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Guias e Dicas
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Paulo Freire - "Conscientização", Notas de estudo de Educação Física

Na primeira parte, Paulo Freire fala sobre sua origem camponesa e humilde para depois tratar de seu trabalho de alfabetização-conscientização. A segunda parte está centrada no método Paulo Freire e sua aplicação. Na terceira, é estudada a educação como prática de liberdade.

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 16/12/2010

najala-matos-4
najala-matos-4 🇧🇷

4.5

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127 documentos

Pré-visualização parcial do texto

Baixe Paulo Freire - "Conscientização" e outras Notas de estudo em PDF para Educação Física, somente na Docsity! “PAULO FREIRE | CONSCIENTIZAÇÃO | TEORIA E PRATICA DA LIBERTAÇÃO UMA INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO DE PAULO FREIRE TiJDLD ATÉ TON PR TER ISO JPBC MON 0307/02 CORTEZ&MORAES CONSCIENTIZAÇÃO Teoria e Prática da Libertação Uma Introdução ao Pensamento de Paulo Freire produção editorial de Alexandre Rudyard Benevides tradução de Kátia de Mello e Silva revisão técnica de Prof. Benedito Eliseu Leite Cintra copy-desk de César Augusto Nogueira capa de Marcel Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor © CORTEZ & MORAES LTDA R. Ministro Godoy, 1002 – Fones: (011) 62-8987 e 864-1298 05015 – São Paulo – SP Impresso no Brasil 1979 CONTEÚDO APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................7 PRÓLOGO .................................................................................................................................8 Primeira Parte O HOMEM E SUA EXPERIÊNCIA.................................................................................................9 Paulo Freire por Si Mesmo ....................................................................................................9 Contexto Histórico da Experiência........................................................................................10 No Brasil.......................................................................................................................10 No Chile .......................................................................................................................12 Segunda Parte ALFABETIZAÇÃO E CONSCIENTIZAÇÃO....................................................................................15 Filosofia e problemática......................................................................................................15 Visão do mundo.............................................................................................................15 Idéias-Força..................................................................................................................19 Processo metodológico.......................................................................................................22 Método.........................................................................................................................22 Fases de Elaboração e Aplicação do Método .......................................................................23 Os Atos Concretos da Alfabetização ..................................................................................24 Da Leitura à Escrita........................................................................................................25 Aplicação .........................................................................................................................27 Terceira Parte PRÁXIS DA LIBERTAÇÃO........................................................................................................31 Três palavras chaves .........................................................................................................31 A Opressão ...................................................................................................................31 A Dependência ..............................................................................................................33 O Fenômeno Relacional da Dependência a Partir do Caso Latino-Americano............................33 A Marginalidade.............................................................................................................38 Linhas de ação..................................................................................................................39 Nova Relação Pedagógica................................................................................................39 Ação Cultural e Revolução Cultural ...................................................................................44 BIBLIOGRAFIA .....................................................................................................................49 Obras de Paulo Freire ........................................................................................................49 Obras sobre Paulo Freire ....................................................................................................50 APRESENTAÇÃO A Conferência de Ministros da Educação, reunida em Caracas de 6 a 15 de dezembro de 1971, apontava como “toma corpo a idéia de uma educação libertadora que contribua para formar a consciência crítica e estimular a participação responsável do indivíduo nos processos culturais, sociais, políticos e econômicos”. Há uma notável continuidade entre esta proposta e a que, três anos antes, era oferecida pela Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano em Medellín: “A Educação em todos os seus níveis deve chegar a ser criadora, pois devemos antecipar o novo tipo de sociedade que buscamos na América Latina.” Este despertar de nossa capacidade crítica e criadora e dos homens que comungam o mesmo momento histórico latino-americano está atravessado pelo processo de “conscientização”. O termo tem hoje uma densidade e especificidade bem precisas, exatas. Não pode ser manuseado frivolamente. Não se pode falar de “conscientizar” como se este fato fosse simplesmente descarregar sobre os demais o peso de um saber descomprometido, para induzir a novas formas de alienação. O “conscientizar” não pode estar desvinculado de uma ação bem concreta e eficaz. Como se conhecer métodos de conscientização esgotasse – de forma enganosa – as exigências de compromisso dos educadores de hoje. Assim procedendo, estaríamos novamente caindo em dualismos perigosos, estéreis e esterelizantes. Paulo Freire revela-nos de forma vivencial as exigências mais sutis do processo de conscientização. Penso que o grande mérito de Paulo, o mestre bondoso e estimulante, está precisamente em ser catalizador honesto de uma série de inquietudes que se agitam em nosso meio. Sem ser quem deu cunho ao termo, mostra – e vive – as últimas conseqüências que o processo da conscientização, sempre inacabado, traz consigo. Como latino-americanos e cristãos, não podemos embarcar na leitura destas páginas sem uma firme decisão de vivê-las. CECÍLIO DE LORA, S. M. Diretor da Associação de Publicações Educativas partir do casamento que comecei a me preocupar sistematicamente com problemas educacionais. Estudava mais Educação, Filosofia e Sociologia da Educação que Direito, curso de que fui um aluno médio. Licenciado em Direito pela atual Universidade Federal de Pernambuco, tratei de trabalhar com dois colegas. Mas abandonei o direito depois da primeira causa: um assunto de dívida. Após falar com o jovem dentista, devedor tímido e vacilante, deixei-o ir em paz: que passe sem mim, que prescinda do advogado; sentia-me muito feliz por não o ser daí por diante. Trabalhando num departamento de Serviço Social, se bem que do tipo assistencial – SESI –, repeti meu diálogo com o povo, sendo já um homem. Como diretor do Departamento de Educação e de Cultura do SESI, em Pernambuco, e depois na Superintendência, de 1946 a 1954, fiz as primeiras experiências que me conduziram mais tarde ao método que iniciei em 1961. Isto teve lugar no movimento de Cultura Popular do Recife, um de cujos fundadores fui, e que mais tarde teve continuidade no Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife; coube-me ser seu primeiro diretor. O golpe de Estado (1964) não só deteve todo este esforço que fizemos no campo da educação de adultos e da cultura popular, mas também levou-me à prisão por cerca de cerca de 70 dias (com muitos outros, comprometidos no mesmo esforço). Fui submetido durante quatro dias a interrogatórios, que continuaram depois no IPM do Rio. Livrei-me, refugiando-me na Embaixada da Bolívia em setembro de 1964. Na maior parte dos interrogatórios a que fui submetido, o que se queria provar, além de minha “ignorância absoluta” (como se houvesse uma ignorância ou sabedoria absolutas; esta não existe senão em Deus), o que se queria provar, repito, era o perigo que eu representava. Fui considerado como um “subversivo internacional”, um “traidor de Cristo e do povo brasileiro”, "Nega o senhor – perguntava um dos juízes – que seu método é semelhante ao de Stalin, Hitler, Perón e Mussolini? Nega o senhor que com seu pretendido método o que quer é tornar bolchevique o país?...” O que aparecia muito claramente em toda esta experiência, de que saí sem ódio nem desesperação, era que uma onda ameaçadora de irracionalismo se estendia sobre nós: forma ou distorção patológica da consciência ingênua, perigosa ao extremo por causa da falta de amor que a alimenta, por causa da mística que a anima1. Contexto Histórico da Experiência No Brasil O movimento de Educação Popular foi uma das numerosas formas de mobilização de massas adotadas no Brasil. R possível registrar numerosos procedimentos de natureza política, social e cultural de mobilização e de conscientização de massas, a partir da crescente participação popular por meio do voto (participação geralmente dirigida pelos líderes populistas) até o movimento de cultura popular organizado pelos estudantes. É conveniente mencionar, a este propósito, o esforço de crescimento do sindicalismo rural e urbano, iniciado no momento em que Almino Afonso era Ministro do Trabalho, e que continuou depois. Em doze meses foram criados mais de 1.300 Sindicatos Rurais; as grandes greves dos trabalhadores agrícolas de Pernambuco, em 1951, – a primeira reuniu 85.000 grevistas e a segunda 230.000 –, podem dar uma idéia de sua importância. Por outra parte, a SUPRA (Superintendência da Reforma Agrária) triunfou – apesar da brevidade de sua existência –, agrupando as classes campesinas para a defesa de seus interesses, provocando uma importante repercussão política. Este esforço de mobilização, realizado mais intensamente durante o fim do governo Goulart, apenas havia iniciado a realização de seu programa de atividades, quando ocorreu a queda do regime populista que havia tornado possível tais tentativas. Limitou-se, então, o programa, à criação de uma "atmosfera ideológica que não pôde proporcionar as condições necessárias para a constituição de uma verdadeira ideologia popular”. As relações entre o trabalho de Paulo Freire e a ascensão popular são bem evidentes. 