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Guias e Dicas
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Moacir Gadotti - Boniteza de um sonho, Notas de estudo de Pedagogia

Grande obra de quem escreve com o mesmo fervor e sabedoria que o Educador Paulo Freire

Tipologia: Notas de estudo

2013

Compartilhado em 01/04/2013

edinei-messias-12
edinei-messias-12 🇧🇷

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Baixe Moacir Gadotti - Boniteza de um sonho e outras Notas de estudo em PDF para Pedagogia, somente na Docsity! BONITEZA DE UM SONHO Ensinar-e-aprender com sentido E d i t o r a F e e v a l e Novo Hamburgo - Rio Grande do Sul - Brasil 2 0 0 3 Associação Pró-Ensino Superior em Novo Hamburgo/ASPEUR Centro Universitário Feevale Moacir Gadotti BONITEZA DE UM SONHO Ensinar-e-aprender com sentido 6 Moacir Gadotti Buscando atender ao desejo do autor em compartilhar com um maior número de educadores possível sua mensa- gem de amorosidade e esperança, resgatando o sentido de ser professor, essa edição será distribuída aos docentes dos diferentes níveis de ensino de nossa Instituição, a todos os acadêmicos dos nossos cursos de licenciatura, além de ser distribuídos exemplares às Secretarias Municipais de Educa- ção do Vale dos Sinos. 7BONITEZA DE UM SONHO Ensinar-e-aprender com sentido SUMÁRIO 1. Por que ser professor? ...................................... 9 2. Crise de identidade, crise de sentido ................ 19 3. Formação continuada do professor .................. 29 4. Ser professor na sociedade aprendente ............ 37 5. Aprender com emoção, ensinar com alegria ... 45 6. Educar para uma vida sustentável ................... 57 7. Ser professor, ser educador .............................. 65 Bibliografia ............................................................ 75 8 Moacir Gadotti 11BONITEZA DE UM SONHO Ensinar-e-aprender com sentido A beleza existe em todo lugar. Depende do nosso olhar, da nossa sensibilidade; depende da nossa consciên- cia, do nosso trabalho e do nosso cuidado. A beleza existe porque o ser humano é capaz de sonhar. Inspirei-me em Paulo Freire para escrever esse livro. Paulo Freire nos fala em sua Pedagogia da autonomia da “boniteza de ser gente”1 , da boniteza de ser professor: “en- sinar e aprender não podem dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria”2 . Paulo Freire chama a atenção para a essencialidade do componente estético da formação do educador. Coloquei um título que fala de sonho e de sentido que querem dizer a mesma coisa. “Sentido” quer dizer cami- nho não percorrido mas que se deseja percorrer, portanto, significa projeto, sonho, utopia. Aprender e ensinar com sen- tido é aprender e ensinar com um sonho na mente. A peda- gogia serve de guia para realizar esse sonho. Paulo Freire, em 1980, logo após voltar de 16 anos de exílio, reuniu-se com um grande número de professores em Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais. Falou-lhes de es- perança, de “sonho possível”, temendo por aqueles e aque- las que “pararem com a sua capacidade de sonhar, de in- ventar a sua coragem de denunciar e de anunciar”, aqueles e aquelas que, “em lugar de visitar de vez em quando o amanhã, o futuro, pelo profundo engajamento com o hoje, com o aqui e com o agora, que em lugar desta viagem constante ao amanhã, se atrelem a um passado de explora- ção e de rotina”3 . Dezessete anos depois, em 1997, em seu último livro, lançado três semanas antes de falecer, ele se mantinha fiel à mesma linha de pensamento, reafirmando o sonho e a uto- 1 Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 67. 2 Idem, ibidem, p. 160. 3 Paulo Freire, in Carlos R. Brandão (org.), O educador: vida e morte – escritos sobre uma espécie em perigo. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 101. 12 Moacir Gadotti pia diante da “malvadez neoliberal”, diante do “cinismo de sua ideologia fatalista e a sua recusa inflexível ao sonho e à utopia”4 . Denúncia de um lado, anúncio de outro: a sua “pedagogia da autonomia” frente à pedagogia neoliberal. Lembrando os cinco anos da morte de Freire, nesse pequeno livro5 , quero retomar o que ele disse e entender o seu significado no contexto de hoje. Paulo Freire nos falava da “boniteza” do sonho de ser professor de tantos jovens desse planeta. Se o sonho puder ser sonhado por muitos6 deixará de ser um sonho e se tornará realidade. A realidade, contudo, é muitas vezes bem diferente do sonho. Muitos de meus alunos e alunas, seja na Peda- gogia, seja na Licenciatura, não pensam em se dedicar às salas de aula. Muito revelam desinteresse em seguir a carrei- ra do magistério, mesmo estando num curso de formação de professores. Pesam muito nesse decisão as condições con- cretas do exercício da profissão. Preparam-se para ser pro- fessor e irão exercer outra profissão. O brasileiro desvaloriza o professor. É o que se pode- ria deduzir de um dito que se tornou popular nas últimas 4 Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 15. 5 Estou tornando públicos os direitos autorais deste livro para que ele possa ser reproduzido parcial ou integralmente e impresso em qualquer formato, por qualquer pessoa ou instituição, desde que não seja vendido a preço superior a R$ 1,00 (um real). Aproveito a oportunidade para agradecer aos companheiros Paulo Roberto Padilha e Ângela Antunes pelas preciosas sugestões que me ofereceram na revisão do texto original deste livro. 6 E somos muitos professores no mundo: 50 milhões. Somos organizados e alguma coisa podemos fazer para mudar a ordem das coisas. Segundo a UNESCO (In Jacques Delors (org.), Educação: um tesouro a descobrir – Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI. São Paulo: Cortez, 1998, p. 156),“a profissão de professor é uma das mais fortemente organizadas do mundo e as organizações de professores podem desempenhar – e desempenham – um papel muito influente em vários domínios. A maior parte dos cerca de cinqüenta milhões de professores que há no mundo estão sindicalizados ou julgam-se representados por sindicatos”. 13BONITEZA DE UM SONHO Ensinar-e-aprender com sentido décadas no Brasil: “Quem sabe faz, quem não sabe ensi- na”. É sinistro. Essa destruição da imagem do professor cus- tará muito caro, dizia já em 1989, o jornalista Leonardo Trevisan7 : “Todos dizem que gostam muito dos professores, mas não chegam a incomodar-se muito com o fato de que há tempos eles recebem um salário de fome. O salário é a parte mais visível de uma condição – da qual decorre um papel social que se descaracterizou por completo... Só quem não quer ver não percebe o sentimento de cansaço, de es- gotamento de expectativas de quem encarava com dignida- de o seu desempenho profissional”. A situação vem se arrastando há anos. Tenho 41 anos de magistério e não tenho visto grandes melhorias. Ao con- trário, tenho ouvido muitas promessas. As melhorias existem aqui e acolá, mas são pontuais e localizadas – servem apenas de exemplo – são conjunturais e não estruturais, são provisórias, passageiras e não permanentes. Correspondem a uma política de governo e não a uma política pública de estado. Por isso continuo me perguntando: “Por que sou pro- fessor?” É uma pergunta que ouço com freqüência também entre meus pares. A resposta talvez possa ser encontrada numa mensa- gem deixada por um prisioneiro de campo de concentração nazista na qual, depois de viver todos os horrores da Guer- ra8 – “crianças envenenadas por médicos diplomados; re- cém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas; mulheres e bebês fuzilados e queimados por graduados de colégios e universidades” – ele pede aos professores que “ajudem seus alunos a tornarem-se humanos”, simplesmente humanos. E termina: “ler, escrever e aritmética só são importantes para fazer nossas crianças mais humanas”. 