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doenca desconhecida saude publica, Notas de estudo de Enfermagem

De Doença desconhecida a problema de saúde pública: o INCA e o controle do Câncer no Brasil /

Tipologia: Notas de estudo

2012

Compartilhado em 30/05/2012

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gerson-souza-santos-7 🇧🇷

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Baixe doenca desconhecida saude publica e outras Notas de estudo em PDF para Enfermagem, somente na Docsity! Es to E Pd De doença desconhecida a problema Ee saúde pública: o INCA e o controle do câncer no Brasil LUIZ ANTONIO TEIXEIRA «e CRISTINA OLIVEIRA FONSECA | “ 1 SOBRE A HISTÓRIA SOCIAL DO CÂNCER 4 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL Copyright © 2007, Ministério da Saúde ISBN: 978-85-334-1446-4 É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte. Ministério da Saúde Fundação Oswaldo Cruz Avenida Brasil, 4365 – Manguinhos 21040-360 – Rio de Janeiro – RJ www.fiocruz.br Casa de Oswaldo Cruz – COC/FIOCRUZ Avenida Brasil, 4365 – Manguinhos 21.045-900 – Rio de Janeiro – RJ Tel.: (0xx21) 2260-7946 Fax: (0xx21) 2598-4437 E-mail: sitecoc@coc.fiocruz.br Instituto Nacional de Câncer (INCA) Praça Cruz Vermelha, 23 – Centro 20231-130 – Rio de Janeiro – RJ www.inca.gov.br Divisão de Comunicação Social (DCS/INCA) Praça Cruz Vermelha, 23/4º andar – Centro 20230-130 – Rio de Janeiro – RJ Tel.: (0xx21) 2506-6108 Fax.: (0xx21) 2506-6880 E-mail: comunicacao@inca.gov.br Coordenação geral do projeto na Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ Luiz Antonio Teixeira Coordenação geral do projeto na Divisão de Comunicação Social/ INCA Claudia Lima Cristina Ruas Rodrigo Feijó Elaboração de texto Luiz Antonio Teixeira Cristina Fonseca Lina Faria Pesquisa de fontes textuais e textos preliminares Rômulo de Paula Andrade Pesquisa iconográfica Manuela Castilho Coimbra Costa Apoio à pesquisa iconográfica Marcos Vieira Viviane Queiroga Auxiliar de pesquisa Claudio Arcoverde Revisão de texto Jacqueline Gutierrez Reproduções fotográficas Roberto de Jesus Vinicius Pequeno Agradecimentos Adilia Maria Teixeira da Silva Alexandre Octavio Ribeiro de Carvalho Carla Gruzman Evandro Coutinho Gisele Sanglard Marina Kroeff Marília March Renato Silva Projeto Gráfico Idéia D – Designers Associados www.ideiad.com.br Parceria Coordenação Geral de Documentação e Informação – CGDI/MS Secretaria Executiva Impressão Gráfica Esdeva T266d Teixeira, Luiz Antonio (Coord.) De Doença desconhecida a problema de saúde pública: o INCA e o controle do Câncer no Brasil / Luiz Antonio Teixeira; Cristina M. O. Fonseca.- Rio de Janeiro : Ministério da Saúde, 2007. 172 p. : il. ; 26 cm. 1. Saúde pública-história-Brasil. 2. Política de saúde-história-Brasil. 3. Neoplasias. 4. INCA. I. Título CDD614.0981 5 SOBRE A HISTÓRIA SOCIAL DO CÂNCER Sumário Apresentação 7 Introdução 9 CAPÍTULO 1 Sobre a história social do câncer 13 CAPÍTULO 2 O desenvolvimento da cancerologia no Brasil 25 CAPÍTULO 3 Construindo uma política de controle do câncer para o país 41 CAPÍTULO 4 Mario Kroeff e a criação de um espaço para o tratamento do câncer no Distrito Federal 57 CAPÍTULO 5 O Serviço Nacional de Câncer e a institucionalização da política de controle do câncer no Brasil (1940-1960) 73 CAPÍTULO 6 Saúde: bem público ou privado? O INCA e a política de controle do câncer no período autoritário (1964 – 1979) 103 CAPÍTULO 7 Parcerias públicas em benefício público: co-gestão e inovação institucional no INCA 127 CAPÍTULO 8 O INCA, o SUS e os desafios da saúde pública brasileira 141 Linha do Tempo 161 Referências Bibliográficas 163 6 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL Apresentação 9 SOBRE A HISTÓRIA SOCIAL DO CÂNCER Ao longo da história brasileira, o câncer foi visto de diversas formas. De tumor maligno e incurável à neoplasia, de tragédia individual à problema de saúde pública, sua história foi marcada pelo incessante esforço da medicina em controlá-lo pela via da prevenção, aliada ao uso das mais modernas tecnologias médicas de tratamento. No entanto, as dificuldades técnicas para a cura de muitas de suas formas, o alto custo das tecnologias empregadas com esse objetivo e seu caráter individual mostram-se como limitadores da ação terapêutica, fazendo com que a doença se vincule cada vez mais ao campo da prevenção e da saúde pública. Ao construir a história dessa doença em nossa formação social, optamos por trazer à luz uma multiplicidade de atores e instituições que ajudaram a construir primeiramente o câncer como problema médico e em seguida como objeto da saúde pública. Nesse conjunto, despontou como objeto privilegiado de análise o Instituto Nacional de Câncer. Acompanhamos sua trajetória, desde a sua criação, como Centro de Cancerologia do Distrito Federal, em 1937, até o início do nosso século, momento em que a instituição passa a se responsabilizar pela formulação, acom- panhamento e implantação da política de atenção oncológica no País. Embora saibamos que o recorte utilizado não dê o devido destaque a alguns aspectos da história da doença, como as angústias e sofrimento dos doentes e os detalhes dos avanços técnico-científicos utilizados em seu controle, os limites da obra nos impuseram essa escolha. Nosso longo caminho se inicia com os primeiros trabalhos sobre o câncer apresentados em nossas academias médicas e tem como ponto de chegada a configuração das políticas de controle da doença, no início do século XXI, e a atuação do INCA nesse contexto. Para guiar o leitor nesse passeio, dividimos o texto em seções, em alguma medida, formatadas pelos marcos das transformações da nossa história sócio-política, acrescidas das grandes trans- formações na história do combate a doença no País. Iniciamos nossa empreitada construindo um quadro geral sobre a doença, que mostra como ela foi construída como um problema social. Ou seja, como se deu a passagem de uma visão do indivíduo doente para uma outra, que via a doença como um problema coletivo, a ser tratado pela saúde pública. Ao tratar desse aspecto, também nos remetemos aos avanços científicos em relação à doença, procurando ressaltar o paradoxo encerrado no fato de que, quanto mais ela foi sendo descortinada pelas ciências médicas, mais aumentou o temor das populações diante dela. No segundo capítulo, nossa narrativa se volta para os primeiros estudos sobre o câncer no País, analisando como ele se transforma em problema médico. Mostramos que, a partir do início do século XX, os médicos brasileiros começaram a se debruçar sobre o câncer, mais como uma forma de seguir a tendência de seu campo profissional – cada vez mais às voltas com as observações da ampliação da incidência da doença na Europa e nos Estados Unidos – do que como um modo de resolver um real problema de saúde pública. Na verdade, nossos médicos tiveram que se desdobrar para mostrar a importância do câncer, visto sua pequena expressão epidemiológica naquele momento. De qualquer forma, foram felizes na aceitação social de seu discurso que previa a ampliação dos índices da doença vis à vis ao processo de modernização do País. A ação desses pioneiros se caracteriza como o primeiro passo para o enquadramento do câncer como um pro- blema de saúde pública. Já em 1920, ele passou a ser objeto de uma inspetoria do Departamento Nacional de Saúde Pública. Sua inclusão no organograma da saúde pública se relacionou ao surgimento de uma demanda social visando ao aumento do escopo das ações governamentais de saúde, até então voltadas para o controle das epidemias. Além disso, ela também se relacionou ao processo de maior profissionalização de nossos sanitaristas, que passaram a ter nas noções da moderna saúde pública, surgidas nos Estados Unidos, sua base de atuação. 10 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL A trajetória das primeiras instituições voltadas para o controle do câncer também são alvo de nossa narrativa. Observamos o surgimento do Instituto do Radiun de Belo Horizonte e do Instituto do Câncer Dr. Arnaldo, em São Paulo. Também analisamos o malsucedido projeto de um hospital do câncer levado à frente pelo industrial Guilherme Guinle em consórcio com uma associação de médicos do Distrito Federal. O terceiro capítulo se volta para o período que se estende entre o final da década de 1920 e a metade dos anos 1930, momento em que os médicos se convenceram da necessidade de ampliação das ações de saúde contra o câncer. O I Congresso Brasileiro de Câncer, ocorrido em 1935 no Distrito Federal, foi o auge desse processo, ao trazer a público as primeiras propostas para o enfrentamento da doença em nível nacional. Ressaltamos nesse momento a atuação de João de Barros Barreto, então dirigente da saúde pública, que trouxe à luz um projeto para o combate ao câncer em nível nacional. Como contraponto, analisamos a proposta apresentada por Mario Kroeff e mostramos como ele conseguiu pôr em marcha as atividades que acabariam por consolidar a ação contra o câncer no país. O capítulo seguinte é dedicado a Mario Kroeff e seus “combates contra o câncer”. Traçamos uma breve biografia do personagem e analisamos a criação e a trajetória do centro de cancerologia, embrião do Instituto Nacional de Câncer. Também nos voltamos para sua atuação na criação da Associação Brasileira de Assistência aos Cancerosos. Nossa análise procura mostrar a grande habilidade e perspicácia de Kroeff tanto na criação do Centro de Cancerologia como, de forma mais ampla, em todo o processo de desenvolvimento de uma política de controle do câncer no País, entre o final dos anos 1920 e a década de 1950. Usando de grande argúcia, ele foi capaz de compreender as mudanças que vinham ocorrendo em relação à prevenção e ao tratamento do câncer e de reformular suas concepções para seguir essas diretrizes de forma mais eficaz. Se no início de sua carreira, suas propostas para o controle do câncer no País apregoavam quase que exclusivamente a maior utilização da eletrocirurgia, com o passar dos anos, elas passaram a ter como base a criação de uma rede de instituições que tratassem os doentes com o conjunto de tecnologias que a medi- cina oferecia, implementassem campanhas publicitárias em relação à necessidade de diagnóstico precoce e que também pudessem oferecer cuidados paliativos para os desprovidos de recursos. Com esse propósito, ele moveu uma luta particu- lar para ampliar as iniciativas de controle da doença, tanto no âmbito da instituição que dirigia como fora dela. No capítulo cinco, nossa análise se volta para as políticas públicas relacionadas ao câncer, primeiro analisando a criação e o lento desenvolvimento do Serviço Nacional de Câncer (SNC). Procuramos ressaltar que essa