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Guias e Dicas
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Fundamentos-de-Filosofia Manuel Garcia Morente, Notas de estudo de Filosofia

Manoel Garcia Morente

Tipologia: Notas de estudo

2016
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Compartilhado em 10/03/2016

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Baixe Fundamentos-de-Filosofia Manuel Garcia Morente e outras Notas de estudo em PDF para Filosofia, somente na Docsity! FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES Manuel Garcia Morente Tradução de Guillermo da Cruz Coronado Fonte: Ed. Mestre Jou. SUMÁRIO 1. O CONJUNTO DA FILOSOFIA 2. O MÉTODO DA FILOSOFIA 3. A INTUIÇÃO COMO MÉTODO DA FILOSOFIA 4. OS PROBLEMAS DA ONTOLOGIA 5. A METAFÍSICA DOS PRÉ-SOCRÁTICOS 51 6. O REALISMO DAS IDÉIAS DE PLATÃO 7. O REALISMO ARISTOTÉLICO 8. A METAFÍSICA REALISTA 9. O CLASSICISMO DE SÃO TOMÁS DE AQUINO 10.A ORIGEM DO IDEALISMO 11.FENOMENOLOGIA DO CONHECIMENTO 12.ANÁLISE ONTOLÓGICA DA FÉ FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 2 13.O SISTEMA DE DESCARTES 14.O EMPIRISMO INGLÊS 15.O RACIONALISMO 16.A METAFÍSICA DO RACIONALISMO 17.O PROBLEMA DO IDEALISMO TRANSCENDENTAL 18.KANT, CRÍTICA DA RAZÃO PURA 19.O IDEALISMO DEPOIS DE KANT 20.ENTRADA NA ONTOLOGIA 21.DO REAL E DO IDEAL 22.ONTOLOGIA DOS VALORES 23.ONTOLOGIAS DA VIDA 1. O CONJUNTO DA FILOSOFIA Lição I 1. A FILOSOFIA E SUA VIVÊNCIA. — 2. DEFINIÇÕES FILOSÓFICAS E VIVÊNCIAS FILOSÓFICAS. — 3. SENTIDO DA PALAVRA «FILOSOFIA». — 4. A FILOSOFIA ANTIGA. — 5. A FILOSOFIA NA IDADE MÉDIA. — 6. A FILOSOFIA NA IDADE MODERNA. — 7. AS DISCIPLINAS FILOSÓFICAS. — 8. AS CIÊNCIAS E A FILOSOFIA. — 9. AS PARTES DA FILOSOFIA. 1. A filosofia e sua vivência. Vamos iniciar o curso de Fundamentos da Filosofia propondo e tentando resolver algumas das questões principais desta disciplina. MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 5 1. Definições filosóficas e vivências filosóficas. Assim, por exemplo, é possível reduzir os sistemas filosóficos de alguns grandes filósofos a uma ou duas fórmulas muito densas, muito bem elaboradas. Mas, que dizem essas fórmulas para quem não caminhou ao longo das páginas dos livros desses filósofos? Assim dizemos, por exemplo, que o sistema de Hegel pode ser resumido na fórmula de que "todo o racional é real e todo o real é racional", e está certo que o sistema de Hegel pode resumir-se nessa fórmula. Está certo também que essa fórmula apresenta um sentido imediato, inteligível, que é a identificação do racional com o real, tanto colocando como sujeito o racional e como objeto o real, como invertendo os termos da proposição e colocando o real por sujeito e o racional por predicado. Mas, apesar desse sentido aparente e imediato que tem esta fórmula, e apesar de ser realmente uma fórmula que expressa em conjunto bastante bem o conteúdo do sistema hegeliano, que nos diz? Não nos diz nada. Não nos diz nem mais nem menos que o nome de uma cidade que não vimos, o nome de uma rua pela qual não passamos nunca. Se eu digo que a Avenida dos Campos Elíseos está entre a praça da Concórdia e a praça da Estrela, faço uma frase com sentido; mas dentro desse sentido pode-se colocar uma realidade autenticamente vivida. Pelo contrário, se nos pomos a ler, a meditar, os difíceis livros de Hegel; se mergulhamos e bracejamos no mar sem fundo da Lógica, da Fenomenologia do Espírito ou da Filosofia da História Universal, no cabo de algum tempo de conviver, pela leitura, com estes livros de Hegel, viveremos essa filosofia; estes secretos caminhos nos serão conhecidos, familiares; as diferentes deduções, os raciocínios por onde Hegel vai passando duma afirmação a outra, duma tese a outra, os teremos percorrido guiados pelo grande filósofo. E então, depois de vivê-los durante algum tempo, ao ouvirmos enunciar a fórmula de "todo o racional é real e todo o real é racional", encheremos esta fórmula de um conteúdo vital, de algo que vivemos realmente, e adquirirá esta fórmula uma quantidade de sentidos e de ressonâncias infinitas que antes não tinha. MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 6 Pois bem: se eu agora desse alguma definição da filosofia, ou se me pusesse a discutir várias definições da filosofia, seria exatamente o mesmo que oferecer a fórmula do sistema hegeliano. Não poria o leitor dentro dessa definição nenhuma vivência pessoal. Por isso me abstenho de dar uma definição da filosofia. Somente, repito, quando tivermos percorrido algum caminho, por pequeno que seja, dentro da própria filosofia, então poderemos, de vez em quando, fazer alto, voltar atrás, recapitular as vivências tidas e tentar alguma fórmula geral que recolha, palpitante de vida, essas representações experimentadas realmente por nós mesmos. Assim, pois, estas lições de FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA vão ser como umas viagens de exploração dentro do continente filosófico. Cada uma dessas viagens seguirá uma senda e irá explorar uma província. As demais serão objeto de outras viagens, de outras explorações, e pouco a pouco iremos sentindo como o círculo de problemas, o círculo de reflexões e meditações, umas de grande vôo, outras minuciosas e, por assim dizer, como que microscópicas, constituem o corpo palpitante disso que chamamos a filosofia. É a primeira viagem que vamos fazer, por assim dizer, em aeroplano: uma exploração panorâmica. Vamos perguntar- nos, desde já, que designa a palavra "filosofia". 3. Sentido da palavra "filosofia". A palavra "filosofia" tem que designar algo. Não vamos ver o que é esse algo que a palavra designa, mas simplesmente assinalá-lo, dizer: está aí. Evidentemente, todos sabemos o que a palavra "filosofia", na sua estrutura verbal, significa. É formada pelas palavras gregas philos e sophia, que significam "amor à sabedoria". Filósofo é o amante da sabedoria. Porém este significado dura na história pouco tempo. Em Heródoto, em Tucídides, talvez nos pré-socráticos, uma ou outra vez, durante pouco tempo, tem este significado primitivo de amor à sabedoria. Imediatamente passa a ter outro significado: significa .a própria sabedoria. De modo que, já nos primeiros tempos da autêntica cultura grega, filosofia significa, não o simples MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 7 afã ou o simples amor à sabedoria, mas a própria sabedoria. E aqui nos encontramos já com o primeiro problema: se a filosofia é o saber. Que classe de saber é o saber filosófico? Porque há muitas classes de saber: há o saber que todos temos sem ter aprendido nem refletido sobre nada; e há outro saber, que é o que adquirimos quando o procuramos. Há um saber, pois, que temos sem tê-lo procurado, que encontramos sem tê-lo procurado, como Pascal encontrava a Deus sem procurá-lo; mas há outro saber que não temos senão quando o procuramos, e que, se não o procuramos, não o temos. 4. A filosofia antiga. Esta duplicidade na palavra "saber" corresponde à distinção entre a simples opinião e o conhecimento racionalmente bem fundado, com esta distinção entre a opinião e o conhecimento fundamentado inicia Platão a sua filosofia. Distingue o que ele chama doxa, opinião (a palavra doxa encontramo-la na bem conhecida paradoxa, paradoxo, que é a opinião que se afasta da opinião corrente), e frente à opinião, que é o saber que temos sem tê-lo procurado, coloca Platão a episteme, a ciência, que é o saber que temos porque o procuramos. E então, a filosofia já não significa "amor à sabedoria", nem tampouco significa o saber em geral, qualquer saber; senão que significa esse saber especial que temos, que adquirimos depois de tê-lo procurado e de tê-lo procurado metòdicamente, por meio de um método, ou seja, seguindo determinados caminhos, aplicando determinadas funções mentais à pesquisa. Para Platão o método da filosofia, no sentido do saber reflexivo que encontramos depois de tê-lo procurado propositalmente, é a dialética. Quer dizer, que quando não sabemos nada, ou o que sabemos, o sabemos sem tê-lo procurado, como a opinião, é um saber que não vale nada; quando nada sabemos mas queremos saber; quando queremos aproximar-nos ou chegar a essa episteme, a este saber racional e reflexivo, temos que aplicar um método para encontrá-lo, e esse método Platão o chama dialética. A dialética consiste em supor que o que queremos averiguar é tal coisa ou tal outra; isto é, antecipar o saber que MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 10 matemáticos da filosofia natural". Quer dizer, que na época de Newton a palavra "filosofia" significava ainda o mesmo que na Idade Média ou na época de Aristóteles: a ciência total das coisas. Mas ainda hoje em dia há um país, que é a Alemanha, onde as Faculdades universitárias são as seguintes: a Faculdade de Direito, a Faculdade de Medicina, a Faculdade de Teologia e a Faculdade de Filosofia. Que se estuda, então, só com o nome de Faculdade de Filosofia? Tudo o que não é nem direito, nem medicina, nem teologia, ou seja, todo o saber humano em geral. Numa mesma Faculdade se estuda, pois, na Alemanha, a química, a física, as matemáticas, a ética, a psicologia, a metafísica, a ontologia. De sorte que aqui fica ainda um resíduo do velho sentido da palavra "filosofia" na distribuição das Faculdades alemãs. 6. A filosofia na Idade Moderna. Mas na realidade, a partir do século XVII, o campo imenso da filosofia começa a partir-se. Começam a sair do seio da filosofia as ciências particulares, não somente porque essas ciências vão se constituindo com seu objeto próprio, seus métodos próprios e seus progressos próprios, como também porque pouco a pouco os cultivadores vão igualmente se especializando. Ainda Descartes é ao mesmo tempo filósofo, matemático e físico. Ainda Leibniz é ao mesmo tempo matemático, filósofo e físico. Ainda são espíritos enciclopédicos. Ainda pode-se dizer de Descartes e de Leibniz, como se diz de Aristóteles, "o filósofo", no sentido de que abrange a ciência toda de tudo quanto pode ser conhecido. Talvez ainda de Kant possa se dizer algo parecido, embora Kant já não soubesse toda a matemática que havia em seu tempo; Kant já não sabia toda a física que havia em seu tempo; não sabia toda a biologia que havia em seu tempo. Kant já não descobre nada em matemática, nem em física, nem em biologia, enquanto que Descartes e Leibniz ainda descobrem teoremas novos em física e em matemática. Mas a partir do século XVIII não resta nenhum espírito humano capaz de conter numa só unidade a enciclopédia do saber humano; e então a palavra "filosofia" não designa MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 11 a enciclopédia do saber; desse total foram desprendendo-se as matemáticas por um lado, a física por outro, a química, a astronomia etc. E então que é a filosofia? Pois então a filosofia vem circunscrevendo-se ao que resta depois de se ter tirado tudo isto. Se a todo o saber humano lhe tiram as matemáticas, a astronomia, a física, a química etc. o que resta, isso é a filosofia. 7. As disciplinas filosóficas. De modo que há um processo de desprendimento. As ciências particulares vão se constituindo com autonomia própria e diminuindo a extensão designada pela palavra "filosofia". Vão outras ciências saindo, e então, que resta? Atualmente, de modo provisório e muito flutuante, poderemos enumerar do seguinte modo. as disciplinas compreendidas dentro da palavra "filosofia". Diremos que a filosofia compreende a ontologia, ou seja a reflexão sobre os objetos em geral; e como uma das partes da ontologia, a metafísica. Compreende também a lógica, a teoria do conhecimento, a ética, a estética, a filosofia da religião, e compreende ou não compreende — não sabemos — a psicologia e sociologia; porque justamente a psicologia e a sociologia estão neste momento na alternativa de se separarem ou não da filosofia. Ainda há psicólogos que querem conservar a psicologia dentro da filosofia; mas já há muitos outros, e não dos piores, que querem constituí-la em ciência à parte, independente. Pois o mesmo acontece com a sociologia. Augusto Comte, que foi quem deu nome a esta ciência (e ao fazê-lo, como diz Fausto, deu-lhe vida), ainda considera a sociologia como o conteúdo mais importante e seleto da filosofia positiva. Mas outros sociólogos a constituem já em ciência à parte. Há discussão. Não vamos nós resolver por enquanto esta discussão o assim diremos que em geral todas as disciplinas e estudos que enumerei: a ontologia, a metafísica, a lógica, a teoria do conhecimento, a ética, a estética, a filosofia da religião, a psicologia e a sociologia, formam parte e constituem as diversas províncias do território filosófico. Podemos perguntar-nos o que há de comum nessas disciplinas que acabo de enumerar; que é o comum nelas MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 12 que as faz incluir dentro do âmbito designado pela palavra "filosofia"; que têm de comum para ser todas parte da filosofia. O primeiro e muito importante que têm de comum é que todas são o resíduo desse processo histórico de desintegração. A História pulverizou o velho sentido da palavra "filosofia". A História eliminou do continente filosófico as ciências particulares. O que restou é a filosofia. Esse fato histórico, apesar de ser somente um fato, é muito importante. É já uma afinidade extraordinária a que mantém entre si essas disciplinas, só pelo fato de serem os resíduos desse processo de desintegração do velho sentido da palavra "filosofia". Mas aprofundemos-nos mais no problema. Por que ficaram dentro da filosofia essas disciplinas? Vou responder a esta pergunta de uma maneira muito filosófica, que consiste em inverter a pergunta. Como disse muitas vezes Bergson, uma das técnicas para definir o caráter de uma pessoa consiste não somente em enumerar o que prefere, mas também, e sobretudo, em enumerar o que não prefere; do mesmo modo, em vez de perguntarmos por que sobreviveram filosoficamente estas disciplinas, vamos perguntar-nos por que foram embora as matemáticas, a física, a química e as demais. E se nos perguntarmos por que se desprenderam, encontramos o seguinte: que uma ciência se desprendeu do velho tronco da filosofia quando conseguiu circunscrever um pedaço no imenso âmbito da realidade, defini-lo perfeitamente e dedicar exclusivamente sua atenção a essa parte, a esse aspecto da realidade. 