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Guias e Dicas
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Etica Pesquisas Ciencias Humanas Sociais na Saude, Notas de estudo de Enfermagem

Etica Pesquisas Ciencias Humanas Sociais na Saude

Tipologia: Notas de estudo

2013

Compartilhado em 03/05/2013

gerson-souza-santos-7
gerson-souza-santos-7 🇧🇷

4.8

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Baixe Etica Pesquisas Ciencias Humanas Sociais na Saude e outras Notas de estudo em PDF para Enfermagem, somente na Docsity! ÉTICA NAS PESQUISAS EM CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS NA SAÚDE EDITORA HUCITEC Saúde em Debate 188 DIREÇÃO DE Gastão Wagner de Sousa Campos Maria Cecília de Souza Minayo Luiz Odorico Monteiro de Andrade Marco Akerman Marcos Drumond Jr. Yara Maria de Carvalho EX-DIRETORES David Capistrano Filho Emerson Elias Merhy José Ruben de Alcântara Bonfim ÉTICA NAS PESQUISAS EM CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS NA SAÚDE IARA COELHO ZITO GUERRIERO MARIA LUISA SANDOVAL SCHMIDT FABIO ZICKER ORGANIZADORES ADERALDO & ROTHSCHILD São Paulo, 2008 © 2008, desta edição, de Aderaldo & Rothschild Editores Ltda. Rua João Moura, 433 05412-001 São Paulo, Brasil Tel./Fax: (55 11)3083-7419 (55 11)3060-9273 (atendimento ao Leitor) lerereler@hucitec.com.br www.hucitec.com.br Depósito Legal efetuado. Coordenação editorial MARIANA NADA Assessoria editorial MARIANGELA GIANNELLA Este livro recebeu apoio financeiro do Programa UNICEF/UNDP/World Bank/WHO Special Programme for Research and Training in Tropical Diseases (TDR). CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte Sindicato Nacional de Editores de Livros, RJ E85 Ética nas pesquisas em ciências humanas e sociais na saúde / Iara Coelho Zito Guerriero, Maria Luisa Sandoval Schmidt, Fabio Zicker, organizadores. – São Paulo : Aderaldo & Rothschild, 2008. 308p. –(Saúde em debate ; 188) Inclui bibliografia ISBN 978-85-60438-63-1 1. Pesquisa – Aspectos morais e éticos. 2. Ética. I. Guerriero, Iara Coelho Zito, 1963-. II. Schmidt, Maria Luisa Sandoval, 1951-. III. Zicker, Fabio, 1951-. IV. Série. 08-3169 CDD: 174 CDU: 174 Se você quer ir rápido, vá sozinho, se você quer ir mais longe, vá junto. ANÔNIMO 11sumário Capítulo 10 Pesquisa qualitativa com famílias e casais . . . . Rosa Macedo Capítulo 11 Ética na pesquisa com temas delicados: estudos em psicologia com crianças e adolescentes e violência doméstica . . . Carolina Lisboa Luís Fernanda Habigzang Sílvia H. Koller Capítulo 12 Benefícios da avaliação ética de protocolos de pesquisas qualita- tivas . . . . . . . . . . Dalton Luiz de Paula Ramos Cilene Rennó Junqueira Nelita de Vecchio Puplaksis Capítulo 13 O termo de consentimento livre e esclarecido: desafios e dificul- dades em sua elaboração. . . . . . . Ana Maria de Barros Aguirre Capítulo 14 Contribuições para o debate sobre a viabilidade de trabalhar como pesquisador em uma instituição na qual se é membro da equipe de atendimento e aspectos éticos envolvidos . . . Rogério Lerner Capítulo 15 Ética na pesquisa qualitativa: reflexões sobre privacidade, ano- nimato e confidencialidade . . . . . . Deborah Rosária Barbosa Marilene Proença Rebello de Souza 167 176 193 206 223 237 12 sumário DIMENSÃO POLÍTICA DAS INSTITUIÇÕES QUE PROMOVEM ÉTICA EM SAÚDE Capítulo 16 O papel do Comitê de Ética em Pesquisa na Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo . . . . . . . Iara Coelho Zito Guerriero Capítulo 17 Ética em pesquisa com seres humanos: dignidade e liberdade . Yves de La Taille Capítulo 18 O impacto dos comitês de ética — CEPs, na atividade de pesqui- sa em Psicologia . . . . . . . . Zeidi Araujo Trindade Heloisa Szymanski SOBRE OS AUTORES. . . . . . . . 253 268 280 305 APRESENTAÇÃO MA R I A CE C Í L I A D E SO U Z A MI N AY O Quero agradecer o delicado convite que me foi feito por Iara Coe-lho Zito Guerriero, Maria Luisa Sandoval Schmidt e Fabio Zicker para que apresentasse este livro, fruto de encontros, de comunicações e de questionamentos sobre a Ética nas Pesquisas em Ciências Sociais e Humanas na Saúde. O agradecimento é do mesmo tamanho da minha pequenez diante de um tema que vem ocupando, felizmente, o pensa- mento e a reflexão de importantes cientistas sociais vinculados ao setor saúde ou fora dele. Assim que os leitores apenas esperem de mim o reforço das principais idéias com as quais comungo e a expressão de algumas preocupações pela prática da investigação. Este livro traz uma grande riqueza de contribuições sobretudo porque reflete uma discussão coletiva. Abrange aspectos conceituais tais como importância da pesquisa sociológica para a saúde coletiva e a contribuição da antropologia para pensarmos as questões fundantes das relações intersubjetivas. Mas também apresenta discussão sobre in- dagações práticas como é o caso da proteção da privacidade do indiví- duo versus o interesse coletivo na pesquisa qualitativa; das situações em que o profissional de saúde é responsável pela assistência e é tam- bém pesquisador; e do papel do comitê de ética em pesquisa na univer- sidade e no serviço de saúde. Como chamam atenção os organizadores, cada um de seus capí- tulos expressa a opinião pessoal dos autores, numa demonstração ca- bal de que não existe ainda uma opinião formada sobre como proceder em muitos casos e em muitas situações. Essa relativa imprecisão ou 13 16 maria cecília de souza minayo forma, o setor saúde e, mais particularmente, a área de medicina aca- bou por estender seus tendões por disciplinas e lógicas que não lhe são peculiares. Essa posição vem criando atritos desnecessários, principal- mente porque acabou por transformar a ética em sinônimo de procedi- mentos éticos. Dois pontos interessantes podem ser assinalados nessa história: todos os pesquisadores das áreas sociais e humanas, inseridos em ensino e pesquisa em saúde são obrigados a apresentar seus projetos para os Comitês de Ética que se criaram obrigatoriamente em todas as instituições que fazem investigação e formação no setor. No entanto, os cientistas sociais e das áreas de humanidades em geral — todos eles fazendo pesquisa com populações ou indivíduos — continuam isentos da Resolução 196, ou porque se rebelaram, recusando a se submeter aos códigos da medicina ou porque consideram a Resolução inadequa- da para regular suas práticas. Um segundo ponto relevante é que a inquietação gerada pela Resolução acabou por incitar as áreas discipli- nares sociais e humanas a criarem seus códigos próprios, o que traz uma contribuição muito positiva também porque, geralmente, esses documentos são aprovados em Congressos das categorias, portanto, passando por discussões coletivas. (2) Minha segunda observação diz respeito ao fato de que, no Brasil, a discussão sobre ética em pesquisa, por força da normatização, acabou sendo um problema dos Comitês de Ética. Constituímos assim um modelo formalista para tratar do assunto, implantando-o como pensamento único da bioética oficial. Como muito bem lembra Corrêa, uma expressão concreta dessa história é a generalização do “termo de consentimento” (Corrêa, 2000). Ora, a excessiva normatização acaba por demonstrar pouca sensibilidade com as diferenças entre os grupos sociais, seus interesses e seus contextos assim como com os métodos e estratégias de observação. E, uma das conseqüências dessa situação é o pouco interesse dos pesquisadores por participarem dos Comitês, fre- qüentemente considerando essa atividade apenas como cumprimento de uma obrigação institucional. Nesse momento, é preciso buscar as origens da atual situação e encontrá-la na fonte principalista anglo- saxônica que gerou uma vasta bibliografia sobre o assunto e que muito influenciou o debate brasileiro nas áreas biomédicas. Como lembra Neves 17apresentação (2006), dominada por fundamentos filosóficos pragmáticos, essa vi- são filosófica acabou gerando um campo disciplinar específico para formação de bioeticistas, com normas de conduta moral descritas e uma ética situacionista e casuística. Diz Neves: “A reflexão bioética da tradição filosófica anglo-americana desenvolve uma normativa de ação que, enquanto conjunto de regras que conduzem a uma boa ação, ca- racterizam uma moral” (2006, p. 4). É interessante observar que os Cientistas Sociais e todos os que trabalham na área de Humanidades do país beberam muito mais na fonte da ciência e da filosofia da Europa continental, em que a discussão sobre a ética passa por uma inquirição acerca do agir humano e dos princípios que determinam a moralidade da ação. A filosofia hegemônica na Europa, como lembra Neves (2006) está impregnada pelas idéias do existencialismo e da fenomenologia, constituindo uma ética antropológica e humanística, cuja missão é acompanhar a subjetivação do sujeito dentro de alguns princípios bási- cos que são a unicidade da subjetividade; o caráter relacional da inter- subjetividade e a solidariedade em sociedade. Os pensamentos expressados acima são uma pequena contribui- ção para ressaltar a importância deste livro e para dar força a todas as investigações que reforcem a importância da discussão da ética em pes- quisa social. Sobretudo, encareço as que enfatizam os problemas refe- rentes aos contextos em que todas a relações sociais simétricas e assi- métricas e as práticas de dominação e opressão se reproduzem, interpares ou com os pesquisados. E por fim, creio que são fundamentais as dis- cussões que dão relevo às peculiaridades das pesquisas sociais e huma- nas onde a inter-relação, a empatia e a solidariedade são mais impor- tantes do que qualquer papel assinado. Tenho certeza de que os leitores terão muito a aprender com os autores deste livro, pois todos eles e, sobretudo seus organizadores, es- tão empenhados em aprofundar uma discussão profícua e necessária sobre uma ética que não pode isentar os investigadores em nenhum dos atos que envolvem sua atividade, desde o ponto de vista institucional e relacional até o ato intersubjetivo da relação com seus interlocutores em campo. 18 maria cecília de souza minayo REFERÊNCIAS Corrêa, M. C. D. V. Dossier: A bioética e sua evolução — a conquista da responsabilidade. O Mundo da Saúde, São Paulo, 24(3):223- 6, 2000. Devries, R. Toward a Sociology of Bioethics. Qualitative Sociology, 18(1):73-90, 1995. Fazzio, A.; Chaves, A.; Melo, C. P.; Almeida, R. M.; Faria, R. M. & Shellard, R. C. Ciência para um Brasil competitivo — o papel da Física. Brasília: E. Capes, 2007. Neves, M. C. P. A fundamentação antropológica da bioética. [texto capturado na internet em 2006, no dia 7 de maio] Acessível em <http//www.portalmedico.org.br/revista/bio1v4/fundament.html>. Rothman, D. J. Stranger at the Bedside: a History how Law and Bioethics Transformed Medical Decision Making. Nova York: Basic Books, 1991. 21introdução que a ética é parte da própria pesquisa e da relação que se estabelece entre o pesquisador e os “outros” durante este processo. Dallari (Capítulo 3), por sua vez, traça um histórico de como aspectos éticos, em especial os relativos à privacidade, confidencialidade e sigilo vêm sendo tratados em documentos internacionais, de uma perspectiva que relaciona ética e direito. Neste texto, amplo e instigante, a autora expõe de modo contundente o dilema do desejo de progresso científico que cobra um preço às chamadas liberdades individuais. De la Taille (Capítulo 17) questiona o excesso de normatizações e destaca a importância de dois princípios, na análise da ética na pesqui- sa: o da dignidade e o da liberdade. Langdon e colaboradores no Capítulo 7 e Concone (Capítulo 6) discutem mudanças teórico-metodológicas que se vêm processando no âmbito da antropologia e suas implicações éticas, contribuindo para a compreensão de certas singularidades das pesquisas qualitativas irredu- tíveis às visões positivista e pós-positivista que embasam a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde brasileiro. A compreensão das abordagens qualitativas é favorecida, ainda, pelos capítulos de Ramos e colaboradores, Macedo, van den Hoonaard, Koller et al. e Silveira et al. A qualidade do relacionamento entre pesquisador e participantes/ colaboradores, é ao mesmo tempo um aspecto ético e metodológico, discutido por van den Hoonaard, que destaca que a qualidade dos dados depende da qualidade desse relacionamento. O pesquisador bus- ca construir um relacionamento com o pesquisado/colaborador, que implica não transformá-lo em objeto de estudo, mas estabelecer e man- ter um relacionamento entre dois sujeitos, com o que concordam Ador- no (Capítulo 8), Langdon (Capítulo 7), Concone (Capítulo 6), Schmidt & Toniette (Capítulo 5) e van den Hoonaard (Capítulo 4). Negociação, interlocução e abertura para o outro são elementos constituintes da relação entre pesquisador e participante pesquisado tratados por van den Hoonaard (Capítulo 4) e Macedo (Capítulo 10). Outro elemento concomitantemente ético e metodológico é a impossibilidade de separar o objeto do conhecimento do sujeito que conhece. Assim, o conhecer é entendido como um ato de construção da 22 guerriero, schmidt & zicker realidade na acepção de descrevê-la e dar-lhe um sentido, como destaca Macedo (Capítulo 10). Diversos capítulos assinalam a pesquisa qualitativa como um cam- po de múltiplas propostas teórico-metodológicas. Um exemplo dessa diversidade é que a pesquisa qualitativa pode incluir um número grande de pessoas, como num estudo etnográfico (van den Hoonaard), ou um número pequeno, como pesquisas que analisam histórias de vida, entrevistas, etc., como apontam Concone (Capítulo 6) e Ramos e colaboradores (Capítulo 12). Ramos e colabo- radores destacam que a definição do número de pessoas que serão in- cluídas na pesquisa qualitativa adota critérios próprios, como critério de saturação, e a definição de quem participará da pesquisa pode ser intencional, com o pesquisador convidando as pessoas que detêm co- nhecimento sobre as questões em estudo. Ramos e colaboradores apre- sentam diferentes técnicas de coleta de dados. Assim como há diversidade nos modos de compor o grupo de colaboradores (participantes da pesquisa) e nas maneiras de coletar a experiência desses colaboradores, há, como apontam Macedo, Koller et alii e Silveira et alii, impasses na condução ética das pesquisas quali- tativas no que diz respeito à divulgação, ao sigilo e aos desdobramen- tos práticos do conhecimento construído. Estes autores, pesquisando, respectivamente, a família, a violência contra crianças e adolescentes e usuários de serviço de saúde mostram, em seus textos, como e quanto estas esferas de investigação marcam o próprio método qualitativo e sua ética. No segundo conjunto de textos, o desafio de assumir paralelamen- te o papel de profissional responsável pela assistência e de pesquisador é discutido por Lerner (Capítulo 14). O tema é sensível, sobretudo na área de atuação clínica médica, atendimento clínico psicológico ou nos casos em que a investigação suscita efeitos emocionais e afetivos que re- querem do pesquisador atenção e cuidados. Concone e Macedo trazem, também, contribuições para a abordagem deste tema, alertando para as situações singulares das pesquisas em serviços e equipamentos de saúde envolvendo trabalhadores e prestadores de serviços e as realiza- das com famílias e casais. 