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DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICAUnidade 3, Notas de estudo de Direito Administrativo

administração pública

Tipologia: Notas de estudo

2015
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Compartilhado em 23/07/2015

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Baixe DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICAUnidade 3 e outras Notas de estudo em PDF para Direito Administrativo, somente na Docsity! DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BUROCRÁTICA À GERENCIAL Luiz Carlos Bresser Pereira Revista do Serviço Público, 47(1) janeiro-abril 1996. Trabalho apresentado ao seminário sobre Reforma do Estado na América Latina organizado pelo Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado e patrocinado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (Brasília, maio de 1996). A reforma da administração pública que o governo Fernando Henrique Cardoso está propondo desde 1995 poderá ser conhecida no futuro como a segunda reforma administrativa do Brasil. Ou a terceira, se considerarmos que a reforma de 1967 merece esse nome, apesar de ter sido afinal revertida. A primeira reforma foi a burocrática, de 1936. A reforma de 1967 foi um ensaio de descentralização e de desburocratização. A atual reforma está apoiada na proposta de administração pública gerencial, como uma resposta à grande crise do Estado dos anos 80 e à globalização da economia - dois fenômenos que estão impondo, em todo o mundo, a redefinição das funções do Estado e da sua burocracia. A crise do Estado implicou na necessidade de reformá-lo e reconstruí-lo; a globalização tornou imperativa a tarefa de redefinir suas funções. Antes da integração mundial dos mercados e dos sistemas produtivos, os Estados podiam ter como um de seus objetivos fundamentais proteger as respectivas economias da competição internacional. Depois da globalização, as possibilidades do Estado de continuar a exercer esse papel diminuíram muito. Seu novo papel é o de facilitar para que a economia nacional se torne internacionalmente competitiva. A regulação e a intervenção continuam necessárias, na educação, na saúde, na cultura, no desenvolvimento tecnológico, nos investimentos em infra-estrutura - uma intervenção que não apenas compense os desequilíbrios distributivos provocados pelo mercado globalizado, mas principalmente que capacite os agentes econômicos a competir a nível mundial. 1 A diferença entre uma proposta de reforma neoliberal e uma social democrática está no fato de que o objetivo da primeira e retirar o Estado da economia, enquanto que o da segunda é aumentar a governança do Estado, é dar 1 - Conforme observou Fernando Henrique Cardoso (1996: A10), “a globalização modificou o papel do Estado... a ênfase da intervenção governamental agora dirigida quase exclusivamente para tornar possível às economias nacionais desenvolverem e sustentarem condições estruturais de competitividade em escala global”. 2 ao Estado meios financeiros e administrativos para que ele possa intervir efetivamente sempre que o mercado não tiver condições de coordenar adequadamente a economia. Neste trabalho concentrar-me-ei no aspecto administrativo da reforma do Estado. Embora o Estado seja, antes de mais nada, o reflexo da sociedade, vamos aqui pensá-lo como sujeito, não como objeto - como organismo cuja governança precisa ser ampliada para que possa agir mais efetiva e eficientemente em benefício da sociedade. Os problemas de governabilidade não decorrem de “excesso de democracia”, do peso excessivo das demandas sociais, mas da falta de um pacto político ou de uma coalizão de classes que ocupe o centro do espectro político. 2 Nosso pressuposto é o de que o de que o problema político da governabilidade foi provisoriamente equacionado com o retorno da democracia e a formação do “pacto democrático-reformista de 1994” possibilitada pelo êxito do Plano Real e pela eleição de Fernando Henrique Cardoso. 3 Este pacto não resolveu definitivamente os problemas de governabilidade existentes no país, já que estes são por definição crônicos, mas deu ao governo condições políticas para ocupar o centro político e ideológico e, a partir de um amplo apoio popular, propor e implementar a reforma do Estado. Depois de uma breve seção em que analisarei a grande crise dos anos 80 como uma crise do Estado e as respostas da sociedade brasileira a essa crise, farei um breve diagnóstico da crise da administração pública burocrática brasileira e dos seus mitos. Em seguida definirei os princípios da reforma do aparelho do Estado em direção a uma administração pública gerencial, e delinearei as formas mais adequadas de propriedade para as diversas atividades que o Estado hoje realiza, em função da redefinição de suas funções. Para esta redefinição, de um lado, distinguirei três formas de propriedade - a pública estatal, a pública não-estatal e a privada, e, de outro, dividirei as ações hoje realizadas pelo Estado em quatro setores: núcleo estratégico, atividades exclusivas de Estado, serviços sociais competitivos ou não-exclusivos, e produção de bens e serviços para o mercado. Crise e Reforma No Brasil a percepção da natureza da crise e, em seguida, da necessidade imperiosa de reformar o Estado ocorreu de forma acidentada e contraditória, em meio ao desenrolar da própria crise. Entre 1979 e 1994 o Brasil viveu um período de estagnação da renda per capita e de alta inflação sem precedentes. Em 1994, finalmente, estabilizaram-se os preços através do Plano Real, criando-se as condições para a retomada do crescimento. A causa fundamental dessa crise econômica foi a crise do Estado - uma crise que ainda não está 2 - Para uma crítica do conceito de governabilidade relacionado com o equilíbrio entre as demandas sobre o governo e sua capacidade de atendê-las, que tem origem em Huntington (1968), ver Diniz (1995). 3 - Está claro para nós que, conforme observa Frischtak (1994: 163), “o desafio crucial reside na obtenção daquela forma específica de articulação da máquina do Estado com a sociedade na qual se reconheça que o problema da administração eficiente não pode ser dissociado do problema político”. Não centraremos, entretanto, nossa atenção nessa articulação. 