1 Cf. ALVES, Márcio Moreira, Cristo del Pueblo, Santiago, Ercilla, 1970. Seu movimento começou em 1962 no Nordeste, a região mais pobre do Brasil – 15 milhões de analfabetos sobre 25 milhões de habitantes. Neste momento, a "Aliança para o Progresso”, que fazia da miséria do Nordeste seu “leitmotiv” no Brasil, interessou-se pela experiência realizada na cidade de Angicos, Rio Grande do Norte (interesse que teve seu fim pouco tempo depois da própria experiência). Os resultados obtidos – 300 trabalhadores alfabetizados em 45 dias – impressionaram profundamente a opinião pública. Decidiu-se aplicar o método em todo o território nacional, mas desta vez com o apoio do Governo Federal. E foi assim que, entre junho de 1963 e março de 1964, foram realizados cursos de formação de coordenadores na maior parte das Capitais dos Estados brasileiros (no Estado da Guanabara se inscreveram mais de 6.000 pessoas; igualmente criaram-se cursos nos Estados do Rio Grande do Norte, São Paulo, Bahia, Sergipe e Rio Grande do Sul, que agrupavam vários milhares de pessoas). O plano de ação de 1964 previa a instalação de 20.000 círculos de cultura, capazes de formar, no mesmo ano, por volta de 2 milhões de alunos. (Cada círculo educava, em dois meses, 30 alunos.) Assim começava, a nível nacional, uma campanha de alfabetização que haveria de alcançar primeiro as zonas urbanas, para estender-se imediatamente aos setores rurais. Os grupos reacionários não podiam compreender que um educador católico se fizesse representante dos oprimidos; com maior razão lhes era impossível admitir que levar a cultura ao povo fosse conduzi-la a duvidar da validade de seus privilégios. Preferiram acusar Paulo Freire – o ódio pelo comunismo era muito forte – de idéias que não são as suas, e atacar o movimento de democratização da cultura, no qual percebiam o germe da rebelião, baseando-se em que uma pedagogia da liberdade é, por si, fonte de rebeldia. Como era de se esperar, os grupos reacionários confundiram sistematicamente, em suas acusações, a política com o educador. A formação da consciência das massas viu-se dessa forma acusada de apresentar os sintomas de uma perigosa estratégia de subversão. E incrível comprovar, nas forças associadas à mobilização popular, uma incapacidade total para perceber e para assumir as conseqüências implicadas na formação das consciências com vistas à ação. Embora o Movimento de Educação Popular não tenha podido, por causa do golpe de Estado, realizar o conjunto de seu primeiro plano nacional, os protestos de certos grupos oligarcas, do Nordeste em particular, assim como a evolução do processo político, deixam entrever claramente que o desenvolvimento dos planos estabelecidos teria tido por resultado quase imediato um violento choque eleitoral em certos setores tradicionais; e isto na medida em que desaparecia o desconhecimento legal da cidadania política de uma grande parte da população brasileira adulta. (Em 19ó0, para uma população de 34,5milhões de habitantes com mais de 18 anos, constavam inscritos amenas 15,5 milhões de eleitores.) Partidários da exclusão dos analfabetos – a maior parte dos membros das classes populares –, os grupos de direita nunca ocultaram sua hostilidade contra todas as tentativas para aumentar o número de eleitores. O projeto de Getúlio Vargas, que considerava como eleitores todas as pessoas inscritas nos organismos de Previdência Social, foi objeto das críticas mais severas por parte dos setores reacionários. Se naquela ocasião era impossível restabelecer a “república oligárquica” de antes de 1930, ao menos era indispensável conter o processo de extensão da participação popular, limitá-la por todos os meios e com todos os argumentos imagináveis, essencialmente opondo-se à extensão do direito de voto para o conglomerado dos analfabetos. Com efeito, se a participação das massas alfabetizadas modificava já notavelmente o esquema das relações de poder, que ocorreria se se permitisse a participação de todas as classes populares? Que significaria vara os ouves de direita a perda de seus privilégios e para o povo o começo de uma verdadeira democracia? A importância política da exclusão dos analfabetos é particularmente sensível nas localidades mais pobres do país. A vitória de Miguel Arraes como governador de Pernambuco nas eleições de 1962 é um exemplo eloqüente. Líder popular de primeiro plano, Arraes, apoiado pelas massas urbanas triunfou no Recife, a capital do Estado, mas foi derrotado no interior do Estado, onde o eleitorado era composto pela pequena burguesia dos grandes proprietários e das famílias notáveis. Por isso um líder político agrário, tal como Francisco Julião, criador das Ligas Camponesas e que gozava de um prestígio nacional, tinha poucas probabilidades de ser eleito: por isso também os líderes populistas, que podiam eventualmente chegar a ser governadores nos Estados do Norte, foram inevitavelmente obrigados a unirem-se com os grandes proprietários. O Movimento de Educação Popular constituía uma ameaça real para o sustento da antiga situação. O plano de 1964 devia permitir o aumento no número dos eleitores em várias regiões: no Estado de Sergipe, por exemplo, o plano devia acrescentar 80.000 eleitores aos 90.000 existentes; em Pernambuco, o número de votantes passaria de 800.000 a 1.300.000 etc. Todos sabemos o que pretendem os “populistas” – no Brasil, como em qualquer outro país da América Latina – pela mobilização das massas: um homem é igual a um voto. E aí se enraíza todo o problema, porque, de acordo com a pedagogia da liberdade, preparar para a democracia não pode significar somente converter o analfabeto em eleitor, condicionando-o às alternativas de um esquema de poder já existente. Uma educação deve preparar, ao mesmo tempo, para um juízo crítico das alternativas propostas pela elite, e dar a possibilidade de escolher o próprio caminho. Não somente por causa das suas idéias, mas, sobretudo, porque quis fazer da libertação do homem o sentido eito de sua ação, Paulo Freire está hoje no exílio. Existe uma coerência fundamental entre os princípios e a ação do educador. Sua concepção da educação pode ser uma abertura para a história concreta e não uma simples idealização da liberdade... No quadro do Movimento de Educação Popular, os alunos formados nos círculos de cultura são mais exigentes que os líderes populistas, vêem mais nitidamente a diferença entre as promessas feitas às massas e sua realização estiva. Os políticos populistas não compreendem as relações entre alfabetização e “conscientização”. Obsecados por um único resultado – o aumento do número de eleitores –, deram somente um apoio muito escasso, do ponto de vista político, a esta forma de mobilização. Na realidade, raciocinavam de maneira muito simplista ante o problema. Se um educador de fama oferece a possibilidade de alfabetizar em muito pouco tempo o conjunto do povo brasileiro, ideal este desejado durante décadas por todos os governos, por que não dar-lhe o apoio do Estado? Por isso não compreenderam a agitação criada ao redor da pedagogia de Paulo Freire pelos grupos de direita. Os políticos viram o Movimento de Educação Popular como qualquer outra forma de mobilização de massas: em função de suas preocupações eleitorais; e propuseram uma revolução verbal e abstrata, aí onde era necessário prosseguir a reforma prática em curso. O educador, preocupado com o problema do analfabetismo, dirigiu-se sempre às massas que se supunham “fora da história”; a serviço da liberdade, sempre dirigiu-se às massas mais oprimidas, confiando em sua liberdade, em seu poder de criação e de crítica. Os políticos, ao contrário, não se interessavam pelas massas, senão na possibilidade de estas serem manipuladas no jogo eleitoral. Embora seja verdade que é impossível aceitar a visão ingênua como o “fermento da revolução”, sem dúvida, seria conveniente considerar a possibilidade de uma educação que antecipe uma verdadeira política popular, para sugerir-lhe novos horizontes.2 No Chile O método de Paulo Freire é utilizado em todos os programas oficiais de alfabetização do Chile. É interessante expor o caso do Chile porque, se a tendência atual continua, o país reduzirá sua taxa de analfabetismo a 5% em seis anos. Antes de 1964, a alfabetização representava um esforço essencialmente privado. O governo democrata- cristão, eleito nesse ano, queria atacar a problemática integrando-a em seu programa de promoção. Como o presidente Frei assinalou num discurso sobre o estado da nação, sua administração queria “aumentar a participação popular no desenvolvimento de toda a comunidade. Não somente nas políticas dos partidos... mas, sobretudo, nas expressões reais de nossa vida atual: o trabalho, a vida local e regional, as necessidades da família, a cultura de base e a organização econômica-social”. 2 Weffort, Francisco C., “Introdução” in L’Éducation, Práxis de la Liberté. Segunda Parte ALFABETIZAÇÃO E CONSCIENTIZAÇAO Filosofia e problemática Visão do mundo Acredita-se geralmente que sou autor deste estranho vocábulo “conscientização” por ser este o conceito central de minhas idéias sobre a educação. Na realidade, foi criado por uma equipe de professores do INSTITUTO SUPERIOR DE ESTUDOS BRASILEIROS por volta de 1964. Pode-se citar entre eles o filósofo Álvaro Pinto e o professor Guerreiro. Ao ouvir pela primeira vez a palavra conscientização, percebi imediatamente a profundidade de seu significado, porque estou absolutamente convencido de que a educação, como prática da liberdade, é um ato de conhecimento, uma aproximação crítica da realidade. Desde então, esta palavra forma parte de meu vocabulário. Mas foi Hélder Câmara quem se encarregou de difundi-la e traduzi-la para o inglês e para o francês. Uma das características do homem é que somente ele é homem. Somente ele é capaz de tomar distância frente ao mundo. Somente o homem pode distanciar-se do objeto para admirá-la. Objetivando ou admirando – admirar se toma aqui no sentido filosófico – os homens são capazes de agir conscientemente sobre a realidade objetivada. É precisamente isto, a “práxis humana”, a unidade indissolúvel entre minha ação e minha reflexão sobre o mundo. Num primeiro momento a realidade não se dá aos homens como objeto cognoscível por sua consciência crítica. Noutros termos, na aproximação espontânea que o homem faz do mundo, a posição normal fundamental não é uma posição crítica mas uma posição ingênua. A este nível espontâneo, o homem ao aproximar-se da realidade faz simplesmente a experiência da realidade na qual ele está e procura. Esta tomada de consciência não é ainda a conscientização, porque esta consiste no desenvolvimento crítico da tomada de consciência. A conscientização implica, pois, que ultrapassemos a esfera espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica. A conscientização é, neste sentido, um teste de realidade. Quanto mais conscientização, mais se “desvela” a realidade, mais se penetra na essência fenomênica do objeto, frente ao qual nos encontramos para analisá-lo. Por esta mesma razão, a conscientização não consiste em “estar frente à realidade” assumindo uma posição falsamente intelectual. A conscientização não pode existir fora da “práxis”, ou melhor, sem o ato ação – reflexão. Esta unidade dialética constitui, de maneira permanente, o modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza os homens. Por isso mesmo, a conscientização é um compromisso histórico. É também consciência histórica: é inserção crítica na história, implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo. Exige que os homens criem sua existência com um material que a vida lhes oferece...4 A conscientização não está baseada sobre a consciência, de um lado, e o mundo, de outro; por outra parte, não pretende uma separação. Ao contrário, está baseada na relação consciência – mundo. Tomando esta relação como objeto de sua reflexão crítica, os homens esclarecerão as dimensões obscuras que resultam de sua aproximação com o mundo. A criação da nova realidade, tal como está indicada na crítica precedente, não pode esgotar o processo da conscientização. A nova realidade deve tomar-se como objeto de uma nova reflexão crítica. Considerar a nova realidade como algo que não 4 Seminário de Paulo Freire sobre a “Conscientização e Alfabetização de Adultos”. Roma, 17-19 de abril de 1970. possa ser tocado representa uma atitude tão ingênua e reacionária como afirmar que a antiga realidade é intocável. A conscientização, como atitude crítica dos homens na história, não terminará jamais. Se os homens, como seres que atuam, continuam aderindo a um mundo “feito”, ver-se-ão submersos numa nova obscuridade. A conscientização, que se apresenta como um processo num determinado momento, deve continuar sendo processo no momento seguinte, durante o qual a realidade transformada mostra um novo perfil. Desta maneira, o processo de alfabetização política – como o processo lingüístico – pode ser uma prática para a “domesticação dos homens”, ou uma prática para sua libertação. No primeiro caso, a prática da conscientização não é possível em absoluto, enquanto no segundo caso o processo é, em si mesmo, conscientização. Daí uma ação desumanizante, de um lado, e um esforço de humanização, de outro.5 A conscientização nos convida a assumir uma posição utópica frente ao mundo, posição esta que converte o conscientizado em “fator utópico”. Para mim o utópico não é o irrealizável; a utopia não é o idealismo, é a dialetização dos atos de denunciar e anunciar, o ato de denunciar a estrutura desumanizante e de anunciar a estrutura humanizante. Por esta razão a utopia é também um compromisso histórico. A utopia exige o conhecimento crítico. É um ato de conhecimento. Eu não posso denunciar a estrutura desumanizante se não a penetro para conhecê-la. Não posso anunciar sp não conheço, mas entre o momento do anúncio e a realização do mesmo existe algo que deve ser destacado: é que o anúncio não é anúncio de um ante-projeto, porque é na práxis histórica que o anteprojeto se torna projeto. É atuando que posso transformar meu anteprojeto em projeto; na minha biblioteca tenho um anteprojeto que se faz projeto por meio da práxis e não por meio do blábláblá. Além disso, entre o anteprojeto e o momento da realização ou da concretização, há um tempo que se denomina tempo histórico; é precisamente a história que devemos criar com nossas mãos e que devemos fazer; é o tempo das transformações que devemos realizar; é o tempo do meu compromisso histórico. Por isso mesmo, somente os utópicos – quem foi Marx se não um utópico? Quem foi Guevara senão um utópico? – podem ser proféticos e portadores de esperança. Somente podem ser proféticos os que anunciam e denunciam, comprometidos permanentemente num processo radical de transformação do mundo, para que os homens possam ser mais. Os homens reacionários, os homens opressores não podem ser utópicos. Não podem ser proféticos e, portanto, não