhante resultado, há de sempre pa-
recer uma grande verdade à pessoa que estiver trinchando
um peru [...)”.
Em outras palavras: o liberalismo que premia o méri-
to é argumento de rico. Foi inventado por ele e para ele,
valendo cabalmente como sua defesa e auto-elogio. Mas só
para ele. Não vá o pobre fiar-se nessa filosofia que, ao ca-
bo, o desmerece enquanto presume explicar a lógica da sua
situação.
“Nas cousas deste mundo”, continua Salvador, “não é
tão livre o homem como supõe, e uma cousa, a que chamam
fado, e que nós batizamos com o genuíno nome brasileiro
de caiporismo, impede a alguns ver os frutos dos seus mais
hercúleos esforços”.
O liberalismo econômico funcionou muito bem, es-
pessa e compactamente, como ideologia e boa consciência,
para os herdeiros das oligarquias vitoriosas com a Indepen-
dência e consolidadas pela preservação da escravatura. O
seu êxito durável criara nas elites conservadoras a certeza
da sua necessidade e a pretensão da sua validade moral. Mas.
so
No capítulo dos opostos morais sempre me encantou
o episódio de Quincas Borba em que Sofia e sua amiga Dona
Fernanda fazem uma vis
abandonada por Rubião e só habitada por um criado e pelo
cachorro Quincas Borba coberto de pulgas e roído de sau-
dades do dono.
Sofia, já a conhecemos, longe está de ser um caráter
nobre, mas pertence àquela galeria interessante de mulhe-
res fortes e sedutoras que Machado descreveu com sensual
admiração. Quanto a Dona Fernanda, personagem secun-
dária, rica dama como a esposa do Palha, “possuía, em larga
a à casinha da rua do Príncipe,
escala, a qualidade da simpatia; amava os fracos e os tris-
tes, pela necessidade de os fazer ledos e corajosos. Contavam-
se dela muitos atos de piedade e dedicação” (cap. 118).
Desses atos, um merece reflexão, porque incomum no solo
sáfaro da humanidade vista por Machado.
O fato é que Rubião fora levado a um sanatório por
insistência de Dona Fernanda. O Palha, que já explorara
bastante o bisonho provinciano, julgava “um aborrecimen-
to de todos os diabos” providenciar tratamento ao ex-sócio
que endoidara. Sofia pensaria o mesmo, mas “a compaixão
de Dona Fernanda tinha-a impressionado muito; achou-lhe
um quê distinto e nobre, e advertiu que se a outra, sem re-
lações estreitas nem antigas com Rubião, assim se mostra-
va interessada, era de bom-tom não ser menos generosa”.
O narrador nos dá aqui uma pista para iluminar o la-
birinto dos seus padrões de valor. Acudir a Rubião decaído
era, como dizia Palha, uma “amolação”. A quase indigên-
cia do homem fora obra das trapaças do mesmo Palha que
o tivera por sócio enquanto lhe conviera. Sofia, por sua vez,
ensaiara uma relação ambígua, cheia de obséquios e nega-
63
ças, com o ricaço de Barbacena que lhe rendera palavras de
adoração e jóias de alto preço; mas as inconveniências de
Rubião a amedrontaram o bastante para que desejasse vê-
lo pelas costas e o mais depressa possível.
Estava armada uma situação na qual a pulhice do ca-
sal Palha, prestes a subir ao topo da escala burguesa, dis-
punha de toda força para arredar de sua casa e da sua vida
aquela testemunha tanto mais estorvante quanto mais ser-
vira de parceiro ludibriado da sua escusa ascensão. Mas acon-
tece que Dona Fernanda, na sua simpatia pelos fracos, se
interessou pela sorte do pobre-diabo. Então, o que fazer? A
hipocrisia, disse La Rochefoucauld, é o tributo que o vício
paga à virtude. Historicizando: a burguesia não consegue
ser de todo cínica, enquanto vigorem na cena da moral pú-
blica alguns componentes de um modelo ideal de conduta
que se atribuiu por séculos a um estamento alto demais pa-
ra usar de expedientes vis. Mas, naquela altura (estamos em
torno de 1870), a nobreza de berço desaparecia em toda par-
te, ou quase, do cenário capitalista em expansão. Restavam
as “atitudes nobres”, os “nobres gestos” e a “noblesse oblige”,
que o burguês arrivista e conservador supunha exclusivas
dos que estão por cima, os quais seriam “superiores” ao vul-
go, porque, afinal, podem sê-lo.
Vemos, porém, que não é essa a convicção do narra-
dor tratando de Dona Fernanda, que agia benevolamente
em relação a Rubião porque “possuía, em larga escala, as
qualidades da simpatia”; o que é uma notação atenta à sin-
gularidade da personagem, e não à sua posição de classe.
Sofia, por sua vez, precisa aparentar “bom-tom” jun-
to à amiga prestigiosa, esposa de um deputado, quase-mi-
nistro e futuro presidente de província. Como nova rica.
64
Sofia não pode descartar publicamente certas formas de
comportamento, mesmo que, de si para si, ela as considere
“românticas” e “afetadas”, logo pertencentes a uma cultura
já obsoleta.