instituição, em seus primeiros anos de atividades, concentrou sua atuação no Centro de Cancerologia. A partir do final do governo Vargas, o SNC ampliaria bastante sua atuação, principalmente no incentivo às ligas e outras instituições locais. Nesse capítulo também observamos as campanhas de prevenção postas em marcha a partir de 1946 e analisa- mos o processo de ampliação e modernização do então Instituto Nacional de Câncer, enfatizando seu papel na formulação das políticas de câncer para o País. O sexto capítulo se detém nas décadas de 1960 e 1970, analisando o período de instabilidade política que marcou a transição para um gradativo regime político autoritário no Brasil. Observamos o fortalecimento gradual de propostas voltadas para a privatização dos serviços de saúde e as principais mudanças institucionais que ocorre- ram na esfera da saúde. No âmbito das ações de controle do câncer, destacamos a criação da Campanha Nacional de Combate ao Câncer, as atividades desenvolvidas nesse setor, bem como a elaboração do Plano Nacional de Combate ao Câncer. Acompanhando estas mudanças destacamos o impacto destas transformações no Instituto Nacional de Câncer (INCA), configurando um período marcado por grande instabilidade institucional, a falta de verbas e a redu- ção de sua equipe profissional, entre outros fatores. O capítulo seguinte procura estabelecer um paralelo entre o processo de redemocratização que tem início na década de 1980 e a reformulação institucional que ocorre no INCA, quando o Instituto começa a superar as dificul- 11 SOBRE A HISTÓRIA SOCIAL DO CÂNCER dades e problemas por que passou nas décadas anteriores. A realização da VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, e a promulgação da nova Constituição brasileira em 1988, representaram momentos decisivos da história da saúde no País e tiveram impacto também sobre o Instituto. Para o INCA, essa década representou um período de impor- tantes mudanças que implicaram a expansão das atividades de controle e tratamento do câncer. Foram criadas novas instâncias gerenciais com a implementação da co-gestão além da criação de novos setores e serviços, como o Pro- Onco e o CEMO. O oitavo capítulo, observando o contexto de consolidação da democracia no País, e a aprovação do Sistema Único de Saúde (SUS), procura analisar o papel do INCA diante dos desafios apresentados no processo de implemen- tação e consolidação do SUS. Estabelecemos um diálogo entre as ações de controle e tratamento do câncer empreen- didas pelo Instituto e as transformações em curso na área da saúde, destacando seu papel na definição de estratégias e diretrizes políticas para o setor. Constatamos a crescente especialização médica nesse campo, acompanhada de uma ampla e extensa diversificação institucional, de novos parâmetros de relação com os meios de comunicação e novas estratégias de prevenção e controle sobre a doença. Observamos que o INCA enfrentou os desafios apresentados pelo novo modelo de gestão institucionalizado pelo SUS e se consolidou como uma instituição pública, prestadora de serviços de qualidade. Neste sentido, o fio condutor da análise fortalece a caracterização do câncer como uma ques- tão social, de saúde pública. Este livro contou com o valioso trabalho da pesquisadora Lina Faria que participou como co-autora dos textos referentes aos capítulos seis, sete e oito. Para a elaboração desse trabalho, utilizamos uma enorme quantidade de fontes, sendo que os artigos e comunicações às sociedades médicas e congressos de medicina foram os mais emprega- dos nos capítulos que trataram dos primórdios da cancerologia no país. A análise das políticas públicas em relação ao câncer e do desenvolvimento institucional do INCA teve como principal matéria prima os documentos oficiais, em especial a legislação, os relatórios do Instituto e os artigos de seus dirigentes publicados na Revista Brasileira de Cancerologia. Não podemos deixar de citar três trabalhos que foram fundamentais à escrita desse livro. O primeiro foi o livro História e Saúde Pública: a política de controle do câncer no Brasil, escrito sob a coordenação de Regina Bodstein a exatos dez anos e publicado pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz). Primeiro trabalho acadêmico a sis- tematizar a história das políticas em relação ao câncer no País, nos serviu como bússola, indicando os caminhos a serem percorridos. Além disso, fizemos largo uso das entrevistas elaboradas por seus autores. Outro trabalho que merece menção especial é a dissertação de mestrado de Alexandre Octavio de Carvalho, O Instituto Nacional de Câncer e sua memória: uma contribuição ao estudo da invenção da cancerologia no Brasil (2006). Da mesma forma que o livro precedente, sua dissertação foi uma fonte fecunda de informações e de referências a serem analisadas. Por fim, não podemos deixar de citar o grande conjunto de escritos de Mario Kroeff, em particular o livro Resenha da luta contra o câncer no Brasil (1947) no qual o autor enfeixa uma longa série de documentos, artigos e manchetes de jornais sobre o desenvolvimento da cancerologia no País que constituíram fontes de inestimável valor. Embora nossa pesquisa tenha conseguido levantar um grande e rico conjunto de fontes, o perfil editorial ado- tado para o livro fez com que nossa narrativa se concentrasse nos aspectos mais gerais, tanto no que concerne às políticas de saúde pública, como em relação à trajetória do INCA. Por isso, o leitor pode deixar de encontrar informa- ções específicas sobre políticas voltadas para o controle do câncer e sobre algumas atividades realizadas no Instituto em diversos momentos de sua história. Nesse sentido, acreditamos que esse trabalho possa ser um ponto de partida para outras investigações e estimule o interesse por novos temas relativos à história da instituição e de seu papel no controle do câncer no País. 14 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL Morgagni (1662-1771) e o médico francês Marie François Xavier Bichat (1771-1802) foram de grande importância. O primeiro enfatizou a localização corpórea das doen- ças, que passavam a se caracterizar como uma entidade específica, localizada em determinado órgão do corpo. Já Bichat elaborou um tratado revolucionário, mostran- do que os órgãos são formados por diferentes tecidos, cujas lesões apontavam a localização das várias patolo- gias. Seus estudos favoreceram a compreensão das for- mas distintas de câncer, a partir de seus efeitos diferen- ciados em diversas localizações tissulares. Ainda neste período, outro médico francês, René Théophile Laënnec (1781-1826), aumentou a precisão do diagnóstico ao distinguir os quistos dos rins e dos ovários e os fibromas uterinos dos casos de câncer. Por fim, Joseph Claude Anthelme Recamier (1774-1852), observando um tumor secundário no cérebro de uma paciente inicialmente atin- gida por um câncer no seio, deu início a utilização do conceito de metastase para o câncer. Seus estudos apon- tavam para o fato de a invasão de células cancerosas na corrente sanguínea ou linfática provocar o surgimento de novos tumores em outros órgãos dos doentes. Essas pesquisas, assim como diversas outras realizadas no pe- ríodo, possibilitaram a compreensão do câncer como uma patologia local, relacionada às mais diminutas estrutu- ras orgânicas. No século XIX, o desenvolvimento da teoria celu- lar, a partir dos trabalhos de Virchow (1821-1902), fi- nalmente possibilitou a vinculação da doença às células e seu processo de divisão. O próprio Virchow propôs essa Remoção de um tumor. Ilustrações de 1741 15 SOBRE A HISTÓRIA SOCIAL DO CÂNCER idéia, no entanto, ele acreditava que o câncer era causado por uma irritação crônica e se propagava como um líqui- do no organismo. Em meados do século XIX, o anato- mista Wilhelm Waldeyer (1836-1921) mostrou que as células cancerosas se desenvolvem a partir de células normais, e que o processo de metastase, como postulara Recamier, era resultado do transporte das células cance- rosas pela corrente sanguínea ou linfática. Apesar do grande avanço do conhecimento sobre a doença, as possibilidades de tratamento eficazes per- maneciam inexistentes, restando aos acometidos a internação em asilos para desenganados, nos quais em meio ao sofrimento, esperavam o momento da morte. Nesse campo, a assistência aos desamparados foi a ação contra a doença de maior alcance. Na Europa, ainda no século XVIII começaram a surgir hospitais com esse obje- tivo. Já em 1742, a cidade de Reims, na França, criou um asilo para cancerosos. Em 1799, seria fundado, na Ingla- terra, o Cancer Charity of the Middlesex Hospital, com as mesmas características. Em meados do século XIX, várias instituições voltadas à proteção aos doentes de câncer começaram a proliferar em diversos países euro- peus. Na França, a Associação de Senhoras do Calvário, ou Obra do Calvário, criada em 1842 na região de Lyon, por Jeanne Garnier-Chabot, implantou um asilo para mulheres cancerosas, mantido e administrado por viú- vas voltadas para a caridade. Depois da morte de sua fun- dadora, em 1853, a associação criou diversas casas de abrigo na França, nas quais as viúvas da ordem traba- lhavam cuidando de mulheres atingidas pela doença. Em meados do século XIX, os avanços da cirurgia pareciam dar uma nova esperança em relação ao câncer. As primeiras cirurgias de cânceres do reto e histerctomias datam da década de 1840, quando a utilização do éter e do clorofórmio como anestésicos possibilitou a execu- ção de cirurgias mais invasivas. No entanto, o grande número de insucessos dessas operações e o dissenso so- bre sua eficácia fizeram com que, naquele momento, elas fossem postas de lado. Somente com o desenvolvimento das técnicas de assepsia e anti-sepsia criadas por Joseph Lister (1827-1912) na década de 1860 e da progressiva Mastectomia. Ilustrações do Armentarium Chirurgicum, 1741 16 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL Retirada de um tumor no seio. Traité Complet de l’Anatomie de l’homme, 1866-67 19 SOBRE A HISTÓRIA SOCIAL DO CÂNCER ser estudada pelos médicos atentos às grandes possibilidades de sua utilização no campo do diagnóstico de doenças pela visão das estruturas internas do organismo. Cinco meses depois do relato da descoberta, surgia o primeiro trabalho sobre o uso diagnóstico da radiologia, no entanto, até o início da década de 1910, quando inovações tecnológicas permitiram o aperfeiçoamento da técnica, sua utilização foi bastante precária em virtude do longo tempo de exposição necessário para a elaboração de uma chapa (mais de 30 minutos) e do alto grau de radiação que gerava. Um outro aspecto da descoberta que logo interessou aos médicos foi o fato de os raios-X causarem vermelhidão