23introdução O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) tem sido sem dúvida, um assunto polêmico e recorrente na esfera das pesquisas qualitativas e, especialmente, nas de cunho participante. Considerado como a concretização do princípio da autonomia, garantindo em documento assinado pelo voluntário da pesquisa sua compreensão e aceitação de participar do estudo, implica uma deter- minada concepção de indivíduo e de autonomia e numa dada maneira de estabelecer o relacionamento entre pesquisador e pesquisado, que não convém generalizar como adequada a todas as pesquisas. A incom- preensão sobre limites e reservas do TCLE como principal instrumento de “garantia” do exercício da autonomia dos participantes de pesqui- sas contribui para que seja uma das principais causas de pareceres pen- dentes e não aprovados pelos comitês de ética em pesquisa. Aguirre (Capítulo 13) trata do TCLE teórica e praticamente, lan- çando um conjunto de perguntas que buscam alertar para a necessida- de de consideração das situações concretas de pesquisa para avaliação da pertinência e do teor dos termos de consentimento. Langdon e colaboradores (Capítulo 7) e Ramos e colaboradores (Capítulo 12) referem-se, ainda, ao TCLE, ajudando a posicionar sua exigência como instrumento de garantia ética das pesquisas e seu uso de modo mais qualificado e relativo, indicando, principalmente, di- mensões dialógicas e processuais das pesquisas participantes em que os termos podem ser dispensados ou, mesmo, inadequados. De la Taille (Capítulo 17), por sua vez, defende o uso do TCLE somente quando há de fato riscos para os voluntários, e alerta que o princípio da liber- dade deve prevalecer sobre uma regra que venha a legitimar a exigência descabida ou meramente burocrática de apresentação de TCLE. No bloco final, incluem-se os capítulos de Guerriero (Capítulo 16), De la Taille (Capítulo 17) e Szymanski & Trindade (Capítulo 18). Guerriero (Capítulo 16) discute as funções dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs), partindo de experiência pessoal na coordenação do CEP da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. Destaca a importância de estabelecer relações colaborativas e não hierárquicas entre os serviços e as universidades, visando a produção de conheci- mento que considere diferentes saberes, ou, como diria Boaventura de 26 everardo duarte nunes vezes extraviam-se pelos caminhos de uma política estranhamente des- compromissada com a res publica. Num torvelinho de preconceitos, discriminações e conflitos busca-se reencantar um mundo para o qual a ciência, pensada pelos clássicos, parece não ser suficiente. Mas o legado dos clássicos continua válido: “Going back to Comte, Durkheim, Marx and Weber, we know — and have known all long — that social problems need to be addressed with social solutions. Failing to perceive the problem as «ours», we fail to search vigorously for solu- tions” (Eichler, 1998, p. 15). Sem dúvida, como fartamente mostrado ao longo de sua existên- cia como campo de conhecimento, as ciências sociais, em particular a sociologia, procuraram evidenciar que “qualquer condição social tem causas sociais” (Eichler, 1998, p. 15). Pesquisar e entender essas causas sociais foram as grandes motivações dos pesquisadores nos mais diver- sos campos de estudos: das comunidades rurais às urbanas, da família às redes de parentesco, da sociedade ao Estado, do trabalho às profissões, das organizações profanas às instituições religiosas, da socialização à educação formal, dos sistemas laicos aos profissionais de diagnóstico e tratamento da doença, da ordem estabelecida à mudança, etc. Para percorrer tão diferentes temáticas, as ciências sociais elabora- ram construções metodológicas buscando estreitar um balanço entre teorias e técnicas de investigação. Mas a questão não é simples. O qua- dro teórico que procura interpretar o mundo dando-lhe um significado que transcende a realidade empírica é a proposta magna das ciências sociais na construção de uma teoria social. Giddens & Turner (1999, p. 9) analisam que, a partir da perspectiva aberta por “uma nova filosofia da ciência” na esteira dos trabalhos de Kuhn, Lakatos e outros, ocorreu uma mudança na visão da ciência (agora vista como esforço interpre- tativo) e uma revalorização da teoria que iriam influenciar as ciências sociais, encaminhando-as para abordagens menos ortodoxas. Assim, retoma-se a fenomenologia (associada a Schutz); a hermenêutica (nas vertentes de Gadamer e Ricœur); a teoria crítica (na ótica de Habermas). Falam, ainda, de uma revitalização do interacionismo simbólico, es- truturalismo e pós-estruturalismo; e, mais recentemente, a etnometo- dologia; a teoria da estruturação (Giddens) e a “teoria da prática” 27pesquisas em ciências sociais e humanas para a saúde coletiva (Bourdieu). Em relação às abordagens ortodoxas, “apesar de cultiva- das por menos estudiosos que antes” (Giddens & Turner, 1999, p. 10), ainda persistem o funcionalismo estrutural parsoniano, dentre outros, em Luhmann e Alexander. O quadro teórico atual não é totalmente claro, mas evidencia que a conduta social humana pode ser analisada de diferentes maneiras. O que se destaca em sua trajetória é que, depois da “sociologia como afirmação”, na expressão usada por Florestan Fernandes, em 1962 e da “sociologia como interrogação”, na feliz argumentação trazida por Gabriel Cohn, em 1987 (Cohn, 1987), seguindo o pensar de Imma- nuel Wallerstein, Anthony Giddens, Pierre Bourdieu, Octavio Ianni, eu diria que, a partir dos anos 90, aflora uma “sociologia como diálogo” — aberta aos novos embates e problemas de forma crítica e reflexiva. Como escreve Ianni (1997, p. 15), “vale a pena repensar a sociologia, refletir sobre suas perspectivas, realizar um balanço crítico das suas rea- lizações, focalizar os seus impasses e imaginar as suas potencialidades como forma de autoconsciência científica da realidade social”. Essas são idéias fortes que servem como bússola para se entender uma sub- disciplina da sociologia — a sociologia da saúde. Circunscrever nesta subdisciplina também é necessário, conside- rando-se que se torna difícil, em uma única apresentação, tratar do vasto campo das ciências sociais e humanas em saúde; assim, escolhe- mos abordar as perspectivas mais recentes da sociologia da saúde, acres- centando alguns pontos que são julgados de importância para a saúde coletiva. Interessante observar que as ciências sociais em saúde que esti- veram durante bastante tempo associadas a duas correntes opostas, o funcionalismo (parsoniano e mertoniano) e o materialismo dialético (marxista e marxista althusseriano) irá aderir às “novas” correntes teó- ricas, que se abriram a partir da crítica ao funcionalismo. AS NOVAS SOCIOLOGIAS DA SAÚDE A idéia de trabalhar o campo da investigação sociológica a partir das mudanças havidas no campo teórico, quando ocorre uma “renova- ção de problemática: entre a sociologia e a filosofia, entre a sociologia 28 everardo duarte nunes e outras ciências do homem e da sociedade (ciência política, história, etnologia, economia, lingüística, psicologia, etc.)” trazida por Philipe Corcuff (2001, p. 8) parece-me bastante oportuna em relação ao cam- po da saúde. Daí, termos adotado a sua expressão “novas sociologias”. Como é abordado por Corcuff (2001, p. 7), a tentativa dos sociólogos franceses saírem, a partir dos anos 80, das “antinomias clássicas (como material/ideal, objetivo/subjetivo, coletivo/individual ou macro/micro) que, apesar de serem constitutivos da sociologia, têm hoje um papel geralmente pouco produtivo”, aplica-se às temáticas abordadas nas investigações sobre a saúde/doença/organização e gestão do cuidado/ serviços de saúde. Assim, com a denominação “novas sociologias da saúde”, deve- se entender as formulações que começam a aparecer a partir dos anos 70, e se firmam dos anos 80 em diante, num movimento geral que estabelece ruptura com o paradigma funcionalista, cuja marca foi trazida por Talcott Parsons, a partir dos anos 50 e se estendeu por cerca de duas décadas. Essas novas formulações podem ser agrupadas em diver- sas direções: a perspectiva interacionista simbólica, a perspectiva fou- caultiana, a sociologia do corpo, a sociologia das emoções e a perspec- tiva do movimento feminista em saúde. Destaque-se que as abordagens da economia política da saúde e do materialismo histórico também podem ser citadas como rompendo com as explicações sistêmicas fun- cionais e teve importância crescente nos anos 70 e 80, quando as suas insuficiências passam a ser apontadas (Annandale, 1998, pp. 11-20). Para Corcuff (2001, p. 8), o conjunto de mudanças no campo teórico da sociologia a partir dos anos 80 pode ser denominado de “construtivismo social”, entendendo que “a realidade social tende a ser apreendida como construída (e não como «natural» ou «dada» de uma vez por todas)”, dividindo esta abordagem em teóricos que cami- nharam das estruturas sociais às interações (Norbert Elias, Pierre Bourdieu e Anthony Giddens) e aqueles que partem dos indivíduos e de suas interações rumo às instituições e organizações mais amplas (Peter Berger e Thomas Luckmann, Aaron Cicourel, Bruno Latour, John Elster). Certamente, como o autor analisa, estas não são as únicas formulações da sociologia francesa do período, e contribuições importantes foram 31pesquisas em ciências sociais e humanas para a saúde coletiva pacto de Foucault foi tão grande que impulsionou a mudança de abor- dagem: da sociologia médica para sociologia da saúde e da doença e destaca que as três principais contribuições para a ciência social con- temporânea foram: uma análise das relações poder/saber, o entendi- mento da emergência do self relacionado às tecnologias disciplinares, e a análise da governabilidade. No Brasil, dentre os trabalhos mais conhecidos, podem ser citados: Arouca [1975] (2003), em seu estudo sobre a medicina preventiva; Machado e cols. (1978), sobre a medicina social e psiquiatria brasilei- ras; Botazzo (2000), sobre a história arqueológica da clínica odontoló- gica; Ortega (2004), sobre as relações biopolíticas e poder. SOCIOLOGIA DO CORPO Uma vertente importante de estudos tem sido centralizada no cam- po da sociologia do corpo. Para Foucault, “O corpo não é simples- mente um foco de discurso, mas constitui o elo entre as práticas diárias de um lado e a organização do poder em larga escala, de outro” (Schilling, 1993). Recentemente, Williams (2006) perguntava “onde está o corpo biológico na sociologia médica atual?” e, ao revisitar a literatura sobre a corporeidade, avaliava a importância crescente do tema para a inves- tigação sociológica. Em realidade, se a sociologia clássica não ignorou totalmente o assunto, não fez dele um objeto privilegiado de interesse, o que não aconteceu com a antropologia, cujo interesse pelo corpo inscreve-se no campo desde as suas origens. Assim, somente no século XX aparece um texto que se tornará emblemático na sociologia, escri- to por Mauss (1974), que conferiu às práticas corporais uma atenção especial. O texto de Mauss data de 1934 e tornou-se referência para o estudo das técnicas corporais. A emergência do corpo na sociologia tem sido apontada como conseqüência de mudanças sociais e acadêmi- cas (Schilling, 1993, p. 29). Podem ser citados como fatores: a “segun- da onda” do feminismo, redefinindo as fronteiras entre mulheres e ho- mens e problematizando a natureza dos termos mulher, homem, macho, fêmea, feminilidade, masculinidade; envelhecimento da população e as 32 everardo duarte nunes concepções de jovem, idoso; avanço da sociedade de consumo e os va- lores simbólicos atribuídos ao corpo, especialmente do jovem; o “con- trole” sobre o corpo, por exemplo, as dietas alimentares, cirurgias de transplantes, inseminação artificial, cirurgia plástica, “corpo como uma máquina”, em especial no campo esportivo. De modo geral, o que tem sido apontado é que a diversidade da literatura sobre o assunto irá acercar-se dos corpos tanto em sua dimensão física, médica como indi- vidual, social, mas também medicalizado, sexualizado, disciplinado (Schilling, 1993, p. 39). Sem uma excessiva simplificação, pode-se di- zer que a sociologia do corpo inscreve-se em uma corrente de estudos trazida pelo interacionismo simbólico, com destaque à perspectiva de Erving Goffman. Featherstone et alii (1991, p. 11) assinalam que “o trabalho de Goffman foi significante em alertar os teóricos sociais para o papel do corpo na construção de uma pessoa social”. Embora ele nunca tivesse proposto uma teoria específica do corpo, como funda- mento implícito de suas teorias, o corpo esteve presente nas análises desse autor, por exemplo, na análise do estigma. Annandale (1998, pp. 57, 58), em oportuna revisão teórica sobre a sociologia do corpo, lembrava que para os sociólogos é importante demonstrar “a relação dialética entre o corpo físico e a subjetividade humana, freqüentemente expressada no conceito de «corpo vivo»”. Assinala como se torna presente a questão de como são construídas as identidades dos corpos, muitas vezes “contraditando” a fisiologia (por exemplo, as identidades de gênero, quando as meninas são vistas como fracas e frágeis, mesmo com corpos maiores do que o dos meninos). A transcrição de um trecho de Turner (1992, p. 167, apud Annandale, 1998, pp. 57, 58) é extremamente esclarecedor: “a sociologia do corpo representa um importante contraponto ao modelo médico e ao reducio- nismo sociobiológico, porque, no conceito de corporeidade (embodi- ment no original), podemos quebrar o dualismo do legado cartesiano, fenomenologicamente visualizando a íntima e necessária relação entre o sentido do meu próprio self, a consciência da integridade de meu corpo e a experiência da doença (illness) não simplesmente como um ataque sobre meu corpo instrumental [. . .] mas como uma intrusão radical em minha própria corporeidade”. 