O olhar machadiano vê aqui a ação social do modelo
ético nobre exercer-se tão só na hora em que é oportuno à
nova rica afivelar a máscara da distinção. No caso de Helena
e de Estela, ao contrário, o olhar do autor reconhecia a dig-
nidade interior, a introjeção de um modelo ideal exigente
até às raias do puritanismo, e que operava ao mesmo tem-
po dentro e contra as expectativas do meio paternalista, No
ajuizamento de Estela há uma discrepância notável entre o
foco narrativo, que assevera a altivez real da moça (“repug-
na-lhe a própria idéia de rede”) e a apreciação degradante
(tipológica) que dela fez o seu frustrado galanteador, Jorge:
vendo que as suas investidas não eram correspondidas pela
agregada, o rapaz não se contém e a insulta: “Disfarçada!”.
Aqui fala o tipo que só vê no outro o tipo: a virtude de
Estela, como dependente que era, não poderia ser, para ele,
signo de verdadeira e íntima nobreza; seria apenas másca-
ra, forma típica da hipocrisia. Uma vez mais pode-se cons-
tatar que o procedimento da classificação social cobre uma
área de validade cognitiva ampla, mas parcial: vale na me-
dida em que o narrador olha o outro por baixo. Quando é al-
guma personagem que o faz, o narrador sabe encontrar (se
este é o seu projeto) meios e modos de compensar a visão
degradada por outra que faça justiça à complexidade do in-
divíduo que foi prejulgado: então do tipo emerge a pessoa.
Voltemos a Quincas Borba. Rubião, internado para tra-
tamento, manifestara o desejo de ter consigo o seu cão,
Quincas Borba, que ficara aos cuidados de um criado na ca-
65
ela reduzida a um aposento escuro e sujo, “aquela imundi-
ce” da qual “estava morta por fugir”. Mas Sofia não estava
só. A seu lado via Dona Fernanda, que também fazia parte
daquela sua alma exterior, pois era senhora de invejável sta-
tus; por isso, “Sofia não ousava articular nada, com receio
de ser desagradável a tão conspícua dama”.
Nesta coexistência física e social de mulheres tão opos-
tas entre si, a força da opinião, de que alma exterior é a ima-
gem recorrente em Machado, exige que o tipo burguês re-
calque, em público, o grau extremo da sua reificação; mas
recalque apenas, por medo e não por sublimação; por me-
do de não parecer estar à altura do padrão de comportamen-
to ideal que é considerado nobre, desde que praticado por
alguém dotado de posses e alta posição, como esta Dona
Fernanda, “tão conspícua dama”. Do rico imite-se tudo, até
a excentricidade da virtude.
Veja-se e admire-se a amplitude do olhar machadia-
no. Os gestos de impaciência e asco de Sofia, apenas conti-
dos pelo guante das conveniências, são, de todo modo, pre-
visíveis. Menos trivial, mas nem por isso menos realista, é
a insistência com que o nosso narrador volta os olhos para
os olhos de Dona Fernanda e os contempla longamente no
momento breve em que a dama e o cão se entreolham. A
beleza da passagem pede transcrição:
“Dona Fernanda coçava a cabeça do animal. Era o pri-
meiro afago depois de longos dias de solidão e desprezo.
Quando D. Fernanda cessou de acariciá-lo, e levantou o cor-
po, ele ficou a olhar para ela, e ela para ele, tão fixos e tão
profundos, que pareciam penetrar no íntimo um do outro.
A simpatia universal, que era a alma desta senhora, esque-
cia toda a consideração humana diante daquela miséria obs-
68
cura e prosaica, e estendia ao animal uma parte de si mes-
ma, que o envolvia, que o fascinava, que o atava aos pés de-
la. Assim, a pena que lhe dava o delírio do senhor, dava-lhe
agora o próprio cão, como se ambos representassem a mes-
ma espécie. E sentindo que a sua presença levava ao animal
uma sensação boa, não queria privá-lo do benefício.
— A senhora está-se enchendo de pulgas, observou
Sofia.
D. Fernanda não a ouvia. Continuou a mirar os olhos
meigos e tristes do animal, até que este deixou cair a cabe-
ça e entrou a farejar a sala”.
O narrador parece aqui disposto a guiar o leitor até o
limiar do sentido oferecendo-lhe a chave da interpretação.
A mulher compassiva e o cão abandonado fitam-se um ao
outro; e essa reciprocidade se fez possível porque o sofrimen-
to do animal, da “mesma espécie” que o do seu senhor, Rubião
(tomado pela demência como o seu primeiro dono, Quincas
Borba), despertou em Dona Fernanda um movimento de
simpatia universal. Lembro que a vigência da dor em todos
os seres deste mundo aparecia no delírio de Brás Cubas co-
mo uma fatalidade sem consolo nem remissão, pois a indife-
rença bruta da Natureza se prolongava na crueza da história
dos homens em sociedade. No mesmo duro regime alegóri-
co, Humanitas, objeto da filosofia de Quincas Borba, só quer
sobreviver e reproduzir-se, matando e devorando para ali-
mentar-se, ignorando cegamente os vencidos e distribuindo
afinal batatas aos vencedores de uma eterna struggle for life.
Mas nesta cena rara, o abatimento do vencido, homem ou
cão, não se perde no vazio do absurdo e do nada: engendra
um olhar de compaixão, palavra que traduz, ao pé da letra,
sympatheia. É possível que a fonte desta intuição da existên-
69
cia, o autor a tenha bebido na doutrina de Schopenhauer, pe-
la qual a essência da vida consiste na dor, e a única resposta
ética à universalidade do sofrimento será a piedade"*.