podem ter esperança. A conscientização está evidentemente ligada à utopia, implica em utopia. Quanto mais conscientizados nos tornamos, mais capacitados estamos para ser anunciadores e denunciadores, graças ao compromisso de transformação que assumimos. Mas esta posição deve ser permanente: a partir do momento em que denunciamos uma estrutura desumanizante sem nos comprometermos com a realidade, a partir do momento em que chegamos à conscientização do projeto, se deixarmos de ser utópicos nos burocratizamos; é o perigo das revoluções quando deixam de ser permanentes. Uma das respostas geniais é a da renovação cultural, esta dialetização que, propriamente falando, não é de ontem, nem de hoje, nem de amanhã, mas uma tarefa permanente de transformação. A conscientização é isto: tomar posse da realidade; por esta razão, e por causa da radicação utópica que a informa, é um afastamento da realidade. A conscientização produz a desmitologização. É evidente e impressionante, mas os opressores jamais poderão provocar a conscientização para a libertação: como desmitologizar, se eu oprimo? Ao contrário, porque sou opressor, tenho a tendência a mistificar a realidade que se dá à captação dos oprimidos, para os quais a captação é feita de maneira mística e não crítica. O trabalho humanizante não poderá ser outro senão o trabalho da desmitificação. Por isso 5 O Processo de Alfabetização Política. Genebra, outubro, 1970. mesmo a conscientização é o olhar mais critico possível da realidade, que a “desvela” para conhecê-la e para conhecer os mitos que enganam e que ajudam a manter a realidade da estrutura dominante.6 Diante de um “universo de temas" em contradição dialética, os homens tornam posições contraditórias; alguns trabalham na manutenção das estruturas, e outros, em sua mudança. Na medida em que cresce o antagonismo entre os temas que são a expressão da realidade, os temas da realidade mesma possuem tendências a serem mitificados, ao mesmo tempo que se estabelece um clima de irracionalidade e de sectarismo. Este clima ameaça arrancar dos temas sua significação profunda e privá-los do aspecto dinâmico que os caracteriza. Numa tal situação, a irracionalidade criadora de mitos converte-se, ela própria, em tema fundamental. O tema que se lhe opõe, a visão crítica e dinâmica do mundo, permite “desvelar” a realidade, desmascarar sua mitificação e chegar à plena realização do trabalho humano: a transformação permanente da realidade para a libertação dos homens. Em última instância, os temas estão contidos nas situações-limite e as contêm; as tarefas que eles implicam exigem atos-limite. Quando os temas estão ocultos pelas situações-limite, e não percebidos claramente, as tarefas correspondentes – as respostas dos homens sob a forma de uma ação histórica – não podem ser cumpridas, nem de maneira autêntica, nem de maneira crítica. Nesta situação, os homens são incapazes de transcender as situações-limite para descobrir que além destas situações e em contradição com elas encontra-se algo não experimentado. Em resumo, as situações-limite implicam na existência de pessoas que são servidas direta ou indiretamente por estas situações, e outras para as quais elas possuem um caráter negativo e domesticado. Quando estas últimas percebem tais situações como a fronteira entre ser e ser mais humano, melhor que a fronteira entre ser e não ser, começam a atuar de maneira mais e mais crítica para alcançar o “possível não experimentado” contido nesta percepção. Por outra parte, aqueles que são servidos pela situação-limite atual vêem o possível não experimentado como uma situação-limite ameaçadora, que deve ser impedida de realizar-se, e atuam para manter o “status quo”. Conseqüentemente, as ações libertadoras, num certo meio histórico, devem corresponder não somente aos temas geradores como ao modo de se perceber estes temas. Esta exigência implica em outra: a procura de temáticas significativas. Os temas geradores podem situar-se em círculos concêntricos que vão do geral ao particular. A unidade histórica mais ampla compreende um conjunto diversificado de unidades e subunidades (continentais. regionais, nacionais etc.) e comporta temas de tipo universal. Eu considero que o tema fundamental de nossa época é o da dominação, que supõe seu reverso, o tema da libertação, como objetivo que deve ser alcançado. É este tema que preocupa, e é ele que dá à nossa época a característica antropológica que mencionei anteriormente. Para realizar a humanização que supõe a eliminação da opressão desumanizante, é absolutamente necessário transcender as situações-limite nas quais ps homens são reduzidos ao estado de coisas. Sem dúvida, quando os homens percebem a realidade como densa, impenetrável e envolvente, é indispensável proceder a esta procura por meio da abstração. Este método não implica que se deva reduzir o concreto ao abstrato (o que significaria que o método não é de tipo dialético), mas que se mantenham os dois elementos, como contrários, em inter-relação dialética no ato da reflexão. Encontra-se um excelente exemplo deste movimento de pensamento dialético na análise de uma situação concreta, existencial, “codificada”. Sua “descodificação” exige que passe do abstrato ao concreto; ou melhor, da parte ao todo, para voltar depois às partes; isto implica que o sujeito se reconheça no objeto como uma situação na qual se encontra com outras pessoas. Se a descodificação for bem feita, este movimento de fluxo e refluxo, do abstrato ao concreto, que se produz na análise de uma situação codificada, conduz a substituir a abstração pela percepção crítica do concreto, que deixou já de ser uma realidade densa impenetrável. 6 Seminário de Paulo Freire sobre a “Conscientização e a Alfabetização de Adultos”. Roma, 17-19 de abril de 1970. emprego de adubos químicos, de máquinas agrícolas nem da formação de sindicatos. Consiste em fazê- los compreender o mecanismo da produção agrícola, à qual se submetem por simples tradição; fazê-los examinar e criticar os atos diários que cumprem por rotina. O que mais custa a um homem saber, de maneira clara, é sua própria vida, tal como está feita por tradição e rotina de atos inconscientes. Para vencer a tradição e a rotina, o melhor procedimento prático não se encontra nas idéias e conhecimentos exteriores e distantes, mas no questionamento da tradição por aqueles que se conformam com ela, no questionamento da rotina em que vivem...” Por caminhos diferentes e muito fecundos – mais fecundos pelo fato de se integrarem numa preocupação de promoção global da pessoa – Paulo Freire encontra este ensinamento de C. Guyesse, do qual até agora se havia feito tão pouco caso. “Se – escreve – a vocação ontológica do homem é a de ser sujeito e não objeto, esta não pode realizar- se senão na medida em que... refletindo sobre as condições espaço-temporais, nos submergimos nelas e as medimos com espírito crítico.” 3. Na medida em que o homem, integrado em seu contexto, reflete sobre este contexto e se compromete, constrói a si mesmo e chega a ser sujeito. Esta idéia-força pode ser separada em duas afirmações: a) O homem, precisamente porque é homem, é capaz de reconhecer que existem realidades que lhe são exteriores. Sua reflexão sobre a realidade o faz descobrir que não está somente na realidade, mas com ela. Descobre que existe seu eu e o dos outros, embora existam órbitas existenciais diferentes: o mundo das coisas inanimadas, o mundo vegetal, o animal, outros homens... Esta capacidade de discernir o que não é próprio do homem permite-lhe, também, descobrir a existência de um Deus e estabelecer relações com ele. O homem, porque é homem, é capaz igualmente de reconhecer que não vive num eterno presente, e sim uma tempo feito de ontem, de hoje, de amanhã. Esta tomada de consciência de sua temporalidade (que lhe vem de sua capacidade de discernir) permite-lhe tomar consciência de sua historicidade, coisa que não pode fazer um animal porque não possui esta mesma capacidade de discernimento. Enfim, o homem – porque é homem – é, portanto, capaz de discernir, pode entrar em relação com outros seres. Isto também lhe é específico. O animal não pode estar senão “em contato” com a realidade. O homem, ao contrário, estabelece relações com a realidade (as relações que implicam a diferença de contato e aplicação de uma inteligência, de um espírito crítico, de um saber fazer... Em resumo, todo um comportamento, que não é somente reflexo e que não se encontra senão no homem, ser inteligente e livre). b) Através destas relações é que o homem chega a ser sujeito. O homem, pondo em prática sua capacidade de discernir, descobre-se frente a esta realidade que não lhe é somente exterior (... não pode, por outro lado, ter relações mais que com algo ou alguém exterior a si mesmo, nunca consigo mesmo), mas que o desafia, o provoca. As relações do homem com a realidade, com seu contexto de vida – trata-se da realidade social ou do mundo das coisas da natureza – são relações de afrontamento: a natureza se opõe ao homem; ele se defronta continuamente com ela; as relações do homem com os outros homens, com as estruturas sociais são também de choque, na medida em que, continuamente, o homem nas suas relações humanas se sente tentado a reduzir os outros homens à condição de objeto, coisas que são utilizadas para o proveito próprio. Cada relação de um homem com a realidade é, deste modo, um desafio ao qual deve responder de maneira original. Não há modelo típico de resposta, senão tantas respostas diferentes quantos são os desafios... E ainda é possível encontrar-se respostas bem diversas a um mesmo desafio. Por exemplo, frente ao desafio permanente que encontra o agricultor com a vegetação parasita nos cultivos, o camponês pode responder de muitas maneiras: trabalho invernal, limpeza, herbicidas, práticas mágicas, resignação etc. Frente ao desafio que constitui para o operário alguma tentativa de utilização, que faz dele um objeto, pode responder pela passividade resignada, por um trabalho malfeito, pela greve, pela obediência ou rebeldia, uma organização sindical, um diálogo com os patrões etc. E, por outra parte, cada um destes tipos de respostas é susceptível de traduzir-se em múltiplas formas concretas. O importante é advertir que a resposta que o homem dd a um desafio não muda só a realidade com a qual se confronta: a resposta muda o próprio homem, cada vez um pouco mais, e sempre de modo diferente. “Pelo jogo constante destas respostas o homem se transforma no ato mesmo de responder”, diz Paulo Freire. No ato mesmo de responder aos desafios que lhe apresenta seu contexto de vida, o homem se cria, se realiza como sujeito, porque esta resposta exige dele reflexão, crítica, invenção, eleição, decisão, organização, ação... todas essas coisas pelas quais se cria a pessoa e que fazem dela um ser não somente “adaptado” à realidade e aos outros, mas "integrado". Notemos, de passagem, que aqui se encontra uma idéia muita apreciada no marxismo – que não a descobriu, mas que tem o mérito de lembrá-la com ênfase – : pela ação e na ação, é que o homem se constrói como homem. Notemos também que a resposta aos desafios cria o homem, no sentido de obrigá-lo ou, ao menos, convidá-lo ao diálogo, às relações humanas que não sejam de dominação, mas de simpatia e reciprocidade. 4. Na medida em que o homem, integrando-se nas condições de seu contexto de vida, reflete sobre elas e leva respostas aos desafios que se lhe apresentam, cria cultura. A partir das relações que estabelece com seu mundo, o homem, criando, recriando, decidindo, dinamiza este mundo. Contribui com algo do qual ele é autor... Por este fato cria cultura. A cultura, para Paulo Freire, tem, com efeito, um sentido muito diferente e muitíssimo mais rico do que tem no uso ordinário. A cultura – por oposição à natureza, que não é criação do homem – é a contribuição que o homem faz ao dado, à natureza. Cultura é todo o resultado da atividade humana, do esforço criador e recria-dor do homem, de seu trabalho por transformar e estabelecer relações de diálogo com outros homens. A cultura é também aquisição sistemática da experiência humana, mas uma aquisição critica e criadora, e não uma justaposição de informações armazenadas na inteligência ou na memória e não "incorporadas" no ser total e na vida plena do homem. Neste sentido, é lícito dizer que o homem se cultiva e cria a cultura no ato de estabelecer relações, no ato de responder aos desafios que lhe apresenta a natureza, como também, ao mesmo tempo, de criticar, de incorporar a seu próprio ser e de traduzir por uma ação criadora a aquisição da experiência humana feita pelos homens que o rodeiam ou que o precederam. 