5 o político e o administrador público. Surge assim a administração burocrática moderna, racional-legal. A administração pública burocrática clássica foi adotada porque era uma alternativa muito superior à administração patrimonialista do Estado. Entretanto o pressuposto de eficiência em que se baseava não se revelou real. No momento em que o pequeno Estado liberal do século XIX deu definitivamente lugar ao grande Estado social e econômico do século XX, verificou-se que não garantia nem rapidez, nem boa qualidade nem custo baixo para os serviços prestados ao público. Na verdade, a administração burocrática é lenta, cara, auto-referida, pouco ou nada orientada para o atendimento das demandas dos cidadãos. Este fato não era grave enquanto prevalecia um Estado pequeno, cuja única função era garantir a propriedade e os contratos. No Estado liberal só eram necessários quatro ministérios - o da Justiça, responsável pela polícia, o da Defesa, incluindo o exército e a marinha, o da Fazenda e o das Relações Exteriores. Nesse tipo de Estado, o serviço público mais importante era o da administração da justiça, que o Poder Judiciário realizava. O problema da eficiência não era, na verdade, essencial. No momento, entretanto, que o Estado se transformou no grande Estado social e econômico do século XX, assumindo um número crescente de serviços sociais - a educação, a saúde, a cultura, a previdência e a assistência social, a pesquisa científica - e de papéis econômicos - regulação do sistema econômico interno e das relações econômicas internacionais, estabilidade da moeda e do sistema financeiro, provisão de serviços públicos e de infra- estrutura, - nesse momento, o problema da eficiência tornou-se essencial. Por outro lado a expansão do Estado respondia não só às pressões da sociedade mas também às estratégias de crescimento da própria burocracia. A necessidade de uma administração pública gerencial, portanto, decorre de problemas não só de crescimento e da decorrente diferenciação de estruturas e complexidade crescente da pauta de problemas a serem enfrentados, mas também de legitimação da burocracia perante as demandas da cidadania. Após a II Guerra Mundial há uma reafirmação dos valores burocráticos, mas, ao mesmo tempo, a influência da administração de empresas começa a se fazer sentir na administração pública. As idéias de descentralização e de flexibilização administrativa ganham espaço em todos os governos. Entretanto a reforma da administração pública só ganhará força a partir dos anos 70, quando tem início a crise do Estado, que levará à crise também a sua burocracia. Em conseqüência, nos anos de 1980 inicia-se uma grande revolução na administração pública dos países centrais em direção a uma administração pública gerencial. Os países em que essa revolução foi mais profunda foram o Reino Unido, a Nova Zelândia e a Austrália. 8 Nos Estados Unidos essa revolução irá ocorrer principalmente a nível dos municípios e condados - revolução que o livro de Osborne e Gaebler, Reinventando o Governo (1992) descreverá de forma tão expressiva. É a administração pública gerencial que está surgindo, inspirada nos avanços realizados pela administração de empresas. 9 8 - A melhor análise que conheço da experiência inglesa foi escrita por um professor universitário a pedido dos sindicatos de servidores públicos britânicos (Fairbrother, 1994). 9 - O livro de Osborne e Gaebler foi apenas um dos trabalhos realizados na linha da administração pública gerencial. Entre outros trabalhos lembramos Barzelay (1992), 6 Aos poucos foram-se delineando os contornos da nova administração pública: (1) descentralização do ponto de vista político, transferindo recursos e atribuições para os níveis políticos regionais e locais; (2) descentralização administrativa, 10 através da delegação de autoridade para os administradores públicos transformados em gerentes crescentemente autônomos; (3) organizações com poucos níveis hierárquicos ao invés de piramidal, (4) pressuposto da confiança limitada e não da desconfiança total; (5) controle por resultados, a posteriori, ao invés do controle rígido, passo a passo, dos processos administrativos; e (6) administração voltada para o atendimento do cidadão, ao invés de auto-referida. As Duas Reformas Administrativas No Brasil a idéia de uma administração pública gerencial é antiga. Começou a ser delineada ainda na primeira reforma administrativa, nos anos 30, e estava na origem da segunda reforma, ocorrida em 1967. Os princípios da administração burocrática clássica foram introduzidos no país através da criação, em 1936, do DASP - Departamento Administrativo do Serviço Público. 11 A criação do DASP representou não apenas a primeira reforma administrativa do país, com a implantação da administração pública burocrática, mas também a afirmação dos princípios centralizadores e hierárquicos da burocracia clássica. 12 Entretanto, já em 1938, temos um primeiro sinal de administração pública gerencial, com a criação da primeira autarquia. Surgia então a idéia de que os serviços públicos na “administração indireta” deveriam ser descentralizados e não obedecer a todos os requisitos burocráticos da “administração direta” ou central. A primeira tentativa de reforma gerencial da administração pública brasileira, entretanto, irá acontecer no final dos anos 60, através do Decreto-Lei 200, de 1967, sob o comando de Amaral Peixoto e a inspiração de Hélio Beltrão, que iria ser o pioneiro das novas idéias no Brasil. Beltrão participou da reforma administrativa de 1967 e depois, como Ministro da Desburocratização, entre 1979 e 1983, transformou-se em um arauto das novas idéias. Definiu seu Programa Nacional de Desburocratização, lançado em 1979, como uma proposta política visando, através da administração pública, “retirar o usuário da condição colonial de súdito para investi-lo na de cidadão, destinatário de toda a atividade do Estado” (Beltrão, 1984: 11). Fairbrother (1994), Kettl (1994), Kettl e Dilulio (1994). No Brasil, além dos trabalhos de Hélio Beltrão, cabe citar um artigo pioneiro de Nilson Holanda (1993). 10 - Os franceses chamam a descentralização administrativa de “desconcentração” para distingui-la da política, que chamam de “descentralização”. 