8. As ciências e a filosofia. Assim, por exemplo, pertencem à realidade o número e a figura. As coisas são duas, três, quatro, cinco, seis, mil ou duas mil; coisas são triângulos, quadrados, esferas. Mas desde o momento em que se separa o "ser número", ou o "ser figura", dos objetos que o são, e se convertem a numerosidade e a figura (independentemente do objeto em questão) em termos do pensamento; quando se circunscreve este pedaço de realidade e se consagra atenção especial a ela, ficam constituídas as matemáticas como uma ciência independente e se separam da filosofia. MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 15 Por isso é que estas ciências estão já saindo da filosofia. Por que não saíram ainda da filosofia? Porque os objetos a que se referem são objetos que não são fáceis de recortar dentro do âmbito da realidade. Não são fáceis de recortar porque estão intimamente enlaçados com o que os objetos são em geral e totalitàriamente; e estando enlaçados com esses objetos, as soluções que se apresentam aos problemas propriamente filosóficos da ontologia e da gnosiologia repercutem nessa lucubrações que chamamos ética, estética, filosofia da religião, psicologia e sociologia. E como repercutem nelas, a estrutura dessas disciplinas depende intimamente da posição que adotemos com respeito aos grandes problemas fundamentais da totalidade do ser. Por isso estão ainda incluídas na filosofia; mas já estão na periferia. Já se discute, repito, se a psicologia é ou não uma disciplina filosófica. Já se discute se o é a sociologia; em pouco se discutirá se a ética o é, e amanhã... ou melhor, já hoje, há estetas que discutem se a estética é filosofia, e pretendem convertê-la numa teoria da arte independente da filosofia. Como se vê, com essa primeira exploração pelo continente filosófico, conseguimos uma visão histórica geral. "Vimos como a filosofia começa designando a totalidade do saber humano e como dela se separam e desprendem ciências particulares que saem do tronco comum porque aspiram à particularidade, ã especialidade, a recortar um pedaço de ser dentro do âmbito da realidade. Então restam no tronco da filosofia essa disciplina do ser em geral que chamamos ontologia e a do conhecimento em geral que chamamos gnosiologia. Nosso curso, assim, vai ter um caminho muito natural. Nossas viagens vão constar duma excursão pela ontologia, para ver o que é isso, em que consiste isso, como pode falar-se do ser em geral; uma excursão pela gnosiologia, para ver que é isso de teoria do conhecimento em geral; e depois algumas pequenas excursões por essas ciências que se vão distanciando de nós: a ética, a estética, a psicologia e a sociologia. Antes, porém, de entrar no primeiro estudo que vamos fazer da ontologia ou metafísica, trataremos, logo a seguir MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 16 de como nos orientar para filosofar, ou seja, do método da filosofia. 2. O MÉTODO DA FILOSOFIA Lição II 10. PRÉVIA DISPOSIÇÃO DE ÂNIMO: ADMIRAÇÃO, RIGOR. — 11. SÓCRATES: & MAIÈUTICA. — 12. PLATÃO: A DIALÉTICA; O MITO DA REMINISCÊNCIA. — 13. ARISTÓTELES: A LÓGICA. — 14. IDADE MÉDIA: A DISPUTA. — 15. O MÉTODO DE DESCARTES. - 18. TRANSCENDÊNCIA E IMANÊNCIA. - 17. A INTUIÇÃO INTELECTUAL. 10. Prévia disposição de ânimo: admiração, rigor. Acontece com o método algo muito semelhante ao que nos aconteceu com o conceito ou definição da filosofia. O método da filosofia, com efeito, pode definir-se, descrever-se; mas a definição que dele se der, a descrição que dele se fizer, será sempre externa, será sempre formularia; não terá conteúdo vivo, não estará cheia de vivência, se nós mesmos não praticamos esse método. Pelo contrário, essa mesma definição, essa mesma descrição dos métodos filosóficos adquire uma feição, um MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 17 aspecto real, profundo, vi-vente, quando de verdade já nos familiarizamos com ele. Assim, ter de descrever o método filosófico antes de ter feito filosofia é uma empresa possível, tanto que vamos tentá-la; mas ó muito menos útil que as reflexões sobre o método que pudermos fazer mais tarde, quando já nossa experiência vital estiver cumulada de intuições filosóficas, quando nós mesmos tivermos exercitado lá repetidamente nosso espírito no preparo desse mel que a abelha humana destila e que chamamos filosofia. De todas as maneiras, do mesmo modo que na lição anterior tentei uma descrição geral do território filosófico, vou tentar nesta também uma descrição dos principais métodos que se usam na filosofia, avisando, desde já, que somente mais adiante é que essas determinações conceituais, que hoje enumeramos, encontrarão a plenitude do seu verdadeiro sentido. Para abordar a filosofia, para entrar no território da filosofia, é absolutamente indispensável uma primeira disposição de ânimo. É absolutamente indispensável que o aspirante a filósofo sinta a necessidade de levar a seu estudo uma disposição infantil. Quem quiser ser filósofo necessitará puerilizar-se, infantilizar-se, transformar-se em menino. Em que sentido faço esta paradoxal afirmação de que convém que o filósofo se puerilize? Faço-a no sentido de que a disposição de ânimo para filosofar deve consistir essencialmente em perceber e sentir por toda a parte, tanto no mundo da realidade sensível, como no mundo dos objetos ideais, problemas, mistérios; admirar-se de tudo. sentir o profundamente arcano e misterioso de tudo isso; colocar-se ante o universo e o próprio ser humano com um sentimento de estupefação, de admiração, de curiosidade insaciável, como a criança que não entende nada e para quem tudo é problema. Esta é a disposição primária que deve levar ao estudo da filosofia o principiante. Diz Platão que a primeira virtude do filósofo é admirar-se; Thaumátzein — diz em grego — donde vem a palavra "taumaturgo". Admirar-se, sentir essa divina inquietação que faz com que, lá onde os1'outros passam MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 20 Feitas estas advertências, tendo explicitamente descrito as duas disposições de ânimo que me parecem necessárias para abordar os problemas filosóficos, daremos um passo mais além e entraremos na descrição propriamente dita dos que poderão ser chamados métodos da filosofia. 11. Sócrates: a maiêutica. Para fazer esta descrição dos métodos filosóficos vamos recorrer a história do pensamento filosófico, à história da filosofia. Se seguirmos atenta, embora rapidamente, a série dos métodos aplicados pelos grandes filósofos da Antigüidade, da Idade, Média e da Idade Moderna, poderemos ir respigando em todos eles alguns elementos fundamentais do método filosófico, que resumiremos ao final desta lição. Propriamente falando, foi a partir de Sócrates, ou seja, no século IV antes de Jesus Cristo, em Atenas, que começou a haver uma filosofia consciente de si mesma e sabedora dos métodos que empregava. Sócrates é, na realidade, o primeiro filósofo que nos fala do seu método. Sócrates nos conta como filosofa. Qual é o método que Sócrates emprega? Ele próprio o denominou a maiêutica. Isto não significa mais do que a interrogação. Sócrates pergunta. O método da filosofia consiste em perguntar. Quando se trata, para Sócrates, de definir, de chegar à essência de algum conceito, sai de sua casa, vai à praça pública de Atenas, e a toda pessoa que passa por diante dele chama e pergunta: "Que é isto?" Assim, por exemplo, um dia Sócrates sai de sua casa preocupado em averiguar o que é a coragem, que é ser corajoso. Chega à praça pública e se encontra com um general ateniense. Então diz para si: "Aqui está; este é quem sabe o que é ser corajoso, visto que é o general, o chefe." E se aproxima e lhe diz: "Que é a coragem? Você, que é um general do exército ateniense, tem que saber o que é a coragem," Então o outro lhe diz: "Pois é claro! Como não vou saber eu o que é a coragem? A coragem consiste em atacar o inimigo e nunca fugir." Sócrates coca a cabeça e lhe diz: "Essa sua resposta não é totalmente satisfatória"; e lhe faz ver que muitas vezes nas batalhas os generais ordenam ao exército retroceder para MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 21 atrair o inimigo a uma determinada posição e nessa posição lhe cair em cima e destruí-lo. Então o general retifica e diz: "Bem, você tom razão." E dá outra definição; e sobre esta segunda definição Sócrates exerce outra vez sua crítica interrogativa. Continua não ficando satisfeito e pedindo outra nova definição; e assim, à força de interrogações, faz com que a definição primeiramente dada vá passando por sucessivos aperfeiçoamentos, por extensões, por reduções, até ficar o mais exata possível. Nunca até chegar a ser perfeita. Nenhum dos diálogos de Sócrates que nos conservou Platão — onde reproduz com bastante exatidão os espetáculos ou cenas que ele presenciara — consegue chegar a uma solução satisfatória; todos se interrompem, como dando a entender que o trabalho de continuar perguntando e continuar encontrando dificuldades, interrogações e mistérios na última definição dada, não pode nunca acabar. 12. Platão; a dialética, o mito da reminiscência. Este método socrático da interrogação, da pergunta e da resposta, é o que Platão, discípulo de Sócrates, aperfeiçoa. Platão aperfeiçoa a maiêutica de Sócrates e a transforma no que ele chama dialética. A dialética platônica conserva os elementos fundamentais da maiêutica socrática. A dialética platônica conserva a idéia de que o método filosófico é uma contraposição., não de opiniões distintas, mas de uma opinião e a crítica da mesma. Conserva, pois, a idéia de que é preciso partir de uma hipótese primeira e depois ir melhorando-a à força das críticas que se lhe fizerem, e essas críticas onde melhor se fazem é no diálogo, no intercâmbio de afirmações e negações; e por isso a denomina de dialética. Vamos ver quais são os princípios, as essências filosóficas, que estão na base deste procedimento dialético. A dialética se decompõe, para Platão, em dois momentos. Um primeiro momento consiste na intuição da idéia; um segundo momento consiste no esforço crítico para esclarecer esta intuição da idéia. De modo que, primeiramente, quando nos situamos ante a necessidade de resolver um problema, quando sentimos essa admiração que Platão elogia tanto, essa admiração diante do mistério, MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 22 quando estamos diante do mistério, diante da interrogação, diante do problema, a primeira coisa que o espírito faz é jogar-se como uma flecha, como uma intuição que dispara em direção à idéia da coisa, em direção à idéia do mistério que se tem diante. Mas essa primeira intuição da idéia é uma intuição grosseira, insuficiente. Mais que a própria intuição, é a designação do caminho por onde iremos em direção à conquista dessa idéia. E então constitui-se a dialética propriamente dita em seu segundo momento, que consiste em que os esforços sucessivos do espírito para intuir, para ver, para contemplar, ou, como se diz em grego, theoréin (daí provém a palavra "teoria") as idéias, vão-se depurando cada vez mais, aproximando-se cada vez mais da meta, até chegar a uma aproximação, a maior possível, nunca à coincidência absoluta com a idéia, porque esta é algo que se encontra num mundo do ser tão diferente do mundo de nossa realidade vivente que os esforços do homem para atingir esta realidade vivente, para chegar ao mundo dessas essências eternas, imóveis e puramente inteligíveis que são as idéias, nunca podem ser perfeitamente bem sucedidos. Tudo isto expõe Platão de uma maneira viva, interessante, por meio dessas ficções do que tanto gosta. Ele gosta muito de expor seus pensamentos filosóficos sob a forma do que ele mesmo denomina "contos", como os contos que os velhos contam às crianças; denomina-os com a palavra grega mito. Pois Platão gosta muito dos mitos, e para expressar seu pensamento filosófico apela a eles muitas vezes. Assim, para expressar seu pensamento da intuição, da idéia e da dialética, que nos conduz a depurar essa intuição, emprega o mito da "reminiscência". Narra o conto seguinte: As almas humanas, antes de viver neste mundo e de alojar-se cada uma delas num corpo de homem, viveram em outro mundo, viveram no mundo onde não há homens, nem coisas sólidas, nem cores, nem odores, nem nada que passe e mude, nem nada que flua no tempo e no espaço. Viveram num mundo de puras essências intelectuais, no mundo das idéias. Esse mundo está num lugar que Platão metaforicamente denomina lugar celeste, topos uranos. Lá vivem as almas em perpétua contemplação das belezas MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 25 pensamento racional são, para Aristóteles, o método da filosofia. A filosofia há de consistir, por conseguinte, na demonstração da prova. A prova das afirmações que se antecipam é que tornam verdadeiras estas afirmações. Uma afirmação que não está provada não 6 verdadeira, ou pelo menos, como ainda não sei se é ou não verdadeira, não pode ter atestado de legitimidade no campo do saber, no campo da ciência. 14. Idade Média: a disputa. Esta concepção da lógica como método da filosofia é herdada de Aristóteles pelos filósofos da Idade Média, os quais a aplicam com um rigor extraordinário. É curioso observar como os escolásticos, e dentre eles, principalmente S. Tomás de Aquino, completam o método da prova, o método do silogismo, com uma espécie de revivescência da dialética platônica. O método que seguem os filósofos da Idade Média não é somente, como em Aristóteles, a dedução, a Intuição racional, mas também a contraposição de opiniões divergentes. S. Tomás, quando examina uma questão, não semente deduz de princípios gerais os princípios particulares aplicáveis a ela, mas também coloca em colunas separadas as opiniões dos vários filósofos, que são umas pró e outras contra; coloca- se frente a frente, Crítica umas com outras, extrai delas o que pode haver de verdadeiro o que pode haver de falso. São como dois exércitos em batalha; são realmente uma revivescência da dialética platônica. E então o resultado desta comparação de opiniões diversas, complementado com o exercício da dedução e da prova, dá ensejo às conclusões firmes do pensamento filosófico. Se resumimos o essencial no método filosófico, que, partindo de Sócrates, passando por Platão e Aristóteles, chega até a plena Idade Média na escolástica, encontramos que o mais importante deste método é sua segunda parte. Não a intuição primária de que se parte, pela qual se começa, mas a discussão dialética com que a intuição deve ler confirmada ou negada. O importante, pois, nesse método dos filósofos anteriores à Renascença, consiste principalmente no exercício passional, discursivo; na MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 26 dialética, no discurso, na contraposição de opiniões; na discussão dos filósofos entre si ou do filósofo consigo mesmo. 15. O método de Descartes. Pelo contrário, a partir da Renascença, e muito especialmente a partir de Descartes, o método muda completamente de aspecto, e o acento vai recair agora, não tanto sobre a discussão posterior à intuição, quando sobre a própria intuição e os métodos de consegui-la. Quer dizer que se o método filosófico, na Antigüidade e na Idade Média se exercita principalmente depois de obtida a intuição, o método filosófico na Idade Moderna passa a exercitar-se principalmente antes de obter a intuição e como meio para obtê-la. Tomemos o Discurso do Método, de Descartes, e as idéias filosóficas deste, e veremos que o que o preocupava era como chegar a uma evidência clara e distinta; quer dizer, como chegar a uma intuição indubitável da verdade. Os caminhos que conduzem a esta intuição (não os que depois da intuição a garantem, a provam, a retificam ou a depuram, mas os que conduzem a ela) são os que principalmente Interessam a Descartes. O método é, pois, agora pré-intuitivo, e tem como propósito essencial conseguir a intuição. Como se pode conseguir a intuição? Não se pode consegui-la ruiis que de um modo, que é procurando-a; quer dizer, dividindo em partes todo objeto que se nos ofereça confuso, obscuro, não evidente, até que algumas dessas partes se tornem para nós um objeto claro, intuitivo e evidente. Então já temos a intuição. 