33pesquisas em ciências sociais e humanas para a saúde coletiva Assim, a partir dos anos 80, um significativo número de sociólo- gos tomará o tema tanto do ponto de vista teórico como empírico, e dentre os textos podemos citar: Schilling (1993) e Featherstone et alii (1991) na literatura anglo-saxônica. Na literatura francesa, o antropó- logo David le Breton (2006) vem desde 1985 produzindo uma série de estudos sobre a corporalidade humana; outros estudiosos, como Deni- se Jodelet (1984), também têm realizado pesquisas sociológicas sobre o corpo e, anteriores a eles, Luc Boltanski [1971] (1989), cujo texto “Os Usos Sociais do Corpo” tornou-se leitura obrigatória. Sem dúvida, a anterioridade dos estudos na França, além do pioneirismo de Mauss, pode ser encontrada em Foucault que, como visto acima, traz impor- tantes abordagens sobre o processo de “disciplinarização” — controle e sujeição (biopoder) dos corpos e, antes de Foucault, filósofos como Nietzsche e Merleau-Ponty haviam-se reportado de forma profunda e analítica sobre o corpo. Cumpre destacar a importância de Bourdieu, cuja abordagem articula níveis diferentes da sociedade, mediante as noções de campo e de habitus. Apontamos estes trabalhos sem intenção de revisão sistemática, mais com o sentido de situar a relevância dos estudos e também para assinalar que a emergência do interesse da sociologia pelo corpo coinci- de com a mesma preocupação na sociologia da saúde, de forma quase que concomitante. Na literatura brasileira, desponta, também, o inte- resse pelos temas voltados ao simbolismo do culto ao corpo (Pereira, 2004); manutenção e aparência do corpo em uma sociedade de consu- mo (Castro, 2005); pelos problemas trazidos pelas disfunções alimen- tares (anorexia nervosa); corpo e estética (Queiroz, 2001), corpo, sexua- lidade e reprodução (Loyola, 2003; Martins, 2004) e pelas revisões históricas (Rodrigues, 1983, 1999). SOCIOLOGIA DAS EMOÇÕES O quarto movimento das novas sociologias aponta para o campo da sociologia das emoções, que começou a se desenvolver nos Estados Unidos na metade dos anos 70. Destaca-se que a sociologia das emo- ções, para alguns estudiosos, foi uma das formas de enfrentamento das 36 everardo duarte nunes Sem dúvida, na área da saúde, esta perspectiva pode ser extrema- mente enriquecedora nos estudos sobre o cuidado, humanização das práticas, processos interacionais e redes sociais, adoecimento crônico, e da própria bioética, como salienta Morris (1998, pp. 259-69), dentre outros temas. MOVIMENTO FEMINISTA EM SAÚDE Finalmente, a quinta dimensão das novas propostas advém do movimento feminista em saúde. Não se trata aqui de apresentar consi- derações sobre o tema do movimento feminista em seus detalhes teóri- cos, havendo vasta literatura, também nacional, que trata do assunto (Pinto, 2003). A temática da saúde, por sua vez, tem recebido expressi- va contribuição dos grupos que se dedicam no país a estudar as relações gênero/saúde. Há trabalhos recentes que tratam da morbidade da mu- lher brasileira, de gênero, sexualidade, reprodução e saúde, e um dos estudos mais completos e atuais sobre a produção científica no campo das relações gênero e saúde é de autoria de Estela M. L. Aquino (2006). Nesse estudo, utilizando dados do Diretório de Grupos de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, do Banco de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ní- vel Superior, e quatro periódicos da área da saúde, a autora traça um perfil da produção científica. Do ponto de vista quantitativo foram identificados 51 grupos de pesquisa, 98 dissertações, 42 teses e 665 artigos sobre gênero e saúde. Alguns dados destacam-se como o fato de que as mulheres são autoras de 86,0% das teses e 89,0% das disserta- ções e 70,5% dos artigos, assim como o fato de que a grande maioria foi publicada a partir de 2000. Ao relatar as temáticas dos trabalhos, a autora salienta que “O mapeamento do campo de gênero e saúde con- firma o crescimento acentuado na produção científica, especialmente nos últimos cinco anos. Grosso modo, os temas podem ser reunidos em cinco subgrupos: reprodução e contracepção; violência de gênero, e suas variações, como violência doméstica, familiar, conjugal e sexual; sexua- lidade e saúde, com ênfase nas DST/Aids; trabalho e saúde, incluindo o trabalho doméstico e o trabalho noturno; outros temas emergentes ou 37pesquisas em ciências sociais e humanas para a saúde coletiva pouco explorados como o envelhecimento e a saúde mental” (Aquino, 2006, p. 128). Um texto bastante interessante, de autoria de Castro & Bronfman (1993), situa a contribuição da teoria feminista para a sociologia mé- dica; além de apresentar conceitos importantes para as análises, como patriarcado, gênero, sexo/gênero, discute as tentativas do feminismo no desenvolvimento de um novo conhecimento, concluindo com uma análise de três áreas da sociologia médica de suas relações com o femi- nismo: o processo saúde-doença, o saber médico e a prática médica. Os autores enfatizam a importância da teoria feminista no campo das teo- rias sociais, “Sem dúvida, como paradigma em ascensão, a teoria femi- nista enfrenta problemas teóricos que é preciso resolver”, citam o con- ceito de patriarcado que pode trazer alguma explicação, mas ao mesmo tempo é um conceito que necessita ser explicado. Todas essas dimensões são bem mais complexas do que foi aqui apresentado, mas, mesmo de forma tão esquemática, permitem avaliar que o campo da sociologia da saúde vem ampliando o seu escopo tra- zendo novos desafios aos pesquisadores. CONSIDERAÇÕES F I N A I S Como foi dito anteriormente, as ciências sociais e humanas con- formam um largo espectro de disciplinas e cada uma delas apresenta suas peculiaridades em relação à saúde. No plano internacional, a sua presença encontra-se institucionalizada há algumas décadas. Analisei extensivamente como o desenvolvimento desse campo nos Estados Unidos, Inglaterra e França (Nunes, 2003) apresenta diferentes enca- minhamentos. Mostro que no início dos anos 90, Perlin (1992) estabe- leceu uma categorização de como se havia organizado o amplo espec- tro de interesses dentro da sociologia médica americana, dividindo os pesquisadores em duas classes: os “structure seekers” e os “meaning seekers”. Para este autor, a própria sociologia, que no passado havia sido dominada por duas ou três teorias, encaminhava-se, nessa década, para muitos paradigmas distintos. Como escreve: “As linhas cruzadas que cobrem a face da sociologia na atualidade refletem, naturalmente, 38 everardo duarte nunes a especialização de interesses importantes que têm emergido gradual- mente em recentes anos, os refinamentos de perspectivas teóricas, e o desenvolvimento de metodologias sofisticadas”. Da mesma forma, esse pluralismo intelectual, que tem trazido vigor e vitalidade para o cam- po, tem concorrido para a multiplicação de subcampos e especialida- des na sociologia, atingiu a sociologia médica, “espelhando-se na disci- plina mais ampla” (Perlin, 1992, p. 1). Assim, a sociologia médica já não pode ser considerada uma subespecialidade unificada, se é que o foi algum dia, como diz esse autor. Cita um elenco de pesquisas que abordam: as políticas nacionais de saúde; a reabilitação das doenças e da incapacidade; os profissionais que cuidam da saúde, seu treinamen- to, socialização e comportamento; a organização formal dos estabele- cimentos de saúde; estigma; as origens e conseqüências do estresse; ética médica; comportamento de risco na saúde; utilização dos serviços de saúde; aids; álcool e abuso de drogas; epidemiologia social; a morte e o morrer; a história social das práticas de saúde e normas; etc. Chama a atenção que, do ponto de vista metodológico, os métodos qualitativos e quantitativos têm sido ampla e diversificadamente utilizados. De outro lado, o campo compõe-se não somente por sociólogos médicos, mas por profissionais com formações as mais diversas, por exemplo, psico- logia social, bioestatística, ou em áreas do conhecimento específicas, tais como: família, organização das profissões, ciclo da vida; estratifi- cação social, trazendo para o campo da sociologia médica as tradições intelectuais de outras áreas do conhecimento. Porém, “sob a superfície dessa diversidade, há uma considerável consolidação de orientações entre os sociólogos médicos” (Perlin, 1992, p. 2). Para o autor, de um lado estão os sociólogos que “procuram revelar a estrutura da vida social e suas conseqüências para a saúde; de outro lado, há os que procuram revelar o significado da vida social e seus reflexos sobre a saúde”. As- sim, para simplificar, chama os primeiros de “structure seekers” e, os segundos, de “meaning seekers”. Esclarece que essas não são divisões rígidas e pesquisadores podem situar-se em suas fronteiras. No plano nacional, a incorporação das ciências sociais ao campo da saúde coletiva inscreve-se na origem desse campo. O caso brasileiro é bastante típico, pois as ciências sociais e humanas constituem um dos 41pesquisas em ciências sociais e humanas para a saúde coletiva REFERÊNCIAS Alves, P. C. A experiência da enfermidade: considerações teóricas. Cader- nos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 9(3):263-71, jul.-set., 1993. Annandale, E. The Sociology of Health and Medicine. Cambridge: Polity Press, 1998. Aquino, E. M. L. Gênero e saúde: perfil e tendências da produção científica no Brasil. Revista de Saúde Pública, 40(n.o especial):121-32, 2006. Aquino, E. M. L.; Menezes, G. M. S. & Amoedo, M. B. Gênero e saúde no Brasil: considerações a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio. Revista de Saúde Pública, 26(3), 1992. Arouca, S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crí- tica da medicina preventiva. RJ-S. Paulo: Fiocruz-Ed. Unesp, 2003. Bodstein, R. 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Por di- mensão política compreendem-se as relações de poder (dominação ou emancipação) nas práticas de pesquisa, incluindo a geografia dos luga- res de escuta, fala e decisão na condução de todas as fases da investiga- ção. Por dimensão ideológica entende-se a produção de efeitos de reco- nhecimento, desconhecimento, estranhamento e conhecimento no plano das representações do outro (Althusser, 1974; Guilhon Albuquerque 1978, 1980; Schmidt, 1984). Dessa forma, a concepção de ética como morada não se apresenta como antídoto para os efeitos políticos e ideológicos produzidos na e pela pesquisa, mas, ao contrário, como consideração destes efeitos no âmbito das escolhas e responsabilidades do pesquisador. As conexões entre ética, política e ideologia são, portanto, um primeiro aspecto a apreender com e na pesquisa qualitativa de tipo participante. As relações de poder e os efeitos ideológicos não se situam num tempo posterior ao processo de pesquisa como modos espúrios ou cor- retos de “apropriação” dos produtos da ciência. Estes efeitos são pro- duzidos no decorrer da pesquisa e constituem as relações de colabora- ção e interlocução. A ética reporta, exatamente, ao modo de lidar, tematizar e agir no interior dessas relações, quase sempre, de partida, assimétricas e hierárquicas. Método e ética convergem na pesquisa participante em que um dos intentos é perceber, abrigar e pôr em discussão diferenças, princi- palmente entre pesquisador e colaborador ou interlocutor e, ainda, or- questrar certa pluralidade de vozes, sem que diferenças consolidem po- sições hierárquicas, valorizadas em termos de mais e de melhor. 