11 - Mais precisamente em 1936 foi criado o Conselho Federal do Serviço Público Civil, que, em 1938, foi substituído pelo DASP. 12 - O DASP foi extinto em 1986, dando lugar à SEDAP - Secretaria de Administração Pública da Presidência da República -, que, em janeiro de 1989, é extinta, sendo incorporada na Secretaria do Planejamento da Presidência da República. Em março de 1990 é criada a SAF - Secretaria da Administração Federal da Presidência da República, que, entre abril e dezembro de 1992, foi incorporada ao Ministério do Trabalho. Em janeiro de 1995, com o início do governo Fernando Henrique Cardoso, a SAF transforma- se em MARE - Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado. 7 A reforma iniciada pelo Decreto-Lei 200 foi uma tentativa de superação da rigidez burocrática, podendo ser considerada como um primeiro momento da administração gerencial no Brasil. Toda a ênfase foi dada à descentralização mediante a autonomia da administração indireta, a partir do pressuposto da rigidez da administração direta e da maior eficiência da administração descentralizada. 13 O decreto-lei promoveu a transferência das atividades de produção de bens e serviços para autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista, consagrando e racionalizando uma situação que já se delineava na prática. Instituíram-se como princípios de racionalidade administrativa o planejamento e o orçamento, a descentralização e o controle dos resultados. Nas unidades descentralizadas foram utilizados empregados celetistas, submetidos ao regime privado de contratação de trabalho. O momento era de grande expansão das empresas estatais e das fundações. Através da flexibilização de sua administração buscava-se uma maior eficiência nas atividades econômicas do Estado, e se fortalecia a aliança política entre a alta tecnoburocracia estatal, civil e militar, e a classe empresarial. 14 O Decreto-Lei 200 teve, entretanto, duas conseqüências inesperadas e indesejáveis. De um lado, ao permitir a contratação de empregados sem concurso público, facilitou a sobrevivência de práticas patrimonialistas e fisiológicas. De outro lado, ao não se preocupar com mudanças no âmbito da administração direta ou central, que foi vista pejorativamente como “burocrática” ou rígida, deixou de realizar concursos e de desenvolver carreiras de altos administradores. O núcleo estratégico do Estado foi, na verdade, enfraquecido indevidamente através de uma estratégia oportunista do regime militar, que, ao invés de se preocupar com a formação de administradores públicos de alto nível selecionados através de concursos públicos, preferiu contratar os escalões superiores da administração através das empresas estatais. 15 Desta maneira, a reforma administrativa embutida no Decreto-Lei 200 ficou pela metade e fracassou. A crise política do regime militar, que se inicia já em meados dos anos 70, agrava ainda mais a situação da administração pública, na medida que a burocracia estatal é identificada com o sistema autoritário em pleno processo de degeneração. 13 - Conforme Bertero (1985: 17), “subjacente à decisão de expandir a administração pública através da administração indireta, esta o reconhecimento de que a administração direta não havia sido capaz de responder com agilidade, flexibilidade, presteza e criatividade às demandas e pressões de um Estado que se decidira desenvolvimentista”. 14 - Esta aliança recebeu diversas denominações e conceituações nos anos 70.`Fernando Henrique Cardoso referiu-se a ela através do conceito de “anéis burocráticos”; Guillermo O’Donnell interpretou-a através do “regime burocrático autoritário”; eu me referi sempre ao “modelo tecnoburocrático-capitalista”; Peter Evans consagrou o conceito de “tríplice aliança”. 15 - Não obstante o Decreto-Lei 200 contivesse referências à formação de altos administradores (art.94,V) e à criação de um Centro de Aperfeiçoamento do DASP (art.121). 10 autarquias se transformassem em funcionários estatutários, detentores de estabilidade e aposentadoria integral. 20 O retrocesso burocrático ocorrido em 1988 não pode ser atribuído a um suposto fracasso da descentralização e da flexibilização da administração pública que o Decreto- Lei 200 teria promovido. Embora alguns abusos tenham sido cometidos em seu nome, seja em termos de excessiva autonomia para as empresas estatais, seja em termos do uso patrimonialista das autarquias e fundações (onde não havia a exigência de processo seletivo público para a admissão de pessoal), não é correto afirmar que tais distorções possam ser imputadas como causas desse retrocesso. Na verdade ele foi o resultado, em primeiro lugar, de uma visão equivocada das forças democráticas que derrubaram o regime militar sobre a natureza da administração pública então vigente. Na medida que, no Brasil, a transição democrática ocorreu em meio à crise do Estado, esta última foi equivocadamente identificada pelas forças democráticas como resultado, entre outros, do processo de descentralização que o regime militar procurara implantar. Em segundo lugar, foi a conseqüência da aliança política que essas forças foram levadas a celebrar com o velho patrimonialismo, sempre pronto a se renovar para não mudar. Em terceiro lugar, resultou do ressentimento da velha burocracia contra a forma pela qual a administração central fora tratada no regime militar: estava na hora de restabelecer a força do centro e a pureza do sistema burocrático. Essa visão burocrática concentrou-se na antiga SAF, que se tornou o centro da reação burocrática no país não apenas contra uma administração pública moderna, mas a favor dos interesses corporativistas do funcionalismo. 21 Finalmente, um quarto fator relaciona-se com a campanha pela desestatização que acompanhou toda a transição democrática: este fato levou os constituintes a aumentar os controles burocráticos sobre as empresas estatais, que haviam ganhado grande autonomia graças ao Decreto-Lei 200. Em síntese, o retrocesso burocrático da Constituição de 1988 foi uma reação ao clientelismo que dominou o país naqueles anos, mas também foi uma afirmação de privilégios corporativistas e patrimonialistas incompatíveis com o ethos burocrático. Foi, além disso, uma conseqüência de uma atitude defensiva da alta burocracia, que, sentindo- se acuada, injustamente acusada, defendeu-se de forma irracional. 20 - Na verdade a Constituição exigiu apenas a instituição de regime jurídico único. A lei definiu que este regime único seria estatutário. Em alguns Municípios a lei definiu para regime único o regime celetista. A Constituição, além disso, no art. 19 do ADCT, quando conferiu estabilidade a celetistas com mais de cinco anos não os transformou em ocupantes de cargos públicos. Bem ao contrário, exigiu, para que fossem os mesmos instalados em cargos públicos, que prestassem “concurso de efetivação”. Neste concurso de efetivação, o tempo de serviço seria contado como “título”. O STF tem concedido liminares sustando a eficácia a leis estaduais que repetiram o modelo da lei federal que transformou celetistas em estatutários “de chofre”. Até o momento ninguém, porém se dispôs a argüir a inconstitucionalidade da lei 8.112, um monumento ao corporativismo. 