7 Leonardo Trevisan, in O Estado de S. Paulo, 1 de julho de 1989, p.2. 8 Essa mensagem está, na íntegra, na abertura de um pequeno e denso livro do educador e economista Ladislau Dowbor, Tecnologias do conhecimento: os desafios da educação. Petrópolis, Vozes, 2001. “Quem sabe faz, quem não sabe ensina”. É sinistro. 16 Moacir Gadotti Hoje vale tudo para aprender. Isso vai além da “reciclagem” e da atualização de conhecimentos e muito mais além da “assimilação” de conhecimentos. A sociedade do conhecimento é uma sociedade de múltiplas oportunidades de aprendizagem. As conseqüências para a escola, para o professor e para a educação em geral são enormes: en- sinar a pensar; saber comunicar-se; saber pesquisar; ter ra- ciocínio lógico; fazer sínteses e elaborações teóricas; saber organizar o seu próprio trabalho; ter disciplina para o traba- lho; ser independente e autônomo; saber articular o conhe- cimento com a prática; ser aprendiz autônomo e a distância. Nesse contexto, o professor é muito mais um mediador do conhecimento, diante do aluno que é o sujeito do sua própria formação. O aluno precisa construir e reconstruir conhecimento a partir do que faz. Para isso o professor tam- bém precisa ser curioso, buscar sentido para o que faz e apontar novos sentidos para o quefazer dos seus alunos. Ele deixará de ser um “lecionador”10 para ser um organizador do conhecimento e da aprendizagem. Em resumo, poderíamos dizer que o professor se tor- nou um aprendiz permanente, um construtor de sentidos, um cooperador, e, sobretudo, um organizador da apren- dizagem. Se falamos do professor de adultos e do professor de cursos a distância, esses papéis são ainda mais relevan- tes. De nada adiantará ensinar, se os alunos não consegui- rem organizar o seu trabalho, serem sujeitos ativos da apren- dizagem, auto-disciplinados, motivados. “Ser professor”, não será “um ofício em risco de extinção”, pergunta-se Luiza Cortesão11 . Um certo professor está em risco de extinção. O funcionário da eficácia e da competitividade pode existir mas terá se demitido da sua função de professor. Diz ela que há hoje uma evidente con- tradição entre o professor em branco e preto, o professor 9 Herbert M. McLuhan, Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo, Cultrix, 1974. 10 Ladislau Dowbor, A reprodução social: propostas para uma gestão descentralizada. Petrópolis, Vozes, 1998. 17BONITEZA DE UM SONHO Ensinar-e-aprender com sentido “monocultural”, bem formado, seguro, claro, paciente, tra- balhador e distribuidor de saberes, eficiente, exigente e o professor “intermulticultural” que não é um “daltônico cultu- ral”, que dá-se conta da heterogeneidade, capaz de investi- gar, de ser flexível e de recriar conteúdos e métodos, capaz de identificar e analisar problemas de aprendizagem e de elaborar respostas às diferentes situações educativas. Um não se pergunta porque ser professor. Simplesmente cumpre or- dens, currículos, programas, pedagogias. Outro questiona- se sobre seu papel. Um está centrado nos conteúdos curriculares e outro no sentido do seu ofício. Sim, um certo professor está em risco de extinção. E isso é muito bom. - O que é ser professor hoje? - Ser professor hoje é viver intensamente o seu tempo com consciência e sensibilidade. Não se pode imaginar um futuro para a humanidade sem educadores. Os educa- dores, numa visão emancipadora, não só transformam a informação em conhecimento e em consciência crítica, mas também formam pessoas. Diante dos falsos pregadores da palavra, dos marqueteiros, eles são os verdadeiros “aman- tes da sabedoria”, os filósofos de que nos falava Sócrates. Eles fazem fluir o saber - não o dado, a informação, o puro conhecimento - porque constróem sentido para a vida das pessoas e para a humanidade e buscam, juntos, um mundo mais justo, mais produtivo e mais saudável para todos. Por isso eles são imprescindíveis. 11 Luiza Coresão, Ser professor: um ofício em risco de extinção. São Paulo, Cortez/IPF, 2002. Não se pode imaginar um futuro para a humanidade sem educadores. 18 Moacir Gadotti 21BONITEZA DE UM SONHO Ensinar-e-aprender com sentido O ofício de professor está, realmente, em risco de extinção? Um velho professor está realmente desaparecendo e espero que nesse velho professor esteja nascendo um novo professor. Não é a profissão que está morrendo. É uma pro- fissão que está renascendo. O professor não está morrendo, sua função não está desaparecendo, mas ela está se trans- formando profundamente, adquirindo uma nova identida- de. E isso não é nada novo, pois cada geração de professo- res constitui sua própria identidade docente no contexto em que vive. Hoje o contexto é o próprio mundo globalizado. O professor precisa hoje adequar sua função, ensinar, educar no mundo globalizado1 , até para transformar profundamente o modelo de globalização dominante, essencialmente per- verso e excludente. Cícero traduziu “paidéia” (formação integral do ho- mem) por “humanitas” (formação da/para a humanidade). Não há civilização sem professores. Não haverá uma nova civilização sem uma nova formação dos professores. Não há nação sem professores. Escolher a profissão de professor não é escolher uma profissão qualquer. Na maioria das vezes essa escolha se dá por intuição. Muitas professoras, quando perguntadas por- que escolheram essa profissão respondem: “porque gosto de criança”. É uma resposta correta e significativa, mas ela não é levada em conta no seu processo de formação. Essa motivação é pouco trabalhada. Em geral, a sua formação limita-se a aspectos técnico-pedagógicos e não ético-políti- cos, que seriam mais afinados com os motivos da sua esco- lha. Além disso, o aspecto profissional tem sido descuidado por causa da confusão que é ainda freqüentemente feita entre 1 Ver Ângela Antunes, A leitura do mundo no contexto da planetarização: por uma pedagogia da sustentabilidade. São Paulo, FE-USP, 2002 (Tese de doutorado). 22 Moacir Gadotti o papel de mãe e de professora, sobretudo na educação infantil2 . A docência, como aprendizagem da relação, está ligada a um profissional especial, um profissional do senti- do, numa era em que aprender é conviver com a incerteza. Daí a necessidade de se refletir hoje sobre o novo papel do professor, as novas exigências da profissão docente, princi- palmente da formação continuada do professor, da professora. Antes de mais nada, para entender a crise de identida- de dessa profissão é preciso colocar em evidência as ca- racterísticas atuais da profissão docente. Estamos di- ante de uma profissão massificada, o que realça o grande alcance dessa profissão e sua importância estratégica. Como o conhecimento da humanidade duplica em curto espaço de tempo, ele obsolece rapidamente, é extremamente mutável. Por isso, hoje não tem mais sentido a existência de um pro- fissional que se limita a reproduzir o conhecimento e a cultu- ra que outros desenvolveram. O professor hoje precisa ser um profissional capaz de criar conhecimento. Estamos também diante de uma profissão “genérica” (política). Não é um ofício específico pois o professor precisa lutar contra a exclusão social, ser animador de grupos, or- ganizar o trabalho e a aprendizagem dele e dos alunos; sua profissão tem relação com as estruturas sociais, com a co- munidade... enfim, ele é um profissional que precisa ter muita autonomia e exercer muita liderança. Existem características comuns a qualquer docente independentemente da matéria que leciona, o que torna essa profissão muito homogênea, não importando o grau de ensino onde esteja trabalhando. A competência genérica da profissão está sobretudo em seu saber político-pedagógico. 