Acabado o episódio, o narrador baixa os olhos de no-
vo e acompanha os meneios de Sofia que dá o braço a Dona
Fernanda e continua a representar, com a naturalidade de
sempre, a sua necessária comédia, segunda natureza que já
sabemos tão legítima e imperiosa como a primeira, e que
tantas vezes forma com esta uma sólida unidade:
“Saíram. Sofia, antes de pôr o pé na rua, olhou para
um e outro lado, espreitando se vinha alguém; felizmente,
a rua estava deserta. Ao ver-se livre da pocilga, Sofia read-
quiriu o uso das boas palavras, a arte maviosa e delicada de
captar os outros, e enfiou amorosamente o braço no de D.
Fernanda. Falou-lhe de Rubião e da grande desgraça da lou-
cura; assim também do palacete de Botafogo. Por que não
ia com ela ver as obras? Era só lanchar um pouco, e parti-
riam imediatamente”.
Relendo este e outros passos do romance compreen-
de-se por que Machado recusou o conselho, que lhe deu um
“confrade ilustre”, de dar seguimento ao par Memórias pós-
tumas-Quincas Borba e compor um volume que aprofundas-
se o estudo do caráter de Sofia: “A Sofia está aqui toda”, ex-
plicou o autor no prólogo à terceira edição de Quincas Borba.
Não era, de fato, necessário. Há personagens que pa-
recem esgotar-se na reiteração das suas palavras e atitudes;
'8 Ver Sobre o fundamento da moral de Schopenhauer, publicado origi-
nalmente em 1841. O tópico sobre a compaixão dos animais, que é cen-
tral para a “fundação da ética” do pensador, acha-se no 87 da 3º parte da
obra. Há edição brasileira em tradução de Maria Lúcia Cacciola (S. Paulo,
Martins Fontes, 1995).
70
I A máscara e a fenda
Em memória de
Lúcia Miguel Pereira
Machado de Assis compôs umas duas centenas de contos.
Entre eles, creio, alguns dos melhores já escritos em língua
portuguesa, ao lado de não poucas histórias presas às con-
venções do romantismo urbanizado da segunda metade do
século XIX.
Quem faz uma antologia" prefere excluir a maioria
dessas últimas, sem dúvida menos sugestivas esteticamen-
te; mas o analista não pode omitir o fato: Machado foi tam-
bém um escritor afeito às práticas de estilo das revistas fa-
miliares do tempo, principalmente nas décadas de 1860 e
70. O jovem contista exercia-se na convenção estilística das
leitoras de folhetins, em que os chavões idealizantes mas-
caravam uma conduta de classe perfeitamente utilitária.
A pré-história da máscara: histórias de suspeita e engano
Como se dá essa convergência de formas batidas e valores
novos no primeiro Machado de Assis? Nos Contos fluminen-
ses e nas Histórias da meia-noite a maior angústia, oculta ou
patente, de certas personagens é determinada pelo horizon-
te de status; horizonte que ora se aproxima, ora se furta à
'º Reporto-me à seleção que preparei para a Biblioteca Ayacucho de
Caracas, de onde extraí, com alguns retoques, O presente capítulo.
75
mira do sujeito que vive uma condição fundamental de ca-
rência. É preciso, é imperioso supri-la, quer pela obtenção
de um patrimônio, fonte por excelência dos bens materiais,
quer pela consecução de um matrimônio com um parceiro
mais abonado: “Onde acharei eu uma herdeira que me queira
por marido?” — resume o inquieto Gomes, caça-dotes de
“O segredo de Augusta”.
No primeiro caso, a herança deve ser agenciada junto
a parentes ricos, tios ou padrinhos de preferência, que po-
derão, se quiserem, testar em benefício do sujeito. Essa re-
lação entre o candidato a herdeiro e o testador em poten-
cial combina um interesse econômico inegável com uma
tática de aproximação e envolvimento efetivo do segundo
por parte do primeiro. Relação cruamente assimétrica: se
existe no testador alguma disposição afetuosa, esta não exis-
te no interessado senão em gestos calculados. Vice-versa: o
cálculo existe, de fato, só no interessado.
Igual assimetria de interesse e sentimento impõe-se
quando o plano tem por fim o casamento. O pretendente,
ou a pretendente, aparece em situação de status inferior ou
periclitante: é a hora de assomar a figura salvadora de uma
noiva ou de um noivo.
Obviamente, a situação matriz é sempre o desequilí-
brio social, o desnível de classe ou de estrato, que só o pa-
trimônio ou o matrimônio poderá compensar.
Subjetivamente, o narrador acentua a composição ne-
cessária da máscara na pessoa do pretendente; e, como cor-
relato mais provável, os sentimentos de decepção que o be-
neficiador acabará experimentando quando a máscara já não
for tão necessária ao beneficiado e, por trás dela, se divisar
a ingratidão ou mesmo a traição.
76
Assim, os Contos fluminenses parecem escritos sob a ob-
sessão da mentira. A qual, porém, ou é castigada, ou se pro-
va uma suspeita falsa. Dar-se-ia o caso de seu autor ser um
moralista ainda romântico disposto a nos pregar casos exem-
plares? Não e sim. Não, pelo que virá logo depois: Machado
nunca foi, a rigor, um romântico (o Romantismo está às
suas costas); mas sim, pelo gosto sapiencial da fábula que
traz, na coda ou nas entrelinhas, uma lição a tirar.
Nas Histórias da meia-noite (1873), pela primeira vez
o enganador triunfa. A novela chama-se “A parasita azul”.