49aspectos éticos nas pesquisas qualitativas A convergência de método e ética pressupõe, portanto, o encon- tro de sujeitos autônomos. A autonomia, como aponta Chaui (1994), é disposição para dis- cutir consigo e com os outros o sentido dos valores e capacidade de outorgar a si mesmo regras de conduta. Por essa razão, o sujeito autô- nomo problematiza os valores hegemônicos num tempo e lugar, jul- gando-os a certa distância da coação externa: autonomia é autodeter- minação. A autodeterminação, contudo, é complementar à consideração pelos outros, na medida em que, para o indivíduo autônomo, os outros são fins em si mesmos e não meios para sua liberdade ou felicidade. A estreita afinidade entre ética e autonomia faz pensar que a ética da pesquisa participante requer pesquisadores autônomos, com apti- dão para assumir responsabilidade por seus atos na condução das in- vestigações, julgar suas intenções e recusar a violência física ou simbó- lica contra si e contra os outros. Requer, de forma complementar, pesquisadores empenhados no respeito à autonomia de seus colabora- dores e interlocutores. O tema da autonomia remete a um problema essencial do debate sobre ética em pesquisa, especialmente a partir da vigência da Resolu- ção 196/96 do Conselho Nacional de Saúde que, construída para regrar procedimentos de pesquisa médica, passou a interferir numa vasta área de investigações em ciências sociais e humanas (Guerriero, 2006). Trata-se, pois, das contradições entre o estabelecimento de nor- mas e regras por instâncias externas de regulamentação e controle ético e a defesa da autonomia do pesquisador nas pesquisas qualitativas, principalmente nas que abraçam metodologias participantes, etnográ- ficas e com relatos orais. Não é o caso de negar a necessidade das leis, normas e regras para a vida social e, mais particularmente, para esferas da pesquisa científica. É o caso, no entanto, de preocupar-se com a hegemonia de uma mentalidade jurídica e, algumas vezes, infelizmente, meramente buro- crática, em busca de um controle ético das pesquisas científicas. No início destes apontamentos, mostrou-se que dimensões políti- cas e ideológicas perpassam as pesquisas científicas. As metodologias 50 maria luisa sandoval schmidt compreensivas tendem a considerar estas dimensões como constitutivas do processo de construção ou produção do conhecimento, diferente- mente de outras abordagens que tomam o método como dispositivo responsável pela exclusão ou controle dessas dimensões. Talvez seja possível pensar que, no plano ético, o formal e o jurí- dico possam cumprir função semelhante à do método que visa excluir o político e o ideológico do campo de investigações, ou seja, a de pôr a ética numa posição exterior ao processo de investigação, em geral, an- tes e/ou depois. A referência para essa hipótese são idéias que localizam os proble- mas éticos no momento de convocação de indivíduos ou grupos para participar como sujeitos de pesquisa ou, posteriormente, no “uso” de seus resultados ou produtos, resguardando os procedimentos de pes- quisa como neutros ou como “legais”, caso os sujeitos da pesquisa tenham manifestado sua autorização. Essa direção é preocupante porque pode incrementar a heteronomia no lugar da autonomia, não pela existência de normas e regras em si, mas pelo modo como essas normas e regras podem vir a substituir as atividades de pensamento e julgamento que formam o indivíduo autô- nomo. A heteronomia, oposta à autonomia, define-se pela incapacidade do indivíduo de dar-se a si mesmo regras, normas ou leis e pela necessi- dade de recebê-las de fora, respondendo às suas exigências de modo irrefletido e automático, apegando-se formalmente à ordem jurídica. Há, certamente, uma contradição importante na proposta de contro- le externo da ética de pesquisas envolvendo seres vivos: o controle ex- terno nega a autonomia, definidora da ética, em favor da heteronomia. Esta contradição pode ser trabalhada a partir de perguntas cujas respostas são verdadeiros desafios a quem se dedica à formação ética, por exemplo: como evitar que normas e regras de conduta na pesquisa se tornem dispositivos de evasão da responsabilidade, da reflexão e do julgamento próprios do indivíduo autônomo que tem a ética como forma de habitar o mundo? Ou, ainda, como instituir instâncias guardiãs da ética em pesquisa com vocação formativa e de orientação? Como combater a apropriação exclusivamente jurídica e burocrática do debate A PROTEÇÃO DO DIREITO À INTIMIDADE, A CONFIDENCIALIDADE E O SIGILO NA PESQUISA EM SAÚDE SU E L I GA N D O L F I DA L L A R I ÉTICA E DIREITOS HUMANOS NA SOCIEDADE DE RISCO Éevidente, para a sociedade do século XXI, que o chamado pro-gresso das ciências não consegue controlar todos os riscos que ela considera necessário serem controlados. Muitas pessoas, além disso, estão convencidas de que a própria ciência é potencialmente geradora de ris- cos importantes. Outros, entretanto, estão seguros de que é apenas o desenvolvimento científico que poderá responder pelo controle de alguns desses riscos indesejáveis. Por outro lado, a complexidade da vida atual faz com que não se considere absurda a hipótese de haver um limite técnico que impeça a maximização da proteção contra um perigo pou- co provável sob pena de aumentar um outro (Lautman, 1996, pp. 273- 85). O caso em exame neste texto parece ser um exemplo típico de tal situação. Assim, por exemplo, existe grande interesse social no desen- volvimento de drogas adequadas ao controle dos diferentes tipos de câncer. As pessoas desejam que os estudos genéticos avancem nesse sen- tido e nem se preocupam com a hipótese de que para isso sejam construí- dos enormes bancos contendo informações sobre os códigos genéticos individuais e outras informações “sensíveis”, como a existência ou não de doenças, os comportamentos sexuais, a cor da pele, etc. . . É óbvio, contudo, que a construção desses imensos bancos de dados com as ca- racterísticas genéticas e pessoais representa grande ameaça potencial ao direito à intimidade e à vida privada. Assim, o aumento da proteção 53 54 sueli gandolfi dallari contra uma doença implica o aumento do perigo de invasão da intimi- dade e da vida privada, nesse exemplo. É preciso, portanto, esclarecer que se buscará examinar o tema tendo sempre presente o contexto cultural contemporâneo. Assim, deve- se começar lembrando que o mesmo movimento de idéias — e a estru- tura socioeconômica que lhe é decorrente — que originou o princípio da precaução, gerou, também, a re-introdução da preocupação ética nas sociedades contemporâneas. Ambos foram apresentados como “re- médios” capazes de minimizar grandes problemas sociais sem que, neces- sariamente, atuem sobre suas causas. Não se pode, portanto, menos- prezar o caráter muitas vezes exclusivamente utilitário da preocupação ética contemporânea, que — freqüentemente — busca apenas preservar o sistema político e econômico instaurado. Podem-se identificar as raízes desse desvio utilitarista na presciên- cia de Marx, citada por Comparato, percebendo “que a homogeneização cosmopolita da atividade econômica era acompanhada de um movi- mento tendente à uniformização universal de costumes, valores e ex- pressões culturais” (Comparato, 2006, p. 416). Nesse sentido, é inte- ressante notar que, especialmente no cenário de reconstrução do período imediatamente posterior à Segunda Grande Guerra, a ajuda — dita “humanitária” — prestada às sociedades mais atingidas pelo conflito bélico visava o fornecimento, e o estímulo para a produção, dos bens econômicos que o benfeitor considerava indispensáveis para a manuten- ção de adequado padrão de vida. Assim, tanto as sociedades que haviam experimentado a revolução industrial no século anterior, quanto as que — sob jugo colonial — mantinham uma agricultura de subsistência, adotaram o mesmo modo de produção, procurando objetos semelhantes para a satisfação de suas necessidades. E, apesar das várias intercorrências com reflexos fundamentalmente econômicos, foi clara a constante ten- dência à identificação prioritária de tais necessidades com bens mate- riais, menosprezando-se as necessidades culturais e emocionais. Não podendo, entretanto, negar tais necessidades — acentuadas pelo desenvolvimento científico e tecnológico e as questões que ele pró- prio introduz e a que não consegue responder — a liderança política e intelectual da sociedade globalizada oferece a resposta das éticas apli- 55intimidade, confidencialidade e sigilo na pesquisa em saúde cadas. Essa resposta visa, em um primeiro momento, evitar qualquer ameaça à ordem socioeconômica e política estabelecida. Surgem, então — inicialmente nas sociedades de economia mais avançada, mas em breve atingindo, também, os Estados ditos “em desenvolvimento” — movimentos, eventos, documentos, publicações, tendo como tema a ética aplicada ao exercício profissional, ao comércio, ao governo, às relações internacionais, às situações biomédicas, etc. . . A bioética ou a ética aplicada aos sistemas de saúde foi, sem dú- vida, o ramo da ética aplicada que mais se desenvolveu, considerando- se o número de eventos, de publicações, de documentos internacionais e de disciplinas acadêmicas a ela dedicados. É importante, mesmo, no- tar que a propagação do uso do termo “bioética” revela, de certo modo, a expansão dessa ética aplicada. De fato, cunhado para traduzir a importância crescente das ciências biológicas na determinação da qua- lidade de vida (Porther, 1971), o termo tem-se prestado a uma querela em busca de sua definição, em diversas sociedades.1 Entretanto, talvez o único princípio, já agora “tradicionalmente” aceito como básico para a discussão bioética, que não se encontra esboçado no juramento hipocrático, seja o da autonomia. E isso pode ser facilmente compre- endido quando se percebe que ele se refere, prioritariamente, à auto- nomia das pessoas, conceito de impossível estipulação na democracia grega da Antiguidade, onde “a harmonia entre o homem e a totalidade do cosmos permaneceu como critério ético” (Silva, 1993, pp. 7-11). Por outro lado, é necessário considerar, também, que o sistema dos direitos humanos vem sendo apropriado pelos cultores da bioética.2 1 Veja-se, por exemplo, a tentativa de consenso representada na elaboração da Encyclopedia of Bioethics: “o estudo sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e dos cuidados de saúde, na medida em que essa conduta é examinada à luz dos valores e princípios morais” [Reich, 1978]; ou a longa argumentação empregada por Bourgeault (1990), para justificar seu estudo: “um novo modo de aproximação, orientado pela tomada de decisão, dos desafios éticos ligados à utilização crescente de tecnologias que interferem diretamente com a vida humana e a saúde”. 2 Assim, os direitos humanos são, freqüentemente, temas de capítulos de livros ou, ao menos, constituem-se em argumentos de artigos dedicados à bioética.Veja-se, por exemplo, uma das primeiras obras dedicadas ao tema e publicadas no Brasil: Costa, Osejka & Garrafa (1998) ou, no estrangeiro, Delfosse & Bert (2005) ou Annas (2005). 58 sueli gandolfi dallari observados germens dos Comitês de Ética em Pesquisa, no Reino Uni- do, no relatório para o ministro da Saúde da Comissão ad hoc sobre a pesquisa, de 1957, que terminou na adoção, pelo Conselho de Pesqui- sa Médica, das diretrizes para a pesquisa, em 1962. Os Comitês de Ética em Pesquisa, entretanto, somente se tornaram exigência legal em alguns países europeus nos anos 80 do século 20.6 Assim, a estrutura criada para a apreciação ética dos protocolos de pesquisa clínica pres- supõe, sobretudo, a existência de comitês ligados às instituições que realizam a pesquisa. É de se observar que tais comitês são compostos principalmente, quando não exclusivamente, por médicos e pesquisa- dores dessas instituições. Confirma-se, portanto, a existência de uma resposta ética “de classe” à necessidade de produção de bens e serviços derivados do desenvolvimento científico e tecnológico. Exatamente devido ao caráter classista dessa resposta, não há uma permanente in- quietação com relação à grande atomização dos centros de discussão ética. De fato, o comportamento dos comitês institucionais de ética em pesquisa clínica não vêm mostrando grande variabilidade e isso não tem causado estranheza, uma vez que há, certamente, menor variabilida- de de valores entre a comunidade dos pesquisadores em áreas biomédi- cas, do que entre esta e o conjunto da sociedade. Fica evidente, desse modo, que os comitês de ética em pesquisa assim constituídos não são capazes de instaurar o controle democrático sobre o trabalho científico, que tem — inevitavelmente — uma dimensão industrial e tecnológica. Não se pode deixar de reconhecer, contudo, que o sentido da evo- lução da humanidade — incrementando o reconhecimento da dignida- de essencial da pessoa humana — também vem recuperando os princí- pios éticos indispensáveis a uma vida feliz. É, sem dúvida, com base nessa evolução que se firma o edifício dos direitos humanos, importan- te traço-de-união entre os valores comunitários e o direito contempo- râneo. Nele vem-se desenvolvendo, igualmente, uma estrutura de pro- teção que abarca tanto os interesses mais amplos da comunidade quanto os mais imediatamente ligados às pessoas que nela vivem. Com efeito, 6 Várias publicações tratam dessa evolução histórica. Veja-se, por exemplo, Abel (1995) ou M. T. Meulders-Klein, op. cit. 59intimidade, confidencialidade e sigilo na pesquisa em saúde vencido o período inicial da história, no qual havia perfeita identifica- ção entre a ética, a religião e o direito, e superado o período de conflito constante entre os movimentos de negação e de busca da antiga unidade ética, com a vitória inquestionável da tecnologia e da ciência, o indiví- duo passa a ser o centro da vida social. O pressuposto ético de forma- ção de toda sociedade política moderna é — como ensina Comparato (2006, pp. 208 e seg.) — que os indivíduos, ao se tornarem cidadãos, não perdem a titularidade dos bens que são conaturais à sua condição humana: a vida, as liberdades e as suas posses. As sociedades devem, então, respeitar prerrogativas inatas de cada cidadão. Nesse mesmo mo- mento se forma a idéia, totalmente moderna, de que a religião é assun- to da vida particular de cada indivíduo e que também essa liberdade individual deveria ser protegida pela lei das sociedades políticas. O edifício do moderno sistema de proteção dos direitos humanos muito evoluirá a partir desses primórdios, no século XVII. Não há dú- vida, contudo, de que o respeito à vida humana e a uma esfera de interesses particulares de cada indivíduo constitui o fundamento de tal evolução. As obras dos grandes filósofos da modernidade — Marx in- clusive — e os grandes acordos sociais, desde as Constituições até os Pactos Internacionais de Direitos Humanos, fornecem os argumentos e criam os instrumentos para a garantia do respeito àqueles valores. De fato, a partir das revoluções liberais do século XVIII, houve uma introdu- ção