2 Ver Paulo Freire, Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo, Olho D’Água, 1993. O professor hoje precisa ser um profissional capaz de criar conhecimento. 23BONITEZA DE UM SONHO Ensinar-e-aprender com sentido Por isso, é preciso ter cuidado especial quando se fala em “especialista” na educação. É claro que existem saberes e competências específicas, mas separá-las burocraticamente é um equívoco que tem custado caro aos sistemas educaci- onais, tornando-os inflexíveis, apesar das declarações em contrário. Como diz Mário Osório Marques3 , a especificidade da formação do pedagogo “exige não se confunda ela com a formação de um especialista a mais, como se a questão fosse simplesmente a da divisão do trabalho e não, muito mais, a da articulação da ação comunitativa/coletiva. Mas, por outra parte, não se requer um generalista ou superpedagogo a ser colocado num pedestal de autoridade, ou em posição de mando, nem mesmo na situação de sim- ples assessoria técnica. Não se trata de alguém detentor de um saber hierárquico”. Uma terceira característica marcante dessa profissão: ela é constituída predominantemente de mulheres. Uma grande força numa época em que a mulher está exercendo um papel cada vez mais protagonista, inserido-se cada vez mais na vida social, política e econômica das sociedades mais avançadas. A participação da mulher na sociedade é indicador de avanço social e de desenvolvimento humano. Finalmente, não há como negar: somos profissionais de baixa renda. Perdemos com isso. Mas, pensando numa “civilização do oprimido”, como costuma nos dizer José Eustáquio Romão, esse profissional pode ter, por essa carac- terística, um potencial revolucionário que outras profissões não têm, já que é uma profissão voltada para a emancipa- ção das pessoas. A mudança vem “dos debaixo”, como sus- tentava Florestan Fernandes. Os “debaixo”, só tem a ga- nhar com a transformação. Por isso, têm uma grande capa- cidade para gestar a transformação. Uma pesquisa de Eurize Caldas Pessanha4 mostra que 3 Mário Osório Marques, A formação do profissional da educação, Ijuí, Editora UNIJUÍ, 1992, p. 113. 4 Eurize Caldas Pessanha, Ascensão e queda do professor, São Paulo, Cortez, 1994. 26 Moacir Gadotti nos sistemas de ensino. A noção de qualidade precisa mu- dar profundamente: a competência profissional deve ser medida muito mais pela capacidade do docente estabelecer relações com seus alunos e seus pares, pelo exercício da liderança profissional e pela atuação comunitária, do que na sua capacidade de “passar conteúdos”. E uma nova cultura profissional implica uma redefinição dos sistemas de ensino e das instituições escolares. Mas essa redefinição não virá de cima, do próprio sistema. Ele é, por essência, conservador. A mudança do sistema deve par- tir do professor e de uma nova concepção do seu papel. Daí a importância estratégica de discutir hoje o novo pa- pel do professor. Daí a importância de uma redefinição da profissão docente, de uma nova concepção do papel do professor. Nesse sentido, no contexto atual, podemos identificar e confrontar duas concepções opostas da profissão docente: a concepção neoliberal e a concepção emancipadora. A primeira, amplamente dominante hoje, concebe o professor como um profissional lecionador, avaliado individualmente e isolado na profissão (visão individualista); a segunda con- sidera o docente como um profissional do sentido, um organizador da aprendizagem (visão social), uma lideran- ça, um sujeito político. - Por que falamos de uma concepção “emancipadora”? - Porque o papel da educação, na concepção que defendemos, é emancipar as pessoas, ou, como diz Francis- co Imbernón, “o objetivo da educação é ajudar a tornar as pessoas mais livres, menos dependentes do poder econômi- co, político e social. A profissão de ensinar tem essa obriga- ção intrínseca”10 . Numa concepção emancipadora da educação, a pro- fissão docente tem um componente ético essencial. Sua especificidade está no compromisso ético com a emancipa- 10 Francisco Imbernón. Formação docente e profissional: formar-se para a mudança e a incerteza. São Paulo, Cortez, 2000, p. 27. 27BONITEZA DE UM SONHO Ensinar-e-aprender com sentido ção das pessoas. Não é uma profissão meramente técnica. A competência do professor não se mede pela sua capaci- dade de ensinar – muito menos “lecionar” – mas pelas pos- sibilidades que constrói para que as pessoas possam apren- der, conviver e viverem melhor. Para mim, Paulo Freire foi o protótipo desse professor emancipador. Basta dar uma olhada nas mensagens recebi- das no Instituto Paulo Freire, em São Paulo, logo depois de sua morte, dia 2 de maio de 1997. Ali se fala de esperança, de projeto comum, de mundo melhor, de emoção, de soli- dariedade. É apaixonante reler essas mensagens. Ser educa- dor é despertar isso nas pessoas. Paulo Freire conseguiu to- car a alma das pessoas. Suas idéias poderão ter despertado controvérsias, mas não a sua pessoa. Muitas dessas mensa- gens dizem textualmente: “minha vida não seria a mesma se eu não tivesse lido a obra de Paulo Freire. O que ele escre- veu ficará no meu coração e na minha mente”. Essa relação entre o cognitivo e o afetivo é muito forte na práxis de Paulo Freire e também naqueles que foram influenciados por ele. Essa relação era muito forte também na sua obra. Ele não envolvia as pessoas emocionalmente só através de suas tão encantadoras falas, mas também através de seus escritos. As mensagens recebidas logo depois de sua morte re- velavam o impacto teórico e afetivo sobre a vida de tantos seres humanos de todas as partes do mundo. Essas manifes- tações terminavam sempre com o desejo de unir-se a outras pessoas e instituições para dar continuidade ao seu le- gado, ao seu compromisso, não o compromisso com os oprimidos deste ou daquele lugar, mas com os oprimidos de todo o mundo. Para mim, Paulo Freire foi o protótipo desse professor emancipador. 28 Moacir Gadotti 31BONITEZA DE UM SONHO Ensinar-e-aprender com sentido A formação do profissional da educação está direta- mente relacionada com o enfoque, a perspectiva, a concep- ção mesma que se tem da sua formação e de suas funções atuais. Para nós, a formação continuada do professor deve ser concebida como reflexão, pesquisa, ação, descoberta, organização, fundamentação, revisão e construção teórica e não como mera aprendizagem de novas técnicas, atuali- zação em novas receitas pedagógicas ou aprendizagem das últimas inovações tecnológicas. A nova formação permanente, segundo essa concep- ção, inicia-se pela reflexão crítica sobre a prática. Examinar as teorias implícitas, estilos cognitivos, preconceitos (hierar- quia, sexismo, machismo, individualismo, intolerância, ex- clusão...). Como diz Paulo Freire “na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática”1 . E essa reflexão crítica não se limita ao seu cotidiano na sala de aula pois, como diz Francisco Imbernón a sua reflexão “atravessa as paredes da instituição para analisar todo tipo de interesses subjacentes à educa- ção, à realidade social, com o objetivo concreto de obter a emancipação das pessoas”2 . Nesse sentido, deve-se realçar a importância da troca de experiências entre pares, através de relatos de experiên- cias, oficinas, grupos de trabalho: “Quando os professores aprendem juntos, cada um pode aprender com o outro. Isso os leva a compartilhar evidências, informação e a buscar soluções. A partir daqui os problemas importantes das esco- las começam a ser enfrentados com a colaboração entre todos”3 . Na formação continuada do professor, outro eixo im- portante é o da discussão do projeto político-pedagógico a 1 Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa, São Paulo, Paz e Terra, 1997, p. 43. 