O que nela acontece, apesar da amenidade geral do tom,
quase bucólico, é simplesmente isto: o herói finge, o herói
mente, o herói despista para conquistar a amada e o pai des-
ta. E o contexto deixa claro: ele não triunfaria se não men-
tisse. Camilo Seabra começa a vida em Paris embaindo a fé
do “bom velho”, um fazendeiro goiano que o sustenta cren-
do-o estudante zeloso enquanto ele gasta o tempo como
boêmio e parasita. Desse logro Camilo, de volta ao Brasil,
passa a outros. Ão primeiro amigo que reencontra furta-lhe
a namorada, Isabel. Ela, por sua vez, recusa todos os pre-
tendentes, parece um enigma, mas é apenas a falsa ingênua
que encobre o desejo de casar com o melhor dos partidos
possíveis. E quem, senão o próprio Camilo, médico, her-
deiro de fazendas, futuro deputado, além de namorado seu
na infância? Isabel já sabe que é preciso fingir-se fria e dis-
tante para excitar o gosto da conquista no seu casanova goia-
no egresso do Boulevard des Italiens. O falar da moça, diz
Machado, era “oblíquo e disfarçado”. E o contista, também
oblíquo e disfarçado, alivia com entremeios romanescos a
dose de cálculo que vai disseminando na cabeça dos prota-
gonistas. À resistência de Isabel é um plano que o postu-
79
lante vence com outro. Camilo finge suicídio, o que preci-
pita o “sim” de Isabel, já tão disposta a proferi-lo. O con-
to, comprido e assaz convencional no estilo, tem a sua mo-
ral; os apaixonados são mutuamente enganadores e, na exata
medida em que sabem trapacear, alcançam a meta dos seus
desejos. A casca é idílica, o cerne é realista-burguês. Mas
por que separar casca e cerne?
O narrador das Histórias da meia-noite já está em trân-
sito para um “tempo” moral em que o que se julgaria cál-
culo frio ou cinismo (segundo a concepção de Alencar, por
exemplo) começa a eleger-se como prática do cotidiano até
mesmo no coração das relações primárias.
A necessidade da máscara como uma constante era um
fato relativamente novo na história da ficção brasileira.
Falta, nesses contos, aquele quase-nada quase-tudo, que é a
rendição franca da consciência; e que virá em uma persona-
gem honestíssima das Memórias póstumas, Jacó Tavares, pa-
ra quem “a veracidade absoluta é incompatível com o esta-
do social adiantado”.
O jovem Machado introjeta a nova economia das re-
lações humanas que começa a regular, cada vez mais cons-
cientemente, os móveis da vida privada. Assim, é no trato
das personagens que a novidade se torna ostensiva. Em ou-
tros aspectos da narração, Machado mantém-se fiel, sobria-
mente fiel, às instituições literárias do romance brasileiro
romântico, que sempre se quis “realista”: as descrições de
paisagens e de interiores, a sequência dos eventos, o senti-
do do tempo e, mesmo, as entradas metalingiiísticas desses
contos já estavam em Macedo, em Manuel Antônio, em
Alencar. Machado será, talvez, mais neutro, mais seco, mais
esquemático em todo esse trabalho de composição narrati-
va que ele aprendeu, quando não imitou, de outros contex-
8o
tos. O lastro da convenção não seria jamais subestimado por
esse escritor, o único brasileiro que os nossos gramáticos
puristas do começo do século XX julgaram digno de om-
brear com os clássicos dos Seiscentos...
No fundo, não se tratava apenas de respeito à conven-
ção lingúística. A deferência pela face institucional das
Letras e da Sociedade é norma em Machado e significa o re-
conhecimento do forte pelo fraco. A instituição é, afinal, o
espaço histórico já delimitado onde se obrigam e se satisfa-
zem as necessidades básicas dos grupos humanos. É, em to-
das as acepções do termo, o seu /ugar-comum. O lugar-co-
mum não precisa ser belo nem sublime, basta-lhe a
utilidade, como ao papel-moeda.
Embora a consciência da máscara e do jogo instituído
não se mostre tão aguda nos primeiros contos, ela segura-
mente cresceu dos Contos fluminenses para as Histórias da meia-
noite. Assim também crescia, na mesma década de 70, nos
romances À mão e a luva e Iaiá Garcia, obras de intersecção
de dois lugares-comuns: o do velho romantismo idealista e
o do novo realismo utilitário, para o qual pendem as perso-
nagens femininas, capazes de sufocar os sentimentos do san-
gue em nome da “fria eleição do espírito”, da “segunda na-
tureza, tão imperiosa como a primeira”, A segunda natureza
do corpo é o status, a sociedade que se incrusta na vida.
2 é franca-
À interpretação de Lúcia Miguel Pereira
mente psicossocial. Parece-me uma boa leitura não só da
gênese dos enredos e tipos machadianos como, e principal-
mente, do cimento ideológico que os sustenta e os legiti-
2º MigueL Pereira, Lúcia. Machado de Assis. São Paulo, Cia. Ed. Nacional,
1936. A interpretação foi retomada com maior felicidade em Prosa de fic-
ção, 2º ed., Rio de Janeiro, J. Olympio, 1957, p. 59-107.
81
romances da década de 70 está preparado para ver a resolu-
ção de um desequilíbrio. O vinho novo rompe um dia os
odres velhos. À medida que cresce em Machado a suspeita
de que o engano é necessidade, de que a aparência funcio-
na universalmente como essência, não só na vida pública
mas no segredo da alma, a sua narração se vê impelida a as-
sumir uma perspectiva mais distanciada e, ao mesmo tem-
po, mais problemática, mais amante do contraste. Rompe-
se por dentro o ponto de vista ainda oscilante dos primeiros
contos. A ambigiiidade do eu-em-situação impõe-se como
uma estrutura objetiva e insuperável.