progressiva das declarações de direitos nos textos constitucionais, a ponto em que a teoria constitucional passou a considerar que “as Cons- tituições dos [. . .] Estados burgueses estão [. . .] compostas de dois elementos: de um lado, os princípios do Estado de Direito para a pro- teção da liberdade burguesa ante o Estado; de outro, o elemento polí- tico do qual se deduzirá a forma de governo [. . .] propriamente dita” (Schimitt, 1934, p. 47). A aceitação da existência de direitos que pertencem a toda a hu- manidade, ou a parte dela que não está contida em apenas um Estado, fez a lei que abriga os direitos humanos ter um caráter internacional. Contudo, não foi essa a origem das normas internacionais de direitos humanos no século XX. Szabo (1984, p. 50) afirma que “o que con- duziu finalmente à adoção «oficial» de medidas tendentes a assegurar 60 sueli gandolfi dallari a proteção internacional dos direitos humanos foi a quantidade de atro- cidades cometidas contra a humanidade pelos poderes fascistas duran- te a Segunda Guerra Mundial”, referindo expressamente a declaração do presidente Roosevelt7 que enumerava quatro liberdades básicas: li- berdade de opinião e expressão, liberdade de culto, direito a ser liberta- do da miséria e garantia de viver sem ameaças. Dessa forma, quando na conferência de São Francisco, em 1945, foi criada a Organização das Nações Unidas (ONU), ficou estabelecida a necessidade de redigir um documento sobre os direitos humanos que deveria expressar claramen- te todos os direitos humanos, inclusive os direitos econômicos, sociais e culturais, e que se deveria criar uma comissão de direitos humanos como uma das principais da nova Organização. Em 10 de dezembro de 1948 a 3.a Assembléia-Geral da ONU adotou a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que não tem, no sistema legal internacional, caráter vinculante, tendo apenas valor moral. Reagindo a tal fragilidade formal, a Comissão de Direitos Hu- manos do Conselho Econômico e Social reconheceu a necessidade de redigir um convênio sobre direitos humanos, pelo qual os Estados se comprometeriam a respeitar os direitos declarados, aumentando a for- ça vinculante do conteúdo desses direitos humanos. Em 1966 a Assem- bléia-Geral da ONU aprovou dois pactos de direitos humanos: o Pacto de Direitos Civis e Políticos e o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, curiosamente contrariando o estabelecido pela própria As- sembléia-Geral em sua primeira sessão. Com efeito, havia-se decidido, em 1950, que “o desfrute das liberdades civis e políticas e dos direitos econômicos, sociais e culturais são interdependentes” e que “quando um indivíduo é privado de seus direitos econômicos, sociais e culturais, ele não caracteriza uma pessoa humana, que é definida pela Declaração como o ideal do homem livre”.8 Tratar tanto da pesquisa em saúde quanto da proteção da intimi- dade hoje, implica examinar os aspectos éticos e jurídicos envolvidos, mas, em especial, reconhecer que eles ocorrem em uma sociedade que 7 Em 26 de janeiro de 1941. 8 Assembléia-Geral, Resolução 543,6. 63intimidade, confidencialidade e sigilo na pesquisa em saúde nos graves e irreversíveis. Forma-se o princípio de precaução, reivindi- cado por segmentos sociais até então afastados por posições ideológi- cas, econômicas e culturais que pareciam inconciliáveis. Quer-se, ao mes- mo tempo, preservar os benefícios resultantes do desenvolvimento científico e agir de modo que garanta a precaução no domínio da saúde pública e do ambiente.9 A constatação de que o risco coletivo é de deter- minação cultural, recíproca e pública gerou, até mesmo, a necessidade de uma nova teoria da justiça para dar forma política aos riscos sociais (Worms, 1996, pp. 287-307). Ela provocou, igualmente, o desenvolvi- mento de uma filosofia da precaução,10 construída a partir de uma histó- ria da prudência. Afirma Ewald (1996, pp. 382-412) que o paradigma da responsabilidade foi substituído — na passagem para o século XX — pelo da solidariedade, e que este foi, agora, suplantado pelo da segurança. A teoria, que começa a ser construída, sobre o princípio de precau- ção, procura minimizar o argumento de que ele conduza à abstenção e, portanto, à estagnação do desenvolvimento científico. Afirma-se que ele implica a radicalização da democracia: exige-se o direito de participar — tendo todas as informações necessárias e indispensáveis — das gran- des decisões públicas ou privadas que possam afetar a segurança das pessoas. A aplicação do princípio de precaução impõe obrigação de vigilância, tanto para preparar a decisão, quanto para acompanhar suas conseqüências. E, sobretudo, ela promove a responsabilidade política em seu grau mais elevado, pois obriga a avaliação competente dos im- pactos econômicos e sociais decorrentes da decisão de agir ou se abster. Talvez a maior contribuição trazida pelo princípio da precaução seja, contudo, duplamente jurídica. Com efeito, ao deixar claro que se trata de analisar um risco, isto é, a possibilidade de causar dano a al- guém, ainda que sem culpa, a exigência de precaução obriga a tomar em conta, seriamente, a instituição da perícia judicial, mas, também, 9 Com esse objetivo o primeiro-inistro francês encomendou aos professores Gene- viève Viney e Philippe Kourilsky um estudo para definir a posição da França no quadro das discussões sobre a aplicação do princípio de precaução no seio da Organização Mundial do Comércio. 10 François Ewald, um dos mais respeitados autores da teoria do risco, vem traba- lhando no tema nos últimos anos. Entre seus artigos, pode-se citar: Philosophie de la précaution. 64 sueli gandolfi dallari extrajudicial. É conveniente observar que o risco está diretamente liga- do à técnica, não ao indivíduo que dela se vale. A complexidade dos saberes envolvidos na decisão de instituir a vacinação generalizada con- tra uma grave infecção viral de incidência crescente, ou de retirar do mercado um produto suspeito de causar infecção e morte, com base apenas em informações epidemiológicas ainda não comprovadas labo- ratorialmente, por exemplo, requer a participação de peritos que não devem ser responsáveis pela decisão, mas de quem se exige o domínio sobre sua área de especialidade e que deverão responder — social e juridicamente — pelas informações prestadas. E, em caso de se exigir a resposta judicial, o juiz deverá ser capaz de formar seu convencimento com base na apreciação de relatórios periciais que traduzam a comple- xidade da pesquisa científica em informações que sejam compreensí- veis para todos os interessados. É necessário, portanto, que os pesqui- sadores dominem, também, as ciências sociais — na teoria e na prática — para serem capazes de comunicar à sociedade os resultados de seus experimentos. Do mesmo modo, é preciso que as pessoas em geral conhe- çam as bases do trabalho científico para poderem escolher o grau de risco ao qual consideram aceitável submeterem-se em nome do progresso. Enfim, como ensina Comparato, no terceiro milênio é absoluta- mente indispensável compatibilizar o saber tecnológico à ética. É preci- so reconhecer tanto o papel insubstituível da tecnologia no processo evolutivo da espécie humana quanto que ela, “divorciada da ética, con- duz à inevitável fratura da humanidade” (Comparato, 2006, p. 435). Assim, o equilíbrio ideal entre o aumento da proteção contra uma do- ença e a proteção da intimidade e da vida privada, por exemplo, ape- nas será alcançado quando todos tiverem consciência de que a percep- ção dos riscos e sua origem são sociais. É necessária, então, uma ética formal remontando à origem dos princípios reguladores da sociedade: a igualdade essencial dos partícipes, sua liberdade e a cooperação entre eles. Esse mesmo acordo racional e razoável que fundamenta os valores políticos deve ser invocado para justificar a implementação da prote- ção pública a ser exercida contra os riscos comuns. Assim, é preciso encontrar na própria vida moral a fonte conjunta dos riscos sociais e da proteção pública. 65intimidade, confidencialidade e sigilo na pesquisa em saúde INTIMIDADE, CONFIDENCIALIDADE E S I G I L O: NORMATIVIDADE ÉTICA E JURÍDICA Já se verificou que a preservação de uma esfera de liberdade indivi- dual encontra-se na base da moderna idéia de direitos humanos. Ela é posta inicialmente por Locke, no Segundo Tratado de Governo,11 como uma das finalidades da sociedade e do governo. Para os fins deste texto interessa examinar um particular aspecto dessa liberdade individual que encontrou sua conformação como um direito subjetivo exatamente duzentos anos depois do trabalho pioneiro de Locke, no artigo de Warren & Brandeis publicado na Harvard Law Review com o título de “The Rigth to Privacy”.12 O jovem advogado Warren vinha sendo objeto da atenção dos cronistas dos jornais depois de seu casamento e, incomo- dado, procurou seu colega de turma (depois presidente da Suprema Corte Constitucional dos Estados Unidos da América) Brandeis, para pedir ao tribunal o reconhecimento e a tutela de seu direito à privaci- dade, nos mesmos termos do direito à propriedade ou à livre disposi- ção dos próprios bens. Eles argumentam com a existência do direito a estar só, ser deixado sozinho, sem a intromissão de terceiros, marcando assim esse direito como característico da sociedade de massas. O que Warren queria era exatamente poder viver a sua vida particular sem a intromissão dos jornalistas, figura típica da informação transformada em produto dos meios de comunicação de massa. Apesar de o artigo em questão haver sido publicado em 1891, foi preciso ainda mais um século para que — em princípios do século XX — nos mesmos Estados Unidos da América, os tribunais passassem a aceitar a essência desse direito: um direito de liberdade atribuído ao homem singular, necessário tanto para a proteção contra as arbitrarie- dades decorrentes de governos totalitários quanto das inovações tec- nológicas, como também para propiciar o pleno desenvolvimento de sua personalidade. Amplamente disseminado — até mesmo com seu 10 Cap. IX, §123. 11 Geralmente citado pelos autores que tratam do tema, como François Rigaux (1980, pp. 701-30). 68 sueli gandolfi dallari Sob a ótica dos direitos humanos, especificamente no que interes- sa ao tema deste trabalho, o Pacto dos Direitos Civis e Políticos reafir- ma a dignidade inerente a toda pessoa humana e a exigência de igual- dade no gozo de todos os direitos nele enunciados, estatuindo que o direto à vida é inerente à pessoa humana (art. 6.o). Ele veda, também, a possibilidade de que alguém seja submetido a tratamentos desumanos ou degradantes, exigindo que ninguém seja “submetido sem seu livre consentimento a experimentos médicos ou científicos” (art. 7.o). Do mesmo modo, ele reconhece que toda pessoa tem direito à proteção da lei contra ingerências em sua vida privada (art. 17). Verifica-se, portan- to, que o respeito à vida humana e a uma esfera de interesses particula- res de cada indivíduo continua servindo de base ao sistema de proteção dos direitos humanos em vigor no início do século XXI. Ainda sob o vértice dos direitos humanos, porém mais voltado para a proteção dos interesses mais amplos da comunidade, é que se define, igualmente durante o século XVII, a nova concepção de ciência, cumula- tiva. Já se acreditava, então, que a ciência avançaria com as discussões e as comparações entre especialistas, e que interessava à sociedade o progresso científico. O desenvolvimento posterior do sistema de direitos humanos nunca deixou de reconhecer a importância do avanço da ci- ência e o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais reconhece o direito de todas as pessoas de gozar dos benefícios do progresso cien- tífico e de suas aplicações, exigindo que os Estados respeitem a liberda- de tanto de investigação científica quanto de criação (art. 15, 1 e 3). Por outro lado, a obrigação de manter o sigilo representa mais uma camada de proteção da intimidade, implicando que a informação que já foi repartida com os pesquisadores não seja transmitida a outras pessoas. Trata-se, efetivamente, de um reforço à exigência da confidencialidade, que é acompanhado de sólidas garantias quando envolve a atuação profis- sional. Com efeito, legislações penais de Estados com diversas tradições culturais, desde há muito punem a violação do sigilo profissional.13 Além disso, no bojo das normas destinadas à proteção da privacidade das pes- 13 Veja-se, por exemplo, o parágrafo 203 do StGB alemão ou os artigos 153 e 154 do Código Penal Brasileiro. 69intimidade, confidencialidade e sigilo na pesquisa em saúde soas, a Europa editou, em 1995, a diretiva 95/46/CE, que incita os Estados membros a proibirem o tratamento de dados relativos à saúde, salvo quando ele “for necessário para efeitos de medicina preventiva, diagnóstico médico, prestação de cuidados ou tratamentos médicos ou gestão de serviços da saúde”. Nessas hipóteses será necessário, também, que “o tratamento desses dados [seja] efetuado por um profissional da saúde obrigado ao segredo profissional pelo direito nacional ou por regras estabelecidas pelos organismos nacionais competentes, ou por outra pessoa igualmente sujeita a uma obrigação de segredo equivalen- te” (art. 8.o, 3). Isso significa, os dados coletados em uma pesquisa com seres humanos deverão ser protegidos inicialmente pela obrigação ética de manutenção de sua confidencialidade, mas que eles serão igualmen- te protegidos pelo sigilo que obriga aos profissionais de saúde. A EXPERIÊNCIA BRASILE IRA No Brasil, sigilo, privacidade e confidencialidade são termos da Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, que regula as pes- quisas envolvendo seres humanos. Essa Resolução culminou um longo processo de maturação do tema, que se iniciou no momento da redemoc- ratização política, no final dos anos 80 do século XX. Nesse rico perío- do da história política brasileira, houve o fenômeno, até então inédito, da expressiva participação popular na definição dos grandes objetivos constitucionais.14 O resultado desse processo reforçou a necessidade da participação popular no sistema sanitário. Desse modo, no Brasil, desde 1988, é a própria Constituição que exige que a definição e a implemen- tação de ações e serviços de saúde tenham como diretriz a “participação da comunidade” (C. F. art. 198, III). Aqui se deve notar que o incre- mento do desenvolvimento científico e tecnológico em saúde foi ex- pressamente considerado uma das atribuições do sistema sanitário (C. F. art. 200, V) e, portanto, constitucionalmente vinculado à obrigação de contar com a participação da comunidade em sua realização. 