16. Transcendência e imanência. Operou-se aqui uma mudança radical com respeito à concepção que tinha Platão do mundo e da verdade. Platão tinha do mundo e da verdade a concepção de que este mundo em que vivemos é o reflexo pálido do mundo em que não vivemos e que é a morada da verdade absoluta. São, pois, dois mundos. Tinha-se que ir deste para aquele. Tinha-se que estar seguro, o mais possível, de que a intuição que daquele temos é a exata e verdadeira. Pelo contrário, para Descartes este mundo em que vivemos e o mundo da verdade são um só e mesmo mundo. O que MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 27 acontece é que, quando o olhamos pela primeira vez, o mundo em que vivemos nos aparece revolto, confuso, como um caixão onde há uma multidão de coisas. Porém, se nessa multidão de coisas, se nessa multidão de conceitos caóticos, se nesse caixão nos preocupamos vagarosamente por colocar uma coisa aqui e outra lá e pôr ordem nesse totum revolutum, nesse caixão, então esse mundo torna- se-nos de repente inteligível, compreendemo-lo, é para nós evidente. Em que consistiu aqui a consecução dessa evidência? Não consistiu numa fuga mística deste mundo ao outro mundo, mas antes consistiu numa análise metódica deste mundo, no fundo do qual está o mundo inteligível das idéias. Não são dois mundos distintos, mas um dentro do outro, os dois constituindo um todo. Se se permite já o uso de uma palavra técnica filosófica, direi que o mundo de Platão é distinto do mundo em que vivemos; o mundo tinha idéias, diferente do mundo real em que vivemos em nossa sensação, é um mundo transcendente, porque é outro mundo distinto daquele que temos na sensação. A verdade, para Platão, é transcendente às coisas. A idéia, para Platão, é pois, transcendente ao objeto que vemos e tocamos. Quando queremos definir um dentre os objetos que vemos e tocamos, temos que destacá-lo, e escapar para o mundo transcendente das idéias, completamente distinto, e por isso chamado por Platão "transcendente". Mas em Descartes, quando queremos partilhar de um conceito, não escapamos para fora desse conceito a outro mundo, mas antes, por meio da análise, introduzimos clareza nesse mesmo conceito. É o mesmo conceito que nos era obscuro e que agora se torna para nós claro. Portanto, o mundo inteligível em Descartes é imanente, forma parte do mesmo mundo da sensação e da percepção sensível e não é outro mundo distinto. De modo que o método cartesiano, e a partir de Descartes o de todos os filósofos, postula a imanência do objeto filosófico. A intuição tem que discernir, através da caótica confusão do mundo, todas essas idéias claras e distintas que constituem sua essência e seu miolo. A análise é, pois, o método que conduz Descartes à intuição, e a partir deste momento, em toda a filosofia posterior a Descartes, acentua-se constantemente este MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 30 intuitivamente, uma por uma, todas as coisas concretas do mundo. Por isso sua filosofia implicava sempre dois movimentos. Um movimento, por assim dizer, místico, de penetração do absoluto, e logo, outro movimento de eflorescêncía e de explicitação do absoluto nas suas múltiplas formas da arte, da natureza, do espírito, da história, do homem etc. Essa maneira ou método de filosofar domina, de uma ou outra forma, na Alemanha, desde 1800 até 1870 aproximadamente. Quando esta maneira de filosofar decai, é substituída por outro estilo que implica naturalmente, outro método de filosofia. Na próxima lição prosseguiremos do nosso ponto de parada e então veremos que, apesar de que os filósofos contemporâneos, desde o ano 1870, mudam completamente sua idéia sobre o método, não deixam de conservar o essencial método filosófico, tanto dos antigos como dos modernos a partir da Renascença. 3. A INTUIÇÃO COMO MÉTODO DA FILOSOFIA Lição III 18. MÉTODO DISCURSIVO E MÉTODO INTUITIVO. — 19. A INTUIÇÃO SENSÍVEL. — 20. A INTUIÇÃO ESPIRITUAL. — 21. A INTUIÇÃO INTELECTUAL, EMOTIVA E VOLITIVA. — 22. REPRESENTANTES FILOSÓFICOS DE CADA UMA. — 23. A INTUIÇÃO EM BERGSON. — 24. A INTUIÇÃO EM DILTHEY. — 25. A INTUIÇÃO EM HUSSERL. — 26. CONCLUSÃO. 18. Método discursivo e método intuitivo. Em nossa lição anterior havíamos tomado como tema o método da filosofia, e havíamos chegado ao ponto em que a intuição se nos apresentava insistentemente na história do pensamento filosófico como o método fundamental, principal, da filosofia moderna. MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 31 Descartes foi, na filosofia moderna, o primeiro que, decompondo em seus elementos as atitudes com que nos situamos ante o mundo exterior e ante as opiniões transmitidas dos filósofos, chega a lima Intuição primordial, primária, da qual logo parte para reconstruir todo o sistema da filosofia. Descartes faz, pois, da intuição o método primordial da filosofia. Mais tarde, depois de Descartes, o método da intuição continua a florescer entre os filósofos modernos. Empregam-no principalmente os filósofos idealistas alemães (Fichte, Schelling, Hegel, Schopenhauer), e na atualidade o método da intuição é também geralmente aplicado nas disciplinas filosóficas. Assim, pois, pensei que seria conveniente dedicar toda uma lição ao estudo demorado daquilo que é a intuição, de quais são suas fórmulas principais, de como atualmente, na filosofia do presente, ás distintas formas de intuição estão representadas por diferentes filósofos e diversas escolas e tirar logo as conclusões desse estudo para fixar em linhas gerais o uso que nós mesmos vamos fazer aqui da Intuição como método filosófico. A primeira coisa que nos perguntaremos é: que é a intuição? Em que consiste a intuição? A intuição se nos oferece, em primeiro lugar, como um meio de chegar ao conhecimento de algo, e se contrapõe ao conhecimento discursivo. Para compreender bem o que seja o método intuitivo convém, por conseguinte, que o exponhamos em contraposição ao método discursivo. Será mais fácil começar pelo método discursivo. Como a palavra "discursivo" indica, este método tem relação com a palavra "discorrer" e com a palavra "discurso". Discorrer e discurso dão a idéia, não de um único ato encaminhado para o objeto, mas de uma série de atos, de uma série de esforços sucessivos para captar a essência ou realidade do objeto. Discurso, discorrer, conhecimento discursivo é, pois, um conhecimento que chega ao fim proposto mediante uma série de esforços sucessivos que consistem em ir fixando, por aproximações sucessivas, umas teses que logo são contraditas, discutidas cada qual consigo mesma, MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 32 melhoradas, substituídas por outras novas teses ou afirmações e assim até chegar a abranger por completo a realidade do objeto, e, por conseguinte, obter dessa maneira o conceito. O método discursivo é, pois, essencialmente um método indireto. Em lugar de ir o espírito direto ao objeto, passeia, por assim dizer, ao redor do objeto, considera-o e contempla-o de múltiplos pontos de vista: vai sitiando-o cada vez mais de perto, até que por fim consegue forjar um conceito que se aplica perfeitamente a ele. Frente a este método discursivo está o método intuitivo. A intuição consiste exatamente no contrário. Consiste num único ato do espírito que, de repente, subitamente, lança-se sobre o objeto, apreende-o, fixa-o, determina-o com uma só visão da alma. Por isso a palavra "intuição" tem relação com a palavra "intuir", a qual, por sua vez, significa em latim "ver". Intuição vale tanto como visão, como contemplação. O caráter mais evidente do método da intuição é ser direto, enquanto que o método discursivo é indireto. A intuição vai diretamente ao objeto. Por meio da intuição obtém-se um conhecimento imediato, enquanto por meio do discurso, do discorrer ou do raciocinar, obtém-se um conhecimento mediato, ao final de certas operações sucessivas. 19. A intuição sensível Existem na realidade intuições? Existem; e o primeiro exemplo, e mais característico, da intuição, é a intuição sensível, que todos praticamos a cada instante. Quando com um só olhar percebemos um objeto, um copo, uma árvore, uma mesa, um homem, uma paisagem, com um só ato conseguimos ter, captar esse objeto. Esta intuição é imediata, é uma comunicação direta entre mim e o objeto. Por conseguinte, fica claro e evidente que existem intuições, embora não fosse mais que esta intuição sensível; porém, esta intuição sensível não pode ser a intuição de que se vale o filósofo para fazer o seu sistema filosófico. E não pode ser a intuição de que se vale o filósofo por duas razões fundamentais. A primeira é que a intuição sensível não se aplica senão a objetos que se oferecem aos sentidos, e, por conseguinte, só é aplicável e válida para MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 35 Porém, há na vida do filósofo outra intuição que não é puramente formal, há outra intuição que, para contrapô-la a intuição formal, chamaremos "intuição real". Há outra intuição que penetra no fundo mesmo da coisa, que chega a captar sua essência, sua existência, sua consistência. Esta intuição que vai diretamente ao fundo da coisa é a que aplicam os filósofos. Não uma simples intuição espiritual, mas uma intuição espiritual de caráter real, por contraposição à intuição de caráter formal a que antes me referia. E esta intuição de caráter real, esta saída do espírito, que vai tomai contacto com a íntima realidade essencial e existencial dos objetos, esta intuição real, podemos, por sua vez, dividi-la em três classes, segundo predomine nela, ao verificá-la, por parte do filósofo, a atitude espiritual, ou a atitude emotiva, ou a atitude volitiva. 21. A intuição intelectual, emotiva e volitiva. Quando na atitude da intuição o filósofo põe principalmente em jogo suas faculdades intelectuais, então temos a intuição intelectual. Esta intuição intelectual tem no objeto seu correlato exato. Já sabemos que todo ato do sujeito, todo ato do espírito na sua integridade, se encaminha para os objetos, e o ato do sujeito tem então sempre seu correlato objetivo, consistente, para tal intuição, na essência do objeto. A intuição intelectual é um esforço para captar diretamente mediante um ato direto do espírito, a essência, ou seja, aquilo que o objeto é. Mas existe, além disso, outra atitude intuitiva do sujeito em que atuam predominantemente motivos de caráter emocional. Esta segunda espécie de intuição, que chamamos intuição emotiva, tem também seu correlato no objeto. O correlato a que se refere intencionalmente a intuição emotiva já não é a essência do objeto, já não é aquilo que o objeto é, mas o valor do objeto, aquilo que o objeto vale. No primeiro caso a intuição nos permite captar o éidos, como se diz em grego, a essência ou a consistência do objeto. No segundo caso, ao contrário, o que captamos não é aquilo que o objeto é, mas aquilo que o objeto vale, ou MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 36 seja, se o objeto é bom ou mau, agradável ou desagradável, belo ou feio, magnífico ou mísero. Todos estes valores que estão no objeto são captados por uma intuição predominantemente emotiva. E existe uma terceira intuição na qual as motivações internas do sujeito, que se coloca nessa atitude, são predominantemente volitivas. Esta terceira intuição em que os motivos que se entrechocam são derivados da vontade, derivados do querer, tem também seu correlato no objeto. Não se refere nem a essência, como a intuição intelectual, nem ao valor, como a intuição emotiva. Refere-se à existência, à realidade existencial do objeto. Por meio da intuição intelectual propende o pensador filosófico a desentranhar aquilo que o objeto é. Por meio da intuição emotiva propende a desentranhar aquilo que o objeto vale, o valor do objeto. Por meio da intuição volitiva desentranha, não aquilo que é, senão que é, que existe, que está aí, que é algo distinto de mim. A existência do ser manifesta-se ao homem mediante um tipo de intuição predominantemente volitiva. 22. Representantes filosóficos de cada uma. Estes três tipos de intuição estão representados amplamente na história do pensamento humano. A intuição intelectual pura encontramo-la na Antigüidade, em Platão; na época moderna, em Descartes e nos filósofos idealistas alemães, sobretudo em Schelling e Schopenhauer. A intuição emocional ou emotiva também está amplamente representada na história do pensamento humano. Na antigüidade encontramo-la no filósofo Plotino; mais tarde, em alto grau, levada a um dos mais sublimes níveis da história do pensamento, encontramo-la em Santo Agostinho. Na filosofia de Santo Agostinho, a intuição emotiva chega a refinamentos e resultados extraordinários. Depois de Santo Agostinho, durante toda a Idade Média, combatem e lutam 'uns contra outros os partidários da intuição intelectual e da intuição emotiva. As escolas, principalmente dos franciscanos, de caráter místico, contrapõem-se ao racionalismo de S. Tomás. Corre por toda MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 37 a Idade Média este duplo fluir dos partidários de uma e de outra intuição. Por último, a intuição emotiva, que em alguns casos não deixa de estar tingida de um elemento religioso, encontra- se em dois pensadores modernos, nos quais quase não foi notada até agora. Um ó Espinosa. Em muitíssimos livros de filosofia se diz que Espinosa não faz uso da intuição; que Espinosa demonstra suas proposições more geométrico, como puras demonstrações de teoremas de geometria, onde o elemento discursivo abafa por completo toda intuição. Todavia, isto é mera aparência. Na realidade, no fundo da filosofia de Espinosa, existe como que uma intuição mística; chega um momento, no último livro da Ética de Espinosa, em que, sob a forma de uma demonstração geométrica, aparece a intuição emotiva, que rompe os moldes lógicos da demonstração e se faz patente ao leitor, não sem uma comoção verdadeiramente tremenda da alma; é quando Espinosa, ao chegar quase ao término de seu livro, sente-se elevado, sente-se sublimado no propósito filosófico que desde o começo o anima, e escreve esta frase como o enunciado de um de seus teoremas: "Sentimus experimurque nos esse aeternos", que quer dizer: "Nós sentimos e experimentamos que somos eternos". Aí se vê bem até que ponto toda esta crosta de teoremas e de demonstrações estava recobrindo uma intuição palpitante de emoção, uma intuição quase mística da identidade do finito com o infinito e da eternidade no próprio presente. Outro que, por estranho que pareça, pretende também esta intuição emotiva é nada menos que o filósofo inglês Hume. Para Hume a existência do mundo exterior e a existência do nosso próprio eu não podem ser objeto de intuição intelectual; não podem ser objeto nem de intuição intelectual nem de demonstração racional. Não se pode demonstrar a ninguém que o mundo exterior existe ou que o eu existe. A única coisa que se pode fazer é convidar alguém a