e queimaduras na pele e, no caso de exposições mais intensas, a destruição dos tecidos e lesões cancerígenas – vários pesquisadores que lidavam com essa tecnologia foram vítimas desses agravos. Caracterizada inicialmente como uma conseqüência negativa, essa propriedade dos raios X em pouco tempo passou a ser vista como uma nova possibilidade no tratamento do câncer, pois poderia ser utilizada na destruição de tumores cancerígenos. Primeira radiografia do corpo humano submetidos inicialmente ao tratamento radiológico e de- pois tinham seus tumores retirados por meio de cirurgia. Esse conjunto de inovações no tratamento do cân- cer ampliou sobremaneira o interesse pela doença, que passou a ser objeto de diversos estudos, muitos deles vol- tados para a análise de sua incidência. Esses estudos pare- ciam mostrar que o câncer se alastrava na Europa e nos Estados Unidos. O maior conhecimento de suas diversas formas diminuía a subnotificação, dando a impressão de permanente ampliação dos índices. Além disso, os primeiros sucessos da bacteriologia no controle das doen- ças epidêmicas, ao mesmo tempo em que geravam oti- mismo frente à possibilidade de controle do câncer, per- mitia uma observação mais acurada de um mal menos freqüente que as epidemias que até então atacavam as grandes cidades. O câncer transformava-se em um mal cada vez mais observado e temido O interesse pelo câncer foi rapidamente globalizado pelos congressos internacionais de medicina, onde avul- tavam trabalhos sobre a doença. Logo o câncer passaria a ser tema de encontros específicos, nos quais se discuti- am suas causas e possível contagiosidade e, principal- mente, a ampliação de sua incidência nas diversas par- tes do o mundo. Em 1906, se daria a Primeira Conferên- cia Internacional contra o Câncer, em Paris. Quatro anos mais tarde, uma segunda conferência ocorreu na Bélgica, realizando-se, em 1923, o primeiro Congresso Interna- cional do Câncer em Estrasburgo. As resoluções desses certames normalmente apontavam para a necessidade de ampliação das pesquisas e para a criação de institui- ções específicas para o tratamento dos acometidos, in- centivando o surgimento de novas iniciativas em rela- ção à doença. As primeiras instituições de incentivo à pesquisa datam do alvorecer do século XX. Ainda em 1900 foi organizado o German Central Committe for Cancer Research na Alemanha. Dois anos mais tarde, surgiu na Inglaterra o Imperial Cancer Research Fund. Em 1906, como conseqüência da Primeira Conferência Internacio- nal contra o Câncer, foi criada a Association Française pour l’etude du Cancer, no ano seguinte a American Association for Cancer Research. Nessa mesma época começaram a surgir, nos Estados Unidos e na Suécia, os primeiros centros de radioterapia que conjugavam pes- quisas experimentais e tratamento médico. O mais céle- bre entre eles foi fundado em Paris, pela própria Marie 20 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL Utilização de diagnóstico por raios X durante a Primeira Guerra Mundial Curie, sob as expensas do governo francês, como uma divisão do Instituto Pasteur voltada à pesquisa biomédica e ao atendimento hospitalar. No que tange à organização dos serviços de saúde, a utilização de novas tecnologias de tratamento basea- das em aparelhagem de alto custo, como as bombas de rádio e os aparelhos de altas voltagens, surgidos a partir do final dos anos 1920, formatou o perfil dos serviços contra o câncer nos países desenvolvidos. A França con- tou com diversos centros locais, voltados para a preven- ção, diagnóstico e terapêutica de menor complexidade – custeados pelo governo com o auxílio da filantropia –, e com alguns institutos modelos, aptos a realizar procedi- mentos mais diversificados e a desenvolver pesquisas biomédicas sobre a doença. O consórcio Estado-Filan- tropia no controle do câncer foi uma regra na maioria dos países europeus, nos Estados Unidos e, em alguma medida, no Brasil, onde as ligas e outras organizações ajudaram a implantar e manter serviços voltados para o tratamento e a pesquisa. No âmbito da luta social contra doença, o fim da Primeira Guerra Mundial engendrou um interesse ainda maior em seu controle. Foi assim que surgiu, em 1918, a Liga Franco-Anglo-Americana contra o Câncer. Congre- gando médicos, financistas, comerciantes e industriais dessas nações e contando com os auspícios de seus em- baixadores e ministros da saúde e do Instituto Pasteur, a Liga objetivava ampliar a conscientização da opinião pública sobre o problema do câncer e favorecer a criação de centros de pesquisa e tratamento da doença nos paí- 21 SOBRE A HISTÓRIA SOCIAL DO CÂNCER Marie Curie e a radioterapia Marie Curie e sua filha Irene em 1925 ses membros. Na França, sua atuação se voltou para a criação de dispensários e para a formação de enfermei- ras visitadoras. Uma outra esfera de suas atividades ti- nha como esteio o trabalho filantrópico das senhoras visitadoras, que se voltaram para o auxílio aos incurá- veis e a elaboração de inquéritos epidemiológicos sobre a doença. A Liga Franco-Anglo-Americana inspiraria a criação de instituições nacionais similares em diversos países, elevando a ação social contra a doença aos níveis das já existentes contra a tuberculose e a sífilis. Em di- versas partes do mundo ocidental – inclusive no Brasil –, as ligas, apoiando-se nas postulações médicas de então, se empenharam em levar à opinião pública a idéia de que o câncer era curável se descoberto e tratado quando de seu início, bem como em criar e ajudar a manter cen- tros de tratamento da doença e fornecer cuidados aos incuráveis em asilos específicos. No período que se estende entre as duas guerras mundiais, a preocupação com o problema do câncer pa- receu se ampliar ainda mais em todo o mundo. Os inqué- ritos epidemiológicos realizados nos diversos países mostravam que a extensão da doença era ainda maior do que se imaginava, tendendo a se elevar mais ainda à medida que melhores condições de vida possibilitassem o maior envelhecimento da população. No campo da ação médica, o desenvolvimento da cirurgia aumentava Curie e seu marido Pierre Currie Em 1898 a polonesa radicada na França Marie Curie (1867-1934) estudava a radioatividade do urânio no laboratório do renomado físico francês Antoine Henri Becquerel (1852-1908). Suas pesquisas, mais tarde laureadas com o Prêmio Nobel de Física (1903) e de Química (1911) levaram-na à descoberta de dois novos elementos químicos, o polônio e o rádio, apontando para a intensa radioatividade dessas substâncias. Somente em 1902, Marie Curie e seu marido Pierre Curie (1859-1906) conseguiram isolar o rádio, no entanto, muito antes disso, ele já era objeto de pesquisa no meio médico. Ainda em 1900, o próprio Becquerel, foi convidado para um congresso médico em Londres e levou no bolso do seu paletó um tubo contendo uma amostra com forte concentração de rádio. Quinze dias mais tarde ele observou que sua pele, à altura do bolso do paletó, apresentava uma inflamação e, consultando um médico, concluiu a similaridade das feridas com as obtidas por raios X. Essa constatação fez com que a comunidade científica deixasse de lado as hipóteses que atribuíam as alterações celulares provenientes dos raios X à eletricidade, abrindo caminho para o estudo da radioatividade como um novo domínio terapêutico. Tal qual os raios X, o rádio, em virtude de seu poder de destruir células malformadas, foi amplamente usado pela medicina com objetivo de destruir tumores cancerígenos. Sua descobridora, com o auxílio do governo francês, fundou o Instituto de Radiun de Paris – instituição científica voltada para as pesquisas em radioterapia e tratamento radioterápico do câncer. Em seus laboratórios, ela trabalhou até a morte. 24 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL CAPÍTULO 2 25 O DESENVOLVIMENTO DA CANCEROLOGIA NO BRASIL O câncer como problema médico As últimas décadas do século XIX marcam um pe- ríodo de grandes transformações na medicina brasilei- ra. Num contexto de crise sanitária e modernização material vivido em nossas principais capitais, teve iní- cio um processo de mudanças surgido no campo do en- sino médico e, posteriormente, radicalizado com o surgimento de novos paradigmas científicos que trans- formariam as antigas artes de curar em ciências da saúde. Data de 1880 o início do processo de reforma do ensino médico na Faculdade de Medicina do Rio de Ja- neiro. Empreendida na gestão do Visconde de Sabóia (1880-1889), as alterações curriculares visaram sintoni- zar a formação médica com o que vinha ocorrendo na Europa. Para tanto, o ensino de cunho prático passou a ser mais valorizado e foram criadas novas cadeiras – como a oftalmologia, clínica de crianças, medicina legal, obs- tetrícia e psiquiatria – e laboratórios direcionados à prá- tica da medicina experimental. Como resultado, a for- mação generalista existente até então foi substituída por uma crescente especialização aos poucos direcionada à medicina de cunho experimental em franco desenvolvi- mento nos países europeus. No que concerne aos conhecimentos médicos, esse momento foi marcado pela chegada ao país dos primei- ros ecos da medicina dos micróbios. Fruto da aproxima- ção entre a medicina experimental, a química e a biolo- O desenvolvimento da cancerologia no Brasil gia, a microbiologia teve grande desenvolvimento a par- tir dos trabalhos do químico francês Louis Pasteur. Os estudos sobre os micróbios não demorariam a chegar ao Brasil, se transformando em objeto de estudos de alguns médicos na Faculdade de Medicina. A partir da década de 1890, com o surgimento de institutos biomédicos dedicados a estudos nessa área em São Paulo e no Rio de Prédio da Santa Casa da Misericórdia, onde funcionava a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, 1880 26 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL Janeiro, a microbiologia começaria e a se consolidar como campo da medicina. De forma geral, a medicina e a saúde pública brasi- leiras muito se beneficiariam do desenvolvimento dos conhecimentos microbiológicos. A utilização de vacinas e soros, contra as doenças transmissíveis, o isolamento de portadores de doenças contagiosas, as diversas for- mas de destruição de vetores de doenças transmissíveis – principalmente os mosquitos – e os diagnósticos bacte- riológicos foram armas utilizadas pela saúde pública nas grandes campanhas sanitárias ocorridas no início do século XX, que lograram melhorar as condições de saúde Brigadas sanitárias concentradas no pátio do Serviço de Profilaxia da Febre Amarela, situado na rua do Lavradio. Rio de Janeiro, entre 1903 e 1906 das principais capitais do Sudeste brasileiro. Mas as trans- formações na atuação médica não