A partir das Memórias póstumas e dos contos enfeixa-
dos nos Papéis avulsos importa-lhe cunhar a fórmula sinuosa
que esconda (mas não de todo) a contradição entre parecer
e ser, entre a máscara e o desejo, entre o rito claro e público
ea corrente escusa da vida interior. E, reconhecido o anta-
gonismo, seu olhar se detém menos em um possível resí-
duo romântico de diferença que na cinzenta conformidade,
na fatal capitulação do sujeito à Aparência dominante.
Machado vive até o fundo a certeza pós-romântica
(ainda burguesa, “tardoburguesa”, como diria um sociólo-
go italiano) de que é uma ilusão supor a autonomia do su-
jeito. E, porque ilusão, um grave risco para o próprio sujei-
to parecer diferente da média geral sancionada. Por curiosas
que sejam as cabriolas do pensamento e estranhas as fanta-
sias do desejo, não há outro modo de sobreviver no cotidia-
no, senão agarrando-se firme às instituições; estas, e só es-
tas, asseguram ao frágil indivíduo o pleno direito à vida
material e, daí, ao doce lazer que lhe permitirá até mesmo
balançar-se naquelas cabriolas e fantasias.
sa
Vejo nos contos maduros de Machado, escritos depois
de franqueada a casa dos quarenta anos, o risco em arabesco
de “teorias”, bizarras e paradoxais teorias, que, afinal, reve-
lam o sentido das relações sociais mais comuns e atingem
alguma coisa como a estrutura profunda das instituições.
(Nos grandes romances, Memórias póstumas, Quincas
Borba e Dom Casmurro, as instituições cardíais serão, ainda
e sempre, o Matrimônio e o Patrimônio; e respectivamen-
te, o Adultério e o Logro — do latim: /ucrum.)
O tom que penetra o conto-teoria não é o sarcasmo
aberto do satírico, nem a indignação, a santa ira do moralis-
ta, nem a impaciência do utópico. Diria, antes, que é o hu-
mor de quem observa a força de uma necessidade objetiva
que prende a alma frouxa e veleitária de cada homem ao cor-
po uno, sólido e manifesto das formas instituídas. Machado
acaba roendo a substância do eu e do fato moral considera-
dos em si mesmos; mas deixa viva e em pé, como verdade
fundante, a relação de dependência do mundo interior em
face da conveniência mais forte. É dessa relação que se ocu-
pa enguanto narrador. Como diz o mais sábio dos bonzos:
“Se puserdes as mais sublimes virtudes e os mais pro-
fundos conhecimentos em um sujeito solitário, remoto de to-
do contato com outros homens, é como se eles não existis-
sem. Os frutos de uma laranjeira, se ninguém os gostar, valem
tanto como as urzes e as plantas bravias, e, se ninguém os vir,
não valem nada; ou, por outras palavras mais enérgicas, não
há espetáculo sem espectador” (“O segredo do bonzo”).
A móvel combinação de desejo, interesse e valor so-
cial dá matéria a essas estranhas teorias do comportamento
que se chamam “O alienista”, “Teoria do medalhão”, “O se-
85
gredo do bonzo”, “A Sereníssima República”, “O espelho”,
“Conto alexandrino”, “A Igreja do Diabo”...
Chegando mais perto dos textos vê-se que a vida em
sociedade, segunda natureza do corpo, na medida em que
exige máscaras, vira também irreversivelmente máscara uni-
versal?, A sua lei, não podendo ser a da verdade subjetiva
recalcada, será a da máscara comum exposta e generalizada.
O triunfo do signo público. Dá-se a coroa à forma conven-
cionada, cobrem-se de louros as cabeças bem penteadas pela
moda. Todas as vibrações interiores calam-se, degradam-se
à veleidade ou rearmonizam-se para entrar em acorde com
a convenção soberana. Fora dessa adequação só há tolice,
imprudência ou loucura.
A necessidade de proteger-se e de vencer na vida —
mola universal — só é satisfeita pela união ostensiva do su-
jeito com a Aparência dominante. E, por acaso, será lícito
culpar esse pobre e vulnerável sujeito porque subiu com a
maré do seu tempo para não afogar-se na pobreza, na obs-
curidade e na humilhação? Machado não quer fazer o pro-
cesso implacável dos “ajustados” (e a sagacidade de Lúcia
Miguel Pereira levantou aqui a ponta do véu autobiográfi-
co); ele não quer acusar o sujeito porque foi incapaz de ser
herói”. O perfil meio caricato de suas consciências precá-
rias ou venais é apenas um efeito de sombreamento no de-
senho das personagens. À crítica, silenciosa, tem um alvo
2! La Rochefoucauld: “Em todas as profissões e em todas as artes, ca-
da um cria para si uma aparência e um exterior que põe no lugar da coisa
cujo mérito quer obter; de sorte que o mundo todo não é composto senão
de aparências, e é em vão que nos esforçamos para nele achar alguma
coisa de real” (Máxima 270, na edição de 1665).
2 La Rochefoucauld: “As pessoas fracas não podem ser sinceras”
(Máxima 318).
86
O E
E DR
po do cientista maluco, marginal, entregue à irrisão dos
bem-pensantes. Filho da nobreza da terra, ele traz para a
colônia a nomeada de maior médico de Portugal e das
Espanhas. Protegido pelo rei, fora convidado para reger a
Universidade de Coimbra ou, se preferisse, despachar os ne-
gócios da Monarquia. Ele pode executar os projetos da ciên-
cia que o obseda. Seu status de nobre e portador do valimen-
to régio transforma-o em ditador da pobre vila de Itaguaí.