dizer se acredita que existe o mundo exterior ou se crê que existe o eu, porque a idéia que temos do mundo exterior não é mais que um belief, uma crença. Cremos, temos fé; nossa crença no mundo exterior e na realidade de nosso eu é um ato de fé. MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 40 realidade que se faz, que é uma realidade impossível de decompor em elementos comutáveis, que é uma realidade fluente, que é que é, por conseguinte, uma realidade no fluir do tempo, que se escapa das mãos tão logo queremos aprisioná-la; como quando jogamos água numa cesta de vime e ela escapa pelas aberturas. Do mesmo modo, para Bergson o intelecto realiza sobre essa realidade profunda e movediça uma operação primária que consiste em solidificá-la, em detê-la, em transformar o fluente em inerte. Deste modo facilita-se a explicação, porque, tendo transformado o movimento em imobilidade, decompõe-se o movimento em uma série infinita de pontos imóveis. Por isso, para Bergson, Zenão de Eléa, o famoso autor dos argumentos contra o movimento, terá razão no terreno da intelectualidade, e não terá jamais razão no terreno da intuição vivente. A intuição vivente tem por missão abrir passagem através dessas concreções do intelecto, para usar uma metáfora. A primeira coisa que fez o intelecto foi congelar o rio da realidade, convertê-lo em gelo sólido, para poder entendê-lo e manejá-lo melhor; porém falseia-o ao transformar o líquido em sólido, porque a verdade é que, por baixo, é líquido, e o que tem que fazer a intuição é romper esses artificiais blocos de gelo mecânico para chegar à fluência mesma da vida, que corre sob essa realidade mecânica. A missão da intuição é, pois, essa: opor-se à obra do intelecto, ou daquilo que Bergson chama o pensamento, ia pensée. Por isso, no seu último livro chegou talvez ao máximo refinamento na história da filosofia, que consiste em ter colocado no titulo mesmo do seu livro a última essência do seu pensamento: Intitula-o La pensée et le mouvant: "O pensamento e o movente". Intelectual é o pensamento. Mas o aspecto profundo e real é o movimento, a continuidade do fluir do mudar, ao qual só por intuição podemos chegar. Por isso, para Bergson, a metáfora literária é o instrumento mais apropriado para a expressão filosófica. O filósofo não pode fazer definições porque as definições se referem ao estático, ao quieto, ao imóvel, ao mecânico e ao intelectu al. MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 41 Mas a verdade última é o mov ente e fluente que há debaixo do estático, e a essa verdade não se pode chegar por meio de definições intelectuais: a única coisa que pode fazer o filósofo é mergulhar nessa realidade profunda; e logo, quando voltar à superfície, tomar a pena e escrever, procurando, por mei o de metáforas e sugestões de caráter artístico e literário, levar o leitor a verificar por sua vez essa mesma intuição que o autor verificou antes dele. A filosofia de Bergson é um constante convite para que o leitor seja também filósofo e faça também ele as mesmas intuições. 24. A intuição em Dilthey. Passaremos agora a tentar caracterizar em poucas palavras a intuição em Dilthey. A intuição em Dilthey pode ser caracterizada rapidamente com o adjetivo "volitivo". A intuição de Dilthey é a intuição volitiva a que, faz alguns instantes, me referia. Também para Dilthey, como para Bergson, o intelectualismo, o idealismo, o racionalismo, todos aqueles sistemas filosóficos para os quais a última e mais profunda realidade é o intelecto, o pensamento, a razão, todas essas filosofias para Dilthey são falsas, são insuficientes. Para Dilthey não é a razão, não é o intelecto que nos descobre a realidade das coisas. A realidade, ou, melhor dito ainda, a "existência" das coisas, a existência viva das coisas, não pode ser demonstrada pela razão, não pode ser descoberta pelo entendimento, pelo intelecto. Tem que ser intuída com uma intuição de caráter volitivo, que consiste em percebermo-nos a nós mesmos como agentes, como seres que, antes de pensar, querem, apetecem, desejam. Nós somos entes de vontade, de apetites, de desejos, antes que entes de pensamentos. E queremos enquanto somos entes de vontade. Mas nosso querer tropeça com dificuldades. Essas dificuldades nas quais tropeça nosso querer convertemo-las em coisas. Essas dificuldades são as que nos dão, imediata e intuitivamente, notícias da existência das coisas; e uma vez que nossa vontade, ao tropeçar com resistências, chega a lutar contra elas, converte essas resistências em existências. MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 42 A existência das coisas é, pois, dada à nossa intuição volitiva como resistência delas. Por isso o primeiro vislumbre de filosofia existencial está em Dilthey. Há um filósofo francês, não direi pouco conhecido, mas sim menos conhecido, Maine de Biran, que viveu em meados do século XIX e cuja atuação filosófica passou, não direi despercebida, mas sim pouco percebida. Maine de Biran foi talvez o primeiro que denunciou esta origem volitiva da existencialidade, que denunciou em nós uma base para afirmação da existência alheia, de existência das coisas e dos outros homens, uma base nas resistências que se opõem à nossa vontade, e estudou demoradamente a contribuição essencial que as sensações musculares dão na psicologia à formação da idéia do eu e das coisas. Dilthey considera como a intuição fundamental da filosofia e esta intuição volitiva que nos revela as existências. De outra parte isto o leva também a considerar que na vida humana a dimensão do passado é essencial para o presente. Assim como o que rodeia o homem se lhe apresenta primordialmente em forma de obstáculos e resistências à sua ação, do mesmo modo o presente tem que se nos apresentar como o limite a que chegam hoje os esforços procedentes do passado. E assim a dimensão do histórico e do pretérito faz entrada no campo da filosofia de um modo completamente distinto daquele que tivera na filosofia idealista alemã de começos do século XIX. 25. A intuição em Husserl. Por último, direi algumas palavras sobre a intuição fenomenológica de Husserl. A intuição fenomenológica de Husserl, para caracterizá-la em termos muito gerais, e, por conseguinte, muito vagos, teria que ser relacionada com o pensamento platônico. Husserl pensa que todas as nossas representações são representações que devemos olhar de dois pontos de vista. Desde logo, um ponto de vista psicológico segundo o qual têm uma individualidade psicológica como fenômenos psíquicos; todavia, como todos os fenômenos psíquicos, eles contêm a referência intencional a um objeto. MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 45 De sorte que estes três tipos de intuição não são contraditórios mas antes podem todos ser usados na filosofia contemporânea e nós os usaremos segundo as camadas de realidade em que estiverem situados os objetos a que nos consagramos. Em nossas excursões pelo campo da filosofia, seremos fiéis ao método da intuição, se umas vezes aplicarmos a intuição fenomenológica e outras a intuição emotiva, ou, melhor ainda, a intuição volitiva. 4. OS PROBLEMAS DA ONTOLOGIA PARTE HISTÓRICA Lição IV 27. QUE É O SER? IMPOSSIBILIDADE DE DEFINIR O SER. — 28. QUEM É O SER? — 29. EXISTÊNCIA E CONSISTÊNCIA. — 30. QUEM EXISTE? Nas lições anteriores tentamos realizar algumas excursões pelo campo da filosofia, mas limitando-nos a visões panorâmicas, por assim dizer, de caráter geral. MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 46 Na nossa primeira excursão aproveitamos essa vista panorâmica para delimitar a grandes traços o objeto geral da filosofia e os territórios do seu campo. A segunda nos internou pelos problemas do método; e vimos que o método principal da filosofia é a intuição, tanto na sua forma intelectual como nas suas formas emotiva e volitiva, aplicando cada uma dessas formas segundo as modalidades do objeto em questão. Agora vamos tentar uma série de excursões por territórios mais intrincados, mais difíceis. Vamos tratar de limpar um pouco o campo da ontologia e da gnosiologia. As duas grandes divisões que podemos fazer na filosofia são a Ontologia e a Gnosiologia, a teoria do ser e a teoria do saber, do conhecer. A primeira nos servirá de introdução à filosofia da Antigüidade e da Idade Média; a segunda, à da Idade Moderna. A ontologia, em termos gerais, se ocupa do ser, ou seja, não deste ou daquele ser concreto e determinado, mas do ser em geral, do ser na acepção mais vasta e ampla desta palavra. A primeira coisa que açode a qualquer um a quem lhe digam que uma disciplina vai ocupar-se de um objeto, é que essa disciplina tem que dizer-lhe o que este objeto é. Por conseguinte, o problema compreendido primariamente na teoria do ser deveria ser este: que é o ser? Ora: formulada desta primeira maneira, a pergunta implica que aquilo que se pede, que aquilo que se quer e se exige é uma definição do ser, que se nos diga que coisa é o ser. Vamos ver dentro de um instante a dificuldade insuperável, absolutamente insuperável, desse sentido da pergunta. Se tomarmos a pergunta nesse sentido tropeçaremos com uma dificuldade que faz impossível a resposta. Porém não somente se pode perguntar: que é o ser?; não somente pode pedir-se a definição do ser, como também poderia perguntar-se: quem é o ser? Neste caso, já não se pediria definição do ser; aquilo que se pediria seria indicação do ser; que se nos mostrasse onde está o ser, quem é. MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 47 É por isso que, desde já, para maior clareza em nosso desenvolvimento, vamos concretizar nessas duas perguntas o problema prévio da ontologia: de uma parte, a pergunta; que é o ser?; de outra parte, a pergunta: quem é o ser? 27. Que é o ser? Impossibilidade de definir o ser. Analisemos a primeira pergunta: que é o ser? Digo, antes de tudo, que esta pergunta é irrespondível. A pergunta exige de nós que demos uma definição do ser. Ora: dar uma definição de algo supõe reduzir este algo a elementos de caráter mais geral, incluir esse algo num conceito mais geral ainda que ele. Existe conceito mais geral que o conceito do ser? Pode encontrar-se por acaso alguma noção na qual caiba o ser, e que, por conseguinte, deva ser mais extensa que o ser mesmo? Não existe. Se examinarmos as noções, os conceitos de que nos valemos nas ciências e até mesmo na vida, veremos que estes conceitos possuem todos eles uma determinada extensão, quer dizer, que cobrem uma parte da realidade, que se aplicam a um grupo de objetos, a uns quantos seres. Mas estes conceitos são uns mais extensos que outros; quer dizer, que alguns se aplicam a menos seres que outros; como quando comparamos o conceito de "europeu" com o conceito de "homem", encontramos, naturalmente, que há menos europeus do que homens. Por conseguinte, o conceito de "homem" se aplica a mais quantidade de seres que o conceito "europeu". Os conceitos são, pois, uns mais extensos que outros. Ora: definir um conceito consiste em incluir este conceito em outro que seja mais extenso, e em outros vários que sejam mais extensos e que se encontrem, se toquem precisamente no ponto do conceito que queremos definir. Se nos propormos definir o conceito de "ser", teremos que dispor de conceitos que abranjam maior quantidade de seres que o conceito de ser; pois bem: o conceito de ser em geral é aquele que abrange maior quantidade de seres. Por conseguinte, não há outro mais extenso por meio do qual possa ser definido. Mas por outra parte podemos chegar também à mesma conclusão. Definir um conceito é enumerar uma após outra as múltiplas e variadas notas características desse MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 50 dois significados da palavra "ser": um, o ser em si; outro, o ser em outro. 29. Existência e consistência. Esses dois significados eqüivalem a estes outros dois: a existência e a consistência. A palavra "ser" significa, de uma parte, existir, estar aí. Mas, de outra parte, significa também consistir, ser isto, ser aquilo. Quando perguntamos: que é o homem? que é a água? que é a luz? não queremos perguntar se existe ou não existe o homem, se existe ou não existe a água ou a luz. Queremos dizer: qual é a sua essência? Em que consiste o homem? Em que consiste a água? Em que consiste a luz? Quando a Bíblia diz que Deus pronunciou estas palavras: Fiat lux, que a luz seja, a palavra "ser" está empregada, não no sentido de "consistir", mas no sentido de "existir". Quando Deus disse: Fiat lux, que a luz seja, quis dizer que a luz, que não existia, passasse a existir. Mas quando nós dizemos: que é a luz? Não queremos dizer que existência tem a luz, não; queremos dizer: qual é a sua essência? Qual é a sua consistência? Assim, estas duas significações da palavra "ser" vão servir- nos para esclarecer nossos problemas iniciais. Vamos muito simplesmente aplicar a essas duas significações da palavra "ser" as duas perguntas com que iniciamos estes raciocínios: a pergunta: que é? e a pergunta: quem é? E aplicadas essas duas perguntas aos dois sentidos do verbo "ser" substantivado, temos: primeira pergunta: que é existir? Segunda pergunta: quem existe? Terceira pergunta: que é consistir? Quarta pergunta: quem consiste? Examinemos estas quatro perguntas. Vamos examiná-las, não para respondê-las, mas para ver se têm ou não resposta possível. À pergunta: que é existir? Resulta evidente que não há resposta possível. Não se pode dizer que é a existência. Existir é algo que intuímos diretamente. O existir não pode ser objeto de definição. Por quê? Porque definir é dizer em que consiste algo; mas acabamos de ver que o conceito de "consistir" não coincide com o de "existir"; é algo muito distinto, que não se pode confundir, que não se deve confundir. MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 51 Se, pois, eu perguntar: que é existir? Terei que responder a essa pergunta indicando a consistência do existir, visto que todo definir consiste em explicitar uma consistência; e a definição consiste na indicação do em que consiste a coisa. Ora: é claro e evidente que o existir não consiste em nada. Por isso muitos filósofos — na realidade, todos os filósofos — se detêm ante a impossibilidade de definir a existência. A existência não pode ser definida, e precisamente haverá um momento na história da filosofia em que um filósofo, Kant, fará uso desta distinção para fazer ver que certos argumentos metafísicos consistiram em considerar a existência como um conceito, e manejá-lo, baralhá-lo com outros conceitos, em vez de considerá-la como uma intuição que não pode ser embaralhada ou pensada do mesmo modo que os conceitos. Por conseguinte, a pergunta: que é existir? Não tem resposta e vamos eliminá-la da ontologia. A ontologia não poderá dizer-nos o que é existir. Ninguém pode nos dizer o que é existir; cada um o sabe por íntima e fatal experiência própria. Passemos à segunda pergunta, que é: quem existe? Esta segunda pergunta, sim, pode ter resposta. A esta segunda pergunta cabe responder: eu existo, o mundo existe, Deus existe, as coisas existem. E estas respostas comportam combinações; cabe dizer: as coisas existem e eu como uma de tantas