5. Não só por suas relações e por suas respostas o homem é criador de cultura, ele é também “fazedor” da história. Na medida em que o ser humano cria e decide, as épocas vão se formando e reformando. A história – a história no pleno sentido do termo, a história de todo o povo e não somente dos exércitos e dos governos – não é outra coisa que as respostas dadas pelo.v homens d natureza, aos demais, às estruturas sociais. Não é outra coisa que a procura do homem, sua intenção de ser mais e mais homem, respondendo e relacionando-se. A história não é mais que uma cadeia contínua de épocas caracterizadas, cada uma delas, pelas aspirações, necessidades, valores e “temas" em processo de realização. Na medida em que o homem chega a descobrir e reconhecer, a “captar” estes temas, estas aspirações e as tarefas que supõe sua realização, nessa mesma medida o homem participa de sua época. Uma época se realiza na mesma proporção em que seus temas são captados e suas tarefas realizadas. Uma época está superada quando seus temas e suas tarefas já não correspondem às novas necessidades que vão surgindo. Realmente, o que caracteriza a passagem de uma época a outra é o fato de que aparecem novos valores que se opõem aos de ontem. Um homem faz história na medida em que, captando os temas próprios de sua época, pode cumprir tarefas concretas que supõe a realização destes temas. Também faz história quando, ao surgirem os novos temas, ao se buscarem valores inéditos, o homem sugere uma nova formulação, uma mudança na maneira de atuar, nas atitudes e nos comportamentos... Insistamos em que o homem, para fazer a história, tem de haver captado os temas. Do contrário, a história o arrasta, em lugar de ele fazê-la. 6. E preciso que a educação esteja – em seu conteúdo, em seus programas e em seus métodos – adaptada ao fim que se persegue: permitir ao homem chegar a ser sujeito, construir-se como pessoa, transformar o mundo, estabelecer com os outros homens relações de reciprocidade, fazer a cultura e a história... Se queremos que o homem atue e seja reconhecido como sujeito; Se queremos que tome consciência de seu poder de transformar a natureza e que responda aos desafios que esta lhe propõe: Se queremos que o homem se relacione com os outros homens – e com Deus – com relações de reciprocidade; Se queremos que através de seus atos seja criador de cultura Se pretendemos, sinceramente, que se insira no processo histórico e que “descruzando os braços renuncie à expectativa e exija a intervenção”; se queremos, noutras palavras, que faça a história em vez de ser arrastado por ela, e, em particular, que participe de maneira ativa e criadora nos períodos de transição (períodos particulares porque exigem opções fundamentais e eleições vitais para o homem); Se é todo o anterior o que desejamos, é importante preparar o homem para isso por meio de uma educação autêntica: uma educação' que liberte, que não adapte, domestique ou subjugue. Isto obriga a uma revisão total e profunda dos sistemas tradicionais de educação, dos programas e dos métodos. O homem não pode participar ativamente na história, na sociedade, na transformação da realidade, se não é auxiliado a tomar consciência da realidade e de sua própria capacidade para transformá-la. Ninguém luta contra as forças que não compreende, cuja importância não mede, cujas formas e contornos não discerne; mas, neste caso, se as suporta com resignação, se busca conciliá-las mais com práticas de submissão que de luta. Isto é verdade se se refere às forças da natureza: seca, inundação, doenças das plantas e dos animais, curso das estações, isto não é menos verdadeiro dito das forças sociais: "o latifundiário”, "os trustes”, "os técnicos”, "o Estado”, “o fisco” etc., todos os “eles” de que nós não temos senão uma vaga idéia; sobretudo a idéia de que "eles” são todo-poderosos, instransformáveis por uma ação do homem do povo. A realidade não pode ser modificada, senão quando o homem descobre que é modificável e que ele pode fazê-lo. É preciso, portanto, fazer desta conscientização o primeiro objetivo de toda educação: antes de tudo provocar uma atitude crítica, de reflexão, que comprometa a ação.10 PROCESSO METODOLÓGICO Método Contradizendo os métodos de alfabetização puramente mecânicos, projetávamos levar a termo um.a alfabetização direta, ligada realmente à democratização da cultura e que servisse de introdução; ou, melhor dizendo, uma experiência susceptível de tornar compatíveis sua existência de trabalhador e o material que lhe era oferecido para aprendizagem. Verdadeiramente, só uma paciência muito grande é capaz de suportar, depois das dificuldades de uma jornada de trabalho, as lições que citam a “asa”: “Pedro viu a asa”; “A asa é do pássaro”; ou as que falam de “Eva e as uvas” a homens que, com freqüência, sabem pouquíssimo sobre Eva e jamais comeram uvas. Pensávamos numa alfabetização que fosse ao mesmo tempo um ato de criação, capaz de gerar outros atos cria-dores; uma alfabetização na qual o homem, que não é passivo nem objeto, desenvolvesse a atividade e a viva-cidade da invenção e da reinvenção, características dos estados de procura. ...Procurávamos uma metodologia que fosse um instrumento do educando, e não somente do educador, e que identificasse – como fazia notar acertadamente um sociólogo brasileiro – o conteúdo da aprendizagem com o processo mesmo de aprender. 10 EDOC lnternatlonal, Paris, Ed. Seuil, n.¿ 29, 15 ago.-1.4 set., 1970. Desde o primeiro dia, se põe com grande facilidade a criar palavras com as combinações fonéticas postas à sua disposição, graças à separação de uma palavra com três sílabas. Tornemos a palavra “tijolo” como primeira palavra geradora na “situação” de uma obra em construção. Depois do debate da situação sob todos os aspectos possíveis, estabelece-se a relação semântica entre as palavras e o objeto representado por ela. A palavra visualizada na situação apresenta-se imediatamente depois sem o objeto. Logo, em sílabas: “tijo-lo”. A visualização das partes segue o reconhecimento das famílias fonéticas. A partir da sílaba “ti”, conduz-se o grupo a reconhecer toda a família fonética que resulta da combinação da consoante inicial com as outras vogais. Depois, o grupo, ao descobrir a segunda família pela visualização de “jo”, chega finalmente ao reconhecimento da terceira. Quando se projeta a família fonética, o grupo reconhece somente a sílaba da palavra visualizada: ta-te-ti-to-tu, ja-je-ji-jo-ju, la-le-li- la-lu. Tendo reconhecido a sílaba “ti”, da palavra geradora “tijolo”, o grupo compara estas sílabas com outras, o que leva a descobrir que, se é verdade que começam da mesma maneira, no entanto, não podem chamar-se todas “ti”. O processo é idêntico para as sílabas “jo” e “la” e suas famílias. Uma vez feito o reconhecimento de cada família fonética, os exercícios de leitura fixam as sílabas novas. Abordamos neste momento o estágio decisivo, o da apresentação simultânea das três famílias na ficha de descobrimento. ta-te-ti-to-tu ja-je-ji-jo-ju la-le-li-lo-lu Depois de uma leitura horizontal e uma vertical, co-meça a síntese oral. Um a um, todos criam palavras com as combinações possíveis: luta, lajota, jato, juta, lote, tela etc. Alguns, utilizando a, vogal de uma das sílabas, unindo-a a outra e acrescentando uma consoante, formam uma palavra. Outros, como um analfabeto de Brasília, que comoveu a assistência e nela o antigo Ministro de Educação, Paulo de Tarso, a quem o interesse pela educação levava, ao fim de seu dia de trabalho, a assistir aos debates dos Círculos de Cultura, compôs uma frase “tu ja le”, que em bom português seria: “tu já lês”. E isto na primeira tarde de sua alfabetização. Da Leitura à Escrita Uma vez terminados os exercícios orais, através dos quais se produz são somente o conhecimento mas também o reconhecimento, sem o qual não há verdadeiro aprendizado, o aluno passa à escrita, e isto desde o primeiro dia. Na tarde seguinte, leva ao círculo, como “tarefa”, todas as palavras que pôde criar pela combinação de fonemas comuns. O que importa, no dia em que põe o pé neste terreno novo, é a descoberta do mecanismo das combinações fonêmicas. Na experiência realizada no Estado do Rio Grande do Norte, chamou-se “palavras de pensamento” aquelas que tinham significado e “palavras mortas” as que não o tinham. Foram numerosos os que, depois da assimilação do mecanismo fonético e graças à ficha de descoberta, conseguiram escrever as palavras partindo de fonemas complicados que o coordenador ainda não lhes havia apresentado. Num dos Círculos de Cultura da experiência de Angicos (Rio Grande do Norte), coordenado por minha filha Magdalena, no quinto dia do debate, quando ainda não se retinham senão fonemas simples, um dos participantes foi ao quadro-negro para escrever – disse ele – uma palavra de pensamento. Escreveu: “O povo vai resouver (por resolver) os poblemas (por problemas) do Brasil votando conciente (por consciente).” Acrescentamos que, nestes casos, os textos eram discutidos em grupos, estudando o seu significado em relação à nossa realidade. Como explicar que um homem, uns dias antes analfabeto, escreva palavras partindo de fonemas complexos que ainda não estudou? Deve-se a que, havendo dominado o mecanismo das combinações fonéticas, intenta e consegue expressar-se graficamente da maneira como fala. Isto verifica-se em todas as experiências que se realizaram no país, e se estendeu e aprofundou através do Programa Nacional de Alfabetização do Ministério de Educação e Cultura, que coordenávamos naquela época e que desapareceu depois do golpe militar. Para que a alfabetização não seja puramente mecânica e assunto só de memória, é preciso conduzir os adultos a conscientizar-se primeiro, para que logo se alfabetizem a si mesmos. Conseqüentemente, este método – na medida em que ajuda o homem a aprofundar a consciência de sua problemática e de sua condição de pessoa e, portanto, de sujeito – converte-se para ele em caminho de opção. Neste momento, o homem se politizará a si mesmo. Quando um ex-analfabeto do município de Angicos, pronunciando um discurso para o presidente Goulart – que sempre nos apoiou com entusiasmo –, declarou que ele não era mais massa e sim povo, fez mais que uma simples frase: afirmou-se a si mesmo, consciente de uma opção. Havia escolhido a participação na decisão, que só o povo possui, e havia renunciado à dimensão emocional das massas. Havia se politizado. Os temas geradores submetidos à análise dos especialistas deviam ser reduzidos a unidades de aprendizagem (como fizemos com o conceito de cultura e com as situações relacionadas com as palavras geradoras). Havíamos preparado cartazes a partir destas reduções, ou de textos simples que se referissem aos temas originais. Além disso, elaborando um catálogo de temas reduzidos e de referências bibliográficas, que pusemos à disposição de colégios e universidades, pudemos ampliar o campo de ação da experiência. Por outro lado, havíamos começado a preparar um material que devia permitir-nos realizar de maneira concreta uma educação na qual havia lugar para o que Aldous Huxley chama “a arte de dissociar idéias”, arte que é o antídoto da forca de domesticação da propaganda. Os alunos deviam discutir as situações – desafios –, desde a simples propaganda comercial à propaganda ideológica, e isto desde a fase de alfabetização. À medida que os grupos percebem na discussão o que há de enganoso na propaganda – por exemplo, uma marca de cigarros, fumados por uma bela moça de biquini, sorridente e feliz, e que com seu sorriso, sua beleza e seu biquini nada tem a ver com os cigarros –, descobrem na primeira fase a diferença entre educação e propaganda. Preparam-se assim para perceber os mesmos enganos na propaganda ideológica ou política, no uso de “slogans”. Capacitados para a crítica, estarão armados para a “dissociação de idéias” evocada por Huxley.11 *** No Brasil, quando pensava nas possibilidade de desenvolver um método com o qual fosse possível para os analfabetos aprender facilmente a ler e escrever, percebi que a melhor maneira não era desafiar o espeto crítico, a consciência do homem, mas (e é muito interessante ver como. mudei) procurar introduzir, na consciência das pessoas, alguns símbolos associados a palavras. E, em um segundo momento, desafiá-las criticamente para redescobrir a associação entre certos símbolos e as palavras, e assim apreendê-las. Lembro-me que pedi ajuda a uma mulher de idade, muito amável, uma camponesa analfabeta que trabalhava em nossa casa como cozinheira. Um domingo, lhe disse: “Olha, Maria, eu procuro uma maneira nova de ensinar a ler aos que não sabem e tenho necessidade da sua ajuda. Você quer ajudar- me?” Ela aceitou. Levei-a à minha biblioteca e projetei um desenho com um menino e abaixo do 11 Educação como Prática da Liberdade, capítulo 4. desenho estava escrita a palavra “menino”. Perguntei-lhe: “Maria, o que é isso?” E ela: “um menino”. Projetei outro desenho com o mesmo menino, mas ortograficamente “menino” estava escrito sem a sílaba do meio ("meno”, em lugar de menino). Perguntei-lhe: “Maria, falta alguma coisa?” Ela me disse: “Oh, sim, falta. o do meio.” Sorrindo, mostrei-lhe outro desenho com um menino, mas com a palavra escrita sem m última sílaba (somente “meni”), e lhe perguntei outra vez: “Falta algo?” “Sim, o final.” Discutimos cerca de uns 15 minutos sobre as diferentes possibilidades