se limitaram à ação preventiva contra as epidemias. No campo da cirurgia, a assepsia e as novas técnicas de anestesia possibilitaram aos médicos intentar com sucesso ações mais demora- das e invasivas. Além disso, tanto os laboratórios de pes- quisa como as enfermarias e consultórios cada vez mais se beneficiariam das novidades tecnológicas provenien- tes da utilização da energia elétrica na atividade medica. No campo da terapêutica, as velhas práticas médico- farmacêuticas oitocentistas pareciam cada vez mais ul- trapassadas. Sangrias, cataplasmas e as diversas receitas 29 O DESENVOLVIMENTO DA CANCEROLOGIA NO BRASIL São Paulo, a mortalidade da doença também vinha se mostrando ascendente nos últimos anos, reiterando a necessidade de serem tomadas providências para a mu- dança desse quadro. A seu ver, o câncer possivelmente era uma doença transmissível, mas, tal qual a lepra, não se conheciam os meios pelos quais ela se difundia. Esse desconhecimento não era um impeditivo para que se engendrassem medidas de saúde pública – como a desin- fecção ou o isolamento dos doentes – para impedir sua ampliação. No ano seguinte à publicação do artigo de Olympio Portugal, surgia, no Rio de Janeiro, uma nova publica- ção médica: os Archivos Brasileiros de Medicina. Dirigido pelos médicos Juliano Moreira e Antonio Austregesilio, da Academia Nacional de Medicina, o periódico se vol- tava à apresentação das diversas instituições médicas existentes no País e à publicação de trabalhos sobre os temas mais expressivos do campo médico. Por todo o ano de 1911, os Archivos Brasileiros de Medicina publica- ram a “seção permanente do cancro”, dirigida pelo mé- dico Álvaro Ramos, na qual eram apresentados artigos sobre o tema. Na primeira aparição da coluna, seu edi- tor deixava claros seus motivos e expectativas em rela- ção à sua iniciativa. Com um olho na comunidade mé- dica internacional e outro em nossos médicos, ele afir- mava a importância da elaboração de estudos no novo campo. “De pleno acordo com os desígnios da associação inter- nacional para o estudo do câncer procuramos secundar os ingentes esforços (...) na divulgação das descobertas e dos fatos importantes que se produziram no domínio das investigações sobre o câncer, bem como no transumpto dos relatórios, conferências e discussões relativas as afecções cancerosas nas sociedades médicas, e de tudo quanto possa interessar ao estudo desse terrível mal. Não basta, porém conhecermos o que se passa no exterior, torna-se indispensável que voltemos atenção para a nos- sa terra. Enquanto lá fora, outros melhor aparelhados, só agora se ocupem em bem estuda-lo para melhor combate- lo, que não nos descuidemos de sua existência entre nós, apuremos a sua freqüência, as suas múltiplas manifesta- ções, conheçamos as preferências para certas zonas, com- paremos o seu aparecimento nas diferentes raças que for- mam a nossa população, bem como estabeleçamos as pro- porções por idades, sexos, profissões classes de indivíduos e regiões do organismo afetadas. No vivo empenho de contribuir de alguma forma para o estudo do câncer no Brasil, solicitamos encarecidamente a colaboração de toda a classe médica brasileira, interes- sada como é, na resolução desse importante problema, crentes que não apelamos em vão.” (Ramos, 1911:32) A partir de seu primeiro número, a coluna come- çou a publicar trabalhos de médicos brasileiros sobre o tema, algumas traduções de artigos estrangeiros e um esforço do próprio Álvaro Ramos de sintetizar a situação dos estudos sobre o tema naquele momento. No entanto, a coluna teve vida curta, deixando de existir no ano se- guinte. Apesar de seu desaparecimento poder sugerir a inexistência de um número de trabalhos suficientes para mantê-la, a observação de outros periódicos médicos na- cionais – como a Revista Médica de São Paulo, o Brasil Médico e os Anais da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo – mostra que não foi esse o motivo de sua interrupção, pois cada vez mais foi se ampliando o número de trabalhos e discussões a respeito do tema nesses periódicos. O interesse da medicina brasileira pelo câncer teve uma ascensão relacionada a eventos de cunho interna- cional, como a Conferência Internacional sobre o Cân- cer, ocorrida em Paris, em 1910, e por seus desdobramen- tos nos congressos médicos latino-americanos. A partir de 1910, estudos de médicos cariocas e paulistas que pro- curavam mostrar a progressiva ampliação da incidência do câncer no País e sua possível contagiosidade acaba- ram reforçando esse interesse. Todo esse processo logrou uma vinculação efetiva da doença às preocupações da medicina nacional, num caminho ascendente ,que leva- ria à sua incorporação pela saúde pública, a partir da década de 1920. Câncer e saúde pública Os últimos anos da década de 1910 marcam uma mudança de eixo na saúde pública brasileira. Até então, as ações perpetradas pelo Estado nesse campo estavam voltadas para as grandes epidemias que atacavam cons- 30 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL tantemente a capital federal, impedindo a entrada de imigrantes e de capitais externos, fatores de primordial importância para o projeto de modernização então vi- gente. Para detê-las, o Estado fazia uso de campanhas de vacinação e de destruição de vetores, da fiscalização dos portos, para impedir a entrada de navios infectados, e diversas outras medidas de saneamento urbano. Embora essa política em vários momentos tenha se mostrado efi- caz ao conseguir dar fim às constantes epidemias que emergiam a cada ano na capital federal, ela deixava à margem das ações de saúde todo o interior do País, onde as condições de vida eram, na maioria das vezes, piores que as das grandes cidades, com a prevalência de diversos problemas, como a desnutrição, as verminoses e a malá- ria. Além disso, sempre se mostrava como uma ação pro- visória, se limitando aos momentos de crise sanitária. Terminados os problemas, todos os serviços eram des- montados. Essa diretriz começou a se modificar num contexto em que se misturam uma forte dose de nacionalismo surgido em virtude da guerra na Europa; o sentimento de deterioração das condições sanitárias, intensificado pela epidemia da gripe espanhola de 1918, que deixou um saldo de milhares de mortos em nossas principais cidades; e o conhecimento das agruras vividas no ser- tões do País, trazido a público em obras literárias e nos relatórios das missões científicas enviadas por institui- ções de pesquisa ao interior do país. A junção desses in- gredientes fez com que a visão idílica sobre a saúde da população do interior, compartilhada pelas elites dos centros urbanos, começasse a se modificar, originando um verdadeiro movimento pela melhoria das condições de saúde dos sertões. Esse processo, que passou para a história com a denominação de movimento pelo sanea- mento rural, se desdobraria em várias frentes, unindo médicos, políticos, intelectuais e diversos outros grupos. A agitação social pelo saneamento rural teve pro- fundas influências na sociedade brasileira, transformando inclusive nossa identidade, que passou a ter no homem do campo um dos símbolos da nossa nacionalidade. Em relação à saúde, ela conseguiu colocar em marcha algu- mas ações voltadas para o controle de endemias que as- solavam as zonas rurais. Além disso, foi responsável pela criação dos primeiros serviços de saúde pública de cará- ter nacional. O Departamento Nacional de Saúde Públi- ca (DNSP), criado em dezembro de 1919, teve como seu primeiro diretor o médico Carlos Chagas, que também dirigia o Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. Sua criação ampliou a abrangência territorial das ações de saúde, através da atuação de seu Serviço de Profilaxia Rural e de acordos com a Fundação Rockefeller para o combate a epidemias no interior do País. Em relação às populações urbanas, foram criadas inspetorias de Higie- ne Industrial e Alimentar e de Profilaxia da Tuberculose no Rio de Janeiro. Além da expansão dos serviços, o DNSP passou a se responsabilizar pela elaboração de estatísti- cas demográfico-sanitárias em nível nacional e pela pro- dução dos soros, vacinas e medicamentos necessários ao controle das grandes epidemias que afetavam o País. O DNSP incorporou em seus quadros um grande número de sanitaristas com formação específica em saú- de pública. Muitos deles haviam passado por cursos na John Hopkins University, berço das modernas concep- ções neste campo. Esta formação os fazia defensores de um novo modelo de saúde pública, agora vista como área autônoma frente aos interesses políticos do Estado e às ações específicas da medicina individual de caráter cura- tivo. Essa perspectiva fazia com que a ação em saúde se voltasse para novas doenças, a partir de sua expressão epidemiológica e da possibilidade técnica de sua preven- ção. Para esses novos sanitaristas, o processo de adoeci- mento caracterizava-se como um fenômeno coletivo que tinha origem na relação do indivíduo com seu meio, sen- do passível de prevenção através da higiene e da educa- ção sanitária. À saúde pública caberia o papel de agente principal na concepção e execução das atividades nesse campo, devendo também coordenar a ação da iniciativa filantrópica. Nesse contexto, o câncer como doença pre- venível e mal possivelmente contagioso, passaria a ser foco dessa renovada saúde pública. A transformação do câncer em objeto da saúde pública não se deveu somente à conjuntura interna que 31 O DESENVOLVIMENTO DA CANCEROLOGIA NO BRASIL desaguou na reforma sanitária de 1919. Ela também se relacionou ao processo que vinha se desenrolando em diversos países do mundo ocidental, onde o câncer cada vez mais era visto como um grande flagelo. Com o fim da Primeira Guerra Mundial, o avanço das pesquisas no campo da radioterapia e o surgimento das primeiras li- gas contra a doença, esse processo se intensificou ainda mais. A luta contra o câncer agora deveria ter como base o diagnóstico precoce e o tratamento, a serem efetuados por médicos conhecedores das especificidades da doença e das formas adequadas para combatê-la. A transforma- ção do câncer em mal prevenível tornava-o um objeto típico da saúde pública. No entanto, um aspecto deve ser observado. Os ín- dices de câncer no País não acompanhavam o expres- sivo crescimento observado nas estatísticas européias e dos Estados Unidos. Tal discrepância poderia determi- nar uma dificuldade maior em justificar uma ação mais ampla contra a doença. Todavia, nossos médicos foram eficientes em demonstrar que a diferença em relação à sua freqüência em nosso País e nas regiões desenvolvi- das do hemisfério norte era momentânea e se verificava em virtude da pouca precisão de nossas estatísticas