coisas. Cabe dizer também: eu existo; porém não as coisas; as coisas não são mais que minhas representações; as coisas não são mais do que fenômenos para mim, aparências que eu percebo, mas não verdadeiras em realidade. Não "são" em si mesmas, mas em mim. Cabe ainda responder: nem as coisas, nem eu existimos, na verdade, mas somente Deus existe, e as coisas e eu existimos em Deus; as coisas e eu temos um ser que não é um ser em mim, mas um ser em outro ser, em Deus. Também cabe responder isto. De modo que à pergunta: quem existe? Podem dar-se várias respostas. Vamos ver a terceira pergunta; que é consistir? Esta pergunta tem resposta. Pode dizer-se em que consiste o consistir? Pode dizer-se em que consiste a consistência; porque, com efeito, embora eu advirta que umas coisas MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 52 consistem em outras, nem todas consistem da mesma forma. Existem maneiras, modos, formas variadas do consistir. A enumeração, o estudo de todas essas formas variadas do consistir, é algo que se deve fazer, que se pode fazer, que se faz, que se fez. E algo que constitui um capítulo importantíssimo da Ontologia. Agora veremos qual. E, por último, a quarta pergunta: quem consiste? Não tem resposta. Passa-se com esta pergunta o mesmo que com a primeira: que é existir? que não tem resposta. Também, quem consiste? não pode ter resposta, porque caberia dizer somente que não sabemos quem consiste. Até que não saibamos quem existe, não podemos saber quem consiste, porque somente quando saibamos quem existe, com existência real em si, poderemos dizer que tudo o mais existe nesse ser primeiro e, portanto, tudo o mais consiste. De sorte que a pergunta não tem resposta direta Se como dizem, por exemplo, alguns filósofos como Espinosa — nada existe, nem as coisas, nem eu, mas as coisas e eu estamos em Deus, então à pergunta: quem consiste? Responderemos que todos consistimos, salvo Deus, que não consiste, visto que não é redutível a outra coisa e, pelo contrário, nós e as coisas somos todos redutíveis a Deus. Por conseguinte, esta quarta pergunta não tem nem pode ter resposta direta, é simplesmente o reverso da medalha da segunda pergunta, porque logo que soubermos quem existe, saberemos quem é o ser em si e então tudo aquilo que não for esse ser em si será ser nesse ser, isto é, tudo o mais consistirá nesse ser. Fica, pois, reduzido nosso problema da ontologia a estas duas perguntas: quem existe? e: que é consistir? Para a primeira existem múltiplas e variadas respostas. As respostas que se dão à Pergunta: quem existe? Constituem a parte da ontologia que se chama à metafísica. A metafísica é aquela parte da ontologia que se encaminha a decidir quem existe, ou seja, quem é o ser em si, o ser que não é em outro, que não é redutível a outro; e então os demais seres serão seres nesse ser em si. A metafísica é a parte da ontologia que responde ao problema da existência, da autêntica e verdadeira existência, da existência em si, ou seja, à primeira pergunta. MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 55 esta mesa, estas campainhas, este giz, eu, esta senhorita, aquele cavalheiro, as coisas e dentre as coisas, como outras coisas, como outros entes, os homens, a terra, o céu, as estrelas, os animais, os rios; isso é o que existe. Esta resposta é a mais natural de todas, a mais espontânea e é aquela que a humanidade repetidas vezes e constantemente tem enunciado. Muitos séculos demorou a humanidade a mudar de modo de pensar sobre esta pergunta e ainda que tenha mudado o modo de pensar dos filósofos, continua pensando desta forma todo o mundo, todo aquele que não é filósofo. Mais ainda: continuam pensando desta forma os filósofos enquanto não o são; isto é, o filósofo não é filósofo as vinte e quatro horas do dia, só o é quando filosofa e eu me atreveria a dizer que todos os filósofos antigos e modernos, presentes e futuros, enquanto não são filósofos, espontânea e naturalmente, vivem na crença de que o que existe são as coisas, entre as quais, naturalmente e sem distinção, estamos nós. A palavra latina que designa coisas é res. Esta resposta primordial, e até diria primitiva, natural, leva na história da metafísica o nome de realismo, da palavra latina res. À pergunta: quem existe? responde o homem naturalmente: Existem as coisas — res — e esta resposta é o fundo essencial do realismo metafísico. Mas este realismo, na forma em que acabo de esboçá-lo, não tem um só representante na história da filosofia. Nenhum filósofo, antigo ou moderno, é realista desta maneira que acabo de dizer. Porque não pode sê-lo. É demasiado evidente, quando refletimos um momento, que nem todas as coisas existem; que há coisas que cremos que existem, mas quando nos aproximamos delas vemos que não existem, seja porque realmente se desvanecem, seja porque Imediatamente as decompomos em outras; porque é muito simples encontrar coisas compostas de outras. For conseguinte, imediatamente descobrimos em que consistem essas coisas compostas de outras, e quando descobrimos em que consistem, já não podemos dizer realmente que existem, nesse sentido de existência em si, de existência primordial. Assim, realmente, não houve em MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 56 toda a história da filosofia — pelo menos que eu saiba — nenhum realista que afirme a existência de todas as coisas. 32. Os primeiros filósofos gregos. O realismo começou certamente na Grécia; e começou discernindo entre as coisas. O primeiro esforço filosófico do homem foi feito pelos gregos e começou sendo um esforço para discernir entre aquilo que tem uma existência meramente aparente e aquilo que tem uma existência real, uma existência em si, uma existência primordial, irredutível a outra. O primeiro povo que filosofa na verdade é o povo grego. Outros povos, anteriores, tiveram cultura, tiveram religião, tiveram sabedoria, mas não tiveram filosofia. Nesses últimos cinqüenta anos sobretudo, a partir de Schopenhauer, encheram-nos a cabeça das filosofias orientais, da filosofia hindu, da filosofia chinesa. Essas não são filosofias. São concepções geralmente vagas sobre o universo e a vida. São religiões, são sabedoria popular mais ou menos gemal, mais ou menos desenvolvidas; porém, filosofia não existe na história da cultura humana, do pensamento humano, até os gregos. Os gregos foram os inventores disso que se chama filosofia. Por quê? Porque foram os inventores — no sentido de "descobrir" da palavra — os descobridores da razão, os que pretenderam que com a razão, com o pensamento racional, se pode encontrar o que as coisas são, se pode averiguar o último fundo das coisas. Então começaram a fazer uso de intuições intelectuais e intuições racionais, metodicamente. Antes deles fazia-se uma coisa parecida; porém, com toda classe de vislumbres, de crenças, de elementos irracionais. Feito este parêntese, diremos que os primeiros filósofos gregos que se propuseram o problema de "quem existe?", de "qual ó o ser em si", quando o propõem para si, é porqu9 já superaram o estado do realismo primitivo que enunciávamos dizendo: todas as coisas existem, e eu entre elas. O primeiro momento filosófico, o primeiro esforço da reflexão consiste em discernir entre as coisas que existem em si e as coisas que existem em outra, naquela primária e primeira. MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 57 Estes filósofos gregos procuram qual é ou quais são as coisas que têm uma existência em si. Eles chamavam a isto o "princípio", nos dois sentidos da palavra: como começo e como fundamento de todas as coisas. O mais antigo filósofo grego de que se tem notícia um pouco exata chamava-se Tales e era da cidade de Mileto. Este homem buscou entre as coisas qual seria o princípio de todas as demais, qual seria a coisa à qual conferiria a dignidade de ser, de princípio, de ser em si, a existência em si, da qual todas as demais são simples derivadas; e ele determinou que esta coisa era a água. Para Tales de Mileto a água é o princípio de todas as coisas. De modo que todas as demais coisas têm um ser derivado, secundário. Consistem em água. Mas a água, ela, que é? Como ele diz: o princípio de tudo o mais não consiste em nada; existe, com uma existência primordial, como princípio essencial, fundamental, primário. Outros filósofos dessa mesma época — o século VII antes de Jesus Cristo — tomaram atitudes mais ou menos parecidas com a de Tales de Mileto. Por exemplo, Anaximandro também acreditou que o princípio de todas as coisas era algo material; porém, já teve uma idéia um pouco mais complicada que Tales; e determinou que este algo material, princípio de todas as demais coisas, não era nenhuma coisa determinada, mas uma espécie de protocoisa, que era o que ele chamava em grego apeiron . indefinido, uma coisa indefinida que não era nem água, nem cerra, nem fogo, nem ar, nem pedra, mas antes tinha em si, por assim dizer, em potência, a possibilidade de que dela, desse apeiron, desse infinito ou indefinido, se derivassem as demais coisas. Outro filósofo que se chamou Anaxímenes foi também um desses filósofos primitivos que buscaram uma coisa material como origem de todas as demais, como origem dos demais princípios, como única existente em si e por si, da qual eram derivadas as demais. Anaxímenes para isso tomou o ar. É possível que haja havido mais tentativas de antiquíssimos filósofos gregos que procuraram alguma coisa material; mas estas tentativas foram rapidamente superadas. Poram- no primeiramente na direção curiosa de não procurar uma, mas várias; de acreditar que o princípio ou origem de todas MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 60 mesma coisa, por próximos que sejam os momentos ou, como dizia na sua linguagem metafórica e mística: "Nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio." As coisas são as gotas d'água nos rios, que passam e não voltam nunca mais. Não há, pois, um ser estático das coisas. O que há é um ser dinâmico, no qual podemos fazer um corte, mas será arbitrário. De sorte que as coisas não são, mas devêm e nenhuma e todas podem ter a pretensão de ser o ser em si. Nada existe, porque tudo o que existe, existe um instante e no instante seguinte já não existe, antes é outra coisa a que existe. O existir é um perpétuo mudar, um estar constantemente sendo e não-sendo, um devir perfeito; um constante fluir. E assim termina a filosofia de Heráclito; de uma parte, com uma visão profunda da essência mesma da realidade e que só voltaremos a encontrar em algum filósofo antigo, como Plotino, e num filósofo moderno, como Bergson; mas, de outra parte, com uma nota de cepticismo, isto é, com uma espécie de resignação ante a incapacidade do homem de descobrir o que existe verdadeiramente; até o fato que o problema seja demasiadamente grande para o homem. E neste momento — que é o século VI antes de Jesus Cristo — neste momento em que Heráclito acaba de terminar a sua obra, surge no pensamento grego o maior filósofo que conhecem os tempos helênicos. O maior, digo, porque Platão, que foi discípulo seu, assim! o qualificou. Platão nunca usa adjetivos, de louvor ou pejorativos, para qualificar qualquer dos filósofos que o precederam. Nomeia- os cortês-mente. O único ante o qual ele fica pasmado de admiração é Parmênides de Eléia. A Parmênides chama sempre nos seus diálogos "o grande", "Parmênides, o grande"; sempre lhe dá este epíteto como os epítetos que recebem os heróis de Homero. Quando Heráclito termina sua atuação filosófica, surge no pensamento grego Parmênides, o grande, que é, com efeito, o maior espírito do seu tempo; tão grande, que muda por completo a face da filosofia, a face do problema metafísico, e impele o pensamento filosófico e metafísico pelo caminho em que estamos ainda hoje. Faz vinte e cinco séculos que Parmênides imprimiu ao pensamento MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 61 metafísico uma direção; e este rumo se manteve até hoje, inclusive. 34. Parmênides: sua polêmica contra Heráclito. Parmênides de Eléia introduz a maior revolução que se conhece na história do pensamento humano. Parmênides de Eléia leva a efeito a façanha maior que o pensamento ocidental europeu realizou em vinte e cinco séculos; tanto, que continuamos ainda hoje vivendo nos mesmos trilhos e caminhos filosóficos que foram abertos por Parmênides de Eléia, e por onde este impeliu, com um impulso gigantesco, o pensamento filosófico humano. Eléia é uma pequena cidade do sul da Itália que deu seu nome à escola de filósofos influenciados por Parmênides, que nas histórias da filosofia se chama "escola eleática", porque todos eles foram dessa mesma cidade de Eléia. A filosofia de Parmênides não pode ser bem compreendida se não se coloca em relação polêmica com a filosofia de Heráclito. O pensamento de Parmênides amadurece, cresce, se multiplica em vigor e esplendor, à medida que vai empreendendo a crítica de Heráclito. Desenvolve-se na polêmica contra Heráclito. Parmênides se defronta com a solução que Heráclito dá ao problema metafísico. Analisa esta solução e constata que, segundo Heráclito, resulta que uma coisa é e não é ao mesmo tempo, visto que o ser consiste em estar sendo, em fluir, em devir. Parmênides, analisando a idéia mesma de devir, de fluir, de mudar, encontra nessa idéia o elemento de que o ser deixa de ser o que é para tornar-se outra coisa, e, ao mesmo tempo que se torna outra coisa, deixa de ser o que é para tornar-se outra coisa. Verifica, pois, que dentro da idéia do devir há uma contradição lógica, há esta contradição: que o ser não é; que aquele que é não é, visto que o que é neste momento já não é neste momento, antes passa a ser outra coisa. Qualquer olhar que lancemos sobre a realidade nos confronta com uma contradição lógica, com um ser que se caracteriza por não ser. E diz Parmênides: isto é absurdo; a filosofia de Heráclito é absurda, é ininteligível, não há quem a compreenda. Porque como pode alguém compreender que o que é não seja, e, o que MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 62 não é seja? Não pode ser! Isto é impossível! Temos, pois, que opor às contradições, aos absurdos, à ininteligibilidade da filosofia de Heráclito um princípio de razão, um principio de pensamento que não possa nunca falhar. Qual será este princípio? Este: o ser é; o não—ser não é. Tudo o que fugir disto é despropositado, e jogar-se, precipitar-se no abismo do erro. Como se pode dizer, como diz Heráclito, que as coisas são e não são? Por que a idéia do devir implica necessariamente, como seu próprio nervo interior, que aquilo que agora é, já não é, visto que todo momento que tomamos no transcurso do ser, segundo Heráclito, é um trânsito para o não-ser do que antes era, e isto é incompreensível, e isto é ininteligível. As coisas têm um ser, e este ser, é. Se não têm ser, o não-ser não é. Se Parmênides se tivesse contentado em fazer a crítica de Heráclito teria feito já uma obra de importância filosófica considerável. Porém, não se contenta com isso, mas antes acrescenta à crítica de Heráclito uma construção metafísica própria. E como leva a efeito esta construção metafísica própria? Pois leva-a a efeito partindo