com menino, meno, nino, meni etc., e em cada ocasião ela descobria a parte da palavra que faltava. Par fim, me disse: “Estou cansada. É muito interessante, mas estou cansada,” Podia trabalhar, real-mente, o dia todo e, sem dúvida, depois de dez ou quinze minutos de um exercício intelectual, cansava-se. É compreensível. Ao terminar perguntou-me: “Você acredita que pude ajudá-lo?” Respondi-lhe: “Sim, ajudou-me muito, porque mudou minha maneira de pensar.” E ela: “Obrigada.” É formidável o poder do amor. Deixou então minha biblioteca, para voltar cinco minutos depois com uma xícara de café. Quando me vi sozinho, voltei a pensar em minha primeira hipótese em função desta experiência. Descobri que faltava desafiar, desde o início, a intencionalidade da consciência, ou melhor, o poder de reflexão da consciência, e não como eu pensava antes. Creio que tudo isto é um bom exemplo para mostrar como é preciso refletir, constantemente, e mudar o rumo da investigação em que estamos compro-metidos. Assim, com este simples caso de Maria, me convenci de que era necessário proceder de outro modo, que faltava desafiar a consciência crítica, desde o começo. Alguns dias depois, comecei a trabalhar com um grupo de cinco homens, mas, desta vez, desafiando-os de maneira crítica, desde o começo.12 Aplicação A concepção de liberdade, expressa por Paulo Freire, é a matriz que dd sentido a uma educação que não pode ser efetiva e eficaz senão na medida em que os educandos nela tomem parte de maneira livre e crítica. Este é um dos princípios essenciais da organização dos Círculos de Cultura, unidade de ensino que substitui a escola tradicional e reúne um coordenador com algumas dezenas de homens do povo, num trabalho comum de conquista da linguagem. O coordenador não exerce as funções de “professor”, a condição essencial da tarefa é o diálogo: "Coordenar, jamais impor sua influência.” O respeito à liberdade dos alunos – que não são qualificados de analfabetos, mas de homens que aprendem a ler – existe muita antes da criação do Círculo de Cultura. Já na etapa da procura do vocabulário popular, durante a fase da preparação do curso, procura-se tanto quanto possível a intervenção do povo na elaboração do programa e a definição das palavras geradoras cuja discussão permitirá, àquele que aprende a ler, apropriar-se de sua linguagem ao mesmo tempo que expressa uma situação real – uma “situação-desafio”, como diz Paulo Freire. A alfabetização e a conscientização são inseparáveis. Todo aprendizado deve estar intimamente associado à tomada de consciência de uma situação real e vivida pelo aluno. ...Assumir a liberdade como uma maneira de ser homem é o ponto de partida do Círculo de Cultura. A aprendizagem – muito rápida, pois, conforme a experiência do Brasil, bastam 45 dias para alfabetizar um adulto – não pode ser efetiva senão no contexto democrático das relações estabelecidas entre alunos e coordenadores, e entre os alunos mutuamente. As atitudes de liberdade e de crítica não se limitam às relações internas do grupo: expressam a conscientização, por parte do grupo, de sua situação social. O que importa essencialmente é que, na discussão, estes homens, seres individuais concretos, reconheçam-se a si mesmos como criadores de cultura. Com esta discussão que precede a alfabetização, abrem-se os trabalhos do Círculo de Cultura e se preludia a conscientização. Seria um erro imaginar a conscientização como uma simples “preliminar” da aprendizagem. Não se trata de fazer suceder a alfabetização à conscientização, ou apresentar esta como condição daquela. Segundo 12 School or Scandal. RISK, World Council for Christian Education, Genebra, v. 6, n.4 4, 15 de novembro de 1970. “Amanhã – afirmou outro a propósito de uma discussão sobre o conceito de cultura – vou começar meu trabalho com a cabeça bem alta.” Era um varredor de rua que havia descoberto o valor de sua pessoa e a dignidade de seu trabalho.16 16 IDOC International, Paris, Ed. Seuil, n.º 29, 15 ago.-1.º set., 1970. TERCEIRA PARTE PRÁXIS DA LIBERTAÇÃO Três palavras chaves A Opressão Quem, melhor que os oprimidos, está preparado para compreender o terrível significado de uma sociedade opressora? Quem sofre os efeitos da opressão com mais intensidade que os oprimidos? Quem com mais clareza que eles pode captar a necessidade da libertação? Os oprimidos não obterão a liberdade por acaso, senão procurando-a em sua práxis e reconhecendo nela que é necessário lutar para consegui-la. E esta luta, por causa da finalidade que lhe dão os oprimidos, representará realmente um ato de amor, oposto à falta de amor que se encontra no coração da violência dos opressores, falta de amor ainda nos casos em que se reveste de falsa generosidade. Mas quase sempre, durante a fase inicial do combate, em lugar de lutar pela liberdade, os oprimidos tendem a converter-se eles mesmos em opressores ou em “subopressores”. A própria estrutura de seu pensamento viu-se condicionada pelas contradições da situação existencial concreta que os manipulou. Seu ideal é serem homens, mas, para eles, serem homens é serem opressores. Este é seu modelo de humanidade. Tal fenômeno provém de que os oprimidos, num dado momento de sua experiência existencial, adotam uma atitude de “adesão” em relação ao opressor. Nestas condições lhes é impossível “vê-lo” com suficiente lucidez para objetivá-la, para descobri-lo “fora de si mesmos”. Isto não quer dizer necessariamente que os oprimidos não tenham consciência de que são pisados. Mas o estar imersos na realidade opressiva impede-lhes uma percepção clara de si mesmos enquanto oprimidos. A este nível, sua percepção de si mesmos como contrários ao opressor não significa ainda que se comprometam numa luta para superar a contradição: um pólo não aspira à sua libertação, mas à sua identificação com o pólo oposto. Nesta situação, os oprimidos não vêem ao “homem novo” como aquele que deve nascer da contradição, uma vez resolvida, quando a opressão dê lugar à libertação. Para eles, o homem novo são eles mesmos, convertidos em opressores. Sua visão é individualista, por causa de sua identificação com o opressor: não têm consciência de si mesmos enquanto pessoas, enquanto membros de uma classe oprimida. Não é com o objetivo de serem homens livres que desejam a reforma agrária, e sim para adquirir uma terra e deste modo converterem-se em proprietários ou, mais precisamente, em patrões de outros trabalhadores. É raro o caso de um camponês, promovido a chefe, que não seja mais tirano em relação a seus antigos camaradas que o próprio proprietário. Isto deve-se a que o contexto da situação do camponês (a opressão) permanece sem mudança. Neste exemplo, o chefe, para assegurar seu trabalho, tem de ser tão duro como o proprietário ou ainda mais. Isto ilustra nossa afirmação, segundo a qual, durante a fase inicial da luta, os oprimidos encontram no opressor seu “tipo de homem”. A revolução que transforma uma situação concreta de opressão, lançando o processo de libertação, deve ainda enfrentar este fenômeno. Muitos dos oprimidos que participam direta ou indiretamente na revolução, condicionados pelo mito da antiga ordem, buscam fazer dela sua própria revolução. A sombra de seu antigo opressor projeta-se continuamente sobre eles. Se o que caracteriza os oprimidos é sua subordinação à consciência do amo, como afirma Hegel, a verdadeira solidariedade supõe que se combata a seu lado para transformar a realidade objetiva que fez deles “seres-para-o-outro”. O opressor não é solidário com os oprimidos senão quando deixa de olhá-los como uma categoria abstrata e os vê como pessoas injustamente tratadas, privadas de suas palavras, de quem se abusou ao venderem seu trabalho; quando cessa de fazer gestos piedosos, sentimentais e individualistas e arrisca um ato de amor. A verdadeira solidariedade não se encontra senão na plenitude deste ato de amor, em sua realização existencial, em sua práxis. Afirmar que os homens são pessoas e que, enquanto pessoas, devem ser livres, mas não fazer nada para que esta afirmação se torne realidade, sem dúvida, é uma comédia. Somente os oprimidos podem libertar os seus opressores, libertando-se a si mesmos. Eles, enquanto classe opressora, não podem nem libertar-se, nem libertar os outros. É pois essencial que os oprimidos levem a termo um combate que resolva a contradição em que estão presos, e a contradição não será resolvida senão pela aparição de um “homem novo” : nem o opressor, nem o oprimido, mas um homem em fase de libertação. Se a finalidade dos oprimidos é chegar a ser plenamente humanos, não a alcançarão contentando-se com inverter os termos da contradição, mudando somente os pólos. Para o opressor, a consciência, a humanização dos outros, não aparece como a procura da plenitude humana, mas como uma subversão. Precisamente porque os oprimidos são “mal-agradecidos” e “invejosos”, se lhes considera como inimigos potenciais, que é preciso vigiar. Dado o contexto precedente, encontramo-nos frente a uma questão de grande importância: o fato de que alguns membros da classe dos opressores unam-se aos oprimidos em sua luta pela liberdade, deslocando-se assim de um pólo da contradição a outro. Seu papel é e foi fundamental durante toda a história deste combate. Sucede que, no entanto, como deixam de ser exploradores, espectadores indiferentes ou simplesmente herdeiros da exploração, para passar ao lado dos explorados, trazem sempre consigo as marcas de sua origem: preconceitos e deformações como, entre outros, a falta de confiança no povo como capaz de pensar, de querer e de saber. Conseqüentemente, os que aderem à causa do povo correm constantemente o perigo de cair num tipo de generosidade tão maléfica como a dos opressores. A generosidade dos opressores alimenta-se de uma ordem injusta que é preciso manter para justificar tal generosidade. Os “convertidos”,' ao contrário, desejam verdadeiramente transformar a ordem injusta; mas, por causa de seus antecedentes, pensam que lhes corresponde serem os realizadores da trans-formação. Falam de “homens”, mas não têm confiança neles; assim, a confiança nos homens é a condição prévia indispensável para uma mudança revolucionária. O verdadeiro humanista reconhece-se mais pela confiança nos homens que o conduzem a comprometer- se numa luta que nas milhares de ações que pode empreender por eles, sem este confiança. Converter-se aos homens exige uma profunda ressurreição. Os que a buscam devem adotar uma nova forma de existência; não podem permanecer como eram. Só na camaradagem com os oprimidos podem os convertidos compreender sua maneira característica de viver e conduzir-se, que, em determinadas ocasiões, reflete a estrutura de dominação. Uma destas características, que mencionávamos antes, é o dualismo dos oprimidos, que são ao mesmo tempo eles mesmos e o opressor, cuja imagem interiorizaram. Por isso assumem quase sempre atitudes fatalistas em relação à sua situação, até que “descobrem” concretamente seu opressor e, portanto, a sua própria consciência. Em sua alienação, os oprimidos querem a todo custo parecer-se com o opressor, imitá-lo, segui-lo. Este fenômeno é comum, sobretudo nos oprimidos de classe média, que aspiram igualar-se aos homens “eminentes” da classe superior. Alberto Memmi, numa excepcional análise da “mentalidade colonizada”, refere-se ao desprezo que o oprimido sente pelo colonizador, justamente com uma “apaixonada” atração por ele: “Como poderia o colonizador cuidar de seus trabalhadores e, ao mesmo tempo, metralhar periodicamente uma turba colonizada? Como poderia o colonizado ao mesmo tempo sacrificar-se tão cruelmente e reivindicar-se de maneira tão expressiva? Como poderia simultaneamente detestar ao colonizador e admirá-lo apaixonadamente? (esta admiração que eu sentia, apesar de tudo, em mim).” O desprezo por si mesmo é outra característica do oprimido, que provém da interiorização da opinião dos opressores sobre ele. Ouvem dizer tão freqüentemente que não servem para nada, que não podem aprender nada, que são débeis, preguiçosos e improdutivos que acabam por convencer-se de sua própria incapacidade. “O camponês sente-se inferior ao patrão, porque este parece ser o único que sabe e é capaz de fazer andar as coisas.” Tanto quanto persista a ambigüidade, os opri-primidos são incapazes de resistir e carecem totalmente de confiança em si mesmos. Possuem uma crença difusa, mágica, na invulnerabilidade e no poder do opressor. A força mágica da onipotência do proprietário exerce um poder particular nas zonas rurais. Um de meus amigos, sociólogo, conta a história de um grupo de camponeses armados, na América Latina, que tinham se apoderado de um “latifúndio”. Por razões de Por aí as massas começarão a sair de seu silêncio, assumindo atitudes cada vez mais exigentes. Na medida em que vão sendo satisfeitas suas exigências, as massas tenderão não só a multiplicá-las, como também a modificar a natureza das mesmas. Deste modo, o populismo terminará por criar sérias contradições para o grupo atuante ao poder. Ver-se- á obrigado