14 Foram recolhidas cerca de 12.000.000 de assinaturas pelo Movimento Pró Partici- pação Popular na Constituinte, nas cento e vinte e duas propostas apresentadas (cf. F. Whitacker et al., 1989, p. 38). 70 sueli gandolfi dallari Ainda no mesmo ambiente de entusiasmo político, foi aprovada a Lei Orgânica da Saúde,15 também em grande parte fruto do movi- mento da reforma sanitária. Especificamente no que interessa à pro- teção das pessoas que se submetem a pesquisas, ela acrescenta ao elen- co das diretrizes estabelecidas constitucionalmente os princípios da “preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral” e, também, do “direito à informação sobre sua saúde”. Ela determina, igualmente, que todas as esferas de poder político do sistema sanitário se responsabilizem pela “definição e controle dos padrões éticos para pesquisa”, em articulação com entidades da socie- dade (Lei n.o 8.080, art. 7.o, III e V e 17, XVII). Por outro lado, a Lei Orgânica da Saúde institui um órgão colegiado, composto por repre- sentantes da comunidade (governo, prestadores de serviço, profissio- nais de saúde e usuários) em cada uma das esferas de poder político do sistema de saúde, para “formular estratégias e controlar a execução da política de saúde” (Lei n.o 8.142, art. 1.o, §2.o): os conselhos de saúde. Na esfera federal, portanto, o Conselho Nacional de Saúde tem a base jurídica necessária para tratar da ética nas pesquisas de sua área. Essa atribuição foi esclarecida com a determinação — que lhe foi atribuída em seu decreto de organização — de “acompanhar o processo de desenvolvimento e incorporação científica e tecnológica na área da saúde visando à observação de padrões éticos compatíveis com o desen- volvimento sócio-cultural do país” (Decreto federal n.o 5.839/2006, art. 2.o, VII). Convém notar, contudo, que no Brasil a corporação médica — que tradicionalmente se preocupa com a definição de regras de conteú- do ético para orientar sua atuação — não ficou imune aos ventos de- mocráticos e, além de reformar seu próprio código de ética,16 fomentou a ampliação do debate sobre tais questões. Um forum importante para a discussão acadêmica da necessária proteção às pessoas que se submetem a pesquisas foi, sem dúvida, a publicação da revista Bioética, cujo primei- ro número foi publicado pelo Conselho Federal de Medicina na primeira 15 Na realidade, a chamada Lei Orgânica de Saúde é composta pelo conjunto das leis federais n.o 8.080 e 8.142, ambas de 1990. 16 Aprovado pela Resolução CFM n.o 1.246, de 8 de janeiro de 1988. 73intimidade, confidencialidade e sigilo na pesquisa em saúde mente ligadas ao tema. Enfim, pode-se afirmar, com segurança, que houve intensa participação popular no processo de definição e construção do sistema brasileiro de análise ética das pesquisas que envolvem seres huma- nos e que ela vem sendo mantida durante sua implementação, uma vez que todas as normas são publicadas como Resoluções do Conselho Na- cional de Saúde. Garante-se, desse modo, além da participação da comu- nidade científica em sua elaboração, que tais normas sejam discutidas pelo maior órgão colegiado de participação popular na área da saúde. A Resolução 196/96, em conformidade com as normas internacio- nais sobre o tema, exige que as pessoas que se submetem a pesquisas tenham dado com anterioridade e em plena liberdade — possuindo todas as informações necessárias para formarem seu convencimento — o consentimento para aquela pesquisa e que tal concordância seja ex- pressa em um “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido”. Especi- ficamente, no que concerne à privacidade, à confidencialidade e ao sigilo, quando enumera as exigências que deverão ser observadas por toda pesquisa envolvendo seres humanos, a Resolução afirma que elas precisam “prever procedimentos que assegurem a confidencialidade e a privacidade, a proteção da imagem e a não-estigmatização, garantindo a não-utilização das informações em prejuízo das pessoas e/ou das co- munidades, também em termos de auto-estima, de prestígio e/ou eco- nômico-financeiro” e que, quando da comunicação dos resultados da pesquisa, é necessário preservar “a imagem e assegurando que os sujei- tos da pesquisa não sejam estigmatizados ou percam a auto-estima” (Resolução 196/96, III, 3, i e o). Do mesmo modo, ao tratar do “Ter- mo de Consentimento Livre e Esclarecido” a Resolução exige a inclu- são da “garantia do sigilo que assegure a privacidade dos sujeitos quanto aos dados confidenciais envolvidos na pesquisa” e que conste do proto- colo da pesquisa, a ser submetida à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa, informações relativas aos sujeitos da pesquisa contendo a des- crição dos “procedimentos para monitoramento da coleta de dados para prover a segurança dos indivíduos, incluindo as medidas de prote- ção à confidencialidade” (Resolução 196/96, IV, 1, g e VI, 3, g). Como acontece com as normas internacionais, também a Resolu- ção 196/96, não trata do acesso direto, questão que interessa ao respei- 74 sueli gandolfi dallari to à intimidade e que é posta com bastante freqüência nos Comitês de Ética em Pesquisa. Aqui, o Conselho Federal de Medicina manifestou- se sobre o tema, provocado pela Comissão Nacional de Ética em Pesqui- sa. Discutia-se a propósito da inclusão de cláusulas de termo de consen- timento que permitem o manuseio de prontuários por pessoas ou instituições alheias à pesquisa, como seria o caso das hipóteses de aces- so direito. O parecer dos médicos, sugerindo a criação de um “outro prontuário” especialmente para a pesquisa e a eliminação de qualquer referência ao acesso direto no termo de consentimento, foi duramente questionado por alguns Comitês de Ética. Eles consideraram que o pro- cesso da pesquisa clínica não pode prescindir da consulta ao prontuário hospitalar ou à ficha clínica ambulatorial, que pertencem, ambos, ao paciente. E reafirmaram, igualmente, que a responsabilidade pela guarda do prontuário é das instituições de saúde, mas que as informações neles contidas — que pertencem ao paciente cuja consulta ou divulgação só ele pode autorizar — interessam, também, à pesquisa clínica e à socieda- de. Não seria possível, então, fazer uso de quaisquer dados do paciente, sem a sua expressa autorização, mesmo que eles estivessem “na forma de protocolo de pesquisa”. Do mesmo modo, pareceu a tais comitês que o próprio termo de consentimento seria o local mais apropriado para que o paciente, livremente, autorizasse ou não a coleta de suas informações registradas no seu prontuário médico. Assim, sem essa autorização ninguém teria o direito de utilizar os dados para nenhum outro propósito que não o de seu tratamento. E sem a possibilidade de se confirmar a veracidade dos dados que estão no prontuário não haveria como garantir dados precisos para um estudo clínico. Tudo isso sem esquecer a exigência inescapável de que seja mantida a confidencialidade dos dados guardados nos prontuários por todos os responsáveis por tal guarda. Consideraram, contudo, que impedir que os pacientes autori- zem, no instrumento que traduz o seu consentimento para participar da pesquisa, que seus dados sejam utilizados, não interessa à sociedade. EM BUSCA DO CONSENSO P O S S Í V E L Não há dúvida de que a humanidade vive um momento de esgota- mento das instituições imaginadas pela burguesia vencedora para 75intimidade, confidencialidade e sigilo na pesquisa em saúde implementar o Estado Liberal Burguês, que no século XIX foi denomi- nado Estado de Direito, pela doutrina publicista que se constituía. A separação então promovida entre o direito e a ética se tornou insustentá- vel no início do século XXI. Ficou claro, também, que o desenvolvimento da ciência e da tecnologia que lhe é conseqüente jogou um papel fun- damental na provocação dessa tomada de consciência. Por outro lado, parece pacífico o reconhecimento da importância do desenvolvimento tecnológico para o bem-estar da humanidade. Desse modo, é urgente compatibilizar a preservação de direitos individuais — objetivo primeiro dos revolucionários do século XVIII — com o estímulo ao desenvolvi- mento científico e tecnológico, isso tudo reintroduzindo a preocupação ética na organização das novas formas de governo das sociedades, pois, como conclui Comparato, “o ser humano só realiza integralmente as suas potencialidades [. . .] quando vive numa sociedade cuja organização política não se separa das exigências éticas e regula, de modo harmoni- oso, todas as dimensões da vida social” (Comparato, 2006, p. 583). A resposta a esse desafio vem sendo dada pela construção do Es- tado Democrático de Direito. Com efeito, partindo do desenvolvimen- to da doutrina da separação de poderes, da afirmação da Constituição como o mais importante documento político de um povo, da formula- ção da doutrina do Estado de Direito e da idéia moderna de democra- cia, a humanidade verificou — durante o século XIX, no mundo oci- dental — que apenas a garantia de igualdade formal (perante a lei), característica do Estado de Direito, não atendia ao anseio de liberdade real de todos os que haviam sido excluídos do processo de elaboração legislativa, ou mesmo discriminados pela própria lei.21 Desenvolve-se, então, novo período revolucionário, pois ficava claro que os assalariados da indústria nascente, por exemplo, embora formalmente iguais aos proprietários, perante a lei, não possuíam as mesmas condições materi- ais de exercício do direito à liberdade que seus patrões. Tratava-se de reconhecer a existência de desigualdades materiais que inviabilizavam 21 Já a primeira Constituição francesa, ao estabelecer quem pode participar da feitura da lei, tanto compondo o Parlamento como elegendo representantes para compor o Parlamento, excluiu inicialmente todas as mulheres e em seguida os homens que não possuíssem patrimô- nio ou renda superior a determinado valor (La Constitution de 1791, Chapitre premier, Section II, Art. 2 & Section III, Art.3). Igualmente, a escravidão vigorou nos Estados Unidos da América até 1865, ou seja, 78 depois da entrada em vigor da Constituição de 1787. 78 sueli gandolfi dallari Constituição, da fixação das metas políticas a médio e a longo prazo, da eleição “por períodos bem delimitados” dos titulares das funções governamentais e do “poder de fiscalização e responsabilização direta de todos os titulares de cargos públicos, eleitos ou não pelo povo” (Comparato, 2006, pp. 654-5). Um aspecto importante do controle a ser exercido pelo povo diz respeito exatamente às pesquisas em saúde. Já se sabe que no terceiro milênio é absolutamente indispensável compatibilizar o saber tecno- lógico à ética, sendo preciso reconhecer, ainda na lição de Comparato, tanto o papel insubstituível da tecnologia no processo evolutivo da espécie humana quanto que ela, “divorciada da ética, conduz à inevitá- vel fratura da humanidade” (Comparato, 2006, pp. 654-5). Assim, o equilíbrio ideal entre o aumento da proteção contra uma doença e a proteção da intimidade e da vida privada, por exemplo, apenas será alcançado quando todos tiverem consciência de que a percepção dos riscos e sua origem são sociais. É necessária, então, uma ética formal remontando à origem dos princípios reguladores da sociedade: a igualda- de essencial dos partícipes, sua liberdade e a cooperação entre eles. Esse mesmo acordo racional e razoável que fundamenta os valores políticos deve ser invocado para justificar a implementação da proteção pública a ser exercida contra os riscos comuns. É preciso encontrar na própria vida moral a fonte conjunta dos riscos sociais e da proteção pública. Por outro lado, verificou-se que neste milênio é igualmente indis- pensável que o direito se reaproxime da ética e que lhe ofereça o manto das garantias que vêm sendo arduamente construídas ao longo da evo- lução da humanidade. Não há dúvida, portanto, de que também as Constituições e as leis nacionais devem ocupar-se das questões da cha- mada bioética, disciplinando a adequada proteção desses valores so- ciais, reconhecidos como direitos humanos. A proteção da vida, com o veto a qualquer tratamento desumano ou degradante, e da esfera de liberdade ligada à chamada vida privada, assim como da liberdade de investigação científica, devem ser garantidas pelo Estado, também com o uso de seu aparato judicial. Isso significa que, embora se reconheça que a existência dos vários comitês de ética tenha exercido papel fun- 79intimidade, confidencialidade e sigilo na pesquisa em saúde damental para a tomada de consciência, provocando o necessário de- bate social sobre as pesquisas científicas realizadas em seres humanos, eles possuem estreita esfera de atuação, limitados pela obediência devida aos grandes valores acolhidos nas Constituições e leis nacionais e, tam- bém, nos documentos internacionais de proteção aos direitos humanos. A estrutura posta pelo Estado Democrático de Direito oferece oportunidade ímpar para a aproximação da ética com o direito, espe- cialmente no caso das pesquisas com seres humanos. De fato, sabe-se que os limites do direito à intimidade decorrem da aceitação de outros direitos relevantes de caráter coletivo, como a liberdade de imprensa, a segurança pública ou — de interesse especial para este trabalho — a liberdade de pesquisa científica. Aqui, mais uma vez, é preciso concor- dar com Comparato, pois não pode haver nenhuma dúvida em relação à política como a suprema dimensão da vida ética.26 Com efeito, os limi- tes precisos do direito à intimidade ou à privacidade e a amplitude de atuação do sigilo para sua proteção só podem ser justamente fixados numa sociedade na qual o valor liberdade esteja ligado ao valor respei- to à dignidade humana. É necessário, portanto, que todas as pessoas tenham a real liberdade de participar da decisão política que precisa esses limites e que efetivamente a exerçam, estabelecendo o justo equi- líbrio entre o interesse social de assegurar a segurança, a informação e a pesquisa científica, garantindo a preservação da intimidade individual. Em suma, é apenas a organização política que regula, de modo harmo- nioso, todas as dimensões da vida social, que permite a realização inte- gral das potencialidades do ser humano (Comparato, 2006, p. 583). Reforça a crença na adequação do Estado de Democrático de Di- reito para aproximar ética e direito, a constatação de que as pesquisas em saúde, trabalhando predominantemente com o “risco tecnológico” numa sociedade complexa, exigem tratamento público. É preciso rea- gir à sobrevalorização dos aspectos individuais envolvidos nos possí- veis acidentes originados dos “riscos tecnológicos”. Com efeito, a dis- cussão sobre prevenção de riscos nos domínios técnicos tem implicado, além de testes severos de confiabilidade dos componentes, a fixação de 26 Título do último capítulo da última parte da obra, tratando da ética de um mundo solidário. 