sani- tárias e da forte incidência de outras doenças entre nos- sa população. Os altos índices de malária, tuberculeose, ancilostomíase e outros males crônico-degenerativos fa- ziam parecer pouco grave a incidência do câncer no país. O aprimoramento das estatísticas e o controle de outras doenças de prevenção e tratamento mais simples certa- mente levariam à observação de que o câncer também se ampliava entre os brasileiros (Clark, 1921; Rabello, 1922) A reforma sanitária que deu origem ao DNSP foi o primeiro passo em relação à incorporação do câncer como problema de saúde pública. No organograma da nova instituição, ele passou a ser objeto de atenção de uma inspetoria, também voltada às doenças venéreas e à lepra. A nova seção foi entregue à direção do professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Eduardo Rabello, que era especialista em sífilis e doenças da pele e já vinha desenvolvendo trabalhos sobre a prevenção do câncer de pele e do útero (Sanglard, 2005). A atuação da nova Inspetoria se restringia ao Distrito Federal e se centrava no estabelecimento de estatísticas mais adequa- das de óbitos de câncer. Também previa a execução das providências sanitárias necessárias nos domicílios onde tivesse havido caso de óbito de câncer; a gratuidade dos exames de laboratório necessários aos diagnósticos; or- ganização de uma campanha educativa contra a doença e a fundação de institutos de câncer com fins terapêuticos e experimentais (Atos do Poder Executivo, 1923). A nova legislação tinha como objetivo principal possibilitar à saúde pública um conhecimento mais apu- rado sobre os níveis de incidência da doença. Para tan- to, buscou unificar as notificações de óbitos por inter- médio de formulários padronizados que eram distribuí- dos pelas delegacias de saúde. Os dados obtidos eram processados pela Inspetoria da Lepra e das Doenças Vené- reas, gerando relatórios pra a saúde pública. Como a medicina da época trabalhava com a hipótese de o cân- cer ser uma doença transmissível, a legislação encampou medidas voltadas para a desinfecção de ambientes em queocorressem mortes pela doença. Naquele momento, as discussões médicas sobre a possibilidade de contágio do câncer eram intensas, e muitos pesquisadores defen- diam que ele teria uma forma de transmissão análoga à da lepra. O próprio diretor da Inspetoria considerava a me- dida pouco rigorosa, postulando que a doença fosse con- siderada contagiosa e de notificação compulsória (Rabelllo, 1922). A nova Inspetoria também objetivava levar à po- pulação informações que possibilitassem a prevenção da doença, para tanto, previa-se a montagem de uma cam- panha de educação. A medida tinha como focos princi- pais a conscientização sobre a possibilidade de cura dos casos de câncer precocemente diagnosticados e adequa- damente tratados, o esclarecimento sobre o perigo de formas alternativas de cura – charlatanismo – e a elimi- nação dos fatores que a medicina da época imputava como causas predisponentes e manifestações pré-cance- rosas. Em relação ao charlatanismo, é importante res- saltar que a ação da saúde pública não visava somente a curandeiros e outros não iniciados nas ciências médicas. 34 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL Entrada prédio onde funcionou o Instituto de Radium de Belo Horizonte, hoje Hospital Borges da Costa da UFMG criar na capital mineira um instituto unicamente volta- do para as pesquisas e o tratamento do câncer, nos mol- des do Instituto de Radiun de Paris. Aproveitando a po- pularidade auferida por sua participação no conflito eu- ropeu e o interesse pela doença também existente no País, ele conseguiu obter apoio dos Governos federal e esta- dual para a construção do instituto e compra do rádio – que naquele momento custava uma verdadeira fortuna. O Instituto foi erguido em um terreno doado pela prefeitura, próximo à Faculdade de Medicina. Instalado num belo prédio de estilo neoclássico, especialmente construído para abrigá-lo, foi inaugurado em 7 de setem- bro de 1922, durante os festejos de comemoração do cen- tenário da independência. Tinha como objetivo oficial o estudo do rádio e demais substâncias radioativas; as aplicações terapêuticas do rádio e dos raios X; e estudos, pesquisas e tratamento do câncer, pré-canceres e doen- ças afins (Salles, 1966:63). Em suas dependências, con- tava com um serviço de roentgenterapia, inicialmente che- fiado por Jacyntho Campos, e de curieterapia, chefiado por Mário Penna. Na parte administrativa, o Instituto contava com total autonomia frente à Faculdade de Medicina. Segundo as histórias contadas pelos veteranos mé- dicos da Faculdade de Medicina de Minas Gerais, o sur- gimento do Instituto deveu-se em muito a boa relação 35 O DESENVOLVIMENTO DA CANCEROLOGIA NO BRASIL do Brasil com a Bélgica na época. Dois anos antes da fundação do Instituto, o rei Alberto I tinha vindo ao Brasil e visitado Belo Horizonte com o então presidente Arthur Bernardes. Como resultado dessa visita, no ano seguinte seria fundada a companhia Belgo Mineira para a produ- ção de ferro a partir das jazidas de minério da região. Os interesses belgas logo se voltaram para outros campos. Como eles mantinham o monopólio da produção do rá- dio, elaborado a partir do minério extraído das jazidas existentes no então Congo Belga, tinham grande inte- resse em financiar a criação de institutos que fizessem uso do produto, que naquele momento era comercia- lizado por quantias exorbitantes. Por isso, teriam feito um lobby junto às autoridades do Estado e dado apoio financeiro à criação do Instituto do Rádio de Belo Hori- zonte1. Um importante momento da história do Instituto do Rádio de Belo Horizonte foi a visita de Marie Curie e sua filha Irene à instituição, em agosto de 1926. As duas foram conhecer o Instituto e proferir conferências sobre a radioatividade e suas aplicações na Medicina. Até hoje as paredes da Faculdade de Medicina envergam placas comemorativas a essas visitas. O Instituto funcionou regularmente por muitos anos. Em 1950, com a morte de Borges da Costa ele rece- beu o seu nome e, em 1967, foi integrado à Faculdade de Medicina da UFMG. Nesse período já estava em deca- dência e, dez anos mais tarde, foi desativado em virtude das péssimas condições de sua edificação. Em 2001, a UFMG pôs em marcha uma grande reforma de suas ins- talações, reinaugurando-o em 2003. Hoje, o Hospital Borges da Costa faz parte do complexo do Hospital das Clínicas da UFMG, funcionando como centro voltado para a oncologia adulta e pediátrica, para a quimiote- rapia e cirurgia ambulatorial e atende a um grande nú- mero de pessoas, principalmente crianças de várias re- giões do estado, que vêem a Belo Horizonte buscar trata- mento para a doença. 1 Informações provenientes de depoimento informal prestado pelo Dr. João Amilcar Salgado, em 11/09/2007. Marie Curie em visita ao Instituto do Radium de Belo Horizonte em 1926 Assinatura de Marie Curie e de sua filha Irene no livro de visitas do Instituto do Radium de Belo Horizonte 36 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL As primeiras instituições filantrópicas voltadas para o câncer Transformado em preocupação do campo médico a partir do início do século XX e em objeto de atuação da saúde pública no alvorecer da década de 1920, o cân- cer passaria também a ser alvo das atenções dos grupos socais que neste período se voltavam para a ação filan- trópica. Num contexto de valorização da saúde como redenção do País, setores de nossa elite econômica, sob a influência dos ideais do campo médico, passam a apoiar iniciativas em relação ao câncer como forma de suple- mentar a atuação estatal. Por muito tempo a ação da filantropia no Brasil esteve voltada prioritariamente ao campo hospitalar, tendo como principais instituições as Santas Casas de Misericórdias e outras irmandades e ordens terceiras li- gadas à Igreja católica. A partir do final do século XIX, essa atuação se modificaria, deixando de se circunscre- ver à prática religiosa e de assistência aos necessitados. O desenvolvimento da pesquisa médica experimental e seus promissores resultados no controle de diversas do- enças atraíram o interesse da elite econômica que se vol- tava para a filantropia, as novas possibilidades de ação relacionadas ao financiamento a instituições de pesqui- sa e ou de tratamento de enfermidades específicas. A criação e manutenção de instituições médico- assistenciais e a organização de entidades civis voltadas à resolução de problemas sociais foram as grandes áreas de atuação da atividade filantrópica na primeira década do século XX; e as ligas foram a expressão mais típica da ação filantrópica desse período. Bastante diferenciadas entre si, e congregando um grande número de partici- Prédio do Hospital da Santa Casada Misericórdia de São Paulo onde funcionou o Instituto do Câncer Arnaldo Vieira de Carvalho 39 O DESENVOLVIMENTO DA CANCEROLOGIA NO BRASIL mas de que dispomos” (Rabelo, 1924 apud Kroeff, 1946, p. 22). Ainda em 1922, Carlos Chagas, diretor do Depar- tamento Nacional de Saúde Pública, reafirmava a espe- rança na criação do Instituto no discurso de inaugura- ção do primeiro instituto exclusivamente voltado para o tratamento do câncer, naquele tempo criado em Belo Horizonte. Em seu discurso informava “Eu vos posso anunciar, com alegria, meus ilustres amigos, que não será em vão o grande exemplo civilizador da vossa iniciativa. Do altruísmo de brasileiros ilustres, que bem entende- ram cultivar em obras de ciência a memória abençoada de mortos queridos, espero e me fio, seguro de que tam- bém na Capital do pais teremos em breve organizados os trabalhos sobre o câncer, em moldes amplos, faculta- dos pela generosidade de moços de fortuna e de senti- mento” (Chagas, 1922). Apesar da convergência de interesses entre a saúde pública e a filantropia, nesse momento representada por Guilherme Guinle, a parceria não logrou obter sucesso. Durante vários anos, o projeto caminhou a passos len- tos, sendo que, em 1936, Guilherme Guinle, sem obter o apoio que imaginava do Governo federal, resolveu reti- rar seu auxílio à instituição, o que a tornou inviável. Ainda naquele ano, ela foi extinta, e o prédio iniciado doado à prefeitura do Distrito Federal, que, a seu modo, concluiu a edificação, instalando no local o Hospital Mu- nicipal Barata Ribeiro (Sanglard, 2005). Projeto para o Hospital do Câncer, de autoria do arquiteto Porto D’ave 40 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL CAPÍTULO 3 41 CONSTRUINDO UMA POLÍTICA DE CONTROLE DO CÂNCER PARA O PAÍS A chegada aos anos 1930 A transformação do câncer em problema de saúde pública nos anos 1920 foi o efeito e também a causa da intensificação do interesse médico pela doença. A ques- tão principal era conhecer a sua incidência no País, ou melhor, mostrar que essa era muito maior do que mos- travam as estatísticas existentes na época. O próprio Carlos Chagas, diretor do Departamento Nacional de Saúde Pública, no discurso de inauguração do Instituto do Radium de Belo Horizonte, em 1922, questionava: “Qual a freqüência do câncer entre nós? Onde estão os dados de uma estatística aproximada, que nos habili- tem a ajuizar da difusão do mal e apreciar suas conse- qüências saciais? Sabemos apenas, e tanto basta para avi- var a nossa previdência, que as afecções cancerosas fa- zem elevado número de vítimas em toda a vasta extensão do nosso território” (Chagas, 1922). Vários outros mé- dicos alertavam para o problema da subnotificação e indicavam a constante ampliação dos casos de câncer no País. Sem contar com uma base estatística segura para suas afirmações, esses apóstolos da luta contra a doença tomavam como base suas observações clínicas e a obser- vação da freqüência de doentes em diversos hospitais da cidade. A valorização da doença pelo campo médico tinha como principais espaços institucionais a Academia Na- Construindo uma política de controle do câncer para o país Brasão da Academia Nacional de Medicina cional de Medicina, a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro e os Congressos Médicos. Seu melhor exemplo pode ser visto na proposta de Fernando de Ma- galhães apresentada ao Congresso Nacional dos Práti- cos, realizado pela classe médica, no Rio de Janeiro, em comemoração ao centenário da independência (1922). 