21 - Conforme observa Pimenta (1994: 161) “O papel principal da SAF no período estudado foi o de garantir o processo de fortalecimento e expansão da administração direta e defender os interesses corporativistas do funcionalismo, seja influenciando a elaboração da nova Constituição, seja garantindo a implantação do que foi determinado em 1988”. 11 Estas circunstâncias contribuíram para o desprestígio da administração pública brasileira, não obstante o fato de que os administradores públicos brasileiros são majoritariamente competentes, honestos e dotados de espírito público. Estas qualidades, que eles demonstraram desde os anos 30, quando a administração pública profissional foi implantada no Brasil, foram um fator decisivo para o papel estratégico que o Estado jogou no desenvolvimento econômico brasileiro. A implantação da indústria de base nos anos 40 e 50, o ajuste nos anos 60, o desenvolvimento da infra-estrutura e a instalação da indústria de bens de capital, nos anos 70, de novo o ajuste e a reforma financeira nos anos 80, e a liberalização comercial nos anos 90, não teriam sido possíveis não fosse a competência e o espírito público da burocracia brasileira. 22 Evolução Recente e Perplexidade A crise fiscal e a crise do modo de intervenção do Estado na economia e na sociedade começaram a ser percebidas a partir de 1987. É nesse momento, depois do fracasso do Plano Cruzado, que a sociedade brasileira se dá conta, ainda que de forma imprecisa, que estava vivendo fora do tempo, que a volta ao nacionalismo e ao populismo dos anos 50 era algo espúrio além de inviável. 23 Os constituintes de 1988, entretanto, não perceberam a crise fiscal, muito menos a crise do aparelho do Estado. Não se deram conta, portanto, que era necessário reconstruir o Estado. Que era preciso recuperar a poupança pública. Que era preciso dotar o Estado de novas formas de intervenção mais leves, em que a competição tivesse um papel mais importante. Que era urgente montar uma administração não apenas profissional, mas também eficiente e orientada para o atendimento das demandas dos cidadãos. Será só depois do episódio de hiperinflação, em 1990, no final do governo Sarney, que a sociedade abrirá os olhos para a crise. Em conseqüência as reformas econômicas e o ajuste fiscal, ganham impulso no governo Collor. Será esse governo contraditório, senão esquizofrênico - que afinal se perdeu em meio à corrupção generalizada -, que dará os passos decisivos no sentido de iniciar a reforma da economia e do Estado. É nesse governo que, afinal, ocorre a abertura comercial - a mais bem sucedida e importante reforma que o país conheceu desde o início da crise. É nele que a privatização ganha novo impulso. É no governo Collor que o ajuste fiscal avançará de forma decisiva, não apenas através de medidas permanentes, mas também através de um substancial cancelamento da dívida pública interna. Na área da administração pública, porém, as tentativas de reforma do governo Collor foram equivocadas. Nesta área, da mesma forma que no que diz respeito ao 22 - Sobre a competência e o espírito público da alta burocracia brasileira ver Schneider (1994) e Gouvêa (1994). Escrevi os prefácios dos dois livros em 1994, antes de pensar em ser Ministro da Administração Federal. 23 - Foi nesse momento, entre abril e dezembro de 1987, que assumi o Ministério da Fazenda. Embora tenha estado sempre ligado ao pensamento nacional-desenvolvimentista, não tive dúvida em diagnosticar a crise fiscal do Estado e em propor o ajuste fiscal e a reforma tributária necessários ao enfrentamento do problema. O relato dessa experiência encontra-se em Bresser Pereira (1992). 12 combate à inflação, governo fracassará devido a um diagnóstico equivocado da situação e/ou porque não teve competência técnica para enfrentar os problemas. No caso da administração pública, o fracasso deveu-se, principalmente, à tentativa desastrada de reduzir o aparelho do Estado, demitindo funcionários e eliminando órgãos, sem antes assegurar a legalidade das medidas através da reforma da Constituição. Afinal, além de uma redução drástica da remuneração dos servidores, sua intervenção na administração pública desorganizou ainda mais a já precária estrutura burocrática existente, e desprestigiando os servidores públicos, de repente acusados de todos os males do país e identificados com o corporativismo. Na verdade o corporativismo - ou seja, a defesa de interesses de grupos como se fossem os interesses da nação - não é um fenômeno específico dos funcionários, mas um mal que caracteriza todos os segmentos da sociedade brasileira. 24 No início do governo Itamar a sociedade brasileira começa a se dar conta da crise da administração pública. Há, entretanto, ainda muita perplexidade e confusão. Um documento importante nessa fase é o estudo realizado pelo Centro de Estudos de Cultura Contemporânea - CEDEC - para a Escola Nacional de Administração Pública - ENAP (Andrade e Jacoud, orgs., 1993). Na introdução de Régis de Castro Andrade (1993: 26), o resumo do diagnóstico: “A crise administrativa manifesta-se na baixa capacidade de formulação, informação, planejamento, implementação e controle das políticas públicas. O rol das insuficiências da administração pública do país é dramático. Os servidores estão desmotivados, sem perspectivas profissionais ou existenciais atraentes no serviço; a maior parte deles não se insere num plano de carreira. Os quadros superiores não têm estabilidade funcional. As instituições de formação e treinamento não cumprem seu papel. A remuneração é baixa”. Diagnóstico era em grande parte verdadeiro, mas pecava por uma falha fundamental. O mal maior a ser atacado segundo o documento era “o intenso e generalizado patrimonialismo no sistema político”; o objetivo fundamental a ser atingido, o de estabelecer uma administração pública burocrática, ou seja, “um sistema de administração pública descontaminado de patrimonialismo, em que os servidores se conduzam segundo os critérios de ética pública, de profissionalismo e eficácia” (Andrade, 1993: 27) . Ora, não há qualquer dúvida quanto à importância da profissionalização do serviço público e da obediência aos princípios da moralidade e do interesse público. É indiscutível o valor do planejamento e da racionalidade administrativa. Entretanto, ao reafirmar valores burocráticos clássicos, o documento não se dava conta que assim inviabilizava os objetivos a que se propunha. Não se dava conta da necessidade de uma modernização radical da administração pública - modernização que só uma perspectiva gerencial poderá proporcionar. Conforme observou Hélio Beltrão (1984: 12), “existe entre nós uma curiosa inclinação para raciocinar, legislar e administrar tendo em vista um país imaginário, que não é o nosso; um país dominado pelo exercício fascinante do planejamento abstrato, pela ilusão ótica das decisões centralizadas...” Ora, quando 24 - A incompetência técnica na área da estabilização econômica revelou-se na incapacidade do governo de diagnosticar a alta inflação então existente como uma inflação inercial, que exigia remédio específico, que combinasse heterodoxia e ortodoxia. 