tanto a romper com a "cultura do silêncio", como a restaurá-la. Por isso é que nos parece difícil, na situação histórica atual da América Latina, que o governo pratique uma política independente relativamente agressiva contra o imperialismo, mantendo ao mesmo tempo a “cultura do silêncio” no interior do país. Em 1961, Jânio Quadros assumiu o poder no Brasil naquela que talvez tenha sido a maior vitória eleitoral na história do país. Tratou de ter uma política paradoxal, de independência frente à metrópole e de controle sobre o povo. Depois de sete meses no poder anunciou inesperadamente à nação que se via obrigado a renunciar à presidência, sob pressão das mesmas forças ocultas que haviam conduzido o presidente Getúlio Vargas a suicidar-se. O grupo militar brasileiro que destituiu o governo de Goulart em 1964, e que curiosamente chamou sua ação de “revolução”, foi coerente em sua atitude, conforme nossa análise precedente: uma sólida política de servilismo frente à metrópole e a violenta imposição do silêncio a seu próprio povo. Servilismo em relação à metrópole e rompimento da “cultura do silêncio” no interior não seriam viáveis. Tampouco o seria uma política de independência face ao imperialismo, mantendo a “cultura do silêncio” no interior. As sociedades latino-americanas apresentam-se como sociedades fechadas, desde o tempo da conquista por espanhóis e portugueses, quando a. “cultura do silêncio” tomou forma. Com exceção da Cuba pós- revolucionária, estas sociedades são ainda fechadas; são sociedades dependentes, para as quais o único que tem mudado são os pólos de decisão de que são objeto, conforme os diferentes momentosa históricos: Portugal, Espanha, Inglaterra e Estados Unidos. As sociedades latino-americanas caracterizam-se por uma estrutura social hierárquica e rígida; pela falta de mercados internos, já que sua economia está controlada a partir do exterior: pela exportação de matérias-primas e importação de produtos manufaturados, sem que possam impor seus pontos de vista; por um sistema precário e seletivo de educação, no qual as escolas s5o um instrumento para manter o “status quo"; por altas percentagens de analfabetismo e de doenças ingenuamente compreendidas como “doenças tropicais” e que, aa realidade, são doenças devidas ao subdesenvolvimento e à dependência; por taxas alarmantes de mortalidade infantil; pela desnutrição que, às vezes, tem efeitos irreparáveis nas faculdades mentais; por uma débil esperança de vida e uma taxa elevada de criminalidade. Um tipo de consciência corresponde à realidade concreta destas sociedades em estado de dependência. Uma consciência historicamente condicionada pelas estruturas sociais. A principal característica desta consciência – tão dependente como é a sociedade da estrutura a que se conforma – é sua “quase- aderência” à realidade objetiva ou sua “quase-imersão” na realidade. A consciência dominada não se distancia suficientemente da realidade para objetivá-la, a fim de conhecê-la de maneira crítica. A este tipo de consciência chamamos "semi-intransitiva”. A consciência semi-intransitiva é característica das estruturas fechadas. Dada sua quase-imersão na realidade concreta, não perceba muitos dos desafios da realidade, ou percebe-os de uma maneira deturpada. Sua semi-intransitividade é uma espécie de inutilização, imposta pelas condições objetivas. Por isso, os únicos fatos que a consciência dominada capta são os que se encontram na órbita de sua própria experiência. Este tipo de consciência não pode objetivar os fatos e as situações problemáticas da vida cotidiana. Os homens, cuja consciência se situa neste nível de quase-imersão, carecem do que chamamos “percepção estrutural”, a qual se faz e se refaz a partir da realidade concreta, na apreensão da problemática. Não tendo tal percepção estrutural, os homens atribuem a origem de tais fatos e de tal situação, em sua vida, seja a uma realidade superior, seja a uma causa interior a si mesmos. Em ambos os casos a causa da problemática é algo que está fora da realidade objetiva. O que é importante é que, quando as fendas começam a aparecer na estrutura e quando as sociedades entram no período de transição, imediatamente as massas, que até este momento estavam submersas e silenciosas, começam a sair de seu estado. Mas isto não quer dizer que tais movimentos de emergência rompam automaticamente a “cultura do silêncio”. Em relação à metrópole, as sociedades em transição continuam, sendo totalidades silenciosas. Nestas sociedades, não obstante, o fenômeno de emergência das massas força as elites do poder a fazer a experiência de novas maneiras de manter as massas em silêncio, já que as mudanças estruturais que provocam a “emergência” alteram também, no plano qualitativo, sua consciência semi-imersa e semi-intransitiva... Ainda que se possa explicar a diferença qualitativa entre a consciência semi-intransitiva e a consciência ingênuo-transitiva pelo fenômeno de emergência devido à transformação estrutural na sociedade, não existe, apesar disto, uma fronteira bem definida entre os momentos históricos que produzem mudanças qualitativas na consciência dos homens. Para muitos, a consciência semi-intransitiva permanece presente dentro da consciência ingênuo-transitiva. Na América Latina, por exemplo, quase toda a população camponesa encontra-se, ainda, em fase de quase-imersão, fase que tem uma história muito mais longa que a da emergência. A consciência camponesa semi-intransitiva assimilou inúmeros mitos na fase precedente, que se mantêm apesar da transformação da consciência para a transitividade. Portanto, a consciência transitiva surge, enquanto consciência ingênua, tão dominada como a precedente. Embora seja agora, indiscutivelmente, uma consciência melhor disposta para perceber a origem de sua existência ambígua dentro das condições objetivas da sociedade. O aparecimento da consciência popular supõe, senão a superação da “cultura do silêncio”, ao menos a presença das massas no processo histórico que vai pressionando a elite no poder. Pode ser compreendida somente como uma dimensão de um fenômeno mais complexo: ou melhor, a emergência da consciência popular, apesar de ser ainda ingenuamente transitiva, constitui também um momento de desenvolvimento da consciência da elite do poder. Numa estrutura de dominação, o silêncio das massas populares não existiria se não fosse pelas elites do poder que as mantêm em silêncio: não poderia haver uma elite do poder, se não fossem as massas. Da mesma forma que há um momento de surpresa nas massas quando começam a ver o que antes não viam, há uma surpresa correspondente nas elites quando começam a sentir-se desmascaradas pelas massas. Este duplo “desvelar-se” provoca inquietudes tanto nuns como noutros. As massas chegam a sentir-se desejosas de liberdade, desejosas de superar o silêncio no qual sempre haviam permanecido. As elites sentem-se desejosas de manter o “status quo”, não permitindo senão transformações superficiais para impedir toda mudança real em seu poder de dominar. Nos processos de transição, o caráter eminentemente estático da “sociedade fechada” dá lugar, progressivamente, a um dinamismo que se apresenta em todas as dimensões da vida social. As contradições vão subindo à superfície, provocando conflitos nos quais a consciência popular chega a ser cada vez mais exigente, causando nas elites inquietudes cada vez maiores. Como as linhas desta transição histórica desenham-se mais nitidamente, esclarecendo as contradições inerentes a uma sociedade dependente, grupos de intelectuais e de estudantes, que pertencem eles mesmos à elite privilegiada, tratam de comprometer-se na realidade social, não aceitando os esquemas importados e as soluções pré-fabricadas. As artes deixam progressivamente de ser a simples expressão da vida fácil da burguesia rica e começam a encontrar inspiração na dura vida do povo. Os poetas começam a não descrever meramente seus amores perdidos – ou então, o tema do amor perdido chega a ser menos triste, mais objetivo e mais lírico –, não falam já do trabalhador dos campos como de um conceito abstrato e metafísico, mas como de um homem concreto que vive uma vida concreta.... A fase de transição gera também um novo estilo de vida política, dado que os velhos modelos políticos da sociedade fechada já não são válidos quando as massas se constituem em uma presença histórica que vai surgindo. Nas sociedades fechadas, as relações entre a elite e o povo quase-imerso vêem-se mediatizadas pelos lideres políticos que representam as diversas facções da elite. No Brasil, os líderes políticos, necessariamente paternalistas, são proprietários não somente de suas terras, como também das massas populares silenciosas e obedientes que eles têm sob controle. Como as zonas rurais da América Latina não haviam sido afetadas pelo movimento de emergência provocados pelas fissuras na sociedade, permaneciam essencialmente sob o controle dos líderes políticos. Nos centros urbanos, ao contrário, uma nova forma de liderança aparecia com a missão de mediar entre as elites do poder e as massas emergentes: a liderança populista. Uma característica desta liderança merece atenção particular: a manipulação. Devido às massas não permitirem, ao saírem do silêncio, a continuação do estilo político da sociedade fechada, não significa que pudessem expressar sua própria palavra. Passaram simplesmente da quase- imersão a um estado de consciência ingênuo-transitiva. Poderíamos, assim, considerar a liderança populista como a resposta adequada à nova presença das massas no processo histórico. Mas é uma liderança manipuladora: manipuladora de massas por não poder manipular elites. A manipulação populista das massas deve ser considerada sob dois prismas diversos. Por um lado, constitui inegavelmente uma espécie de narcótico político que entretém não somente a ingenuidade da consciência que surge, como também o hábito que as pessoas adquiriram de serem dirigidas. Por outro lado, na medida em que utilizam os protestos e as reivindicações da massa, a manipulação política acelera, de forma paradoxal, o processo pelo qual as pessoas “desvelam” a realidade. Este paradoxo resume o caráter ambíguo do populismo: é manipulador e, ao mesmo tempo, fator de mobilização democrática. Assim, o novo estilo de vida política que se encontra nas sociedades em transição não se limita ao papel manipulador dos líderes que mediatizam massas e poder. Com efeito, o estilo populista de ação política termina por criar condições favoráveis para que os grupos de jovens e de intelectuais participem da vida política com as massas. Apesar de ser um exemplo de paternalismo manipulador, no entanto, o populismo oferece uma possibilidade de análise crítica da manipulação em si mesma. Em todo o jogo de contradições e ambigüidades, a emergência das massas populares nas sociedades em transição abre caminho às massas para que cheguem a ser conscientes de seu estado de dependência. Como já dissemos, a passagem de um estado de consciência semi-transitivo a um estado ingênuo- transitivo é também um momento de despertar da consciência das elites, momento decisivo para a consciência critica dos grupos progressistas. No princípio, uma frágil consciência aparece nos pequenos grupos de intelectuais marcados ainda pela alienação cultural da sociedade em seu conjunto, alienação reforçada por sua “formação” universitária. Quando as contradiç5es características de uma sociedade em transição aparecem claramente, estes grupos multiplicam-se e são capazes de distinguir mais e mais nitidamente o que constitui sua sociedade. Vão-se unindo cada vez mais às massas populares, por caminhos diferentes: literatura, artes plásticas, teatro, música, educação e arte popular. O importante não são os caminhos e sim a comunhão com as massas, às quais alguns destes grupos conseguem chegar. Neste momento, a crescente consciência crítica dos grupos progressistas, que provém da transitividade ingênua das massas que ascendem, converte-se num desafio à consciência das elites que estão no poder. As sociedades.que se encontram nesta fase histórica, que não se pode compreender claramente à margem de, compreensão da totalidade de que fazem parte, vivem num clima de pré--revolução, cuja contradição dialética é o golpe de Estado. Na América Latina, o golpe de Estado veio a ser a resposta das elites econ8micas e militares às crises provocadas pela emergência popular. Esta resposta varia conforme a influência relativa dos militares. Numa situação problemática ao extremo, ao manifestar progressivamente suas condições de dependência, as sociedades latino-americanas em transição encontram-se em presença de duas possibilidades contraditórias: revolução ou golpe de Estado. Na medida em que os fundamentos ideológicos de um golpe de Estado são sólidos, nessa mesma medida é difícil para uma sociedade voltar ao mesmo estilo político que havia criado condições próprias ao golpe de Estado. Um golpe de Estado modifica qualitativamente o processo de transição histórica de uma sociedade