44 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL meio de um bisturi que transmitia intenso calor aos te- cidos por meio de energia elétrica de alta freqüência. Ela possibilitava incisões mais amplas com menor sangramento, por coagular os tecidos próximos à ação do bisturi. A técnica seria utilizada por diversos cirurgi- ões, inicialmente em retiradas de pequenos melanomas cutâneos e em cirurgias de cânceres da boca, ainda nos anos 1920 passaria a ser empregada nas mais variadas cirurgias de câncer. Um dos locais pioneiros na sua utili- zação foi a enfermaria da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro chefiada pelo cirurgião Brandão Filho. Lá, A cirurgia elétrica segundo Mario Kroeff, seu principal divulgador “Tinha trazido da Europa um aparelho. O primeiro introduzido no Brasil. Assisti à sua aplicação na Europa por dermatologistas, contra pequenas lesões de pele, e pensei em aproveitá-lo, em escala maior, no tratamento do câncer, contra as grandes lesões externas. Com ele pratiquei no Serviço do prof. Brandão Filho, na Santa Casa, a primeira eletrocoagulação realizada entre nós, em 1926” (Kroeff, 1971:203). “A diatermia ou destrói in loco um tumor, coagulando-o com a ponta do eletrodo na área doente, ou extirpa-o por inteiro pela dissecação elétrica. Não age, pois, pelo efeito da corrente para combater o elemento neoplásico, durante uma ou mais aplicações como podem supor os que não forem afeitos a cirurgia. É uma cirurgia armada, que corta pela eletricidade, por isso é dotada de qualidades especiais na terapêutica do câncer, em condições de produzir melhores resultados que o bisturi sangrento, quando procede a ablação de um órgão doente ou de toda uma região afetada. Na sua ação destrutiva, ela influi também até certa distância, além do ponto de contato do eletrodo, por propagação do calor, cujo efeito cresce em proporção à intensidade de duração da corrente. (...) Assim, além da destruição propriamente coagulante local dos tecidos no ponto de contato do eletrodo, a diatermia possui um efeito anticanceroso, até certo limite, contra as células malignas que se acharem à pequena vizinhança da zona coagulada” (Kroeff, 1934). Kroeff e equipe realizando uma eletrocirurgia Mario Kroeff se especializaria em sua utilização e elabo- raria, em 1929, uma tese de livre-docência, para o in- gresso na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, ver- sando sobre a técnica na qual se transformaria em um grande divulgador. Em 1927, a Academia Nacional de Medicina abrigou um intenso debate sobre a utilização da nova forma de cirurgia que vinha despertando o in- teresse de diversos médicos. No ano seguinte, aportava no Rio de Janeiro o cirurgião Franz Keysser, responsável pelo aperfeiçoamento da eletrocirurgia. O alemão havia conseguido construir aparelhos muito mais potentes que 45 CONSTRUINDO UMA POLÍTICA DE CONTROLE DO CÂNCER PARA O PAÍS os já existentes e faria várias visitas ao Brasil para divul- gar – e vender – seu equipamento, obtendo grande su- cesso em seu empreendimento (Carvalho, 2006). Esse momento também inaugura as primeiras ações voltadas à formação em cancerologia e para a divulga- ção da doença no meio médico e leigo. Ainda em 1927, o médico carioca Ugo Pinheiro Guimarães – que mais tarde dirigiria o Serviço Nacional de Câncer –, com uma bolsa da Fundação Rockefeller, obteve um estágio no Memorial Hospital de Nova York, centro mais impor- tante de estudos sobre o câncer das Américas. No ano seguinte, seguiu para a Europa para ampliar ainda mais sua especialização no tema. De volta ao Brasil em 1929, empreendeu um ciclo de palestras sobre as diversas for- mas de câncer e os meios de combatê-las e passou a mi- nistrar um curso de especialização médica sobre can- cerologia na Faculdade de Medicina. Outro que se vol- tou para o ensino da cancerologia foi o já citado Firmino Vonn Doellinger da Graça, que proferiu diversas pales- tras sobre o tema na Faculdade de Medicina. Em 1929, ele foi incumbido pelo então diretor do Departamento Nacional de Saúde Pública, Clementino Fraga, de se de- dicar ao estudo do câncer, com o objetivo de dar subsí- dios ao Departamento. Logo elaborou um alentado tra- balho sobre a doença. Seu estudo tinha a forma de uma grande resenha de divulgação científica para médicos, relacionando os conhecimentos mais modernos sobre o câncer existentes no período. Seu autor apresentou-o em diversas conferências públicas, muitas das quais trans- mitidas pelo Radio Club do Brasil e pela Rádio Sociedade (Graça, 1929). Ainda em 1929, as principais sociedade médicas do Rio de Janeiro – Academia Nacional de Medicina e Socie- dade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro – resolve- ram elaborar uma programação conjunta para pôr o cân- cer em maior evidência tanto para os médicos como para o público leigo. Entre 4 e 10 de novembro de 1929, teve lugar na Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Ja- neiro a Semana do Câncer. O evento era composto de diversas atividades: duas seções especiais voltadas para a doença, nas quais reputados médicos da casa apresenta- riam trabalhos sobre o tema; reunião com os médicos de outras instituições para discussão do problema do cân- cer no País; e uma seção espacial da Academia Nacional de Medicina também inteiramente voltada para a doença. A Semana do Câncer contou com o apoio de Clementino Fraga, diretor do Departamento Nacional de Saúde Pú- blica e de Oscar Silva Araújo, então diretor da Inspeto- ria da Lepra, das Doenças Venéreas e Câncer. A Radio Club do Brasil também se voltou para o evento garan- tindo a sua propaganda. No que tange às iniciativas concretas em relação à criação de um local exclusivo para o tratamento dos doentes no Distrito Federal, os primeiros passos foram dados por Mario Kroeff, que, em 1931, iniciou a cons- trução de um pavilhão para o tratamento cirúrgico doUgo Pinheiro Guimarães, pioneiro do ensino de cancerologia no Brasil 46 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL câncer anexo ao Hospital da Triagem, depois chamado Hospital Estácio de Sá. Kroeff tirava proveito da conjun- tura favorável relacionada à chegada dos gaúchos ao poder, e assim conseguiu de seu conterrâneo, o ministro da fazenda Oswaldo Aranha, os recursos que necessitava para construir um pequeno pavilhão. Embora a obra te- nha sido concluída em 1933, o prédio, na última hora, foi destinado à outra cadeira da Faculdade de Medicina, frustrando a iniciativa de Kroeff. Somente seis anos de- pois seu projeto de criação de uma instituição totalmente voltada ao tratamento do câncer no Rio de Janeiro co- meçaria a se encaminhar, mas, antes disso, um grande evento ocorrido na capital federal chamaria a atenção para a necessidade de combate à doença e mostraria a existência de outros projetos nesse sentido. Essas iniciativas mostram que, entre o final da dé- cada de 1920 e o início da seguinte, o câncer estava na ordem do dia. Tanto no que concerne à saúde pública, como em relação aos médicos e suas organizações pro- fissionais, a doença assumia um caráter de centralidade. Toda essa movimentação se relacionou à construção da doença – primeiramente através de trabalhos que mos- travam a amplitude de sua incidência no País, o desen- volvimento de novas técnicas para o seu tratamento e a necessidade da classe médica de vinculação a uma ques- tão que no nível internacional tinha um forte destaque. Soma-se a tudo isso o fato de que, na época, a classe mé- dica dormia acalentada pela possibilidade de surgimento de um grande centro de cancerologia na capital da Repú- blica. Embora o sonho alimentado pela família Guinle, pelo Departamento Nacional de Saúde Pública e pelos médicos ligados à Fundação Oswaldo Cruz não chegasse a se realizar, aquele momento ele era o guarda-chuva que potencializava e dava sentido às iniciativas em relação à doença. Talvez por isso, em 1935, quando o projeto do hospital da Fundação Oswaldo Cruz estava prestes a naufragar, os médicos empenhados em sua realização mais uma vez buscaram reforçar a denúncia sobre a im- portância da doença e pôr em marcha novas iniciativas. Foi assim que no ano seguinte veio à luz o Primeiro Con- gresso Brasileiro do Câncer. Mario Kroeff realizando uma eletrocirurgia 49 CONSTRUINDO UMA POLÍTICA DE CONTROLE DO CÂNCER PARA O PAÍS Anais do Primeiro Congresso Brasileiro de Câncer, 1935 zação. O outro objetivo era potencializar a ação da saúde pública em relação ao câncer. Para tanto, o Congresso dedicou a sua primeira seção aos aspectos sociais da doen- ça, convidando como um dos oradores oficiais o diretor do Departamento de Saúde do Ministério da Educação e Saúde Pública, o sanitarista João de Barros Barreto. Ao lado de Jansen de Mello, que dissertou sobre a mortali- dade de câncer no País, Barros Barreto apresentou uma conferência chamada “Projeto de Luta Anticancerosa no Brasil” na qual expôs as diretrizes da saúde pública em relação ao câncer. Em sua apresentação, Barros Barreto, herdeiro dos ideais de saúde pública que animaram os anos 1920, postulava que o controle ao câncer deveria ter como base principal a prevenção. Essa deveria