15 verificaram-se exageros. Acabou-se com a prática condenável dos concursos internos, mas isto implicou na impossibilidade de se promoverem funcionários internamente. Enquanto no setor privado a promoção interna é uma prática consagrada, no serviço público brasileiro tornou-se inviável. Por outro lado, nos cargos para os quais seria mais apropriado um processo seletivo mais flexível ainda que público e transparente passou-se a exigir todas as formalidades do concurso. Autarquias, fundações e até empresas de economia mista foram constrangidas a realizar concursos, quando poderiam ter sido simplesmente obrigadas a selecionar seus funcionários de forma pública e transparente. A promoção interna foi reservada exclusivamente para a ascensão dentro de uma carreira. Esta reserva partiu do pressuposto de que para a instauração de um regime burocrático clássico é essencial o estabelecimento de um sistema formal de ascensão burocrática, que começa por um concurso público, e depois passa por um longo processo de treinamentos sucessivos, avaliações de desempenho e exames formais. Ocorre, entretanto, que carreiras burocráticas dignas desse nome não foram instaladas no serviço público brasileiro. Apenas entre militares pode-se falar de carreira no Brasil. 27 Uma carreira burocrática propriamente dita dura em média 30 anos, no final da qual o servidor deverá estar ganhando cerca de 3 vezes mais do que começou a ganhar no início da carreira. Para chegar ao topo da carreira ele demorará no mínimo 20 anos. 28 Esse tipo de carreira está obviamente superado em uma sociedade tecnologicamente dinâmica, em plena Terceira Revolução Industrial. Nem a Constituição de 1988, nem os servidores federais e políticos brasileiros, entretanto, foram capazes de reconhecer abertamente este fato. Continuaram a afirmar que o estabelecimento de carreiras, acompanhado de um correspondente sistema de treinamento e de avaliação, resolveria, senão todos, a maioria dos problemas da administração pública brasileira. A carreira tornou-se, na verdade, o grande mito de Brasília. Mito porque se prega a instauração das carreiras, ao mesmo tempo que, de fato, não se acredita nelas, e se as destrói na prática. 29 A destruição das carreiras é realizada através da introdução de gratificações de desempenho que reduzem radicalmente a amplitude das carreiras - ou seja, a distância percentual entre a remuneração inicial e a final. Essa amplitude deveria ser de 200 ou 300 por cento, mas nos últimos anos passou a girar no Brasil em torno de 20 por cento, exceto no caso das carreiras militares. A amplitude da carreira de auditor do tesouro nacional, por 27 - Era possível também falar-se em carreira entre os diplomatas. A introdução de uma gratificação de desempenho em 1995, porém, reduziu drasticamente a amplitude da carreira diplomática, que, assim ficou equiparada às demais carreiras civis. 28 - Na França, por exemplo, a diferença entre o salário inicial de um egresso da ENA e o salário no final da carreira, descontados os adicionais por ocupação de cargo de direção, é de duas vezes e meia. 29 - Segundo Abrucio (1993: 74), por exemplo, “na administração pública federal brasileira a questão dos planos de carreira é fundamental na medida que a maioria dos servidores públicos brasileiros carece de um horizonte profissional definido”. Nesse trabalho o autor enumera de forma realista os obstáculos à existência de carreiras. Não percebe, porém, como aliás praticamente ninguém percebia no Brasil na época, que esses obstáculos derivavam menos do patrimonialismo ou da incompetência dos dirigentes políticos, e mais das mudanças tecnológicas dramáticas ocorridas no mundo, com profundas implicações na reformulação da administração pública. 16 exemplo, reduziu-se a 6 por cento. A de uma carreira recém criada, como a dos gestores, reduziu-se a 26 por cento. Através desse processo de redução da amplitude das carreiras elas foram na prática reduzidas a simples cargos. Por que ocorreu esse fato? Principalmente porque Brasília na verdade não acredita no seu próprio mito. Porque, em um mundo em transformação tecnológica acelerada, em que a competência técnica não tem qualquer relação com a idade dos profissionais, os servidores jovens não estão dispostos a esperar 20 anos para chegar ao topo da carreira. Como, por outro lado, não é possível eliminar as etapas e as correspondentes carências de tempo das carreiras, nem se pode aumentar facilmente o nível de remuneração de cada carreira, o mais prático foi reduzir sua amplitude, aumentando a remuneração dos níveis inferiores. Isto não significa, entretanto, que não existam carreiras na administração pública brasileira. Sem dúvida elas existem, conforme muito bem as analisou Ben Ross Schneider (1994, 1995). São antes carreiras pessoais do que carreiras formais. São carreiras extremamente flexíveis, constituída por funcionários que formam a elite do Estado. Estes funcionários circulam intensamente entre os diversos órgãos da administração, e, ao se aposentarem, tendem a ser absorvidos pelo setor privado. Se Schneider acrescentasse que a ocupação de DAS faz parte integrante desse processo instável e flexível, mas mais baseado no mérito do que ele supõe, teríamos um bom quadro do sistema de carreiras informais existentes na alta burocracia brasileira. Um quadro que poderá ser aperfeiçoado com a adoção de uma concepção moderna de carreira que compreenda: ampla mobilidade do servidor, possibilidade de ascensão rápida aos mais talentosos; estruturas em “Y” que valorizem tanto as funções de chefia quanto de assessoramento; versatilidade de formação e no treinamento permitindo perfis bem diferenciados entre os seus integrantes. A relação entre os DASs