2 Francisco Imbernón. Formação docente e profissional: formar-se para a mudança e a incerteza. São Paulo, Cortez, 2000, p. 40. 3 Idem, p. 78. 32 Moacir Gadotti escola4 , a elaboração de projetos comuns de trabalho de cada área de interesse do professor, frente a desafios, pro- blemas e necessidades de sua prática. É preciso formar-se para a cooperação. Como diz Francisco Imbernon5 “a co- laboração, mais que uma estratégia de gestão, é uma filoso- fia de trabalho”. Os sistemas de ensino investem na forma- ção individual (individualista?) e competitiva do professor, quando o mais importante é a formação para um projeto comum de trabalho, a formação política do professor. Mais do que uma formação técnica, a função do professor necessita de uma formação política para exercer com com- petência a sua profissão. Em síntese, a nova formação do professor deve estar centrada na escola sem ser unicamente escolar, sobre as práticas escolares dos professores, desenvolver na prática um paradigma colaborativo e cooperativo entre os pro- fissionais da educação. A nova formação do professor deve basear-se no diálogo e visar à redefinição de suas funções e papéis, à redefinição do sistema de ensino e à construção continuada do projeto político-pedagógica da escola. O próprio professor precisa construir também o seu projeto político-pedagógico. Muito sofrimento da professora, do professor, poderia ser evitado se a sua formação inicial e continuada fosse ou- tra, se aprendesse menos técnicas e mais atitudes, hábitos, valores. Antes de se perguntar o que deve saber para ensinar, a professora deve se perguntar porque ensinar e como deve ser para ensinar. Muita dor poderia ser evi- tada se o professor, a professora, aprendessem a organizar melhor o seu trabalho e o de seus alunos e alunas, se apren- dessem a sistematizar e avaliar mais dialogicamente, se ti- vessem aprendido a aprender de forma cooperativa: o indi- 4 Veja-se Paulo Roberto Padilha, Planejamento dialógico: como construir o projeto político-pdagógico da escola (São Paulo, Cortez/IP, 2001) e Ângela Antunes, Aceita um conselho? Como organizar o colegiado escolar (São Paulo, Cortez/IPF, 2002). 5 Op. cit., p 81. É preciso formar-se para a cooperação. 33BONITEZA DE UM SONHO Ensinar-e-aprender com sentido vidualismo da profissão mata de ansiedade e angústia, leva ao sofrimento e até ao martírio do professor compromissado e à desistência daquele que perdeu a esperança. Para evitar o martírio e a desistência é que os sistemas escolares e as escolas necessitam de uma ajuda externa, de uma assessoria pedagógica. Não para fazer o trabalho de- las. Minha experiência me mostrou que a assessoria deve apenas ajudar a escola a inovar. Nós não devemos “im- plantar” inovações de fora, por melhores e mais bem inten- cionados que sejam os “amigos da escola”. A escola é que deve ser protagonista e não os assessores. Toda inovação que vem de fora está fadada ao fracasso. Vejam-se os nu- merosos exemplos de “implantação” de inovações feitas pe- los sistemas de ensino, mera determinação exterior, artificial e separada dos contextos pessoais e institucionais em que trabalham os profissionais da educação nas escolas. A experiência do Instituto Paulo Freire nos mostrou, por exemplo, que o seu Projeto da Escola Cidadã, iniciado por Paulo Freire logo depois de haver deixado a Secretaria Mu- nicipal de Educação de São Paulo, em 1991, não pode ser “implantado” sob pena de fracassar6 . Todo professor é e deve ser, necessariamente, um mau “implantador” de idéias dos outros. E é ótimo que assim seja, porque ele deve ser autônomo, ele precisa assumir, construir e conquistar sua autonomia profissional. O que a assessoria externa pode fazer é propor uma colaboração na identificação das neces- sidades e construir, com eles, as respostas a essas necessi- dades. Para isso, precisamos dispor de estratégias. Envol- ver a comunidade interna e externa da escola é essencial para qualquer inovação. O agente protagonista é o profissional da escola. O assessor, como guia e mediador entre iguais, amigo crítico, “deveria intervir a partir das demandas dos professores ou das instituições educacionais com objetivo de auxiliar no 1 Para maiores informações sobre os projetos do Instituto Paulo Freire veja-se o site www.paulofreire.org. 36 Moacir Gadotti 37BONITEZA DE UM SONHO Ensinar-e-aprender com sentido 4. Ser professor na sociedade aprendente 38 Moacir Gadotti 41BONITEZA DE UM SONHO Ensinar-e-aprender com sentido professor, para o exercício das suas funções não depende exclusivamente da tecnologia. Nem tudo muda para ele mudando a tecnologia que utilizar. No novo contexto de impregnação da informação ele precisa continuar sua for- mação ao longo de toda a vida e “saber ser, saber aprender, saber conviver, saber fazer”, como diz a UNESCO5 . Mas precisa continuar, como sempre, “saber porque” está ensi- nando e o que está ensinando, precisa “saber pensar”6 , necessita associar ensino, pesquisa e envolvimento comuni- tário. Pesquisar faz parte da própria “natureza da prática docente”, como diz Paulo Freire: “Fala-se hoje, com insis- tência”, diz ele, “no professor pesquisador. No meu enten- der o que há de pesquisador no professor não é uma quali- dade ou uma forma de ser ou de atuar que se acrescente à de ensinar. Faz parte da natureza da prática docente a inda- gação, a busca, a pesquisa. O de que se precisa é que, em sua formação permanente, o professor se perceba e se assu- ma, porque professor, como pesquisador”7 . Alguns confundem competência com habilidade, mas competência não é habilidade: o professor pode ser compe- tente, ter conhecimentos profundos de uma determinada dis- ciplina e não ter habilidades práticas para o ensino, não saber ensinar. A educação não é só ciência, mas é também arte. O ato de educar é complexo. O êxito do ensino não depende tanto do conhecimento do professor, mas da sua capacidade de criar espaços de aprendizagem, vale dizer, “fazer aprender” e de seu projeto de vida de continuar aprendendo. Nesse contexto devemos destacar as “competências de vida” ou os “saberes de experiência feitos”, como costuma- 5 Jacques Delors (org.), Educação: um tesouro a descobrir – Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI. São Paulo, Cortez, 1998. 6 Pedro Demo, Saber pensar. São Paulo, Cortez/Instituto Paulo Freire, 2000. 7 Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo, Paz e Terra, 1997, p. 32. O professor, para o exercício das suas funções não depende exclusivamente da tecnologia. 