se dar pela propa- ganda e educação sanitária, acompanhada de medidas compulsórias que possibilitassem afastar os trabalhado- res dos riscos do câncer profissional. Alias, seu trabalho dava grande importância a esse aspecto, se mostrando como o primeiro a discutir a questão da necessidade de cuidados específicos com profissionais que lidavam com radioterapia. Acompanhando o pensamento da maio- ria dos médicos do período, Barros Barreto acentuava o valor do diagnóstico precoce para uma atuação médica bem-sucedida e a importância da atualização dos médi- cos nos conhecimentos básicos sobre a doença, como forma de alcançar esse objetivo. Também afirmava que o controle do câncer deveria ter como principais insti- tuições os centros de cancerologia. Esses abrigariam uma média de 20 leitos e teriam o recurso de diferentes am- bulatórios – ginecologia, urologia, oftalmologia etc. Para proceder aos diagnósticos, contariam com serviços de radiologia, histopatologia e outros laboratórios de exa- mes. Para o tratamento, disporiam dos serviços de radio- terapia e cirurgia. Uma originalidade de seu projeto se colocava em relação ao que ele denominava de organizações subsidiá- rias. Barreto havia se especializado na Escola de Higiene e Saúde Pública da Universidade Johns Hopkins e, se- guindo as noções da moderna saúde pública, via nos cen- tro de saúde a alma do atendimento primário e o pilar da estrutura de saúde pública. A seu ver, estes centros, que começavam a se estruturar no país, teriam um papel fundamental na defesa contra a doença, se ocupando da propaganda e do primeiro diagnóstico dos casos suspei- tos, que seriam enviados ao centro de cancerologia. Os centros de saúde também se ocupariam dos cuidados aos doentes através de suas enfermeiras visitadoras. A outra organização subsidiária aos centros de cancerologia se- riam as instituições de cuidados paliativos. Barreto assi- nalava a importância da filantropia nesse campo e pro- punha a criação de instituições que pudessem garantir o 50 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL acolhimento dos enfermos incuráveis, ao estilo da Obra do Calvário, que, desde o final do século XIX, se ocupava dessa tarefa na França. O ponto mais importante da comunicação de Bar- ros Barreto dizia respeito à criação de um centro de cancerologia no Distrito Federal. A seu ver essa ação era fundamental e deveria ser posta em prática imediatamen- te, até para servir de ponta de lança à criação de outras instituições do mesmo tipo em outras regiões. Com base na experiência paulista do Instituto Dr. Arnaldo e fa- zendo uso de uma lógica administrativa fundamentada na racionalização dos custos e na possibilidade imedia- ta de implantação dos serviços, propunha a criação do primeiro centro de cancerologia do Rio de Janeiro junto ao Hospital da Santa Casa da Misericórdia. A institui- ção seria dirigida por uma comissão composta por re- presentantes da Santa Casa, da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, do Ministério da Educação e Saúde Gustavo Capanema e outros em seu gabinete 51 CONSTRUINDO UMA POLÍTICA DE CONTROLE DO CÂNCER PARA O PAÍS Pública, da Fundação Oswaldo Cruz e da Liga Brasileira Contra o Câncer – no caso, seu fundador Ugo Pinheiro Guimarães. Cada uma das instituições envolvidas colo- caria à disposição do novo centro pessoal e equipamen- tos dos setores relacionados às necessidades da nova ins- tituição O ministério contribuiria com seus serviços de bioestatística e propaganda, com seus centros de saúde e serviço de enfermeiras visitadoras; a Santa Casa da Mise- ricórdia facilitaria a instalação do serviço no Hospital São Miguel, reservando os leitos para os doentes; e a Fa- culdade de Medicina do Rio de Janeiro trabalharia com diversas clínicas e com o serviço de radiologia. A nova instituição também contaria com recursos do Governo federal para instalações e material. Barreto encerrava seu trabalho afirmando que a esse centro de cancerologia podiam se seguir outros em hospitais do Rio de Janeiro, como o Estácio de Sá e outros que a prefeitura viesse a construir. Gustavo Capanema com funcionários do ministério. João de Barros Barreto está a sua esquerda, de terno branco 54 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL posta baseada em sua experiência de cirurgião especia- lizado em operações de casos de câncer. Apesar da disparidade do peso relativo dessas duas figuras no cená- rio nacional, a forte militância de Kroeff na busca de implantação de um centro de tratamento exclusivo do câncer na capital federal, favorecida pela chegada ao po- der de uma elite gaúcha que mantinha com ele laços de amizade e solidariedade, fez com que a política de con- trole do câncer no País, estabelecida a partir do final da década de 1930, acabasse mesclando elementos dessas duas propostas. Antonio Prudente e a proposta paulista de combate ao câncer Os estudiosos que analisaram o desenvolvimento da saúde pública no País apontam a singularidade de São Paulo nesse processo, mostrando que, durante a Re- pública Velha, esse estado prescindiu da ajuda federal em relação à saúde, procurando pôr em prática um pro- jeto autônomo para essa área (Castro Santos, 1993; Hochman, 1998). Em relação ao câncer não seria dife- rente; ainda em 1934 ele seria rascunhado pelo médico Antonio Prudente, que mais tarde viria a dirigir o Serviço Nacional de Câncer. Antonio Prudente era neto de Pru- dente de Moraes, nosso primeiro presidente civil, estu- dou medicina na Faculdade de Medicina de São Paulo e esteve na Alemanha se especializando em eletrocirurgia com o médico Franz Keysser. De volta ao País passou a se dedicar às cirurgias de reconstituição. O interesse de Antonio Prudente pelo câncer levou- o a escrever, em 1933, uma série de cinco artigos sobre o tema no jornal O Estado de S.Paulo. Seus escritos analisa- vam a freqüência do câncer no país e as várias configu- rações da doença, propondo uma política estadual para o seu controle. Sua proposta seria apresentada no I Con- gresso de Câncer de 1935, como a diretriz dos cance- rologistas paulistas para o controle da doença. Prudente postulava que o papel do Governo central no controle do câncer devia se limitar à coordenação das atividades estaduais e ao controle estatístico, aos estados ficaria a organização e manutenção de suas estruturas de controle da doença. Nesse sentido, ele postulava que a organiza- ção dos serviços de saúde paulistas deveria ter como base quatro diferentes requisitos: a facilitação do diagnósti- co precoce, a possibilidade de tratamento dos tumores segundo as técnicas mais adequadas a cada caso, a dis- ponibilidade de tratamento hospitalar e social aos can- cerosos, a pesquisa e o controle estatístico da doença nos diversos ramos da cancerologia (Prudente, 1939). Para alcançar esses objetivos, ele propunha a instauração de uma rede de nove postos voltados para o diagnóstico – de acordo com a distribuição populacional do Estado – centralizados por um instituto de oncologia na capital. Orientado para o tratamento, o centro manteria um nú- mero de leitos definido pelas estatísticas dos casos exis- tentes no Estado. Segundo seus cálculos, naquele momen- to, seria necessário implantar 240 leitos para os doentes tratáveis e 60 para abrigar os incuráveis. Caso o sistema utilizasse o trabalho das enfermeiras visitadoras na ori- entação e tratamento domiciliar, esses leitos seriam sufi- cientes para garantir o tratamento de todos os doentes do estado. O instituto de oncologia deveria se compor de um dispensário, com serviços de consultas, laborató- rio clínico e tratamento ambulato-rial; serviços de ci- rurgia, eletrocirurgia, radiodiagnóstico, radioterapia, fi- sioterapia e quimioterapia; laboratórios de pesquisa com serviços de biologia, fisioquímica, fotografia e desenho; um museu; e um anfiteatro para a implementação de cur- sos de oncologia dedicados aos médicos e de palestras voltadas ao público leigo e de seções de estatística, pro- paganda e administração. O serviço idealizado por Antonio Prudente estava baseado no que havia de mais moderno na Europa. Para geri-lo, ele imaginava a criação de uma inspetoria de combate ao câncer no âmbito do Serviço Sanitário do Estado. Tal qual a Inspetoria da Lepra, naquele momento muito ativa no Estado, essa inspetoria deveria coorde- nar as ações dos postos de diagnóstico com as do centro de cancerologia. Na impossibilidade de criação dessa nova inspetoria, Prudente propunha que as ações contra o câncer fossem dirigidas por uma sociedade composta de 55 CONSTRUINDO UMA POLÍTICA DE CONTROLE DO CÂNCER PARA O PAÍS médicos e leigos. Uma liga que se voltaria principalmente para as ações de educação e propaganda contra a doença. A partir de 1934, Antonio Prudente se convenceu que uma liga contra o câncer seria o melhor caminho para potencializar o combate à doença no Estado. Nesse sentido, ele se dedicou a obter aliados para a fundação da nova instituição. No ano seguinte atingiu seu objetivo fundando a Associação Paulista de Combate ao Câncer, que passou a ser dirigida por Antônio Cândido de Camargo, seu antigo professor da Faculdade de Medici- na de São Paulo. A associação tinha como objetivo arre- cadar fundos para a construção de um Instituto de Cân- cer na cidade de São Paulo com as finalidades principais de diagnosticar e tratar cancerosos. Também buscava desenvolver campanhas de educação, potencializar o desenvolvimento da especialização médica em relação à doença e manter intercâmbio de programas com orga- nizações similares no Brasil e exterior. Seus estatutos tam- bém indicavam o ideal de fundar centros e postos anti- cancerosos em diversas localidades do Estado, para atuar em conjunto com o Instituto do Câncer da Cidade de São Paulo (Estatutos da Liga Paulista de Combate ao Cân- cer, 1936). Após passar um longo período elaborando campa- nhas de arrecadação de fundos junto às elites econômi- cas do estado, em 1953, a Associação Paulista de Com- bate ao Câncer, em parceria com a Rede Feminina de Combate ao Câncer, criada em 1946 por Carmem Pru- dente – esposa de Antonio Prudente –, conseguiu fundar um hospital para o tratamento do câncer, o Hospital Antônio Camargo que, em 1961, passou a ser conside- rado Instituto Complementar da USP. No ano de 1973, a Associação Paulista de Combate ao Câncer passou a denominar-se Fundação Antonio Prudente, caracterizan- do-se como uma entidade filantrópica reconhecida ofi- cialmente pelo estado de São Paulo. Antonio Prudente viria a ser por duas vezes diretor do Serviço Nacional de Câncer do Ministério da Saúde. Ele faleceu em 17 de se- tembro de 1965, na cidade do Rio de Janeiro. 