e as carreiras nos leva a um outro mito burocrático de Brasília: o mito de que os DASs são um mal. Seriam a forma através da qual o sistema de carreiras seria minado, abrindo espaço para a contratação, sem concurso, de pessoal sem competência. Na verdade, os DASs, ao permitirem a remuneração adequada de servidores públicos - que constituem 75 por cento do total de portadores de DAS, conforme podemos verificar pela Tabela 1, constituem-se em uma espécie de carreira muito mais flexível e orientada para o mérito. Existe em Brasília um verdadeiro mercado de DASs, através do qual os ministros e altos administradores públicos, que dispõem dos DASs, disputam com essa moeda os melhores funcionários brasileiros. Se for concretizado o plano, ainda em elaboração, de reservar de forma crescente os DASs para servidores públicos, o sistema de DAS, que hoje já é um fator importante para o funcionamento da administração pública federal, transformar-se-á em um instrumento estratégico da administração pública gerencial. A Tabela 1 nos oferece, aliás, um bom quadro da alta administração pública federal presente no Poder Executivo. A remuneração média dos administradores varia da média de 2.665 para os portadores de DAS-1 para 6.339 reais de média para os portadores de DAS- 6. A porcentagem média de portadores de DAS que são servidores públicos baixa de 78,5 por cento para o DAS-1 para 48,4 por cento para os portadores de DAS-6. O nível de educação aumenta com o aumento do DAS enquanto que a porcentagem de mulheres diminui à medida que transitamos de DAS-1 para DAS-6. No total são 17.227 os portadores da DAS, correspondendo a cerca de 3 por cento do total de servidores ativos. 17 Tabela 1: Ocupantes de DAS Qtde. Servidores Idade Média Sexo Feminino Nível Superior Servidores Púbicos Remuneração Média DAS-1 7.206 41 45,2% 50,8% 78,5% 2.665 DAS-2 5.661 42 39,0% 61,8% 77,7% 3.124 DAS-3 2.265 44 36,0% 71,0% 71,4% 3.402 DAS-4 1.464 46 28,8% 81,3% 65,4% 4.710 DAS-5 503 48 17,3% 86,1% 60,6% 6.018 DAS-6 128 50 16,4% 85,9% 48,4% 6.339 TOTAL 17.227 42 39,5% 61,0% 75,5% 3.112 Fonte: Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado (1995). Obs.: Inclui remuneração do cargo e da função; estão considerados no cálculo somente os servidores efetivos. Através dos seus mitos Brasília justifica a ineficiência e a baixa qualidade do serviço público federal. Ao mesmo tempo, entretanto, revela a falta de uma política clara para o serviço público. Enquanto se repetem mitos burocráticos, como é o caso do mito positivo da carreira e do mito negativo de que os DASs constituem um mal, o serviço público brasileiro não logra se tornar um sistema plenamente burocrático, já que esse é um sistema superado, que está sendo hoje abandonado em todo o mundo, em favor de uma administração pública gerencial. E por esse mesmo motivo não consegue fazer a sua passagem para uma administração pública moderna, eficiente, controlada por resultados, voltada para o atendimento do cidadão-cliente. Ao invés disso, fica acariciando um ideal superado e irrealista de implantar no final do século XX um tipo de administração pública que se justificava na Europa, na época do Estado liberal, como um antídoto ao patrimonialismo, mas que hoje não mais se justifica. Os Dois Objetivos e os Setores do Estado A partir de 1995, com o governo Fernando Henrique, surge uma nova oportunidade para a reforma do Estado em geral, e, em particular, do aparelho do Estado e do seu pessoal. Esta reforma terá como objetivos: a curto prazo, facilitar o ajuste fiscal, particularmente nos Estados e municípios, onde existe um claro problema de excesso de quadros; a médio prazo, tornar mais eficiente e moderna a administração pública, voltando-a para o atendimento dos cidadãos. O ajuste fiscal será realizado principalmente através da exoneração de funcionários por excesso de quadros, da definição clara de teto remuneratório para os servidores, e através da modificação do sistema de aposentadorias, aumentando-se o tempo de serviço exigido, a idade mínima para aposentadoria, exigindo-se tempo mínimo de exercício no serviço público e tornando o valor da aposentadoria proporcional à contribuição. As três medidas exigirão mudança constitucional. A primeira será aplicada nos estados e municípios, não na União, já que nela não existe excesso de quadros. A segunda e a 20 Figura 1: Setores do Estado, Formas de Propriedade e de Administração FORMA DE PROPRIEDADE FORMA DE ADMINISTRAÇÃO Estatal Pública Não- Estatal Privada Burocrática Gerencial NÚCLEO ESTRATÉGICO Legislativo, Judiciário, Presidência, Cúpula dos Ministérios ATIVIDADES EXCLUSIVAS Polícia, Regulamentação Fiscalização, Fomento, Seguridade Social Básica SERVIÇOS NÃO-EXCLUSIVOS Universidades, Hospitais, Centros de Pesquisa, Museus Publicização PRODUÇÃO PARA O MERCADO Empresas Estatais Privatização Fonte: Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (1995) Plano Diretor da Reforma do Estado. No outro extremo, no setor de bens e serviços para o mercado, a produção deverá ser em princípio realizada pelo setor privado. Daí o programa de privatização em curso. Pressupõe-se que as empresas serão mais eficientes se controladas pelo mercado e administradas privadamente. Daí deriva o princípio da subsidiariedade: só deve ser estatal a atividade que não puder ser controlada pelo mercado. Além disso, a crise fiscal do Estado retirou-lhe capacidade de realizar poupança forçada e investir nas empresas estatais, tornando-se aconselhável privatizá-las. Esta política está de acordo com a concepção de que o Estado moderno, que prevalecerá no século XXI, deverá ser um Estado regulador e transferidor de recursos, e não um Estado executor. As empresas podem, em princípio, serem controladas pelo mercado, onde prevalece o princípio da troca. O princípio da transferência, que rege o Estado, não se aplica a elas; por isso e devido ao princípio da subsidiariedade, as empresas devem ser privadas. Este princípio não é absolutamente claro no caso dos monopólios naturais, em que o mercado não tem condições de funcionar; nesse caso, a privatização deverá ser acompanhada de um processo criterioso de regulação de preços e qualidade dos serviços. Não é também totalmente claro no caso de setores monopolistas, em que se possam realizar grandes lucros - uma forma de poupança forçada - e em seguida reinvesti-los no próprio setor. Nessas circunstâncias poderá ser economicamente interessante manter a 21 empresa na propriedade do Estado. Os grandes investimentos em infra-estrutura