e assinala o começo de uma nova transição. Deste modo, a opressão encontra na lógica do sistema de ensino atual um instrumento de eleição para fazer aceitar e prolongar o “status quo”; quer dizer, sob pretexto de melhorar e de “integrar socialmente”, a ação pedagógica contribui para aprofundar e legalizar “um abismo profundo entre as classes”. Os métodos de opressão não podem, sob pena de contradizerem-se, servir à libertação do oprimido. Nas sociedades que são regidas por interesses de grupos, de classes ou de nações dominantes, "a educação como prática da liberdade” – para retomar uma expressão que resume a perspectiva de Paulo Freire – pede inevitavelmente uma “pedagogia do oprimido”; não uma pedagogia “para ele”, senão uma pedagogia que saia dele mesmo. O método gera um processo de mudança e termina por identificar-se com ele, posto que a pedagogia coincide com um estilo muito exato de prática social, o da tomada de consciência, ou melhor, o da conscientização. Certamente, esta objetivação – condicionada pela posição que o indivíduo ocupa na sociedade – pode alcançar diferentes níveis: a superação de uma atitude mágica dá, gradualmente, primeiro uma opinião vaga – freqüentemente tomada de outrem –, depois uma apreensão não crítica dos fatos e, enfim, no caso da conscientização, uma captação correta e crítica dos verdadeiros mecanismos dos fenômenos naturais ou humanos. Mas qualquer que seja o grau a que chegue, esta superação procura sempre uma apropriação da conjuntura por parte de seus atores. Aqueles que estão “conscientizados” apoderam-se de sua própria situação, inserem-se nela para transformá-la, ao menos com seu projeto e com seus esforços. Portanto, a conscientização não pode pretender nenhuma “neutralidade”. Como conseqüência que é da educação, demonstra que esta também não poderia ser neutra, porque se apresenta sempre, queiramos ou não, como “a forma própria de uma ação do homem sobre o mundo”. Falar de neutralidade da educação é expressar uma vontade de mistificação. Com efeito, o educador tem suas próprias opções, e as mais perigosas para uma educação da liberdade são aquelas que se transmitem sob a cobertura da autoridade pedagógica sem reconhecerem-se como opções. Além disso, todo sistema de educação procede de opções, de imagens, de uma concepção do mundo de determinados modelos de pensamento e de ação que se procura tornar aceitos como melhores que outros. Quando um tal sistema esconde o aspecto convencional, pode-se dizer, arbitrário, dos esquemas que tem como tarefa fazer assimilar, está ocultando uma prática que contribui, no fundo (as investigações o demonstram), para favorecer os possuidores desta cultura que é a do poder... Nesta perspectiva, a antropologia que pretende ajudar à libertação do homem acaba por exigir e determinar uma política. Toda antropologia exige uma política, porque não é neutra e porque significa uma opção que se quer realizar, por sua vez, a despeito ou de encontro a outras opções científicas que transmitem outras visões do mundo. Assim, uma antropologia que pretende estar a serviço da libertação do homem é consciente de que a dominação se serve da ciência oficial – e freqüentemente de uma ciência pretendidamente neutra – para impor sua vontade. Mas a antropologia determina igualmente uma política, num sentido mais positivo, na medida em que, apesar de comprometida, não se considera partidária (visando simplesmente o podo pelo poder). Semelhante antropologia procura a verdade: uma verdade que liberta o homem da opressão, da ignorância, do domínio da natureza sobre ele e sobretudo da escravidão humana. Assim compreendida, não pode pretender ingenuamente que nenhuma utilização política seja feita de suas descobertas e de suas investigações. Pode unicamente demonstrar, com sua prática, que de maneira alguma cede à força de um poder ou às manipulações da ação política; por outro lado, que se propõe uma renovação perpétua, como esforço de lucidez por uma libertação de si mesma e dos outros.21 Uma análise exata das relações professor – aluno em todos os níveis, na escola ou fora dela, revela seu caráter essencialmente narrativo. Esta relação supõe um sujeito narrador: o professor, e supõe objetos pacientes que escutam: os alunos. O conteúdo, seja de valores ou de dimensões empíricas da realidade, tem tendência a converter-se em algo sem vida e a petrificar-se uma vez enunciado. A educação padece da doença da narração. 21 SILVA, Alberto, La Pédagogie de Paulo Freire. Études, dezembro, 1970. O professor fala da realidade como se esta fosse sem movimento, estática, separada em compartimentos e previsível; ou então, fala de um tema estranho à experiência existencial dos estudantes: neste caso sua tarefa é “encher” os alunos do conteúdo da narração, conteúdo alheio à realidade, separado da totalidade que a gerou e poderia dar-lhe sentido. Assim, a educação passa a ser “o ato de depositar”, no qual os alunos são os depósitos e o professor aquele aquele que deposita. Em lugar de comunicar, o professor dá comunicados que os alunos recebem pacientemente, aprendem e repetem. É a concepção “acumulativa” da educação (concepção bancária). .. Na concepção bancária da educação, o conhecimento é um dom concedido por aqueles que se consideram como seus possuidores àqueles que eles consideram que nada sabem. Projetar uma ignorância absoluta sobre os outros é característica de uma ideologia de opressão. É uma negação da educação é do conhecimento como processo de procura. O professor apresenta-se a seus alunos como seu “contrário” necessário: considerando que a ignorância deles é absoluta, justifica sua própria existência. Os alunos, alienados como o escravo na dialética hegeliana, aceitam sua ignorância como justificativa para a existência do professor, mas diferentemente do escravo, jamais descobrem que eles educam o professor. ...A educação bancária mantém e ainda reforça as contradições através das práticas e das atitudes seguintes, que refletem a sociedade opressora em seu conjunto: a) o professor ensina, os alunos são ensinados; b) o professor sabe tudo, os alunos nada sabem; c) o professor pensa para si e para os estudantes; d) o professor fala e os alunos escutam; e) o professor estabelece a disciplina e os alunos são disciplinados; f) o professor escolhe, impõe sua opção, os alunos submetem-se; g) o professor atua e os alunos trem a ilusão de atuar graças à ação do professor; h) o professor escolhe o conteúdo do programa e os alunos – que não foram consultados – adaptam-se; i) o professor confunde a autoridade do conhecimento com sua própria autoridade profissional, que ele opõe à liberdade dos alunos; j) o professor é sujeito do processo de formação enquanto que os alunos são simples objetos dele. O método escolar da educação de adultos, por exemplo, jamais proporá aos alunos considerar a realidade de uma maneira crítica. Aqueles que utilizam o método bancário, conscientemente ou não – porque há inúmeros professores “bancários”, bem-intecionados, que não se dão conta de que servem somente para desumanizar –, não percebem que os próprios depósitos contêm contradições sobre a realidade. Mas, cedo ou tarde, estas contradições podem conduzir os alunos, antes passivos, a levantar-se contra sua domesticação e a tratar de domesticar a realidade. Podem descobrir, por sua experiência existencial, que seu atual modo de vida é impossível de ser conciliado com sua vocação de serem plenamente homens. Podem perceber, através de suas relações com a realidade, que ela está verdadeiramente em evolução, em constante transformação. Se os homens são estes seres da busca e se sua vocação ontológica é a humanização, cedo ou tarde poderão perceber a contradição na qual a educação escolar procura mantê-los e se comprometerão então na luta por sua libertação. Mas o educador humanista revolucionário não pode esperar que esta possibilidade se apresente. Desde o começo, seus esforços devem corresponder com os dos alunos para comprometer-se num pensamento crítico e numa procura da mútua humanização. Seus esforços devem caminhar junto com uma profunda confiança nos homens e em seu poder criador. Para obter este resultado deve colocar-se ao nível dos alunos em suas relações com eles. A concepção bancária não pode admitir uma tal nivelação e isto necessariamente. Dissolver a contradição professor – aluno, mudar o papel daquele que deposita, prescreve, domestica, colocar-se como estudante entre os estudantes equivale a minar a potência de opressão e servir à causa da libertação. A educação problematizadora está fundamentada sobre a criatividade e estimula uma ação e uma reflexão verdadeiras sobre a realidade, respondendo assim à vocação dos homens que não são seres autênticos senão quando se comprometem na procura e na transformação criadoras. Em resumo: a teoria e a prática bancária, enquanto forças de imobilização e de fixação, não reconhecem os homens como seres históricos; a teoria e a prática críticas tornam como ponto de partida a historicidade do homem. A educação crítica considera os homens como seres em devir, como seres inacabados, incompletos em uma realidade igualmente inacabada e juntamente com ela. Por oposição a outros animais, que são inacabados mas não históricos, os homens sabem-se incompletos. Os homens têm consciência de que são incompletos, e assim, nesse estar inacabados e na consciência que disso têm, encontram-se as raízes mesmas da educação como fenômeno puramente humano. O caráter inacabado dos homens e o caráter evolutivo da realidade exigem que a educação seja 'uma atividade contínua. A educação é, deste modo, continuamente refeita pela práxis. Para ser, deve chegar a ser. Sua duração – no sentido bergsoniano da palavra – encontra-se no jogo dos contrários: estabilidade e mudança. O método bancário põe o acento sobre a estabilidade e chega a ser reacionário. A educação problematizadora – que não aceita nem um presente bem conduzido, nem um futuro predeterminado – enraíza-se no presente dinâmico e chega a ser revolucionária. A educação crítica é a "futuridade” revolucionária. Ela é profética – e, como tal, portadora de esperança – e corresponde à natureza histórica do homem. Ela afirma que os homens são seres que se superam, que vão para a frente e olham para o futuro, seres para os quais a imobilidade representa uma ameaça fatal, para os quais ver o passado não deve ser mais que um meio para compreender claramente quem são e o que são, a fim de construir o futuro com mais sabedoria. Ela se identifica, portanto, com o movimento que compromete os homens como seres conscientes de sua limitação, movimento que é histórico e que tem o seu ponto de partida, o seu sujeito, o seu objetivo. Este ponto de partida encontra-se nos próprios homens. Mas já que os homens não existem fora do mundo, fora da realidade, o movimento deve começar com a relação homem – mundo. Conseqüentemente, o ponto de partida deve estar sempre nos homens, no seu aqui e no seu agora, que constituem a situação em que se encontram, ora imersos, ora emersos, ora insertados. Somente parindo desta situação – que determina a percepção que eles têm – podem começar a atuar. Para fazê- lo de maneira autêntica não devem perceber seu estado como inelutável e imutável, mas somente como é, um estado que os limita e portanto os desafia... ...A educação problematizadora não deve e não pode servir aos interesses do opressor. Nenhuma ordem opressiva poderia permitir aos oprimidos começarem a questionar-se “por quê?”