desse princípio, de razão que ele acaba de descobrir. Parmênides acaba de descobrir o princípio lógico do pensamento, que formula nestes termos categóricos e estritos: o ser é; o não-ser não é. E tudo o que se afastar disso será corrida em direção ao erro. 35. O Ser e suas qualidades. Este princípio, que descobre Parmênides e que os lógicos atuais chamam "princípio de identidade", serviu-lhe de base para a sua construção metafísica. Parmênides diz: em virtude desse princípio de identidade (é claro que ele não o chamou assim; assim o denominaram muito depois os lógicos), em virtude do princípio de que o ser é, e o não-ser não é, princípio que ninguém pode negar sem ser declarado louco, podemos afirmar acerca do ser uma porção de coisas. Podemos afirmar, primeiramente, que o ser é único. Não pode haver dois seres; não pode haver mais que um só ser. Porque suponhamos que haja dois seres; pois, então, aquilo que distingue um do outro "é" no primeiro, porém "não é" no segundo. Mas se no segundo não é aquilo que no primeiro é, então chegamos ao absurdo lógico de que o ser do primeiro não é no segundo. Tomando isto MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 65 mundo inteligível. E pela primeira vez na história da filosofia aparece esta tese da distinção entre o mundo sensível e o mundo inteligível, que dura até hoje. Que entende Parmênides por mundo sensível? Aquele que conhecemos pelos sentidos. Mas este mundo sensível que conhecemos pelos sentidos é ininteligível, absurdo, porque se o analisarmos bem, tropeçaremos a cada instante com a rígida afirmação racional da lógica. Vimos que todas essas propriedades do ser que antes enumeramos, foram assentadas como esteios fundamentais da metafísica, porque as suas contrárias (a pluralidade, a temporalidade, a mutabilidade, a limitação e o movimento) resultam incompreensíveis diante da razão. Quando a razão analisa, tropeça sempre com a hipótese inadmissível de que o não-ser é, ou de que o ser não é. E como isto é contraditório, tudo isto resulta ilusório e falso. O mundo sensível é ininteligível. Por isso, frente ao mundo sensível que vemos, que tocamos, mas que não podemos compreender, coloca Parmênides um mundo que não vemos, não tocamos, do qual não temos imaginação nenhuma, mas que podemos compreender, que está sujeito e submetido à lei lógica da não contradição, à lei lógica da identidade; e por isso chama-o, pela primeira vez na História, mundo inteligível, mundo do pensamento. Este é o único autêntico; o outro é puramente falso. Se fizermos o balanço dos resultados obtidos por Parmênides, encontrar-nos-emos verdadeiramente maravilhados diante da colheita filosófica deste homem gigantesco. Ele descobre o princípio da identidade, um dos esteios fundamentais da lógica. E não somente descobre o princípio de identidade, mas, além disso, afirma imediatamente a tese de que, para descobrir que é o que é na realidade, não temos outro guia que o princípio de identidade; não temos outro guia que nosso pensamento lógico e racional. Quer dizer, assenta a tese fundamental de que as coisas fora de mim, o ser fora de mim é exatamente idêntico ao meu pensamento do ser. Aquilo que eu não puder pensar por ser absurdo pensá-lo, não poderá ser na realidade, e, por conseguinte, não necessitarei para conhecer a autêntica realidade do ser, raiz de mim mesmo, MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 66 mas somente tirando a lei fundamental do meu pensamento lógico, fechando os olhos a tudo, somente pensando um pouco coerentemente, descobrirei as propriedades essenciais do ser. Quer dizer que, para Parmênides, as propriedades essenciais do ser são as mesmas que as propriedades essenciais do pensar. Dentre os fragmentos que se conservam brilha esta frase esculpida em mármore imperecível: "Ser e pensar é uma e só coisa". A partir deste momento ficam assim, por vinte e cinco séculos, colocadas as bases da filosofia ocidental. Até agora falávamos da filosofia eleática de Parmênides em linhas um pouco gerais. Bastaria o que disse para caracterizá-la. Porém, quero acrescentar umas quantas considerações sobre este pormenor, a técnica mesma com que os eleáticos realizavam sua filosofia. 37. A filosofia de Zenão de Eléia. Vamos agora presenciar o espetáculo de um filósofo eleático, discípulo de Parmênides, a esmiuçar a filosofia de seu mestre. Este discípulo, a quem nos vamos referir, é muito famoso. É Zenão, da cidade de Eléía. É muito famoso na história da filosofia grega. Compartilha em absoluto os princípios fundamentais do eleatismo, dessa filosofia que acabamos de descrever em poucas palavras. Compartilha-a mas vamos surpreendê-lo nos pormenores de suas afirmações. Zenão preocupou-se durante toda a sua vida muito especialmente em demonstrar em detalhe que o movimento que existe, com efeito, no mundo dos sentidos, nesse mundo sensível, nesse mundo aparencial, ilusório, é ininteligível, e, visto que é ininteligível, não é. Em virtude do princípio eleático da identidade do ser e do pensar, aquilo que não se pode pensar não pode ser. Não pode ser mais que aquilo que se pode pensar coerentemente, sem contradições. Se, pois, a análise do movimento nos conduz à conclusão de que o movimento é impensável, de que ao pensarmos nós o movimento chegamos a contradições insolúveis, a conclusão é evidente: se o movimento é impensável, o movimento não é. O movimento é uma mera ilusão de nossos sentidos. MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 67 Zenão de Eléla propõe-se a polir uma série de argumentos incontrovertíveis que demonstram que o movimento é impensável; que não podemos logicamente, racionalmente, pensá-lo, porque chegamos a absurdos. Com esse método de paradigma constante, de exemplificação constante que empregam os gregos, como Platão, e que Aristóteles usará mais tarde, Zenão exemplifica também seus raciocínios. É além disso, com este gosto que têm os gregos — entre artistas e sofistas — de chamar a atenção e de encher de admiração os ouvintes, Zenão se colocava diante dos seus amigos, dos seus ouvintes, e lhes dizia: "Vou demonstrar-lhes uma coisa: se vocês colocarem Aquiles a disputar uma corrida com uma tartaruga, Aquiles não alcançará jamais a tartaruga, se derem vantagem a esta na saída." Aquiles, relembremos, é o herói a quem Homero chama sempre ocus podas, ou seja, veloz dos pés, o melhor corredor (que havia na Grécia, e a tartaruga é animal que se move com muita lentidão. Aquiles dá uma vantagem à tartaruga e fica uns quantos metros atrás. Digam-me: quem ganhará a carreira? Todos respondem: "Aquiles em dois pulos passa por cima da tartaruga e a vence." E Zenão diz: "Estão completamente enganados. Vocês o vão ver. Aquiles deu uma vantagem à tartaruga; logo, entre Aquiles e a tartaruga, no momento de partir, há uma distância. Começa a carreira. Quando Aquiles chegar ao ponto onde estava a tartaruga, esta terá caminhado algo, estará mais adiante e Aquiles não a terá alcançado ainda. Quando Aquiles chegar a este novo lugar em que agora está a tartaruga, esta terá caminhado algo, e Aquiles não a terá alcançado porque para alcançá-la será mister que a tartaruga não avance nada no tempo que necessita Aquiles para chegar onde ela estava. E como o espaço pode ser dividido sempre num número infinito de pontos, Aquiles não poderá jamais alcançar a tartaruga, embora ele seja, como diz Homero, ocus podas, ligeiro de pés, e, ao contrário, a tartaruga seja lenta e sossegada." Os gregos riam-se ouvindo estas coisas, porque gostavam imensamente dessas brincadeiras. Riam-se muitíssimo e talvez dissessem: está louco. Mas não compreendiam o sentido do argumento. Nas filosofias gregas posteriores, conforme nos narra Sexto Empírico, Diógenes demonstrou o MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 70 desde Parmênides, e por culpa de Parmênides, temos do ser uma concepção estática em lugar de ter uma concepção dinâmica; temos do ser uma concepção estática, inerte. Essas coisas que enumerei como as qualidades do ser: único, eterno, imutável, ilimitado e imóvel, que Parmênides faz derivar do princípio de identidade, nós aplicamos todos os dias; mas, em lugar de aplicá-las ao ser, as aplicamos à substância e à essência. Fragmentamos o ser de Parmênides em multidão de seres que chamamos as coisas; mas cada uma das coisas, as ciências físico-matemáticas consideram-nas como uma essência, a qual, individualmente considerada, tem os mesmos caracteres que tem o ser de Parmênides; é única, eterna, imutável, ilimitada, imóvel. E precisamente porque demos a cada coisa os atributos ou predicados que Parmênides dava à totalidade do ser, por isso temos do ser uma concepção eleática e parmenídica, ou seja, uma concepção estática. A ciência física da natureza, a própria ciência da física, começa já a sentir-se apertada dentro dos moldes da concepção parmenídica da realidade. A ciência física da natureza, a teoria intra-atômica, a teoria das estruturas atômicas, a teoria dos quanta de energia, que seria demorado desenvolver aqui, é já uma teoria que se choca um pouco com a concepção estática do ser à maneira de Parmênides; e a ciência contemporânea teve que apelar a conceitos tão extravagantes e esquisitos como o conceito de verdade estatística, que se o tivessem relatado a Newton o teria feito estremecer; apelar a conceitos de verdade estatística, que é o mais contrário que se pode imaginar à concepção estática do ser, para poder manter-se dentro dos moldes do ser estático, parmenídico. Não somente a física; antes, o que não entra de maneira alguma dentro de tal conceito de ser, é também a ciência da vida e a ciência do homem. A concepção do homem como uma essência quieta, imóvel, eterna, e que se trata de descobrir e de conhecer, foi que nos perdeu na filosofia contemporânea; tem que ser substituída por outra concepção da vida na qual o estático, o quieto, o imóvel, o eterno da definição parmenídica não nos impeça de penetrar por baixo e chegar a uma região vital, a uma região vivente, onde o ser não possua essas propriedades MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 71 parmenídicas, mas antes seja precisamente o contrário: um ser ocasional, um ser circunstancial, um ser que não se deixe espetar numa cartolina como a borboleta pelo naturalista. Parmênides tomou o ser, espetou-o na cartolina há vinte e cinco séculos e lá continua ainda, preso na cartolina, e agora os filósofos atuais não vêem o modo de tirar-lhe o alfinete e deixá-lo voar livremente. Este vôo, este movimento, esta funcionalidade, esta concepção da vida como circunstância, como chance, como resistência que nos revele a existência de algo anterior à posse do ser, algo do qual Parmênides não podia ter idéia, é isto que o homem tem que conquistar. Mas antes de reconquistá-lo reconheçamos que um filósofo que influenciou durante vinte e cinco séculos de uma maneira tão decidida o curso do pensamento filosófico, merece algo mais que as quatro ou cinco páginas que lhe costumam dedicar os manuais de filosofia. MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 72 6. O REALISMO DAS IDÉIAS DE PLATÃO LIÇÃO VI 39. O ELEATISMO NAO É IDEALISMO, MAS REALISMO. — 40. FOBMALISMO «OS ELEÁTICOS. — 41. PLATÃO: O SER E A UNIDADE. — 42. ELEMENTOS ELEÁTICOS NO PLATONISMO. — 43. INFLUÊNCIA DE SÓCRATES: O CONCEITO. — 44. A TEORIA PLATÔNICA DAS IDÉIAS. — 45. O CONHECIMENTO. — 46. A IDÉIA DO BEM. 39. O eleatismo não é idealismo, mas realismo. Na lição anterior presenciamos o espetáculo de uma metafísica de grande envergadura, de alto vôo, na qual com uma pureza realmente exemplar se dá às perguntas: quem é o ser? quem existe? uma resposta que na história do pensamento moderno sobrevive ainda nos seus grandes traços. A filosofia de Parmênides de Eléia representa uma façanha intelectual de extraordinária magnitude, não somente por aquilo que no seu tempo significou de esforço genial para dominar o problema metafísico, mas sobretudo pela profundidade incalculável da penetração que levou este filósofo a formular idéias, pensamentos, direções, que Imprimiram a toda a filosofia européia uma marcha que desde então continuou ininterrupta com a mesma orientação. Vimos as linhas gerais da filosofia de Parmênides, e podemos delas tirar as duas bases fundamentais em que se assenta todo o sistema. Essas duas bases fundamentais são: primeiramente, a identificação do ser com o pensar; em segundo lugar, a aplicação rigorosa das condições do pensar à determinação do ser. Essas duas bases fundamentais do sistema eleático poderiam induzir, e muitas vezes induziram, ao erro de considerar o eleatismo como a primeira forma conhecida de idealismo. Alguns historiadores da filosofia pensaram encontrar na filosofia de Parmênides a forma primária do MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 75 as de tudo aquilo que encontremos nelas de contrário às condições do pensar. Uma das condições fundamentais de todo pensamento é que o pensamento concorde consigo mesmo, que o pensamento seja coerente, ou, como dizemos vulgarmente e com uma expressão imprópria mas corrente, que o pensamento seja lógico. Quer dizer, que o pensamento não afirme agora uma coisa e um momento depois o contrário, porque não pode ser verdade que uma coisa seja certa e que imediatamente depois o contrário dessa coisa seja também certo. Pois se uma das condições do pensar é essa e temos aí o ser, então é impossível que o ser que temos aí seja realmente contraditório e cheio de incoerências. Tiremos do ser que temos aí suas incoerências de vulto, aparentes, visíveis, essas incoerências notórias; digamos que essas incoerências não pertencem ao ser porque não podem pertencer a ele, já que são impensáveis, já que não concordam entro si; e o que ficar depois de ter feito essa limpeza do ser, isto será o que verdadeiramente é. E dentre essas incoerências, que temos que tirar de diante de nós, está a multiplicidade de seres, está a mutabilidade daquilo que temos diante. Vemos que muda; mas como mudar é ilógico, é irracional, digamos que acreditamos que muda: porém, que na realidade não muda. A mobilidade do ser é outra dessas incoerências. Temos, pois, que para Parmênides a realidade continua a ser fundamentalmente uma coisa, uma coisa que não admite outra ao seu lado, porque seria contraditória; que não admite o movimento, porque seria contraditório; que não admite a mudança, porque seria contraditória. Todavia o primeiramente existente para Parmênides é res, coisa; e por isso, eu me atreveria a dizer que Parmênides é, na realidade, o primeiro fundador do realismo metafísico, embora na 'expressão isto resulte paradoxal. 