42 Moacir Gadotti va dizer Freire. As competências de vida que não se enqua- dram nas competências dos campos profissionais específi- cos. A questão das competências está ligada ao tema como aprendemos. Aprendemos atuando, empreendendo, agin- do. A ação gera saber, habilidade, conhecimento. Agindo, por exemplo, aprendemos técnicas e métodos sobre “como fazer”. E, muitas vezes, por não termos sido formados para reconhecer essas competências, não sabemos ensinar como fazemos, como chegamos a ter êxito no que fazemos. Paulo Freire foi um mestre do respeito desse saber, dessas competências de vida. Para ele aprender era conhe- cer melhor o que já se sabe para poder ter acesso a novos conhecimentos. Essa não era apenas uma técnica pedagó- gica mas um ato pedagógico e uma concepção de vida que parte do acolhimento, com respeito, de um ser que conhece e quer aprender mais. Há um movimento, sobretudo na Europa, para reco- nhecer (certificar) as competências das pessoas (sobretudo adultas) que não passaram pela certificação da escola. Qual o sentido do reconhecimento das competências de vida das pessoas? Creio que essa certificação só faz sentido se não for burocrática, isto é, se valorizar a capacidade de aprender das pessoas. Reconhecer uma competência ou habilidade estimula e motiva as pessoas a continuar aprendendo, a “pensar a sua prática para transformá-la”, como queria Freire. O surgimento desse debate em torno da certificação de todas as competências das pessoas não deve ser invali- dado pela possibilidade de controle social que traz em si mesmo. Este debate também traz algo positivo, na medida em que encarna o surgimento de uma nova sociedade, de uma sociedade essencialmente aprendente. A sociedade contemporânea está marcada pela ques- tão do conhecimento. E não é por acaso. O conheci- mento tornou-se peça chave para entender a própria evolu- ção das estruturas sociais, políticas e econômicas de hoje. A ação gera saber, habilidade, conhecimento. 43BONITEZA DE UM SONHO Ensinar-e-aprender com sentido Fala-se muito hoje em sociedade do conhecimento, às vezes com impropriedade. Mais do que a era do conhecimento, devemos dizer que vivemos a era da informação, pois perce- bemos com mais facilidade a disseminação da informação e de dados, muito mais do que de conhecimentos. O acesso ao conhecimento é ainda muito precário, sobretudo em so- ciedades com grande atraso educacional. Como ser professor na sociedade aprendente? Hoje as teorias do conhecimento na educação estão centradas na aprendizagem, no ato de aprender, de conhecer. - O que é conhecer? Conhecer é construir categorias de pensamento, é “ler o mundo e transformá-lo”, dizia Freire. Não é possível cons- truir categorias de pensamento como se elas existissem a priori, independentemente do sujeito que conhece. Ao co- nhecer, o sujeito do conhecimento reconstrói o que conhece. - Como conhecer? Só é possível conhecer quando se deseja, quando se quer, quando nos envolvemos profundamente com o que aprendemos. No aprendizado, gostar é mais importante do que criar hábitos de estudo, por exemplo. Hoje se dá mais importância às metodologias da aprendizagem, às lingua- gens e às línguas estrangeiras, do que aos conteúdos. A transversalidade e a transdisciplinaridade do conhecimento é mais valorizada do que os conteúdos longitudinais do currículo clássico. Frente à disseminação e à generalização do conheci- mento, é necessário que a escola e o professor, a professora, façam uma seleção crítica da informação, pois há muito lixo e propaganda enganosa sendo veiculados. Não faltam, tam- bém na era da informação, encantadores da palavra para tirar algum proveito, seja econômico, seja religioso, seja ideológico. Conhecer é importante porque a educação se funda no conhecimento e este na atividade humana. Para inovar é 46 Moacir Gadotti 47BONITEZA DE UM SONHO Ensinar-e-aprender com sentido A educação é necessária para a sobrevivência do ser humano. Para que ele não precise inventar tudo de novo, necessita apropriar-se da cultura, do que a humanidade já produziu. Educar é também aproximar o ser humano do que a humanidade produziu. Se isso era importante no passado, hoje é ainda mais decisivo numa sociedade baseada no conhecimento. O professor precisa saber, contudo, que é difícil para o aluno perceber essa relação entre o que ele está aprendendo e o legado da humanidade. O aluno que não perceber essa relação não verá sentido naquilo que está aprendendo e não aprenderá, resistirá à aprendizagem, será indiferente ao que o professor estiver ensinando. Ele só aprende quando quer aprender e só quer aprender quando vê na aprendiza- gem algum sentido. Ele não aprende porque é “burrinho”. Ao contrário, às vezes, a maior prova de inteligência en- contra-se na recusa em aprender. Aprender vem de “ad” (junto de alguém ou algo) e “praehendere” (tentar prender, agarrar, pegar). Aprendemos porque somos seres inacabados: as tartarugas nascem “sabendo” o que precisam. Nascem na praia sem a presen- ça da mãe. Mesmo assim, elas “sabem” que devem ir logo para o mar, caso contrário podem acabar na boca de al- gum predador. Os seres humanos, contudo, se abandona- dos, mesmo com alguns meses de vida, eles morreriam. Nascem frágeis. Se os pais não os alimentam, morrem. Nós, seres humanos, não só somos seres inacabados e incompletos como temos consciência disso. Por isso, preci- samos aprender “com”. Aprendemos “com” porque precisa- mos do outro, fazemo-nos na relação com o outro, media- dos pelo mundo, pela realidade em que vivemos. O que acontece conosco é que se o que aprendemos não tem sentido, não atender alguma necessidade, não “apre- endemos”. O que aprendemos tem que “significar” para nós. Alguma coisa ou pessoa é significativa quando ela dei- xa de ser indiferente. Esquecemos o que aprendemos sem 48 Moacir Gadotti sentido, o que não pode ser usado. Guardar coisa inútil é burrice. “O corpo aprende para viver. É isso que dá sentido ao conhecimento. O que se aprende são ferramentas, possi- bilidades de poder.O corpo não aprende por aprender. Aprender por aprender é estupidez”1 . Todo ser vivo aprende na interação com o seu contex- to: aprendizagem é relação com o contexto. Quem dá signi- ficado ao que aprendemos é o contexto. Por isso, para o educador ensinar com qualidade, ele precisa dominar, além do texto, o com-texto, além de um conteúdo, o significado do conteúdo que é dado pelo contexto social, político, eco- nômico... enfim, histórico do que ensina. Nesse sentido, todo educador é também um historiador. Nós, educadores, precisamos ter clareza do que é aprender, do que é “aprender a aprender”, para entender- mos melhor o ato de ensinar. Para nós, educadores, não basta saber como se constrói o conhecimento. Nós precisa- mos dominar outros saberes da nossa difícil tarefa de ensi- nar. Precisamos saber o que é ensinar, o que é aprender e, sobretudo, como aprender. - O que é aprender? Aprender não é acumular conhecimentos. Aprende- mos história não para acumular conhecimentos, datas, in- formações, mas para saber como os seres humanos fizeram a história para fazermos história. O importante é aprender a pensar (a realidade, não pensamentos), aprender a aprender. É o sujeito que aprende através da sua experiência. Não é um coletivo que aprende. Mas é no coletivo que se aprende. Eu dialogo com a realidade, com autores, com meus pares, com a diferença. Meu texto, este texto que estou escrevendo agora, por exemplo, é resultado de um diálogo: diálogo com o contexto, com os educadores, presentes em diversas palestras, com os autores que li, etc. 1 Rubem Alves, “Sobre moluscos e homens”, in Folha de S. Paulo, 17 de fevereiro de 2002, p. 3. 