no Brasil entre os anos 40 e os anos 70, foram financiados principalmente dessa forma. Finalmente esse princípio pode ser discutido no caso de setores estratégicos, como é o caso do petróleo, em que pode haver interesse em uma regulação estatal mais cerrada, implicando em propriedade estatal. Essa é uma das razões da decisão do governo brasileiro de manter a Petrobrás sob controle estatal. Propriedade Pública Não-Estatal Finalmente devemos analisar o caso das atividades não-exclusivas de Estado. Nossa proposta é de que a forma de propriedade dominante deverá ser a pública não-estatal. No capitalismo contemporâneo as formas de propriedade relevantes não são apenas duas, como geralmente se pensa, e como a divisão clássica do Direito entre Direito Público e Privado sugere - a propriedade privada e a pública -, mas são três: (1) a propriedade privada, voltada para a realização de lucro (empresas) ou de consumo privado (famílias); (2) a propriedade pública estatal; e (3) a propriedade pública não-estatal. A confusão não deriva da divisão bipartite do Direito, mas do fato de que, em seguida, o Direito Público foi confundido ou identificado com o Direito Estatal, enquanto o Direto Privado foi entendido como englobando as instituições não-estatais sem fins lucrativos, que, na verdade, são públicas. 32 Com isto estou afirmando que o público não se confunde com o estatal. O espaço público é mais amplo do que o estatal, já que pode ser estatal ou não-estatal. No plano do dever-ser o estatal é sempre público, mas na prática, não é: o Estado pré-capitalista era, em última análise, privado, já que existia para atender às necessidades do príncipe; no mundo contemporâneo o público foi conceitualmente separado do privado, mas vemos todos os dias as tentativas de apropriação privada do Estado. É pública a propriedade que é de todos e para todos. É estatal a instituição que detém o poder de legislar e tributar, é estatal a propriedade que faz parte integrante do aparelho do Estado, sendo regida pelo Direito Administrativo. É privada a propriedade que se volta para o lucro ou para o consumo dos indivíduos ou dos grupos. De acordo com essa concepção uma fundação “de Direito Privado”, embora regida pelo Direito Civil, é 32 - Conforme observa Bandeira de Mello,(1975: 14) para o jurista ser propriedade privada ou pública não é apenas um título, é a submissão a um específico regime jurídico: um regime de equilíbrio comutativo entre iguais (regime privado) ou a um regime de supremacia unilateral, caracterizado pelo exercício de prerrogativas especiais de autoridade e contenções especiais ao exercício das ditas prerrogativas (regime público). “Saber se uma atividade é pública ou privada é mera questão de indagar do regime jurídico a que se submete. Se o regime que a lei lhe atribui é público, a atividade é pública; se o regime é de direito privado, privada se reputará a atividade, seja, ou não, desenvolvida pelo Estado. Em suma: não é o sujeito da atividade, nem a natureza dela que lhe outorgam caráter público ou privado, mas o regime a que, por lei, for submetida”. Estou reconhecendo este fato ao considerar as propriedade pública não-estatal como regida pelo Direito Privado; ela é pública do ponto de vista dos seus objetivos, mas privada sob o ângulo jurídico. 22 uma instituição pública, na medida que está voltada para o interesse geral. Em princípio todas as organizações sem fins lucrativos são ou devem ser organizações públicas não- estatais. 33 Sem dúvida poderíamos dizer que, afinal, continuamos apenas com as duas formas clássicas de propriedade: a pública e a privada, mas com duas importantes ressalvas: primeiro, a propriedade pública se subdivide em estatal e não-estatal, ao invés de se confundir com a estatal; e segundo, as instituições de Direito Privado voltadas para o interesse público e não para o consumo privado não são privadas mas públicas não- estatais. 34 O reconhecimento de um espaço público não-estatal tornou-se particularmente importante em um momento em que a crise do Estado aprofundou a dicotomia Estado- setor privado, levando muitos a imaginar que a única alternativa à propriedade estatal é a privada. A privatização é uma alternativa adequada quando a instituição pode gerar todas as suas receitas da venda de seus produtos e serviços, e o mercado tem condições de assumir a coordenação de suas atividades. Quando isto não acontece, está aberto o espaço para o público não-estatal. Por outro lado, no momento em que a crise do Estado exige o reexame das relações Estado-sociedade, o espaço público não-estatal pode ter um papel de intermediação ou pode facilitar o aparecimento de formas de controle social direto e de parceria, que abrem novas perspectivas para a democracia. Conforme observa Cunil Grau (1995: 31-32): “A introdução do ‘público’ como uma terceira dimensão, que supera a visão dicotômica que enfrenta de maneira absoluta o ‘estatal’ com o ‘privado’, está indiscutivelmente vinculada à necessidade de redefinir as relações entre Estado e sociedade... O público, ‘no Estado’ não é um dado definitivo, mas um processo de construção, que por sua vez supõe a ativação da esfera pública social em sua tarefa de influir sobre as decisões estatais”. Finalmente, no setor dos serviços não-exclusivos de Estado, a propriedade deverá ser em princípio pública não-estatal. Não deve ser estatal porque não envolve o uso do poder-de-Estado. E não deve ser privada porque pressupõe transferências do Estado. Deve ser pública para justificar os subsídios recebidos do Estado. O fato de ser pública não- estatal, por sua vez, implicará na necessidade da atividade ser controlada de forma mista pelo mercado e pelo Estado. O controle do Estado, entretanto, será necessariamente antecedido e complementado pelo controle social direto, derivado do poder dos conselhos de administração constituídos pela sociedade. E o controle do mercado se materializará na cobrança dos serviços. Desta forma a sociedade estará permanente atestando a validade dos serviços prestados, ao mesmo tempo que se estabelecerá um sistema de parceria ou de co-gestão entre o Estado e a sociedade civil. 33 - “São ou devem ser” porque uma entidade formalmente pública, sem fins lucrativos, pode, na verdade, sê-lo. Nesse caso trata-se de uma falsa entidade pública. São comuns casos desse tipo. 34 - Essas instituições são impropriamente chamadas de “organizações não- governamentais” na medida que os cientistas políticos nos Estados Unidos geralmente confundem governo com Estado. É mais correto falar em organizações não-estatais, ou, mais explicitamente, públicas não-estatais. 