40. Formalismo dos eleáticos. Esta façanha que Parmênides leva a efeito seis séculos antes de Jesus Cristo, se a olhamos e a contemplamos do ponto de vista técnico -filosófico, indubitavelmente aparece-nos como grosseira ou, melhor dito, como ingênua, MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 76 como feita por um homem que pela primeira vez maneja a razão, sem disciplina anterior, sem escola, sem a experiência secular dessa elaboração dos conceitos e das idéias que as vai polindo, polindo, até fazê-las encaixar perfeitamente umas nas outras. É um homem que leva a efeito uma façanha ingênua e grosseira, porque não sabe ainda manejar o instrumento que tem nas mãos. Descobrem os homens dessa época, os Pitagóricos e Parmênides, a razão, e ficam maravilhados ante o poder do pensamento; ficam maravilhados de como o pensamento, por si só, tem virtudes iluminativas extraordinárias; de como o pensamento, por si só, pode penetrar na essência das coisas. A aritmética dos Pitagóricos, a geometria incipiente naqueles tempos, tudo isto fez pensar àqueles homens que com a razão poderiam decifrar imediatamente o mistério do universo e da realidade. E então Parmênides faz da razão uma aplicação exaustiva, leva-a até os últimos extremos, até os últimos limites, e este exagero na aplicação da razão é, provavelmente, o que tem que suportar a culpa de que o sistema de Parmênides apareça no seu conjunto como um simples formalismo metafísico. Com efeito, o princípio racional de que Parmênides faz uso é o princípio de identidade. Esse princípio, segundo o qual algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo, esse princípio de identidade é, todavia, realmente um princípio" formal. Não tem conteúdo; se o quisermos preencher, temos que preenchê-lo com palavras como "algo", "isto", "aquilo"; com frases como "uma coisa não pode ser igual a outra" ou "não pode ser desigual a si mesma". Essas palavras vagas — algo, aquilo, isto, uma coisa — mostram perfeitamente que o princípio é uma forma que carece de um conteúdo objetivo próprio; pois, se não há outras intuições mais que a própria intuição desse princípio, então este princípio constitui um simples molde, dentro do qual não se verte realidade alguma. Vemos isto clarissimamente se refletimos um instante na impressão que nos produzem argumentações como as de Zenão de Eléia quando ataca o movimento. Recordemos a argumentação sutil de Zenão de Eléia para demonstrar que Aquiles não pode nunca alcançar a tartaruga. Nossa impressão é que aquilo não convence, que aquilo está bem, MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 77 que é difícil refutá-lo, que talvez não possa encontrar-se outro argumento que se lhe oponha vitoriosamente; mas que, todavia, não convence muito. E na verdade temos tanta razão, em não conceder mais que admiração, e não crédito, a esses argumentos, temos tanta razão que os sofistas e os cépticos, séculos após, adotam a Zenão de Eléia como um dos seus grandes mestres. Mas, que é aquilo que falha nessa argumentação de Zenão de Eléia? Onde está a causa desse desagrado que sua argumentação produz em nós? E muito simples: a causa está em que Zenão de Eléia faz um uso objetivo e real de um princípio que não é mais que formal; e como faz desse princípio um uso objetivo e real, sendo assim que o princípio é puramente formal, não podemos rebatê-lo facilmente com princípios de razão, de argumentação. Mas, em troca, a realidade mesma resulta contrária àquilo que diz Zenão. E em que consiste este choque entre a realidade e o princípio formal? Relembremos o argumento de Zenão. Zenão parte do princípio de que o espaço é infinitamente divisível. Mas, pensemos um momento: o espaço é infinitamente divisível na possibilidade; pode ser infinitamente dividido no pensamento; pode sê-lo como mera possibilidade, como mera forma; porém o sofisma, por assim dizer, de Zenão de Eléia consiste em que este espaço — que em potência pode ser infinitamente dividido — é realmente e agora mesmo dividido. De modo que o sofisma de Zenão consiste em confundir as condições simplesmente formais e lógicas da possibilidade com as condições reais, materiais, existenciais do ser mesmo. Diz Zenão que Aquiles não alcança a tartaruga porque a distância entre ele e a tartaruga é um pedaço que pode dividir-se infinitamente. Sim. Mas esse "pode dividir-se infinitamente" tem dois sentidos: um sentido de mera possibilidade formal matemática, e outro Sentido de possibilidade real, existencial. E o trânsito suave, o trânsito oculto, entre um e outro sentido é que faz com que a argumentação surpreenda, mas não convença. Este é o vício fundamental de todo o Eleatismo. Todo o eleatismo não é mais que uma metafísica da pura forma, sem conteúdo. 41. Platão: o ser e a unidade. MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 80 "figuras". Os geômetras apagam, por assim dizer, as formas complicadíssimas da realidade sensível e analisam essas formas e as reduzem a polígonos, triângulos, quadriláteros, quadrados, círculos, elipses; um certo número reduzido de formas e figuras elementares. E então se propõem, de cada uma dessas formas ou figuras elementares, como se diz no grego, "dar a razão", dar razão delas, explicá-las, dizer o que são, dar sua definição; uma definição que compreenda sua gênese e ao mesmo tempo as propriedades de cada uma dessas figuras. A Sócrates ocorre o propósito de fazer com o mundo moral o mesmo que os geômetras fazem com o mundo das figuras físicas. No mundo moral há uma quantidade de ações, propósitos, resoluções, modos de conduta que se apresentam ao homem. Pois a primeira coisa que ocorre a Sócrates é reduzir essas ações e métodos de conduta a um certo número de formas particulares, concretas, a um certo número de virtudes; por exemplo: a justiça, a moderação, a temperança, a coragem. E logo, após ter feito de cada uma dessas virtudes ou formas primordiais da vida moral o mesmo que faziam os geômetras com suas figuras, aplica o entendimento, aplica a intuição intelectual, para chegar a dizer o que é a justiça, o que é a moderação, o que é a temperança, o que é a coragem, o que é o amor, o que é a compaixão etc. Ora: "que é?" significa para estes gregos "dar a razão disso", encontrar a razão que o explique, encontrar a fórmula racional que o abranja completamente, sem deixar fresta alguma. E a essa razão que o explica, a esta fórmula racional denominam com a palavra grega logos, uma das palavras mais refulgentes do idioma humano; ilustre, porque dela provém a lógica e tudo aquilo que com a lógica se relaciona; ilustre também porque o credo religioso apossou-se dela, e a introduziu no latim com o nome de verbum , que se encontra até mesmo nos dogmas fundamentais de nossa religião: o Verbo divino. Essa é a tradução latina da palavra logos, que antes de Sócrates significava simplesmente conversa, palavra; possui desde então o sentido técnico filosófico que Sócrates lhe dá; e, a partir dele, possui em toda a filosofia um sentido muito variável, que variou muito no decorrer da MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 81 filosofia, mas que primordialmente é a razão que se diz de algo. O que os geômetras dizem de uma figura, do círculo, por exemplo, para defini-lo, é o logos do círculo, é a razão dada do círculo Do mesmo modo, o que Sócrates pede com afã aos cidadãos de Atenas é que lhe dêem o logos da justiça, o logos da coragem. Dar e pedir logos é a operação que Sócrates pratica diariamente pelas ruas de Atenas. Pois que é este logos senão o que hoje denominamos "conceito"? Este é o conceito. Quando Sócrates pede o logos, quando pede que indiquem qual é o logos da justiça, que é a justiça, o que pede é o conceito da justiça, a definição da justiça. Quando pede o logos da coragem, o que pede é o conceito da coragem. Sócrates é, pois, o descobridor do conceito. Pois bem: o conceito de logos é algo que Platão recebe de Sócrates. Mas para Sócrates o interesse fundamental da filosofia era a moral: chegar a ter das virtudes e da conduta do homem conceitos tão puros e tão perfeitos que a moral pudesse ser aprendida e ensinada como se aprendem e se ensinam as matemáticas, e que, por conseguinte, ninguém fosse mau. Porque a convicção de Sócrates é que aquele que é mau o é porque não sabe. 44. A teoria platônica das idéias. Esta convicção moral e profunda e esta idéia do conceito toma—as Platão de Sócrates. Mas imediatamente estende, amplifica o uso do conceito, já não somente para a geometria, não somente para as virtudes, como Sócrates, mas, em geral, para a coisa em geral. Converte, pois, Platão, o conceito no instrumento para a determinação do qualquer coisa em geral, e imediatamente põe em relação essa contribuição socrática com os ensinamentos recebidos de Parmênides; une a idéia de conceito, de logos, com a idéia de "ser" e com os atributos do ser parmenídico, e daí resulta exatamente a solução peculiar de Platão ao problema metafísico, sua teoria das idéias. Veja-se uma passagem de Aristóteles em que explica como Platão chegou à sua filosofia, como Platão chegou ao seu próprio sistema. Diz Aristóteles: "A ocupação de Sócrates com os objetos éticos e não com a natureza em geral, procurando naqueles objetos éticos o que tem de geral e encaminhando MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 82 sua reflexão principalmente às definições, induziu a Platão, que o seguia, a opinar que a definição tinha como objeto algo distinto do sensível." Eis aqui a união entre o método socrático de buscar o logos, com a idéia parmenídica de que o ser não é o sensível; e esta união dá por resultado a metafísica de Platão, que culmina na sua famosa teoria das idéias, que vou expor agora em poucas palavras. Também Platão, como Parmênides e como todo metafísico em geral, de Qualquer época que for, parte da pergunta: quem existe? quem é o ser? Mas Platão já está de sobreaviso. Já descobriu o erro que tinha cometido Parmênides ao confundir o "que existe?" com aquilo que o que existe é, ao confundir a existência com a essência. E como está de sobreaviso, não comete o mesmo erro, mas antes, pelo contrário, distingue já claramente entre a metafísica como teoria da existência e a metafísica como teoria da objetividade em geral. Já existe em Platão, por conseguinte, embora muito Intimamente unidas e não fáceis de separar — uma teoria da existência e uma teoria da objetividade, uma teoria do objeto, uma verdadeira ontologia, além da metafísica. A ontologia de Platão está muito clara. Relembremos o logos de Sócrates, a definição do conceito que abrange uma porção da realidade, da mesma forma que a figura "triângulo" abrange uma porção de formas que se dão na realidade visível e tangível. Que é, pois, este logos? Platão o analisa e encontra que esse logos é uma unidade sintética, uma união na qual estão reunidos, atados, formando uma síntese indissolúvel, uma porção de entes ou de caracteres. Pois bem: essa união, essa unidade dos caracteres que definem um objeto recortado na realidade, a essência desse objeto, ou, se se quiser, a consistência, unida numa unidade indissolúvel, se a contemplamos agora com uma intuição direta do espírito e logo conferimos a essa unidade a realidade existencial, essa é a idéia, segundo Platão. Agora vamos explicar, um por um, os elementos dessa idéia. Em primeiro lugar a palavra "idéia" é um neologismo de Platão. A situação dos filósofos, que começavam a filosofar há vinte e cinco séculos, era difícil, porque não tinham a MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 85 relações que são por sua vez outras idéias. Precisamente esse será um dos pontos fracos do siste ma platônico, por onde a perspicácia profunda de Aristóteles saberá penetrar. 46. A idéia do bem. Todas as idéias pendem de uma idéia superior a todas elas que é a idéia do bem. Aqui ecoa de novo, como um acorde que volta ao final da sinfonia, aquele interesse moral que fora fundamental no pensamento de Sócrates e que também herdou Platão. Para Platão o importante é realizar a idéia do bem. Que os Estados políticos, formados na terra pela união dos homens que moram nela, sejam o melhor possível, se ajustem o mais possível a essa idéia do bem. Por isso põe toda a sua filosofia, toda a sua metafísica e toda a sua ontologia ao serviço da teoria política do Estado; porque acredita que assim como a idéia do bem é a suprema idéia que rege e manda em todas as demais idéias, do mesmo modo entre as coisas que existem nesse mundo sensível, aquela suprema que deverá mais que nenhuma coincidir com a idéia do bem é o Estado. E consagra os dois mais volumosos diálogos que escreveu, A República e As Leis, a estudar a fundo como deve ser a constituição de um Estado ideal. Por sinal que conclui, em resumo, que o Estado ideal será um Estado no qual, ou os que mandam sejam filósofos, ou sejam os filósofos os que mandam. Chegamos com isto ao termo daquilo que me propunha dizer nesta lição. Temos, creio eu, com a filosofia de Platão, todos os fios necessários para compreender a de Aristóteles. A filosofia de Aristóteles seria incompreensível se, como quiseram os filósofos atuais da escola de Marburgo, interpretássemos Platão como uma espécie de Kant de vinte e cinco séculos atrás. Então Aristóteles seria incompreensível, porque o que fez fundamentalmente foi plasmar e dar uma forma arquitetônica, magnífica aos elementos que há na filosofia de Platão. A filosofia de Platão não é, como julgam Natorp, Cohen e os fundadores da escola de Marburgo, não é, nem de longe, idealismo. As idéias de Platão não são unidades sintéticas do nosso pensamento e que nosso pensamento imprime às sensações para dar-lhes unidade e substantividade. Não; MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 86 antes para Platão, o mesmo que para Parmênides, as idéias são realidades que existem, as únicas realidades que existem, as únicas existentes, visto que as coisas que vemos e tocamos são sombras efêmeras; são, aquilo que são, indiretamente e por metaxis ou participação com as idéias. Somente desta maneira, compreendendo a Platão na sua autêntica realidade metafísica, somente entendendo-o como um realismo das idéias, somente assim se pode entender Aristóteles, porque o que este fará será dar uma lógica interna a todo o sistema c trazê-lo, por assim dizer, do seu céu inacessível, a esta terra, para fazer que estas idéias, que são transcendentes às coisas percebidas, se tornem imanentes, internas a elas. Em suma, Aristóteles colocará a idéia dentro da coisa sensível. Isto é o que fará Aristóteles e o que veremos na próxima lição. 7. O REALISMO ARISTOTÉLICO Lição VII 47. INTERPRETAÇÃO REALISTA DAS IDÉIAS PLATÔNICAS. — 48. ARISTÓTELES E AS OBJEÇÕES A PLATÃO. — 49. A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES. — 50. SUBSTÂNCIA, ESSÊNCIA, ACIDENTE. — 51. A MATÉRIA E A FORMA. — 62. — TEOLOGIA DE ARISTÓTELES. 