51BONITEZA DE UM SONHO Ensinar-e-aprender com sentido na cabeça de crianças e jovens. Em média, no mundo, uma criança passa 4 horas diárias em frente à televisão. No Bra- sil são 8 horas. Em média, no mundo, a criança passa 8 horas diárias na escola. No Brasil são 4 horas. E mais: os professores passam mais tempo com as crianças do que os pais. Passamos muito tempo na escola, passamos muito tem- po diante da televisão. A criança passa muito tempo sentada diante da televi- são porque sente prazer em ficar lá. O que o professor fala não exerce o mesmo fascínio da TV. “Cada vez mais as cri- anças chegam à escola transportando consigo a imagem de um mundo – real ou fictício – que ultrapassa em muito os limites da família e da comunidade de vizinhos. As mensa- gens mais variadas – lúdicas, informativas, publicitárias – transmitidas pelos meios de comunicação social entram em concorrência ou em contradição com o que as crianças aprendem na escola. Estas mensagens surgem sempre orga- nizadas em rápidas seqüências o que, em numerosas regi- ões do mundo, tem uma influência negativa sobre a capaci- dade de manter a atenção, por parte dos alunos e, portanto, sobre as relações na aula. Passando os alunos menos tempo na escola do que diante da televisão, a seus olhos é grande o contraste entre a gratificação instantânea oferecida pelos meios de comunicação, que não lhes exige nenhum esforço, e o que lhes é exigido para alcançarem sucesso na escola. Tendo assim perdido, em grande parte, a preeminên- cia que tinham na educação, professores e escola encon- tram-se confrontados com novas tarefas: fazer da escola um lugar mais atraente para os alunos e fornecer-lhes as chaves de uma compreensão verdadeira da sociedade da informa- ção. O professor deve estabelecer uma nova relação com quem está aprendendo, passar do papel de ‘solista’ ao de ‘acompanhante’, tornando-se não mais alguém que trans- mite conhecimentos, mas aquele que ajuda os seus alunos a encontrar, organizar e gerir o saber, guiando, mas não mo- delando os espíritos, e demonstrando grande firmeza quanto aos valores fundamentais que devem orientar toda a vida”5 . Essas considerações do Relatório para a UNESCO da Co- 52 Moacir Gadotti missão Internacional sobre Educação para o Século XXI me parecem muito apropriadas para explicar as dificuldades enfrentadas hoje pelos professores. São pistas para enfrentar a questão: “O que devo fazer?” “O que o senhor faria no meu lugar?”. Mas, é claro, elas não dão conta de toda a complexa questão do “saber ensinar”. Diante das dificuldades da prática docente, do desencanto dos nossos alunos, muitos e muitas professoras são vítimas da “síndrome da desistência”6 . Ela é expressa na exaustão emocional provocada pelo aumento da quanti- dade de trabalhos e pela despersonalização provocada pela sua baixa valorização social e reduzida realização pessoal. São essas dificuldades que nos levam à pergunta de sempre: por que ser professor hoje? Qual é sentido de ser professor hoje? Para que estou ensinando? Como deve ser o novo professor? Eis, em resumo, as respostas que tenho dado com mais freqüência em minhas falas, considerando o contexto da globalização e da “nova globalização”7 emergente, que venho chamando de “planetarização”8 e a sociedade da informação que prefiro chamar de sociedade aprendente. 1. O novo professor é um profissional do sen- tido. Diante dos novos espaços de formação (diversas mídias, ONGs, Internet, espaços públicos e privados, associações, empresas, sindicatos, partidos, parlamento...), o novo pro- fessor integra esses espaços e deixa de ser lecionador para 5 Jacques Delors (org.), Educação: um tesouro a descobrir – Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI. São Paulo, Cortez, 1998, p.154-155. 6 Ver pesquisa sobre saúde dos trabalhadores em educação da CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação), Educação: carinho e trabalho – Burnout, a síndrome da desistência do educador, que pode levar à falência da educação. Brasília, CNTE, 1999. Essa pesquisa foi o mais amplo levantamento já realizado a respeito da educação em todo o mundo. Durante dois anos foram entrevistados 52 mil professores e funcionários de escola em 1.440 unidades das redes públicas estaduais, nos 27 estados do Brasil. 53BONITEZA DE UM SONHO Ensinar-e-aprender com sentido ser um “gestor” 9 do conhecimento social (popular), o pro- fissional que seleciona a informação e dá/constrói sentido para o conhecimento, um mediador do conhecimento. “Gestor” aqui significa construtor, organizador, mediador, coordenador. Não se confunde com “gerente” de uma empresa. O novo profissional da educação precisa perguntar- se: por que aprender, para quê, contra quê, contra quem. O processo de aprendizagem não é neutro. O importante é aprender a pensar, a pensar a realidade e não pensar pen- samentos já pensados. Mas a função do educador não aca- ba aí: é preciso pronunciar-se sobre essa realidade que deve ser não apenas pensada, mas transformada. Muitas vezes não vemos sentido no que estamos ensi- nando. E nossos alunos também não vêem sentido no que estão aprendendo. Numa época de incertezas, de perplexi- dades, de transição, esse profissional deve construir sentido com seus alunos. O processo ensino/aprendizagem deve ter sentido para o projeto de vida de ambos para que seja um processo verdadeiramente educativo. O grande mal-estar de muitos de nossos professores e de nossas escolas está no “vi- ver sem sentido” do que estão fazendo. O ato educativo está essencialmente ligado ao viver com sentido, à impregnação de sentido para nossas vidas. 2. O novo professor é um profissional que aprende em rede (ciberespaço da formação), sem hierar- quias, cooperativamente (saber organizar o seu próprio tra- balho). É um aprendiz permanente, um organizador do tra- [...] o novo professor [...] deixa de ser lecionador para ser um “gestor” do conhecimento social [...] 7 Milton Santos, Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. São Paulo, Record, 2000. 8 Ver Ângela Antunes, Leitura do mundo no contexto da planetarização: por uma pedagogia da sustentabilidade. São Paulo, Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 2002 (Tese de doutorado) e Moacir Gadotti, Pedagogia da Terra. São Paulo, Peirópolis, 2001. 9 Ladislau Dowbor, A reprodução social: propostas para uma gestão transformadora. Petrópolis, Vozes, 1998. 56 Moacir Gadotti 57BONITEZA DE UM SONHO Ensinar-e-aprender com sentido 6. Educar para uma vida saudável 58 Moacir Gadotti 61BONITEZA DE UM SONHO Ensinar-e-aprender com sentido 5º. Formar para a compreensão. Formar para a ética do gênero humano, não para a ética instrumental e utilitária do mercado. Educar para comunicar-se. Não co- municar para explorar, para tirar proveito do outro, mas para compreendê-lo melhor. A Pedagogia da Terra que defende- mos funda-se nesse novo paradigma ético e numa nova in- teligência do mundo. Inteligente não é aquele que sabe re- solver problemas (inteligência instrumental), mas aquele que tem um projeto de vida solidário. Por que é bela a diversida- de, porque é enriquecedora na possibilidade de criação de novas realidades e mais plenas. A solidariedade, como valor e como necessidade humana, embeleza, humaniza e pro- move a vida. 6º. Educar para a simplicidade e para a quietu- de. Nossas vidas precisam ser guiadas por novos valores: simplicidade, austeridade, quietude, paz, saber escutar, sa- ber viver juntos, compartir, descobrir e fazer juntos. Precisa- mos escolher entre um mundo mais