80 sueli gandolfi dallari “causas” determinantes de possíveis acidentes “controláveis”. Ora, tal comportamento esconde que a fixação do limite de risco tolerável de- pende da valorização de aspectos econômicos, políticos e sociais, pois ele envolve atividades que se realizam no espaço social e que são o resultado da colaboração social. Ou seja, tanto o evento que origina o risco é social quanto sua percepção é pública. Assim, as normas éticas destinadas a proteger a privacidade das pessoas que se submetem a pes- quisas em saúde e, também, o direito à intimidade dessas pessoas, pre- cisam ser conformados nos espaços públicos autônomos27 de participa- ção popular, fonte do direito justo. Em suma, a organização do Estado Democrático de Direito agasa- lha a existência dos comitês de ética em pesquisa, cujos pareceres, não importa em qual sentido, não têm o condão de afastar as regras jurídi- cas que se aplicam aos casos de ameaças à intimidade, à confidencialidade e ao sigilo. Os sistemas de direito positivo — inclusive o sistema brasi- leiro de direito positivo — continuam afirmando que estão obrigados a indenizar aqueles que por ação ou omissão voluntária deram causa ao prejuízo ou assumiram o risco de produzi-lo. Eles continuam asse- gurando, também, expressamente, o direito à intimidade e protegen- do, particularmente, o sigilo profissional, como acima se viu. É impor- tante esclarecer, então, que o coordenador de um comitê de ética ao assinar os pareceres éticos sobre pesquisas com seres humanos não está autorizando, ou não, a realização dessas pesquisas. Ele está apenas tor- nando público que, para essa determinada sociedade, o protocolo de pesquisa examinado atende, ou fere, os valores por ela professados. Ou seja, intimidade, sigilo e confidencialidade são exigências éticas que se originam na mesma esfera de liberdade individual que vem sendo afir- mada desde os primórdios do século XVII. Elas foram incorporadas pelas normas éticas que disciplinam as pesquisas que têm pessoas como seus sujeitos e, além disso, também fazem parte do elenco dos direitos humanos. Não se deve esquecer, contudo, que houve, durante o século XX, crescente e constante incorporação dos direitos humanos aos tex- tos constitucionais e legais. Assim, às normas éticas que aconselham o 27 Na feliz expressão de J. Habermas, 1996, p. 471. A EXPLOSÃO DA BOLHA: RELAÇÕES ENTRE PESQUISADOR E PARTICIPANTES PESQUISADOS WI L L C. VA N D E N HO O N A A R D Em circunstâncias normais, existe um mundo de diferenças entre ouniverso da pesquisa médica e o universo da pesquisa realizada nas ciências sociais — quanto às relações entre o pesquisador e o parti- cipante da pesquisa.1 Em pesquisa clínica, o pesquisador da área mé- dica relaciona-se com um participante de cada vez (embora para a análise seja preciso agregar dados), ao passo que, em pesquisa social, a relação, de maneira geral, ocorre com diversos participantes de pes- quisa. Além disso, em pesquisa social, é provável haver relacionamen- tos com um número maior de pessoas com poder de decisão do que no caso da pesquisa médica — o que deverá afetar a relação com os par- ticipantes. Há igualmente outras distinções que marcam a relação entre o pesquisador social (particularmente, em pesquisa qualitativa) com seus participantes de pesquisa, uma vez que estes se relacionam de mui- tas maneiras e de forma contínua. É preciso também lembrar que o propósito da pesquisa social está intimamente ligado à vida dos pró- prios participantes. Nesse caso, o pesquisador social busca alcançar uma compreensão humana do mundo habitado pelo participante, por meio do envolvimento deste que partilha sua visão de mundo. Este trabalho, no entanto, não trata da comparação das relações de pesquisadores médicos e sociais com seus participantes de pesquisa. Não trata sequer da história particular do papel das relações na história da pesquisa 83 1 Para ser breve, usarei apenas “relação” daqui em diante, sempre que me referir à relação entre pesquisador e participante pesquisado. 84 will c. van den hoonard social.2 Trata, isso sim, de chamar atenção para o papel das relações específicas entre pesquisador e participante pesquisado e seus papéis na pesquisa social. Como pesquisadores sociais, somos meio ambivalentes no tocan- te às relações com os participantes pesquisados. As discussões sobre ética e pesquisa, geralmente, costumam investigar a questão das rela- ções quando estas são vistas como complexas — pela perspectiva do pesquisador —, envolvendo assuntos problemáticos ou delicados. Em outros momentos, as discussões pautam-se em aspectos contingentes (práticos) acerca da manutenção das relações, com respeito aos fatores temporais, tecnológicos ou espaciais. Uma terceira situação de pesquisa discutida é a pesquisa-ação ou pesquisa de base comunitária. Este texto enfoca uma quarta organização de pesquisa, que não envolve aspectos contingentes, problemáticos ou delicados, ou pesquisa-ação, ou seja, uma pesquisa desenvolvida com populações não problemáticas. O argu- mento deste texto é de que muito conhecimento pode derivar dessa quarta categoria para benefício das situações mais “delicadas” ou “problemáti- cas” de pesquisa. De fato, o pesquisador social necessita “estourar a bolha” e sair de seu espaço de conhecimento costumeiro para melhorar o relacio- namento e ganhar maior compreensão do universo social estudado. OS RELACIONAMENTOS NAS ORGANIZAÇÕES DE PESQUISA Organizações de pesquisa problemáticas ou delicadas Ao se levar em conta o princípio fundamental de ética em pesqui- sa — nem proteger os participantes, não prejudicá-los — é compreensí- vel que tanta atenção dada à questão de relacionamentos (entre pes- quisador e participante(s)) diga respeito a situações de pesquisa delicadas ou problemáticas. Temos visto relatos de trauma (Connolly & Reilly, 2007), violência (Hume, 2007), participantes vulneráveis (Morris, 2 Queria apenas lembrar que, no passado, os pesquisadores sociais (principalmente antropólogos e lingüistas) contavam com “informantes” para adquirir dados. Os infor- mantes eram, eles próprios, considerados bem desviantes em suas próprias comunidades e desejavam partilhar suas idéias com os pesquisadores sociais que estivessem conduzindo pesquisa de campo in loco. 85relações entre pesquisador e participantes pesquisados 2006),3 crianças e famílias em ambientes familiares (Yee & Andrews, 2006), vítimas de derrame (Kvigne et alii, 2002), grupos sem poder de decisão, vulneráveis ou marginais (Bridges, 2001), pessoas com deficiên- cias (Bricher, 2000), mães usuárias de drogas e álcool (Goode, 2000), e adultos HIV positivos (Kylma, 1999). É evidente que essa lista de exem- plos não esgota as possibilidades. Apenas demonstra a extensão a que nos podemos referir quando falamos de tópicos delicados ou proble- máticos. Apresentar sentimentos recíprocos, reflexividade (pelo pesqui- sador), flexibilidade, diálogo e capacidade de ser um “bom convida- do” são alguns dos requisitos mais enfatizados quando a pesquisa a ser feita é relativa a assuntos delicados ou problemáticos. Os pesquisadores, no entanto, também demonstram ambivalên- cia acerca dessas relações. Lefranc (2002), por exemplo, faz um apelo para que se encontre a “distância adequada” em relação ao participan- te de pesquisa quando se está investigando problemas de violência, prin- cipalmente no caso dos altos e baixos de regimes nos quais a violência é sempre política. Dessa forma, o cuidado com as relações em pesquisa também está se tornando relações terapêuticas (ex: Hart & Crawford- Wright, 1999). É difícil saber até que ponto essas notas de apreensão se justificam e até que ponto constituem uma demanda exagerada. Quem participa de uma entrevista pode, perfeitamente, ter passado por uma experiência traumática e ter ficado sem atendimento da família ou dos amigos. A chegada de um pesquisador pode ser a chegada de um ouvi- do atencioso, alguém disposto a ouvir algumas das angústias. Essas sessões de entrevista podem, de fato, ser “terapêuticas”, mas com “t” minúsculo — já que não podem ser confundidas com as sessões formais, com profissionais que tenham sido procurados pelos participantes. Contingências temporais, tecnológicas e espaciais Em muitos casos, as relações estabelecidas em pesquisa não são muito diferentes das demais relações humanas, no que diz respeito a 3 Atributos coletivos (ex: “vulnerável”, “marginal”, etc.), geralmente, são construí- dos socialmente, mas têm pouca ou nenhuma relação com a forma como os membros dessa coletividade se vêem. 88 will c. van den hoonard que os pressupostos trazidos por cada um para as interações definem as relações. Esses pressupostos incluem a socialização antecipatória e a descoberta da “alteridade geral”, quando aprendemos a olhar para nós mesmos sob a luz das expectativas dos outros e a ajustar nosso compor- tamento por esse critério (Schwartz & Jacobs, 1979, p. 369).4 Qual- quer relação “bem-sucedida” — em um mundo ideal — depende de um estoque de conhecimento comum, partilhado por pesquisador e participante de pesquisa. No entanto, o que acontece quando esse esto- que de conhecimento comum não existe? O que o pesquisador deve fazer? Qualitative Sociology: A Method to the Madness inclui um estu- do de caso que exemplifica a extensão do trabalho de um pesquisador, David Goode, para descobrir o universo escondido de Christina, uma menina de nove anos de idade, surda e cega. Há mais de trinta anos, David Goode (1979, pp. 385-93) conduziu uma pesquisa, com dura- ção de um ano e meio, em um hospital para crianças com surdez-ce- gueira e retardo congênito (síndrome da rubéola). Sua motivação era analisar a interação entre pessoas congenitamente surdas e cegas com pessoas videntes e ouvintes. Com esse objetivo, o pesquisador observou “Christina”, passando vários dias com ela, partilhando rotinas diárias, usando observação naturalista. Seu envolvimento duradouro e sólido com a vida de Christina permitiu que Goode alcançasse uma compreen- são que os médicos e pesquisadores que, normalmente, ficavam pouco tempo com a menina, não conseguiam em seus exames médicos. Christina nasceu com uma grave síndrome de deficiências múlti- plas (a síndrome de rubéola). Os efeitos colaterais englobavam catarata bilateral, problema cardíaco congênito, surdez, mircrocefalia clínica, danificação do sistema nervoso central, padrões anormais de compor- tamento e grave desenvolvimento de retardo. De acordo com Goode (1979), “aos cinco anos de idade, Chris foi diagnosticada como legal- mente cega, legalmente surda e com retardo mental, sendo admitida a um hospital estadual para pessoas deficientes mentais”. Christina vivia em seu próprio mundo de uma forma sem contato com os simbolismos do mundo dos “normais”. Conseqüentemente, se, 4 Ver estudo de 376 páginas sobre os primeiros cinco minutos da interação. 