. Já que somente uma sociedade revolucionária pode praticar esta educação de forma sistemática, os líderes revolucionários não devem assumir plenos poderes antes de estarem capacitados para aplicar o método. No processo revolucionário os líderes não podem utilizar o método bancário como medida transitória, justificada pela necessidade da causa, com in-tenção de conduzir-se mais tarde de modo verdadeiramente revolucionário. Eles devem ser revolucionários – ou melhor, homens de diálogo – desde o começo... O diálogo é o encontro entre os homens, mediatizados pelo mundo, para designá-lo. Se ao dizer suas palavras, ao chamar ao mundo, os homens o transformam, o diálogo impõe-se como o caminho pelo qual os homens encontram seu significado enquanto homens; o diálogo é, pois, uma necessidade existencial. E já que o diálogo é o encontro no qual a reflexão e a ação, inseparáveis daqueles que dialogam, orientam-se para o mundo que é preciso transformar e humanizar, este diálogo não pode reduzir-se a depositar idéias em outros. Não pode também converter-se num simples intercâmbio de idéias, idéias a serem consumidas pelos permutantes. Não é também uma discussão hostil, polêmica entre homens que não estão comprometidos nem em chamar ao mundo pelo seu nome, nem na procura da verdade, mas na imposição de sua própria verdade... O diálogo não pode existir sem um profundo amor pelo mundo e pelos homens. Designar o mundo, que é ato de criação e de recriação, não é possível sem estar impregnado de amor. Um de seus desejos alienados é o de aparecer, não o de ser. Seu pensamento e a maneira como expressa o mundo são geralmente um reflexo do pensamento e da expressão da sociedade dirigente. Sua cultura alienada impede-lhe compreender que seu pensamento e sua expressão do mundo não podem ser aceitos além de suas fronteiras, a menos que seja fiel a seu mundo particular. Somente aa medida em que sente e conhece de maneira reflexiva seu próprio mundo particular, por havê-la experimentado como mediação de uma práxis coletiva, transformadora, seu pensamento e sua expressão têm significação além deste mundo. Suponhamos que devêssemos apresentar a grupos de classes dominadas a codificação que representa sue imitação de modelos culturais dos dominadores, uma tendência natural da consciência oprimida num momento dado. As pessoas dominadas, por um movimento de autodefesa, não perceberiam provavelmente a verdade da codificação. Contudo, ao se aprofundarem em sua análise, começariam a compreender que sua aparente imitação dos modelos dos dominadores é o resultado da interiorização destes modelos; sobretudo dos mitos de "superioridade” das classes dominantes, que fazem com que os dominados se sintam inferiores. O que, na realidade, é pura interiorização, parece ser imitação no seio de uma análise ingênua. Basicamente, quando as classes dominadoras reproduzem o estilo de vida dos dominadores, é que os dominadores vivem “nos” dominados. Os dominados não podem repelir os dominadores senão distanciando-se deles. Somente então poderão reconhecer-se como sua antítese. Na medida em que a interiorização dos valores dominadores não seja somente um fenômeno individual mas também um fenômeno social e cultural, a repulsa destes valores deve ser levada a cabo por um tipo de ação cultural na qual a cultura negue a cultura. Quer dizer, a cultura como produto interiorizado, que condiciona os atos ulteriores do homem, deve chegar a ser o objeto de seu conhecimento, para que possa perceber seu poder de condicionamento. A ação cultural tem lugar ao nível da superestrutura. Ela somente pode ser compreendida pelo que Althusser chama “a dialética da sobredeterminação”. Este instrumento de análise nos impede de recorrer a explicações mecanicistas, ou o que é pior, a uma ação mecanicista. Se se compreende isto, não há que admirar-se pelo fato de que os mitos culturais permaneçam quando a infra-estrutura foi transformada, inclusive pela revolução. Quando a criação de uma nova cultura é adequada, mas a vemos freada por um “resíduo” cultural interiorizado, é preciso expulsar este resíduo, estes mitos, por meios culturais. A ação cultural e a revolução cultural constituem, em diferentes momentos, os modos apropriados para esta expulsão. Os alunos devem descobrir as razões que se escondem atrás da maior parte de suas atitudes em relação à realidade cultural, e assim enfrentá-la de uma maneira nova. “A readmiração” de sua anterior “admiração” é necessária para provocar esta mudança. Os educadores adquirem uma capacidade de conhecimento crítico – muito além da simples opinião – ao “desvelar” suas relações com o mundo histórico-cultural no qual e com o qual existem. Uma pedagogia utópica de denúncia e de anúncio, como a nossa, tem de ser um ato de conhecimento da realidade denunciada, ao nível da alfabetização e da pós-alfabetização, que constituem, em cada caso, uma ação cultural. Por isto se acentua a problematização contínua das situações existenciais dos educandos tal como são apresentadas nas imagens codificadas. Quanto mais progride a problematização, mais penetram os sujeitos na essência do objeto problematizado e mais capazes são de “desvelar” esta essência. Na medida em que a “desvelam”, se aprofunda sua consciência nascente, conduzindo assim à conscientização da situação pelas classes pobres. Sua auto-inserção crítica na realidade, ou melhor, sua conscientização, faz com que sua apatia se transforme num estado utópico de denúncia e anúncio, um projeto viável. O projeto revolucionário conduz a uma luta contra as estruturas opressoras e desumanizantes. Na medida em que este projeto procura afirmar os homens concretos para que se libertem, toda concessão irrefletida aos métodos do opressor representa uma ameaça e um perigo para o mesmo projeto revolucionário. Os revolucionários devem exigir de si uma coerência muito forte. Como homens, podem cometer faltas, podem errar, mas não podem conduzir-se como reacionários e chamarem-se revolucionários. Devem adaptar sua ação às condições históricas, tirando proveito das possibilidades reais e únicas que existem. Deverão procurar meios mais eficazes e mais adaptados para ajudar as pessoas a passarem dos níveis da consciência semi-intransitiva, ou transitivo-ingênua, ao nível da consciência crítica. Esta preocupação que é autenticamente libertadora está contida no próprio projeto revolucionário. Como tem sua fonte na práxis dos líderes e dos homens da base, todo projeto revolucionário é fundamentalmente “ação cultural” e se converte em “revolução cultural”. A conscientização é mais que uma simples tomada de consciência. Supõe, por sua vez, o superar a falsa consciência, quer dizer, o estado de consciência semi-intransitivo ou transitivo-ingênuo, e uma melhor inserção crítica da pessoa conscientizada numa realidade desmitificada. Por isso a conscientização é um projeto irrealizável para as direitas. A direita é, por natureza, incapaz de ser utópica e não pode, portanto, praticar uma forma de ação cultural que conduziria à conscientização. Não se pode dar conscientização ao povo sem uma denúncia radical das estruturas desumanizantes, que marche junto com a proclamação de uma nova realidade que pode ser criada pelos homens. A direita não pode desmascarar-se; não pode também dar ao povo os meios de desmascará-la mais do que ela deseja. Quando a consciência popular se esclarece, sua própria consciência aumenta, mas esta forma de conscientização não pode jamais se transformar numa práxis que conduza à conscientização das pessoas. Não pode haver conscientização sem denúncia das estruturas injustas, o que não se pode esperar da direita. Também não pode haver conscientização popular para a dominação. Somente para a dominação a direita inventa novas formas de ação cultural. Assim, os dois tipos de ação cultural são antagônicos. Enquanto a ação cultural para a liberdade se caracteriza pelo diálogo e seu fim principal é conscientizar as massas, a ação cultural para a dominação se opõe ao diálogo e serve para domesticá-las. Uma problematiza, a outra emite “slogans”. Já que a ação cultural para a liberdade está comprometida no esclarecimento científico da realidade, ou melhor, na exposição dos mitos e das ideologias, tem de separar a ideologia da ciência. Althusser insiste sobre esta separação necessária. A ação cultural para a liberdade não pode contentar-se com as mistificações da ideologia, como ele as denomina, nem com uma simples denúncia moral dos mitos e dos erros; mas deve empreender uma crítica racional e rigorosa da ideologia. O papel fundamental dos que estão comprometidos numa ação cultural para a conscientização não é propriamente falar sobre como construir a idéia libertadora, mas convidar os homens a captar com seu espírito a verdade de sua própria realidade... Os limites da ação cultural se encontram na realidade opressora mesma e no silêncio imposto às classes dominadas pelas classes dominantes. São esses limites os que determinam as táticas a serem usadas, que são necessariamente diferentes das empregadas na revolução cultural. Enquanto a ação cultural pela liberdade enfrenta o silêncio, ao mesmo tempo como um fato exterior e como uma realidade interior, a revolução cultural enfrenta-o somente como realidade interior. A ação cultural para a liberdade e a revolução cultural representam, as duas, um esforço para repelir a cultura dominante no plano do cultural, antes mesmo que a nova cultura que provém desta repulsa se tenha convertido numa realidade. A nova realidade cultural fica também continuamente submetida à negação em favor da crescente afirmação do homem. Na revolução cultural, no entanto, esta negação ocorre simultaneamente ao nascimento da nova cultura no seio da velha. Ação cultural e revolução cultural supõem comunhão entre os líderes e o povo como seres que transformam a realidade. Na revolução cultural a comunhão é tão intensa que os líderes e o povo chegam a ser como um só corpo, controlado por uma permanente observação de si mesmos. Ação cultural e revolução cultural apóiam-se no conhecimento científico da realidade, mas na revolução cultural a ciência não está a serviço da dominação. Em dois pontos, porém, não há diferença entre e ação cultural para a libertação e a revolução cultural. Ambas têm na “dialética da sobredeterminação” a sua explicação necessária, e são ambas conscientizadoras. Havíamos falado do desafio atualmente lançado na América Latina em sua evolução histórica. Cremos que outras regiões do Terceiro Mundo correspondem à nossa descrição, ainda que cada uma tenha suas características particulares. Se os caminhos que tais regiões seguem devem conduzir à libertação, não podem menosprezar a ação cultural para a conscientização. Antes de precisar os dois momentos diferentes, mas essencialmente ligados, da ação cultural e da revolução cultural, resumamos as idéias precedentes a respeito dos níveis de consciência. Estabeleceu- se uma relação explícita entre a ação cultural pela liberdade, na qual a conscientização é o objetivo principal, e a superação dos estados de consciência semi-transitivos e transitivos-in-gênuos pela consciência crítica. Não se pode chegar à conscientização crítica apenas pelo esforço intelectual, mas também pela práxis: pela autêntica união da ação e da reflexão. Não se pode impedir aos homens uma tal ação reflexiva. Se se fizesse isto os.homens não seriam outra coisa que peças nas mãos dos líderes, que se reservariam o direito de tomar decisões. A esquerda autêntica não pode deixar de favorecer a superação da falsa consciência dos homens, em qualquer nível que ela exista, e tanto mais quanto a direita é incapaz de fazê-lo. Para manter seu .poder, a direita tem necessidade de uma elite que pense por ela e a ajude a realizar seus projetos. Os líderes revolucionários trem necessidade de homens para fazer do projeto revolucionário uma realidade, mas homens que se façam cada vez mais conscientes de uma maneira crítica. Quando a realidade revolucionária adquire forma, a conscientização continua sendo indispensável. É o instrumento que serve para eliminar os mitos culturais que permanecem no espírito das massas, a despeito da nova realidade. Também é uma força que se opõe à burocracia que ameaça matar a visão revolucionária e que domina os homens em nome de sua própria liberdade. Finalmente, a conscientização é uma defesa contra outra ameaça, a da mistificação potencial da tecnologia, de que tem necessidade a nova sociedade para transformar suas estruturas retardatárias. Há duas direções possíveis que se oferecem à consciência ingênua. A primeira é a de alcançar o nível de criticidade, ou o que Goldman chama de “máximo de consciência possível”; a segunda é a sua distorção numa forma “irracional” ou “fanática”. O caráter mágico da consciência semi-transititiva é, na consciência “irracional”, substituído pelo “mítico”. A “massificação” coincide com este nível de consciência. Diga-se de passagem, porém, que a “sociedade massificada” não deve ser identificada com a sociedade em que as massas populares emergem no processo histórico, como uma visão aristocrática do fenômeno pode sugerir. De fato, a emergência das massas populares, com suas exigências, é um fenômeno que corresponde à “rachadura” da sociedade fechada. A “sociedade massificada” aparece muito mais tarde; surge nas sociedades altamente tecnologizadas, absorvidas pelo mito do consumo. Nestas sociedades, a especialização necessária se transforma em “especialismo” alienante è a razão se distorce em “irracionalismo” gerador de mitos. Se se considera que a tecnologia não é somente necessária, mas que representa uma parte do desenvolvimento natural do homem, a questão que se apresenta aos revolucionários é saber como evitar os desvios míticos da tecnologia. As técnicas de “relações humanas” não constituem resposta porque, em última análise, não são mais que outra maneira de domesticar e de alienar os homens para que produzam em maior proporção. Por esta razão e por outras, que expusemos neste ensaio, insistimos na ação cultural pela liberdade. Não obstante, não atribuímos à conscientização um poder mágico, o que seria mistificá-la. A conscientização não é uma varinha mágica para os revolucionários, mas uma dimensão de base de sua ação reflexiva. Se os homens não fossem “entidades conscientes”, capazes de atuar e perceber, de saber e recriar; se não fossem conscientes de si mesmos e do mundo, a idéia de conscientização não teria nenhum sentido e aconteceria o mesmo com a idéia de revolução. 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