A população sofre os efeitos de um terrorismo do prestígio
de gue as relações entre médico e doente, psiquiatra e lou-
co, são apenas casos particulares. O eixo da novela será, por-
tanto, o arbítrio do poder antes de ser o capricho de um
cientista de olho metálico. É claro que as coisas aqui an-
dam juntas, pois uma só é a personagem que enfeixa os po-
deres do status e da ciência, a que vieram somar-se, quase
por acaso, rios de dinheiro. Mas na hora 4 do risco, quando
um grupo popular se insurge contra a tirania do médico
marchando até a Câmara e exigindo o fim do terror, os ve-
readores respondem: “que a Casa Verde era uma institui-
ção pública, e que a ciência não podia ser emendada por vo-
tação administrativa, menos ainda por movimentos de rua”.
O hospício é a Casa do Poder, e Machado sabia disso
bem antes que o denunciasse a antipsiquiatria.
Em todos os passos e vaivéns da rebelião, o alienista
contou com a força vitoriosa: primeiro vem em seu socorro
a polícia, o corpo de dragões; com a defecção destes e a vi-
tória do barbeiro Porfírio, a situação de Bacamarte parece
desesperada, mas é o mesmo Porfírio vencedor que procura
o médico, interessado agora em angariar-lhe o poder que
momentos atrás contestara a mão armada; enfim, a inter-
venção militar ordenada pelo vice-rei restaura Bacamarte
89
em todo o esplendor do seu prestígio, entregando ao hos-
pício todos os revoltosos... além daqueles vereadores que
não tinham sabido resistir-lhes. Mais tarde, mudada a teo-
ria (loucos seriam os que cultivam virtudes raras), o alie-
nista não hesitará diante dos maiorais da vila e recolherá à
Casa Verde o padre e o juiz-de-fora.
Há, pois, uma situação prévia de domínio que dobra
a língua e a espinha dos que rodeiam Simão Bacamarte. Esse
domínio se exerce em nome de uma atividade considerada
neutra, “acima dos apetites vulgares”: a ciência, o amor à
Verdade, que inspira o psiquiatra.
Aonde Machado quis chegar pintando o médico da
mente quando investido de plenos poderes? Bacamarte pre-
tende separar o reino da loucura do reino do perfeito juízo.
A confusão em que ambos se misturam aborrece-o; é preci-
so traçar com a lâmina aguda da ciência o fio da discrimi-
nação: loucos de um lado, sãos de outro. Para levar a efeito
o seu critério dualista ele tem que saber o que é a normali-
dade. E toda vez que Bacamarte recolhe alguém, não esta-
rá, porventura, supondo que já sabe o que é o estado nor-
mal de que se teria desviado o novo hóspede? No princípio,
os sintomas não deixam margem a dúvidas; não parece nor-
mal o rapaz que se supõe estrela-d'alva, nem o seria o po-
bre-diabo que se autonomeia conde, mordomo do rei, deus
Doão... Mas, afora esses casos já apontados ao ridículo pelo
bom senso das gentes, o que haveria de anormal na atitude
dos outros recolhidos à Casa Verde? Apenas um extravasa-
mento qualquer da subjetividade, uma afirmação mais for-
te de caráter, um gesto do ex que se aparta da média, cuja
conduta Bacamarte supõe conhecida e regulada pela roti-
na, sem um traço sequer de diferenciação. O normal seria
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algo de homogêneo repetido ao infinito. O normal é a for-
ma pura da aparência pública, a forma formada, a forma
alheia a qualquer movimento interior. O “institucional”
sem surpresas, esta é a essência da razão que se impõe co-
mo critério de sanidade na cabeça do alienista. Costa é um
rapaz pródigo que acabou dissipando seus bens em emprés-
timos infelizes? Seja preso por mentecapto. Sua tia, mulher
simples, intercede por ele e atribui ao azar a sua liberalida-
de: o alienista vê demasias na fala da mulher e mete-a igual-
mente entre as grades. O poeta Martim Brito amava as me-
táforas arrojadas dizendo, numa ode à queda do marquês
do Pombal, que o ministro fora o “dragão aspérrimo do
Nada” esmagado pelas “garras vingadoras do Todo”: tanto
bastou para que Simão o alojasse na Casa Verde. Os outros
casos tocam a mesma solfa: a vaidade infantil de um pro-
prietário que contempla extasiado a sua casa; a hesitação de
D. Evarista entre ir à festa com um colar de granada e um
de safira; ou a dubiedade medrosa do boticário; ou a per-
feita inocuidade dos cultores de enigmas, dos fazedores de
charadas e anagramas. “Tudo era loucura.”
Depois, o critério da estatística, tão caro à nova ciên-
cia, lembra ao médico que a norma está sempre com a maio-
ria, e que é esta afinal quem tem razão. Bacamarte não tre-
pida: cientista probo, refaz a teoria, solta os recolhidos e sai
ao encalço daqueles poucos que, por abnegação ou coerên-
cia moral, formavam minoria e agiam ao arrepio do siste-
ma: a mulher do boticário, o padre, o juiz-de-fora. Enfim,
a lógica do método não pára. À coerência mais pura está no
próprio alienista, fiel, do começo ao fim, à miragem da ver-
dade; como tal, exceção perfeita, juízo íntegro, e único ita-
guaiense digno de ser encerrado na Casa Verde.