25 fisiologismo, continua a existir no país, embora sempre condenado. Para completar a erradicação desse tipo de cultura pré-capitalista não basta condená-la, será preciso também puni-la. Por outro lado, o passo à frente representado pela transição para a cultura gerencial é um processo complexo, mas que já está ocorrendo. Todo o debate que houve em 1995 sobre a reforma constitucional do capítulo da administração pública foi um processo de mudança de cultura. Finalmente, a dimensão-gestão será a mais difícil. Trata-se aqui de colocar em prática as novas idéias gerenciais, e oferecer à sociedade um serviço público efetivamente mais barato, melhor controlado, e com melhor qualidade. Para isto a criação das agências autônomas, ao nível das atividades exclusivas de Estado, e das organizações sociais no setor público não-estatal serão as duas tarefas estratégicas. Inicialmente teremos alguns laboratórios, onde as novas práticas administrativas sejam testadas com o apoio do Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, mas depois é de se esperar que as próprias unidades que devem ser transformadas e os respectivos núcleos estratégicos tomem a iniciativa da reforma. Perspectivas da Reforma Um ano depois de iniciada, posso afirmar hoje que as perspectivas em relação à reforma da administração pública são muito favoráveis. Quando o problema foi colocado pelo novo governo, no início de 1995, a reação inicial da sociedade foi de descrença, senão de irritação. Na verdade, caiu uma tempestade sobre mim. A imprensa adotou uma atitude cética, senão abertamente agressiva. Várias pessoas sugeriram-me que "deveria falar menos e fazer mais", como se fosse possível mudar a Constituição sem antes realizar um amplo debate. Atribuí essa reação à natural resistência ao novo. Estava propondo um tema novo para o país. Um tema que jamais havia sido discutido amplamente. Que não fora objeto de discussão pública na Constituinte. Que não se definira como problema nacional na campanha presidencial de 1994. Que só constava marginalmente dos programas de governo. Em síntese, que não estava na agenda do país. 35 À resistência ao novo, entretanto, deve ter-se somado um segundo fator. Segundo Przeworski (1995), o êxito da reforma do Estado depende da capacidade de cobrança dos cidadãos. Ora, a cultura política no Brasil sempre foi antes autoritária do que democrática. Historicamente o Estado não era visto como um órgão ao lado da sociedade, oriundo de um contrato social, mas como uma entidade acima da sociedade. Desta forma, conforme observa Luciano Martins (1995a: 35), "a responsabilidade política pela administração dos recursos públicos foi raramente exigida como um direito de cidadania. Na verdade, o princípio de que não há tributação sem representação é completamente estranho à cultura 35 - Para ser mais preciso, itens como a revisão da estabilidade do servidor constavam das propostas de emenda constitucional do Governo Collor; foram produto, em grande parte, do trabalho de setores esclarecidos da burocracia preocupados em dotar aquele governo de um programa melhor estruturado na sua segunda fase, após ampla restruturação ministerial. 26 política brasileira". Não constitui surpresa, portanto, que a reação inicial às propostas, quando elas estavam ainda sendo formuladas, foi tão negativa. Entretanto, depois de alguns meses de insistência por parte do governo em discutir questões como a estabilidade dos servidores, seu regime de trabalho, seu sistema de previdenciário, e os tetos de remuneração, começaram a surgir os apoios: dos governadores, dos prefeitos, da imprensa, da opinião pública, e da alta administração pública. No final de 1995 havia uma convicção não apenas de que a reforma constitucional tinha ampla condição de ser aprovada pelo Congresso, como também que era fundamental para o ajuste fiscal dos estados e municípios, além de essencial para se promover a transição de uma administração pública burocrática, lenta e ineficiente, para uma administração pública gerencial, descentralizada, eficiente, voltada para o atendimento dos cidadãos. A resistência à reforma localizava-se agora apenas em dois extremos: de um lado, nos setores médios e baixos do funcionalismo, nos seus representantes corporativos sindicais e partidários, que se julgam de esquerda; de outro lado, no clientelismo patrimonialista ainda vivo, que temia pela sorte dos seus beneficiários, muitos dos quais são cabos eleitorais ou familiares dos políticos de direita. Fundamental, no processo de reforma, é o apoio da alta burocracia - um apoio que está sendo obtido. Na Inglaterra, por exemplo, a reforma só se tornou possível quando a alta administração pública britânica decidiu que estava na hora de reformar, e que para isto uma aliança estratégica com o Partido Conservador, que assumira o governo em 1979, era conveniente. Mais amplamente, é fundamental o apoio das elites modernizantes do país, que necessariamente inclui a alta administração pública. Conforme observa Piquet Carneiro (1993: 150): nas duas reformas administrativas federais (1936 e 1967), “esteve presente a ação decisiva de uma elite de administradores, economistas e políticos - autoritários ou não - afinados com o tema da modernização do Estado, e entre eles prevaleceu o diagnóstico comum de que as estruturas existentes eram insuficientes para institucionalizar o processo de reforma”. Depois de um período natural de desconfiança para as novas idéias, este apoio vem ocorrendo sob as mais diversas formas. Ele parte da convicção generalizada de que o modelo implantado em 1988 foi irrealista, tendo agravado ao invés de resolver o problema. O grande inimigo não é apenas o patrimonialismo, mas também o burocratismo. O objetivo de instalar uma administração pública burocrática no país continua vivo, já que jamais se logrou completar essa tarefa; mas tornou-se claro em 1995 que, para isto, é necessário dar um passo além e caminhar na direção da administração pública gerencial, que engloba e flexibiliza os princípios burocráticos clássicos. Referências Abrucio, Fernando L. (1993) “Profissionalização”. In Andrade e Jacoud, orgs. (1993). Andrade, R. e L. Jacoud, orgs. (1993) Estrutura e Organização do Poder Executivo - Volume 2.. Brasília: Escola Nacional de Administração Pública - ENAP. Andrade, Régis (1993) “Introdução”. In Andrade e Jacoud, orgs. 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