responsável frente à cul- tura dominante que é uma cultura de guerra, do ruído, de competitividade sem solidariedade, e passar de uma respon- sabilidade diluída a uma ação concreta, praticando a sustentabilidade na vida diária, na família, no trabalho, na escola, na rua. A simplicidade não se confunde com a simploriedade e a quietude não se confunde com a cultura do silêncio. A simplicidade tem que ser voluntária como a mudança de nossos hábitos de consumo, reduzindo nossas demandas. A quietude é uma virtude, conquistada com a paz interior e não pelo silêncio imposto. É claro, tudo isso supõe justiça e justiça supõe que todas e todos tenham acesso à qualidade de vida. Seria cíni- co falar de redução de demandas de consumo, atacar o consumismo, falar de consumismo aos que ainda não tive- ram acesso ao consumo básico. Não existe paz sem justiça. Diante do possível extermínio do planeta, surgem al- ternativas numa cultura da paz e uma cultura da sustentabilidade. Sustentabilidade não tem a ver apenas com a biologia, a economia e a ecologia. Sustentabilidade tem a ver com a relação que mantemos conosco mesmos, A quietude é uma virtude, conquistada com a paz interior e não pelo silêncio imposto. 62 Moacir Gadotti com os outros e com a natureza. A pedagogia deveria co- meçar por ensinar sobretudo a ler o mundo, como nos diz Paulo Freire, o mundo que é o próprio universo, por que é ele nosso primeiro educador. Essa primeira educação é uma educação emocional que nos coloca diante do mistério do universo, na intimidade com ele, produzindo a emoção de nos sentirmos parte desse sagrado ser vivo e em evolu- ção permanente. Não entendemos o universo como partes ou entida- des separadas, mas como um todo sagrado, misterioso, que nos desafia a cada momento de nossas vidas, em evolução, em expansão, em interação. Razão, emoção e intuição são partes desse processo, onde o próprio observador está impli- cado. O Paradigma-Terra é um paradigma civilizatório. E como a cultura da sustentabilidade oferece uma nova per- cepção da Terra, considerando-a como uma única co- munidade de humanos, ela se torna básica para uma cultura de paz. O universo não está lá fora. Está dentro de nós. Está muito próximo de nós. Um pequeno jardim, uma horta, um pedaço de terra, é um microcosmos de todo o mundo natu- ral. Nele encontramos formas de vida, recursos de vida, pro- cessos de vida. A partir dele podemos reconceitualizar nosso currículo escolar. Ao construí-lo e ao cultivá-lo podemos aprender muitas coisas. As crianças o encaram como fonte de tantos mistérios! Ele nos ensina os valores da emocionalidade com a Terra: a vida, a morte, a sobrevivên- cia, os valores da paciência, da perseverança, da criatividade, da adaptação, da transformação, da renovação. Todas as nossas escolas podem transformar-se em jar- dins e professores-alunos, educadores-educandos, em jar- dineiros. O jardim nos ensina ideais democráticos: conexão, escolha, responsabilidade, decisão, iniciativa, igualdade, biodiversidade, cores, classes, etnicidade, e gênero. Paulo Freire insistia na necessidade de reafirmar a es- tética como dimensão fundamental da tarefa de educar. O Instituto Paulo Freire vem dando continuidade e reinventando O universo não está lá fora. Está dentro de nós. 63BONITEZA DE UM SONHO Ensinar-e-aprender com sentido esse sonho de Paulo Freire. Como me escreveu um dos seus diretores pedagógicos, Paulo Roberto Padilha, que está con- cluindo sua tese de doutorado sobre esse tema, “a boniteza de ser professor está no fato de ser uma atividade desafiado- ra, cheia de cores, tempos e espaços diferentes. A vida do professor poderia ser dinâmica e bela se pudéssemos enchê- la de jardins, de sons, de imagens, de sentimentos... se pu- déssemos resgatar a beleza que temos em nós, seres huma- nos. Resgatar na sala de aula e na escola, a nossa humani- dade”. Concordo plenamente com ele. 66 Moacir Gadotti 67BONITEZA DE UM SONHO Ensinar-e-aprender com sentido “Educadores, onde estarão?”, pergunta Rubem Alves. E ele mesmo responde: “Em que covas terão se escon- dido? Professores, há aos milhares, mas professor é profis- são, não é algo que se define por dentro, por amor. Educa- dor, ao contrário, não é profissão, é vocação. E toda voca- ção nasce de um grande amor, de uma grande esperan- ça”1 . E continua: “Com o advento da indústria como pode- ria o artesão sobreviver? Foi transformado em operário de segunda classe, até morrer de desgosto e saudade. O mes- mo com os tropeiros, que dependiam das trilhas estreitas e das solidões, que morreram quando o asfalto e o automóvel chegaram. Destino igualmente triste teve o boticário, sem recursos para sobreviver num mundo de remédios prontos. Foi devorado no banquete antropofágico das multinacionais”2 . Rubem Alves é um emérito escritor, psicanalista, edu- cador respeitado, mas é sobretudo um semeador de sonhos e de idéias que dão a pensar. Foi assim que introduziu uma intrigante distinção entre ser professor e ser educador: “Com o advento do utilitarismo a pessoa passou a ser defi- nida pela sua produção; a identidade é engolida pela fun- ção. E isto se tornou tão arraigado que, quando alguém nos pergunta o que somos, respondemos inevitavelmente dizen- do o que fazemos. Com essa revolução instaurou-se a pos- sibilidade de se gerenciar e administrar a personalidade, pois que aquilo que se faz e se produz, a função, é passível de medição, controle, racionalização. A pessoa praticamente desaparece, reduzindo-se a um ponto imaginário em que várias funções são amarradas. É isto que eu quero dizer ao afirmar que o nicho ecológico mudou. O educador, pelo menos o ideal que minha imaginação constrói, habita um mundo em que a interioridade faz uma diferença, em que as 1 Rubem Alves, in Carlos R. Brandão (org.), O educador: vida e morte – escritos sobre uma espécie em perigo. São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 16. 2 Idem, ibidem. 68 Moacir Gadotti pessoas se definem por suas visões, paixões, esperanças e horizontes utópicos. O professor ao contrário, é funcionário de um mundo dominado pelo Estado e pelas empresas. É uma entidade gerenciada, administrada segundo a sua ex- celência funcional, excelência esta que é sempre julgada a partir dos interesses do sistema. Freqüentemente o educador é mau funcionário, porque o ritmo do mundo do educador não segue o ritmo do mundo da instituições. Não é de se estranhar que Rousseau tenha se tornado obsoleto. Porque a educação que ele contempla ocorre colada ao imprevisível de uma experiência de vida ainda não gerenciada”3 . E con- clui mais a frente: “Talvez que um professor seja um funcio- nário das instituições... O educador, ao contrário é um fun- dador de mundos, mediador de esperanças, pastor de pro- jetos. Não sei como preparar o educador. Talvez que isto não seja nem necessário nem possível... É necessário acordá- lo. E aí aprenderemos que educadores não se extinguiram como tropeiros e caixeiros”4 . As reações às provocações de Rubem Alves não se fizeram esperar. Suas teses geravam uma saudável polêmi- ca. O professor Jefferson Ildefonso da Silva sustenta que existe um “falso dilema” entre educador e professor. Esse dilema “se dilui e perde sua relevância ao se encarar a formação do educador para além do âmbito pedagógico ou individualis- ta, para situá-lo na perspectiva de uma proposta e teoria pedagógica que incorpore o caráter político da prática pe- dagógica e sua dependência da práxis social global, onde se dá a luta hegemônica das classes”5 . Todo professor é, por função, educador. Para ele o educador é um intelectual dirigente, orgânico. Numa sociedade dividida, ele não é neutro. Numa perspectiva emancipadora, o educador é um intelectual orgânico das classes populares, a favor dos inte- resses das pessoas que necessitam de educação. 