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ridade, é a voz sempre igual da soberania e dos seus vali-
dos; e se o candidato ao galarim da fama deve reprimir e
suprimir afetos ou idéias espontâneas, é porque a vida so-
cial média tampouco tolera que se mostre a cara por um
minuto sequer. À mascarada é séria.
Em “A Sereníssima República” surpreende-se o mo-
mento em que nasce uma instituição: o conto é, segundo
palavra do próprio autor, uma paródia do pacto eleitoral
brasileiro.
O narrador constrói de forma bizarra o foco da enun-
ciação: quem fala é um cônego especialista em aranhas e
leitor atento de Biichner e de Darwin, a quem considera sá-
bios de primeira ordem, salvo as “teorias gratuitas e errô-
neas do materialismo”. A camada aparente do enunciado se
dá no discurso do cônego Vargas que comunica aos ouvin-
tes de uma palestra o resultado da descoberta notável que
fizera no mundo das aranhas: encontrara uma espécie dota-
da do uso da fala. O recurso de Machado é philosophique, à
maneira dos fabulistas e satíricos da literatura clássica: fa-
lar de animais, ou de povos exóticos, emprestando ao foco
narrativo um ponto de vista distanciado de puro observa-
dor. O texto poderá, assim, produzir um efeito de estranhe-
za ao expor situações correntes no contexto a que perten-
cem, não os animais, mas o escritor e os seus leitores. E essa
é a camada escondida ou entremostrada no conto. De te fa-
bula narratur. Quando o leitor percebe o jogo, a estranheza
cede lugar ao riso do desmascaramento. Era o modo de tra-
balhar de Swift, por exemplo, nas Aventuras de Gulliver.
O cônego doublé de cientista primeiro domina a lín-
gua dos seus aracnídeos, depois se põe a inculcar nas ara-
nhas mais velhas a arte de governar. A ciência positiva do
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século não se basta com o conhecimento, quer disciplinar
de fora a vida dos seres observados, acrescendo a sua dose
de coerção com o poder sacerdotal:
“Duas forças” — pondera o cientista — “serviram
principalmente à empresa de as congregar: — o emprego
da língua delas, desde que pude discerni-la um pouco, e o
sentimento de terror que lhes infundi. A minha estrutura,
as vestes talares, o uso do mesmo idioma, fizeram-lhes crer
que era eu o deus das aranhas, e desde então adoraram-me.
E vede o benefício desta ilusão. Como as acompanhasse com
muita atenção e miudeza, lançando em um livro as obser-
vações que fazia, cuidaram que o livro era o registro dos pe-
cados, e fortaleceram-se ainda mais na prática das virtudes”.
Instala-se no pequeno mundo vigiado das aranhas a
moral do terror. E junto com esta o pacto político, que não é
criado espontaneamente, por necessidade interna: o regime
público vem imposto de fora, do contexto de coação armado
pela ciência manipuladora deste cônego pré-behaviorista.
Como o medo, e só o medo, de desagradar ao poder
externo é a gênese da vida política das aranhas, a prática
eleitoral vai constituir-se em um jogo fraudulento de for-
ma democrática e substância oligárquica. Machado acen-
tua o lado da forma jurídica (o importante é que o regime
mostre uma cara limpa), mas deixa entrever que a face é
disfarce. As aranhas, obrigadas a realizar o sorteio dos can-
didatos mediante a extração de bolas de um saco, encon-
tram mil modos de viciar o processo, ora corrompendo os
oficiais, ora interpretando manhosamente os resultados. Até
a filologia é chamada a dirimir dúvidas em favor dos der-
rotados. O fato é que o regime instaurado se vai reprodu-
zindo e perpetuando não só pela força que lhe dera ocasião
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(o terror sagrado infundido pelo cônego-cientista) como pe-
la confiança que nele têm os cidadãos circunspectos da
República. “E vede o benefício desta ilusão.”
Os passos foram estes. Em um primeiro tempo, tra-
vam-se como causa e efeito o medo e o pacto político. Em
um segundo tempo, já instituído o regime de representa-
ção, concorrem a fraude, que volta em cada eleição, e a cons-
ciência jurídica idealista, que espera sempre no aperfeiçoa-
mento do sistema democrático. É ela que diz às aranhas
tecedeiras:
“— Vós sois a Penélope da nossa república; tendes a
mesma castidade, paciência e talentos. Refazei o saco, ami-
gas minhas, refazei o saco, até que Ulisses, cansado de dar
às pernas, venha tomar entre nós o lugar que lhe cabe. Ulisses
é a Sapiência”.
O progressismo crê na evolução dos costumes eleito-
rais das aranhas e dos homens, que, tendo superado as fases
do terror teocrático e das oligarquias, aportarão um dia à
sapiência. Mas repare-se: o modelo da boa moral política se
perfaz curiosamente na figura do mais astuto dos gregos,
Ulisses. Quando Ulisses vier, a malícia da razão estará para
sempre consagrada? As aranhas terão passado de vez à sua
segunda natureza, ao pacto social, outrora imposto, afinal
interiorizado; e Penélope, guarda fiel da democracia, pode-
rá enfim descansar.