89relações entre pesquisador e participantes pesquisados como pesquisador, Goode estava tentando compreender esse universo, ele precisava entrar naquele mundo, em um nível intersubjetivo. Ape- sar de suas tentativas de imitar o estado surdo-cego da menina, por meio do uso de tapa-ouvidos, tapa-olhos, ele percebeu que ainda era guiado por sua própria visão de mundo; sua experiência com tapa- ouvidos e tapa-olhos ainda era explicada por sua própria vida. Goode vivia em sua própria “bolha”, que tinha de ser estourada para que ele entrasse no mundo de Christina. Ele necessitava de uma abordagem mais radical — na qual ele pudesse, conscientemente, ter como ponto de partida a suspensão de sua crença sobre o que era um mundo “nor- mal”. A versão de cultura do vidente-ouvinte sobre o mundo de Chris- tina não podia ser a perspectiva dominante de explicação. Em outras palavras, não era uma questão de reorganizar o comportamento da menina em diferentes categorias; era uma questão de permitir a Christina a organização de suas próprias atividades. Eis um exemplo: Chris me manobrava de tal forma que ela estava deitada em meu colo, de barriga para cima e tinha colocado minha mão so- bre seu rosto. Segurando minha mão, ela, em um dado momento, a dirigiu de forma que ficasse com a minha palma sobre sua boca, meu dedo indicador sobre seu olho direito (“o olho bom”). De- pois, então, ela me deu indicação de que queria que eu batesse em sua pálpebra com o dedo. Fazia isso levantando meu dedo e dei- xando-o cair sobre seu olho repetidas vezes, sorrindo e/ou rindo quando eu, propositalmente, fazia essa tarefa sozinho. (Movendo o meu corpo, ela também “me mostrou” que queria que eu falas- se em seu ouvido e mexesse os meus dedos diante de seu olho bom.) Enquanto eu batia no olho de Chris com meu dedo, de vez em quando ela lambia e cheirava a palma de minha mão e, canta- rolava o que pareciam sons melódicos. Fizemos isso por cerca de dez ou quinze minutos [ênfase do autor] (Goode, 1979, p. 288). O que distingue a compreensão que Goode tem dessa atividade e o que os funcionários viram é o fato de que Goode interpretou a ati- vidade não como uma “brincadeira” (como foi a interpretação dos 90 will c. van den hoonard funcionários), mas como uma forma significativa e relevante para Christina fazer sentido de seu mundo. Outras atividades se seguiram, nas quais Goode cooperou total- mente com Christina e muitas vezes teve um resultado de picos de estí- mulo. Foi só quando ele abriu mão de sua “posição terapêutica” (1979, p. 389), i.e., a de tentar fazer Christina ouvir os sons de forma “corre- ta”, que ele conseguiu ver o tratamento que ela dava à luz, som e estí- mulo tátil como uma qualidade racional e “até inteligente”. Goode segue afirmando que, ao “ouvir” as batidas, Chris estava fornecendo ao seu campo de percepção, em outros aspectos, empobrecido, uma riqueza que seus olhos e ouvi- dos não lhe podiam dar. Ela alcançou isso por meio de seus recur- sos corporais disponíveis e intactos — seu olho bom, seu nariz, seus músculos e seu arcabouço ósseo — que lhe permitiam fazer tais movimentos. Eu ficava — e ainda estou — surpreso pela in- ventividade existente nessa atividade (Goode, 1979, p. 390). No contexto de instituições mentais, os funcionários explicaram o comportamento de Christina como um grupo de “procedimentos em busca de erros”, e que, da perspectiva de Christina, seu comportamento era racional e determinado, embora fosse uma “busca de si, hedonista e amoral” em suas interações (Goode, p. 392). Aos nove anos de idade, os funcionários avaliavam o comportamento de Christina como “infantil”, mas ela não era infantil e já “tinha vivido o suficiente para ganhar algu- ma sofisticação em suas atividades em busca de prazer” (Goode, p. 392). Os dois casos seguintes representam um tipo diferente de ceguei- ra, mas não são menos poderosos quanto a impacto. Trata-se da ce- gueira do pesquisador em suas tentativas de compreender um mundo social bem diferente do seu. Calçada Sidewalk, de Mitch Duneier (1999) apresenta fotos de 28 pessoas na contracapa do livro. Exceto por bem poucas situações, de menor 93relações entre pesquisador e participantes pesquisados mercadoria durante o verão de 1996; três dias por semana no verão de 1997 e durante o outono de 1997. Também visitei diaria- mente esses quarteirões durante o verão de 1998, com freqüência permanecendo por muitas horas. Além disso, trabalhei como ven- dedor por duas semanas em março de 1999, quando minha pes- quisa terminou (Duneier, 1999, p. 11). Por fim, eu mesmo estava sendo tratado por eles como uma pessoa dos quarteirões, ocasionalmente tratado como “o pesquisa- dor” ou “o professor”, que é minha ocupação de fato. Meu nome era Mitch — o que parecia ter uma variedade de significados diferen- tes, mesmo o de um homem branco inocente que podia ser explorado para se conseguir “empréstimos” de trocados e notas em dólar; o judeu que ia ganhar um montão de dinheiro com as histórias das pessoas que trabalham nas ruas; um escritor branco tentando “falar a verdade sobre o que estava acontecendo” (Duneier, 1999, p. 12). Algumas das pessoas das ruas se ofereciam para “tomar conta” das gravações sozinhas quando Duneier estava fora da cidade. Os ven- dedores entrevistam-se uns aos outros antes de devolverem as fitas a Duneier. Hakim Hasan, um participante-chave da pesquisa, escreveu um posfácio para o livro, esclarecendo a base da relação: [. . .] Como eu poderia ter evitado que ele se apropriasse de mim como mero dado; que não me desse voz quanto à forma como o material para seu livro seria selecionado e retratado? Como é que um sujeito toma parte de um estudo etnográfico — no qual ele tem muito pouca fé — e sobrevive como algo maior do que um sujeito e menor do que um autor? A idéia de raça como expe- riência vivida não podia ser evitada; ao mesmo tempo, se eu come- tesse o erro de negar a Mitch a sua humanidade, com base no conceito de raça, sem dar a ele uma chance justa, não teria havido nenhuma forma de saber se ele escreveria corretamente sobre mi- nha vida. . . Mitch não reagiu ao que eu tinha que dizer com a distância fria e clínica que eu tinha imaginado ser os recursos co- muns do sociólogo. Ele ouviu com atenção. Eu aprendi a respeitar 94 will c. van den hoonard sua sensibilidade e, logo, percebi que confiava nele para escrever sobre a minha vida [negrito meu] (Hasan, 1999, pp. 321-2). Mais tarde, Duneier convidou Hakim Hasan a dividir aulas com ele em um seminário de dez semanas, na graduação, com dezenove alunos que ambos selecionaram juntos. Após o seminário, e com base nas perguntas feitas pelos alunos, ele reescreveu o livro. Quando Duneier começou a estudar a vida dos vendedores de revistas (não a dos vendedores de livros), o fato de estar escrevendo um livro estava em segundo plano. A pergunta que mais ouvia era: quanto vou ganhar com isso? (p. 325). Hasan destacou as bases fundamentais de um bom relacionamento entre ele e Duneier: Mitch aprendeu, finalmente, a dizer não a pedidos de dinhei- ro por pessoas que pareciam desesperadas. Ele estabelecia boa von- tade por meio de sua seriedade de objetivo e sinceridade como sociólogo [. . .] No fim das contas, qualquer sociólogo que sim- plesmente acredite que o tempo que ele passa em campo o qualifi- ca como “um dos rapazes”, um dos membros da comunidade, está muito enganado, além de estar em sérios apuros. . . Ele [Mitch] nunca tentou ser nada mais do que era: um ser humano e um sociólogo tentando compreender o significado de nossas vidas [negrito meu] (pp. 325-6). A relação entre Duneier e os participantes de pesquisa também está fortemente enraizada em compreensões do dia-a-dia de como as relações humanas funcionam em geral. Por exemplo, Duneier afirma que “o trabalho de campo pode ser um empreendimento moralmente ambíguo. . . A questão para mim é como mostrar respeito pelas pessoas sobre as quais eu estou escrevendo, considerando-se a impossibilidade de sinceridade absoluta em todos os momentos (na pesquisa como na vida)” (Duneier, 1999, p. 336). De acordo com Duneier, o trabalho de campo é como a vida: “Podemos sentir que os colegas e «amigos» con- fiam em nós e nos aceitam totalmente, mas aceitação completa é difícil de medir por padrões objetivos e, de todo jeito, é uma raridade. Se não 95relações entre pesquisador e participantes pesquisados pudermos esperar tal aceitação em nossa vida diária, provavelmente será pouco realista fazer da aceitação um padrão para medir o sucesso do trabalho de campo” (Duneier, 1999, p. 338). Indo além das abordagens pós-modernas convencionais de pesquisa, Hasan declara que Duneier foi uma quebra com o paradigma no qual “o pesquisador tem o conhecimento”. A idéia de “voz do sujeito” é simplesmente uma “idéia romântica”. Significativamente, Hasan adiciona a observação de que a “vontade radical dos cientistas sociais de ouvir é outra” (Hasan, 1999, p. 327). Ouvir a “voz do sujeito” pode significar uma distorção irônica, notadamente quando o pesquisador tem o obje- tivo de submeter os participantes à sua leitura, em um livro rascunhado, esperando solicitar aprovação e talvez algumas mudanças, ainda que pequenas. Nesse sentido, Duneier tinha profunda consciência de que [. . .] o esforço para ser respeitoso, mostrando o texto à pes- soa retratada nele, algumas vezes, pode não ser nada respeitoso. O que acontece nesse caso é que eu [pesquisador] acabo insistindo que o indivíduo me ouça e imponho minha agenda sobre o outro que parece perturbado por meus esforços (Duneier, 1999, p. 348). Transformando grisalho em ouro Enquanto Sidewalk representa uma forma de pesquisa liberada das restrições da anonimidade e da confidencialidade, o livro de Timothy Diamond, Making Gray Gold: Narratives of Nursing Home Care [Trans- formando grisalho em ouro: narrativas sobre asilos] (1992) serve como uma lição de como conduzir pesquisa velada, envolvendo uma série intricada de relações com todos com os quais Diamond teve contato. Diamond trabalhou em três lares para idosos diferentes, em Chi- cago, ficando de três a quatro meses em cada um. Incapaz de ter acesso, abertamente, a lares com fins lucrativos, ele obteve um certificado de assistente de enfermagem, e usou isso para acessar os asilos. Por seis meses, em 1982, ele teve aulas duas noites por semana e durante todo o sábado também. Nas aulas, a maior dificuldade que ele e seus colegas tinham era compreender como “superar os medos, a vergonha e a náusea 98 will c. van den hoonard ´ “Antes de começar essa pesquisa, eu tinha a impressão de que quase todos que estão nesses asilos estão acamados.” Muitos podiam andar pelo prédio e até sair, mas não tinham dinheiro e eram tomados por indigentes. Alguns até pediam esmolas e faziam escambos fora do asilo quando seu dinheiro estava para acabar (p. 63). ´ “O que, por vezes, inicialmente, parecia um comportamento maluco, com o tempo, emergia como uma tentativa racional, de- sesperada de salvar o que estava desaparecendo” [i.e., bens que constantemente se “perdiam”] (p. 68). ´ “Eu me apeguei, por um tempo, à noção de que morar em um asilo pelo menos deve ser melhor do que viver nas ruas. . .” (p. 69). ´ O lugar das famílias nos asilos: o conceito popular de que as famílias abandonaram essas pessoas — mas isso não é verdade (p. 70). ´ As vidas nos asilos eram vidas de passividade: as tabelas registravam suas vidas no tocante a doenças e diagnósticos; que viviam como receptores, “outros agiam sobre eles e eles não agiam” (p. 84). ´ Sua percepção de silêncio nos asilos quebrou-se: “As pessoas nas salas não só tinham muito a dizer aos enfermeiros, como cons- truíam amizades nessas salas” (p. 100). Ao abandonar idéias preconcebidas em seus relacionamentos, e ao manter uma atitude de ouvinte e observador (em vez de usar entre- vistas) — em outras palavras, ao estourar sua própria bolha — seu questionamento inicial, “O que podemos fazer por eles?” foi transfor- mada em “O que é que estão fazendo?” e, mais tarde, em “Quais os critérios que levaram o que estão fazendo a ser considerado como não fazer nada ou, simplesmente ficar sentado?” e, finalmente, em “Que tipo de atividade humana é preciso ter para viver em um lar para ido- sos?” (p. 85). 99relações entre pesquisador e participantes pesquisados CONCLUSÃO Os três estudos de caso sobre o relacionamento entre pesquisador e participante de pesquisa que selecionei para este trabalho represen- tam cenários sociais extremamente variados. Sua seleção nos permite ter uma base mais forte quando se trata de falar sobre o que os une em relação ao desenvolvimento de nossa compreensão de tais relaciona- mentos. Quatro elementos se sobressaem: em primeiro lugar, os pesqui- sadores desses casos abriram mão da atitude de “remediar”. No estudo de David Goode sobre Christina, a criança surda-cega de nove anos de idade, descobrimos que ele evitou a atitude médica de querer curar suas características físicas e sociais. No segundo caso, Duneier não se pertur- bava com a idéia de que tinha de “consertar” as coisas para os homens e mulheres que vendiam livros e revistas. De forma semelhante, o tra- balho de Diamond esteve distante da urgência imediata de remediar a organização de lares para idosos, com fins lucrativos. Em segundo lugar, cada um dos três pesquisadores acabou per- cebendo que a pergunta “como” era mais importante do que a per- gunta “por quê”. Os pesquisadores sociais tendem a ser atraídos para o “como” porque essas perguntas lhes dão conhecimento sobre o pro- cesso social que criou a organização social estudada. Perguntas da ordem do “por quê” só gerariam explicações de “motivações”, vocabulário de motivos, que sempre estão sujeitos a mudança e a interpretações, uma vez que as pessoas caminham pela vida e por circunstâncias sociais. Em terceiro lugar, ao entrar em relacionamentos autênticos com os participantes de pesquisa, os pesquisadores puderam abrir mão de seus preconceitos e perspectivas estereotipados sobre as organizações sociais. As relações aboliram dados alimentados por força. Os dados, agora, estavam livres para refletir a situação social com mais precisão. Em quarto lugar, cada um dos pesquisadores esteve ativamente envolvido no processo de “estourar a bolha”. Eles saíram de seus uni- versos culturais e sociais imediatos e estiveram prontos a adotar — ou, ao menos, a aprender sobre — o mundo de seus participantes de pes- quisa. 100 will c. van den hoonard Cada um desses quatro elementos foi formatado por (e também formatou) as relações dos pesquisadores com seus participantes de pes- quisa. Podemos ver que as relações que permitiram o desenvolvimento desses elementos também permitiram uma coleta de dados mais autên- tica e mais exata. Os dados nunca substituíram as relações; elas se man- tiveram no cerne desses casos exemplares de pesquisa. REFERÊNCIAS Boog, B. M. W. The Emancipatory Character of Action Research, its History, and the Present State of the Art. Journal of Community and Applied Social Psychology, 13(6):426-38, 2003. Bricher, G. Disabled People, Health Professionals, and the Social World of Disability: Can There be a Research Relationship? Disability and Society, 15(5):781-93, 2000. Bridges, D. The Ethics of Outside Research. 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