3 Idem, pp. 18-19. 4 Idem, p. 28. 5 Jefferson Ildefonso da Silva, Formação do educador e educação política, São Paulo, Cortez/Autores Associados, 1991, p. 13. 71BONITEZA DE UM SONHO Ensinar-e-aprender com sentido holisticamente é estimular o desenvolvimento integral do ser humano em sua totalidade pessoal - intelectual, emocio- nal, física - relacionada com a totalidade do mundo da vida - os outros seres vivos, a comunidade, a sociedade - e a totalidade cósmica: a Terra, o universo. Educar holisticamente é entender o ser humano como um ser que transcende, que ultrapassa todos os limites, “até o último horizonte”, como diz Leonardo Boff10 . O professor precisa indagar-se constantemente sobre o sentido do que está fazendo. Se isso é fundamental para todo ser humano, como ser que busca sentido o tempo todo, para toda e qualquer profissão, para o professor é também um dever profissional. Faz parte de seus saberes profissio- nais continuar indagando, junto com seus colegas e alunos, sobre o sentido do que estão fazendo na escola. Ele está sempre em processo de construção de sentido. Como diz Celso Vasconcellos11 , “o sentido não está pronto em al- gum lugar esperando ser descoberto. O sentido não advém de uma esfera transcendente, nem da imanência do objeto ou ainda de um simples jogo lógico-formal. É uma constru- ção do sujeito! Daí falarmos em produção. Quem vai pro- duzir é o sujeito, só que não de forma isolada, mas num contexto histórico e coletivo (...). Ser professor, na acepção mais genuína, é ser capaz de fazer o outro aprender, desen- volver-se criticamente. Como a aprendizagem é um proces- so ativo, não vai se dar, portanto, se não houver articulação da proposta de trabalho com a existência do aluno; mas também do professor, pois se não estiver acreditando, se não estiver vendo sentido naquilo, como poderá provocar no aluno o desejo de conhecer?” Celso Vasconcellos insiste, em seu livro que o papel do professor é “educar através do ensino”12 . Ele pode apenas 10 Leonardo Boff, Tempo de transcendência: o ser humano como um projeto infinito. São Paulo, Sextante, 2000. 11 Celso Vasconcellos, Para onde vai o professor? Resgate do professor como sujeito de transformação. São Paulo, Libertad, 2001, pp. 51-52. 12 Idem, p. 55. 72 Moacir Gadotti ensinar tabuada, mas só educa através do ensino quando construir o sentido da tabuada junto com seu aprendiz, por que, como diz ele, ensinar vem do latim insignare, que sig- nifica “marcar com um sinal”, atuar na construção do signi- ficado do que fazemos. Tudo o que fazemos precisamos fa- zer com sentido, tudo o que estudamos tem que ter sentido. Os dois maiores educadores do século passado, John Dewey e Paulo Freire, cada um a seu modo, procuraram responder a essa questão e centraram suas análises na rela- ção entre “educação e vida”, reagindo às pedagogias tecnicistas do seu tempo – tanto de esquerda quanto de di- reita – que só se preocupavam com métodos e técnicas. “Gostaria de ser lembrando como alguém que amou a vida”, disse Paulo Freire duas semanas antes de falecer. A educa- ção só tem sentido como vida. Ela é vida. A escola perdeu seu sentido de humanização quando ela virou mercadoria, quando deixar de ser o lugar onde a gente aprende a ser gente, para tornar-se o lugar onde as crianças e os jovens vão para aprender a competir no mercado. A educação, para ser transformadora, emancipadora, precisa estar centrada na vida, ao contrário da educação neoliberal que está centrada na competividade sem solidari- edade. Para ser emancipadora a educação precisa conside- rar as pessoas, suas culturas, respeitar o modo de vida das pessoas, sua identidade. O ser humano é “incompleto e inacabado” como diz Paulo Freire13 , em formação permanente. Por isso, hoje, o professor precisa mostrar que o neoliberalismo, com sua política de mercantilização da educação, tornou a sua profissão descartável. É preciso mostrar também que uma educação de qualidade para to- dos é inviável e contrária ao projeto político neoliberal capi- talista. É preciso fazer a análise crítica, social, econômica. 13 Paulo Freire, Educação e mudança. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979, p. 27. 73BONITEZA DE UM SONHO Ensinar-e-aprender com sentido Mas tudo isso não basta. É preciso que a rigorosa análise da situação não fique nela, mas aponte caminhos e nos indique como caminhar. Caso contrário, as análises socio- lógicas e políticas, por mais rigorosas e corretas que sejam, ajudam apenas para manter o imobilismo e a falta de pers- pectivas para o educador. Há que superar tanto o imobilismo quanto a prática do imediatismo tarefeiro e descomprometido com um projeto amplo de socidade. O poder do professor está tanto na sua capacidade de refletir criticamente sobre a realidade para transformá-la quanto na possibilidade de formar um grupo de compa- nheiros e companheiras para lutar por uma causa comum. Paulo Freire insistia que a escola transformadora era a “es- cola de companheirismo”, por isso sua pedagogia é uma pedagogia do diálogo, das trocas, do encontro, das redes solidárias. “Companheiro” vem do latim e significa “aquele que partilha o pão”. Trata-se portanto de uma postura radi- cal ao mesmo tempo crítica e solidária. Às vezes somos apenas críticos e perdemos o afeto dos outros por falta de companheirismo. Não haverá superação das condições atuais do magistério sem um profundo senti- mento de companheirismo. Lutando sozinhos chegaremos ape- nas à frustração, ao desânimo, à lamúria. Daí o sentido pro- fundamente ético dessa profissão. No fundo, para enfrentar a barbárie neoliberal na educação vale ainda a tese de Marx de que “o próprio educador deve ser educado”, educado para a construção histórica de um sentido novo de seu papel. Escrevi esse pequeno inspirado na Pedagogia da au- tonomia de Paulo Freire. Nesse seu último livro, ele traba- lhou principalmente a ética e a estética do ser professor: o que ele deve saber para ser professor, como ele deve ser para ser professor. Paulo Freire sonhava com uma sociedade, um mundo, onde todos coubessem. A educação pode dar um passo na direção deste outro mundo possível se ensinar as pessoas com um novo paradigma do conhecimento, com uma visão do mundo onde todas as formas de conhecimento tenham Lutando sozinhos chegaremos apenas à frustração, ao desânimo, à lamúria. 76 Moacir Gadotti 77BONITEZA DE UM SONHO Ensinar-e-aprender com sentido ALVES, Rubem. Conversas com quem gosta de ensinar. São Paulo: Cortez, 1981. ANTUNES, Ângela. Aceita um conselho? Como organizar o colegiado escolar. São Paulo: Cortez/IPF, 2002. ANTUNES, Ângela. Leitura do mundo no contexto da planetrarização: por uma pedagogia da sustentabilidade. São Paulo: Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 2002 (Tese de doutorado). ARROYO, Miguel G. Ofício de mestre: imagens e auto- imagens. Petrópolis: Vozes, 2000. BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano, compai- xão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999. —————. Tempo de transcendência: o ser humano como um projeto infinito. São Paulo: Sextante, 2000. 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