À tensão existe enquanto as duas naturezas não en-
contram o seu ponto ideal de fusão. Este só se dá quando o
indivíduo se transmuda no seu papel social. A norma polí-
tica, hipostasiada na conduta e na consciência de cada um,
éa garantia única de uma trangjúila autoconservação. À nor-
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poderes mágicos: ela cria do nada não só a essência do na-
riz como a sua aparência. Os doentes mutilados continua-
ram assoando os seus narizes metafísicos. Não há lugar pa-
ra uma veleitária “verdade subjetiva”: os súditos, ao menos,
não conhecem outra verdade que não seja a pura consonân-
cia com os soberanos.
“O espelho”, talvez o mais célebre dos contos-teoria
de Machado de Assis, investe contra as certezas do eu ro-
mântico. O que diz a narrativa? Que não há nenhuma uni-
dade prévia da alma. A consciência de cada homem vem de
fora, mas este “fora” é descontínuo e oscilante, porque des-
contínua e oscilante é a presença física dos outros, e descon-
tínuo e oscilante o seu apoio. Jacobina só conquistará a sua
alma, ou seja, a auto-imagem perdida, quando fizer um só
todo com a farda de alferes que o constitui como tipo. À
farda é símbolo e é matéria do status. O eu, investido do pa-
pel, pode sobreviver; despojado, perde o pé, dispersa-se, es-
garça-se, esfuma-se. Não tem forma, logo não tem unida-
de. Ter status é existir no mundo em estado sólido.
Mas o conto diz mais. Diz que não basta vestir a far-
da. É preciso que os outros a vejam e a reconheçam como
farda. Que haja olhos para mirá-la e admirá-la. O olhar dos
outros: primeiro espelho. Quando esse olhar faltou a Jacobina,
quando se viu só na fazenda da tia de onde até os escravos
desertaram, ele procurou o seu próprio olhar. O olhar que
não sente a aura doce do olhar do semelhante vai à procura
do espelho. O espelho dirá que o eu parece ser. Mas Jacobina
está sem farda; falta-lhe a aparência do status; apenas a aparên-
cia, diriam os românticos; sim, mas por isso, falta-lhe a reali-
dade, o ser, ensina Machado. O espelho, suprindo o olhar
do outro, reproduz com fidelidade o sentido desse olhar. Sem
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farda, não és alferes; não sendo alferes, não és. “O alferes
eliminou o homem.” O estado sólido do status liquefez-se,
evaporou-se. O que Jacobina quer ver quando se olha ao es-
pelho? A imagem de si tal qual a vê o olho do outro; do ou-
tro que a reconhece por alferes; do outro que o agracia co-
mo a alguém que subiu na vida. À opinião era o seu único
espelho fidedigno; ausente ela, quebrado este, a imagem
que resta é o lado do sujeito, em enigma. Mas Jacobina ves-
te de novo a farda e olha-se ao espelho: o espelho restitui-
lhe a alferidade e Jacobina volta a existir para si próprio.
Reencontrada a “alma exterior”, ela absorve a inter-
as velas da casa de
Santa Teresa, “cuja luz fundia-se misteriosamente com o
na, assim como, no início da históri
luar que vinha de fora”.
Não poderia ter descido mais fundo a teoria do papel
social como formador da percepção e da consciência. “O es-
pelho” faria as delícias de um contemporâneo de Machado,
o sociólogo francês Emile Durkheim, e de todos os que iden-
tificam o eu com a sua função. Não há para a alma interna
outra saída senão a integração a qualquer custo na forma
dominante. Jacobina, que, no momento de contar a sua “es-
tranha” experiência, é um quarentão “capitalista”, “astuto”
e “cáustico”, fora já “um rapaz pobre”: “tinha vinte e cinco
anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da guar-
da nacional”. O gue separa o último estado do primeiro, o
narrador da história narrada, é, simples e brutalmente, a
passagem de classe, o aprendizado das aparências. A hora
de subir do primeiro degrau para o segundo fora a hora de-
cisiva, a hora em que Jacobina vestiu para sempre a alma
externa, a farda. “Daí em diante, fui outro.”
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Machado conduz a narrativa de tal modo que se tor-
ne um ato de sobrevivência a entrega da vida interior ao es-
tado civil. O processo de composição do “Espelho” está nos
antípodas do romance de Pirandello, O falecido Mattia Pascal,
em que o protagonista busca a salvação tentando driblar
seu estado civil: finge-se morto e apaga os rastros de seu
nome de família, da profissão, do status, enfim, de todas as
relações sociais que o cercearam desde a infância. Mas o sen-
tido de ambos os textos converge para o mesmo ponto: é
impossível viver fora das determinações sociais. O tom di-
verge: Pirandello lamenta pateticamente o beco em que foi
parar o projeto anárquico de Mattia Pascal; Machado ape-
nas confirma, uma vez mais, a necessidade da máscara.
Historicamente, Machado e Pirandello exprimiram o
reconhecimento da soberania exercida pela forma social bur-
guesa. Isto é: a aceitação pós-romântica da impotência do
sujeito quando o desampara o olhar consensual dos outros.
Consolida-se nesse fim de século uma triste concepção es-
pecular da vida pessoal precisamente quando a mesma cul-
tura burguesa, em dilacerante processo de autocisão, quer
penetrar nos labirintos do Inconsciente e do sonho. Mas o
realismo narrativo de Machado está atento à lei da máscara,
à lei da segunda natureza, “tão imperiosa quanto a primei-
ra”. O sonho, quando surge, não faz senão perseguir a situa-
ção da vigília e, em vez de libertação, traz da vida social a
imagem do status almejado: “Nos sonhos, fardava-me, or-
gulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elo-
giavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um ami-
go de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o
de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver”. Outro não
é o sentido, embora muito mais dramático, do delírio de
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