47. Interpretação realista das idéias platônicas. Na lição anterior desenvolvemos o que eu chamava o realismo das idéias em Platão. Estas palavras, "realismo das idéias", podem surpreender aos que cultivam a filosofia e leram histórias da filosofia e livros sobre Platão. Pode surpreendê-los que eu empregue, para designa a metafísica de Platão esta expressão de "realismo das idéias". Com ela quero eu sublinhar a MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 87 interpretação que me parece mais justa da filosofia platônica. Esta interpretação, que é a tradicional do platonismo, que é a que Aristóteles dá do platonismo, que é aquela que através dos séculos perdurou clàssicamente acerca das idéias platônicas, foi modernamente combatida pelos historiadores da filosofia que procedem da escola de Marburgo, e principalmente por Natorp. Frente a esta interpretação de Natorp convinha-me acentuar a interpretação clássica, e por isso chamei-a "realismo das idéias". Segundo a interpretação clássica, que é, ao meu juízo, a exata, Platão considerou as idéias como entes reais, que existem em si e por si, que constituem o mundo inteligível, distinto e separado do mundo sensível; que constituem um mundo do ser contraposto ao mundo sensível, que é o mundo do não ser, da aparência, do phainomenos, como se diz em grego, do fenômeno. As idéias são, pois, para Platão "transcendentes" às coisas. A palavra "transcendente" tem na técnica filosófica esse sentido: de ser a designação de algo que está separado de outra coisa. Pelo contrário, a interpretação dada modernamente por Natorp converte as idéias em unidades lógicas do pensamento científico; faz delas pontos de vista desde os quais o pensador, defrontando-se com as coisas, organiza suas sensações para conferir—lhes objetividade, realidade. Segundo a interpretação de Natorp, as idéias platônicas seriam uma posição do ser para o sujeito pensante. O sujeito pensante, o homem, quando se defronta com a multiplicidade e variedade das sensações, introduz unidade nesse caos das sensações; pela simples virtude do seu pensamento de caráter sintético, reúne em feixes grupos de sensações, aos quais confere a plena realidade, a objetividade. Essas unidades sintéticas não estão, todavia, no material com o qual as fabrica o pensador, mas antes são pontos de partida, focos desde os quais a intuição sensível organiza seus materiais em unidades. Mas essas unidades as põe o pensamento. Essas posições do pensamento serão para Natorp as idéias de Platão. MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 90 com clareza as falhas do pensamento de Platão. Em vários dos seus escritos, com muita freqüência, Aristóteles polemiza com Platão. Para com Platão, Aristóteles tem o máximo respeito; em todo momento chama-o seu mestre, seu amigo. Polemiza, todavia, com freqüência com ele. E as objeçoes que Aristóteles formula contra a teoria das idéias de Platão podem reduzir-se a seis grupos característicos. Em primeiro lugar, a duplicação desnecessária das coisas. Aristóteles mostra que esse mundo das idéias, que Platão constrói metafisicamente com o objetivo de "dar razão" das coisas sensíveis, é uma duplicação do mundo das coisas que resulta totalmente desnecessária. Essa objeção que faz aqui Aristóteles a Platão é de importância incalculável no processo do pensamento filosófico grego, porque é a primeira vez que se diz que a teoria dos dois mundos (o mundo sensível e o mundo inteligível) estabelecida por Parmênides dois séculos antes, a duplicidade de mundos é insustentável. Não existe o mundo inteligível de idéias contraposto e distinto do mundo sensível. Isto parece-lhe uma duplicação que não resolve nada, porque sobre as idéias apresentar-se-iam exatamente os mesmos problemas que se apresentam sobre as coisas. O segundo grupo de objeções que Aristóteles faz a Platão é o de que o número das idéias tem que ser infinito, porque — diz Aristóteles — se duas coisas particulares, semelhantes, são semelhantes porque ambas participam duma mesma idéia (a "participação" é a metaxis de Platão), então, para advertir da semelhança entre uma coisa e sua idéia fará falta uma terceira idéia; e para advertir da semelhança entre essa terceira idéia e a coisa, uma quarta idéia; e assim infinitamente. De modo que a interposição de uma idéia para explicar a semelhança que existe entre duas coisas supõe já, implica já num número infinito de idéias. O terceiro argumento grave que Aristóteles formula contra Platão é o seguinte: se há idéias de cada coisa, terá que haver também Idéias das relações, visto que as relações percebemo-las intuitivamente entre as coisas. A este argumento acrescenta outro: se há idéias do positivo, das coisas que são, terá que haver idéias do negativo, das coisas que não são, das coisas que deixam de MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 91 ser. Por exemplo: se há idéia da beleza, terá que haver idéia da fealdade; se há idéia do tamanho grande, terá que haver idéia do tamanho pequeno, e, em geral, de cada tamanho. Mas os tamanhos são infinitos: isto multiplicaria também desnecessariamente o número de idéias. A quinta objeção que Aristóteles formula é que a doutrina das idéias não explica a produção, a gênese das coisas. As idéias em Platão são conceitos, definições hipostasiadas; mas essas definições hipostasiadas ao máximo que poderiam chegar, se fosse inteligível a teoria da participação, seria a dar a razão daquilo que as coisas são, mas de modo nenhum a explicar como as coisas chegam a ser. Esta introdução por Aristóteles de uma exigência de explicação para o chegar a ser, dá-nos uma idéia clara de que, por cima da cabeça de Platão, deve ter havido em Aristóteles uma influência profunda do velho Heráclito, daquele Heráclito que fixou seu olhar preferentemente naquilo que a realidade oferece de mutável, de cambiável, de fluido E a ultima e talvez mais importante objeção que Aristóteles opõe a Platão ó de que as idéias são transcendentes. O transcendentismo das idéias parece-lhe insustentável. Não vê Aristóteles a necessidade de cindir e dividir entre as idéias e as coisas. E precisamente esta objeção é importante, porque a tarefa própria de Aristóteles na filosofia pode definir-se de um só traço geral com essas palavras: um esforço titânico para trazer as idéias platônicas do lugar celeste em que Platão as tinha colocado, e fundi-las dentro da mesma realidade sensível e das coisas. Esse esforço para desfazer a dualidade do mundo sensível e o mundo inteligível; para introduzir no mundo sensível a inteligibilidade; para fundir a idéia intuída pela intuição intelectual com a coisa percebida pelos sentidos, em uma só unidade existencial e consistencial; esse esforço caracteriza supremamente a filosofia de Aristóteles, a metafísica de Aristóteles. Vamos examinar esse esforço pormenorizadamente. 49. A filosofia de Aristóteles. Para compreender o pensamento de Aristóteles em filosofia é necessário não esquecer que, apesar das graves objeções MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 92 que faz contra Platão, é discípulo deste. Aprendeu a filosofia nos ensinamentos de Platão; nutriu-se de platonismo, ou seja de parmenidismo através de Platão; e continua Aristóteles conservando alguns dos supostos, das bases fundamentais do platonismo parmenídico. Em três pontos se podem resumir] as bases que Aristóteles conserva do platonismo: primeiro, que o ser das coisas sensíveis é problemático. Necessitará Aristóteles explicar em que sentido e como as coisas sensíveis são. O ponto de partida continua a ser, para Aristóteles, o mesmo que para Platão e para Parmênides: que os sentidos, o espetáculo heterogêneo do mundo com seus variados matizes não é o verdadeiro ser, mas antes é um ser posto em interrogação, é um ser problemático que necessita de uma explicação. Segundo: a explicação do ser problemático das coisas sensíveis consistirá em descobrir por trás delas o intemporal e o eterno. Aristóteles mostrará contra o movimento, contra a temporalidade, a mesma antipatia que Parmênides, Zenão e Platão. Agora vamos entrar em cheio na filosofia de Aristóteles e compreender perfeitamente tudo isso que acabamos de esboçar a grandes traços. 50. Substância, essência, acidente. O propósito de Aristóteles é primeiramente trazer as idéias transcendentes de Platão e fundi-las com as coisas reais de nossa experiência sensível. Para isso começa partindo da coisa tal como a vemos e sentimos. E na coisa real, tal como a vemos e sentimos, distingue Aristóteles três elementos: um primeiro elemento, que denomina substância; um segundo elemento, que denomina essência, e um terceiro elemento, que denomina acidente. Que é a substância? A substância tem em Aristóteles duas significações. Aristóteles a emprega indistintamente em uma e outra significação. Umas vezes — a maior parte das vezes — tem um primeiro sentido estrito. Outras vezes tem um sentido lato. O sentido estrito é o da unidade, que suporta todos os demais caracteres da coisa. Se nós analisamos uma coisa, descobrimos nela caracteres, notas distintivas, elementos conceituais: este copo é grande; é de cristal; é frio; tem água dentro; foi feito dessa maneira, MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 95 distingue agora na coisa esses dois elementos: a forma e a matéria. A que chama Aristóteles matéria? Aristóteles chama matéria a um conceito que não tem nada a ver com aquilo que em física chamamos hoje matéria. Matéria, para ele, é simplesmente aquilo de que é feito algo. O "aquilo de que é feito algo" pode ser isso que nossos físicos chamam hoje matéria; porém pode ser também outra coisa que não seja isso que os físicos chamam hoje matéria. Assim, uma tragédia é uma coisa que fez Esquilo ou que fez Eurípides, e essa coisa é feita de palavras, de logoi, de razões, de ditos dos homens, de sentimentos humanos; e não é feita de matérias no sentido que dão à palavra "matéria" os físicos de hoje. Matéria é, pois, para Aristóteles, aquilo — seja o que for — de que é feito algo. E forma? Que significa a forma para Aristóteles? Esta é uma das palavras que mais deram que fazer aos filósofos e aos historiadores da filosofia. Não nego eu que seja difícil interpretar aquilo que Aristóteles quis chamar "forma". Também não nego que a interpretação que eu lhe dou não esteja exposta a toda espécie de crítica. Mas eu, que não vou entrar agora em polêmica com todas e cada uma das acepções que esta palavra teve e tem, vou me contentar em dar "minha" interpretação. A palavra "forma" toma-a Aristóteles da geometria; toma-a da influência que a geometria tem sobre Sócrates e sobre Platão. Não esqueçamos que Platão inscreveu na porta de sua escola, que se chamava "Academia", um letreiro que dizia: "Ninguém entre aqui se não for geômetra." Considerava que o estudo da geometria era a propedêutica fundamental e necessária ao estudo da filosofia. A influência da geometria foi enorme, e Aristóteles entendeu por forma, primeira e principalmente, a figura dos corpos, a forma no sentido mais vulgar da palavra, a forma que um corpo tem, a forma como terminação-limite da realidade corpórea, vista de todos os pontos; a forma no sentido da estatuária, no sentido da escultura; isso foi que Aristóteles entendeu primeiro e fundamentalmente por forma. Mas sobre essa acepção e sentido da palavra, por "forma" entendeu também Aristóteles — e sem contradição alguma — aquilo que faz que a coisa seja o que é, aquilo que reúne MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 96 os elementos materiais, no sentido amplo referido antes, entrando também o imaterial. Aquilo que faz entrar os elementos materiais num conjunto, que lhes confere unidade e sentido. Isto é que Aristóteles chama forma. A forma, pois, se confunde com o conjunto dos caracteres essenciais que fazem com que as coisas sejam aquilo que são; confunde-se com a essência. A forma, em Aristóteles, é a essência, aquilo que faz com que a coisa seja o que é. Pois bem: essas formas das coisas não são para Aristóteles for mas ao acaso, não são formas casuais, não foram trazidas pelo ir e vir das causas eficientes na natureza. Longe do pensamento de Aristóteles, o mais longe possível, está nossa idéia de física moderna de que aquilo que cada coisa fisicamente é, seja o resultado de uma série de causas puramente físicas, eficientes, mecânicas, que, sucedendo-se umas às outras, chegaram a ser necessariamente aquilo que uma coisa neste momento é. Nada está mais longe do pensamento aristotélico do que isso; pelo contrário, para Aristóteles cada coisa tem a forma que deve ter, quer dizer, a forma que define a coisa. Por conseguinte, para Aristóteles a forma de algo é aquilo que dá sentido a esse algo; e esse sentido é a finalidade, é o telos, palavra grega que significa fim*, daí vem esta palavra que se emprega muito em filosofia e que é "teleologia"; teoria dos fins, o ponto de vista do qual apreciamos e definimos as coisas, não enquanto são causas mecanicamente, mas enquanto estão dispostas para a realização de um fim. Pois bem: para Aristóteles a definição de uma coisa contém sua finalidade, e a forma ou conjunto das notas essenciais imprimem nessa coisa um sentido que é aquilo para que serve. Desta maneira está já armado Aristóteles para responder à pergunta acerca da gênese ou produção das coisas. Se a matéria e a forma são os ingredientes necessários para o advento da coisa, então este advento em que consiste? Consiste em que à matéria informe, sem forma, se acrescenta, se agrega, se sintetiza com ela, a forma. E a forma que é? A forma, é a série das notas essenciais que fazem da coisa aquilo que é e lhe dão sentido, telos, finalidade. MANUEL GARCIA MORENTE FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA LIÇÕES PRELIMINARES 97 Pois bem: que é isto se não a idéia platônica que vimos descer do céu para pousar sobre a substância e formar a totalidade e integridade da coisa real? Pois a essa idéia platônica não dá Aristóteles tão-somente, como fazia Platão, a função de definir a coisa, mas também a função de conseguir o advento da coisa. A coisa advém a ser aquilo que é porque sua matéria é informada, é plasmada, recebe forma, e uma forma que é a que lhe dá sentido e finalidade. Mas isto dá às idéias platônicas o que as idéias platônicas não têm; imprime uma capacidade dinâmica, uma capacidade produtiva às idéias trazidas aqui ao mundo sensível na figura de forma e sob o aspecto de forma. Nessas idéias está para Aristóteles o germe, o princípio informativo, criador, produtivo, da realidade de cada coisa. Em que implica isto? Implica evidentemente em algo que já sai por completo dos limites em que se movia a filosofia de Platão, porque implica, sem que exista disso a menor dúvida, em que cada coisa è aquilo que é porque foi feita inteligentemente. Se a forma da coisa é aquilo que confere à coisa sua inteligibilidade, seu sentido, seu telos, seu fim, não há mais remédio que admitir que cada coisa foi feita do mesmo modo como o escultor faz a estátua, como o marceneiro faz a mesa, como o ferreiro faz a ferradura. Tiveram que ser feitas todas as coisas no universo, todas as realidades existenciais por uma causa inteligente, que pensou o telos, a forma, e que imprimiu a forma, o fim, a essência definidora na matéria. 52. Teologia de Aristóteles. A metafísica de Aristóteles desemboca inevitavelmente numa teologia, numa teoria de Deus, e vou terminar esta lição indicando os princípios gerais dessa teologia de Aristóteles ou teoria de Deus. Aristóteles, na realidade — embora em diversas passagens de seus escritos (na Metafísica, na Física, na Psicologia) formule algo que poderia parecer-se com o que chamaríamos hoje provas da existência de Deus — não crê que seja necessário demonstrar a existência de Deus. Porque para Aristóteles a existência de algo implica necessariamente na existência de Deus. Implica nisso da maneira seguinte*, uma existência das que nós MANUEL GARCIA MORENTE
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