56 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL CAPÍTULO 4 59 MARIO KROEFF E A CRIAÇÃO DE UM ESPAÇO PARA O TRATAMENTO DO CÂNCER NO DISTRITO FEDERAL Corpo clínico e auxiliares da 15a Enfermaria da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, 1934 aos doentes, na busca de amparo social aos incuráveis e principalmente na propaganda para o diagnóstico pre- coce da doença. A ação de Kroeff na busca de uma resolução para o problema do câncer no País e, em particular, sua atua- ção na criação do Instituto de Cancerologia fizeram com que a Academia Nacional de Medicina o recebesse como membro em 1940. No ano seguinte, o Governo federal tornaria o grande sonho de Kroeff em realidade ao trans- formar o Centro de Cancerologia em um serviço de âm- bito nacional a ser por ele dirigido. O Serviço Nacional de Câncer (SNC) era o órgão central da política de con- trole da doença, cabendo-lhe o papel de organizar, ori- entar, fiscalizar e executar, em todo o país, as atividades relacionadas ao Câncer. Na direção do SNC, Kroeff se transformaria em um arauto da prevenção como a ativi- dade central em relação à doença, sendo responsável pela elaboração de diversas exposições, programações radio- fônicas e mesmo um filme que buscava levar ao público as informações necessárias sobre as formas de se prote- ger da doença. Em suas preocupações somavam-se à prevenção e ao tratamento a atenção social aos incuráveis. Com esse objetivo, reuniu fundos e conseguiu criar um Hospital Asilo para os Cancerosos Incuráveis, inaugurado no bairro da Penha em 1944 – hoje Hospital Mario Kroeff – e tra- balhou continuamente para a melhoria das condições do Hospital do Câncer. Kroeff dirigiu o SNC até 1954. Mesmo afastado do cargo administrativo, continuou a atender às solicita- 60 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL ções dos serviços que necessitavam de seus conhecimen- tos sobre a doença. Mario Kroeff faleceu em 23 de de- zembro de 1983, em Vassouras, no Estado do Rio de Ja- neiro, tendo sido sepultado nessa mesma cidade. A criação do Instituto de Cancerologia O I Congresso Brasileiro de Câncer, ocorrido na capital federal, em novembro de 1935, havia deixado a doença ainda mais em evidência no meio médico, entre as autoridades e na imprensa; afinal uma grande quan- tidade de especialistas havia vindo à cidade discutir o novo problema nacional e as possíveis formas de combatê- lo. O próprio ministro da Educação e Saúde Pública, Gustavo Capanema, tinha aberto o Congresso, no qual seu escudeiro, João de Barros Barreto, diretor do Depar- tamento Nacional de Saúde Pública, apresentou o pro- jeto oficial de combate à doença. No ano seguinte, esse clima permaneceria vivo no Distrito Federal, principal- mente em virtude de dois acontecimentos, o primeiro deles foi mais uma visita do cirurgião alemão Franz Keysser à cidade. Como já observamos, Keysser tinha • Idealizador, Fundador e 1º Diretor do Serviço Nacional de Câncer (1938 -1954) • Membro Titular da Academia Nacional de Medicina - ocupando a cadeira nº 27 • Fundador e Ex-Presidente da Associação Brasileira de Assistência aos Cancerosos • Diretor-Executivo da Fundação Napoleão Laureano • Fundador e Ex-Presidente da Sociedade Brasileira de Cancerologia • Fundador e Ex-Diretor da Revista Brasileira de Cancerologia • Ex-Presidente do Conselho Administrativo do Hospital dos Servidores do Estado • Co-Fundador do Colégio Brasileiro de Cirurgiões • Livre-Docente de Clínica Cirúrgica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro • Comendador da Ordem do Mérito desenvolvido potentes máquinas de eletrocirurgia e aper- feiçoado suas formas de utilização. Em 1931, ele havia escrito o livro Die Elektrochirurgie, sobre a nova técnica, e corria o mundo divulgando seus saberes e vendendo seus instrumentos. Embora ele já tivesse vindo ao País outras vezes, o clima pró- germânico vivenciado no período fez com que sua visita – ocorrida em agosto de 1936 – fosse tratada como um grande acontecimento; o médico foi notícia em diversos jornais e chegou a ser condecorado pelo próprio Getúlio Vargas com a Ordem do Cruzeiro (Kroeff, 1947). A visita do alemão virava os holofotes da mídia também em direção a Kroeff, já apontado pela imprensa como seu continuador. Na verdade, Keysser tinha em Kroeff seu principal aliado na propaganda de sua apare- lhagem de eletrocirurgia. Assim suas declarações à im- prensa sempre colocavam em primeiro plano o colega brasileiro, que, por seu turno, também elogiava o traba- lho do alemão num processo de valorização recíproca que favorecia o alcance dos objetivos de ambos. Poucos meses depois da visita de Keysser, Kroeff voltava a ser manchete na imprensa em virtude do lançamento de seu livro sobre a eletrocirurgia. Tratamento do Câncer pela 61 MARIO KROEFF E A CRIAÇÃO DE UM ESPAÇO PARA O TRATAMENTO DO CÂNCER NO DISTRITO FEDERAL Eletro-cirurgia era uma obra de divulgação baseada em sua tese de livre-docência, que explanava diversos aspectos desse tipo de cirurgia e sua importância nos tratamen- tos de câncer. Tal qual a visita do alemão, o livro de Kroeff fez grande sucesso, sendo comentado em diversos jor- nais e merecendo grandes elogios da classe médica em seus periódicos. O sucesso da elterocirurgia e o reconhecimento de Kroeff chamaram a atenção do inspetor dos centros de saú- de do Distito Federal, José Paranhos Fontenelle, que re- solveu aproximar a profilaxia do câncer ao rol de ativi- dades executadas nos postos de saúde. Da mesma forma que Barros Barreto, Fontenelle tinha se especializado na Faculdade de Saúde Pública da Universidade Johns Hopkins, se tornando apostolo do modelo americano de saúde pública. Sua formação o transformara num dos principais defensores do sistema distrital baseado em postos de saúde descentralizados e direcionados a uma ação preventiva, educativa e multiprofissional. Como inspetor destes centros no Distrito Federal, ele se empe- nhava em ampliar e tornar eficiente a ação destas uni- dades. Com esse objetivo, convidou Kroeff para elaborar Primeira sede do Centro de Cancerologia, 1938 64 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL texto de valorização das camadas médias urbanas e dos trabalhadores do mercado formal, o Governo criava no Distrito Federal um serviço de assistência hospitalar con- gregando os hospitais Estácio de Sá, São Francisco de Assis e Pedro II. Foi justamente no âmbito desse serviço que a lei previa a criação de um centro de cancerologia destinado à profilaxia e ao tratamento do câncer anexo ao Hospital Estácio de Sá, no Distrito Federal. A criação do Centro de Cancerologia não se enqua- draria nas diretrizes do projeto da saúde pública em re- lação à doença, esboçado por Barros Barreto, diretor do DNSP, no I Congresso Brasileiro de Câncer em 1935. Naquele momento, Barreto previa a criação de um insti- tuto do câncer pela articulação de vários serviços exis- tentes em diversas instituições do Distrito Federal. No entanto, o empenho de Kroeff junto aos membros do governo, sua estratégia de mostrar a importância de cria- ção de um centro anticanceroso como suporte à ação profilática contra a doença a ser efetuada nos postos de saúde e a necessidade de leitos para os acometidos modi- ficaram a proposta inicial da saúde pública. Após a publicação da lei criando o Centro de Cancerologia, o pavilhão em construção no Hospital Estácio de Sá recebeu novos recursos que permitiram o término das obras em maio de 1937. Seu serviço técnico contaria com 40 leitos, um ambulatório, salas de cirur- gia, de curativos e esterilização, aparelhagem de radio- diagnóstico de radioterapia, se caracterizando como um pequeno centro de tratamento (Kroeff, 1947). Em dezem- bro de 1937, em meio às tensões sociais e políticas que cercaram a instauração da ditadura do Estado Novo por Getúlio Vargas, a Portaria nº 158, do Ministério da Edu- cação e Saúde, designou Kroeff para a diretoria do Cen- tro de Cancerologia. O Centro foi inaugurado em 14 de maio de 1938, pelo presidente Getúlio Vargas, com a presença de Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde, e de Barros Barreto, diretor de seu Departamento de Saúde. O discurso de Kroeff na solenidade de inauguração informava o perfil que ele daria à instituição. Ele come- çava afirmando que o Centro não era um depósito de incuráveis, mas sim um espaço de cura em consonância com os avanços médicos no conhecimento sobre o cân- cer. Nesse sentido, os trabalhos a serem desenvolvidos na nova instituição teriam como lema a idéia de que o câncer é curável, desde que tratado precocemente. No seu jargão de antigo combatente, agora apropriado ao Esta- do ditatorial recém-instaurado, informava que as armas a serem usadas contra a doença seriam a eletrocirurgia, a radiologia e a radioterapia, permanecendo essa última no aguardo da aquisição de maiores quantidades de rá- dio para o tratamento simultâneo de um maior número de doentes. Também citava seus principais colaborado- res na nova empreitada, entre eles destacava-se o cirur- gião Alberto Coutinho, professor da Faculdade de Medi- cina e antigo colega de Kroeff na enfermaria de Brandão Filho na Santa Casa da Misericórdia. A parte mais inte- ressante de sua peça de oratória mostrava que a unidade inaugurada estava muito aquém dos objetivos de seu cria- dor, mas era o primeiro passo no sentido de criação de uma estrutura hospitalar contra a doença. De forma pro- fética, Kroeff afirmava: “Somos acanhados em face da grandeza da missão a cum- prir. Mas, este pequeno hospital, pequenino mesmo, cres- cerá por certo pelos benefícios que há de prestar. É a pri- meira pedra lançada, na construção do grande edifício; será o núcleo em torno do qual virão se juntar novas ampliações. Os trabalhadores desta casa serão, por certo, substituídos por outros de amanhã, dotados talvez de maiores aptidões. Compreendemos bem que uma organização dessa natu- reza, só pelo nome que traz, assume graves compromis- sos, até fora da nossa vida interna. Pesa-lhe a responsabi- lidade patriótica de manter acesa e profícua a colabora- ção internacional e corresponder no intercâmbio cientí- fico às suas congêneres estrangeiras” (Kroeff, 1947:68). Após a inauguração, o Instituto não começou logo a funcionar, mas, mesmo antes de entrar em atividade, Kroeff saiu a campo para formatar sua proposta de atua- ção e obter recursos suplementares para colocá-la em prática. Uma de suas primeiras iniciativas foi reunir a imprensa da capital federal para divulgar o trabalho a ser desenvolvido no centro e pedir a colaboração para 65 MARIO KROEFF E A CRIAÇÃO DE UM ESPAÇO PARA O TRATAMENTO DO CÂNCER NO DISTRITO FEDERAL Mario Kroeff e equipe de enfermagem do Centro de Cancerologia 66 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL uma campanha de propaganda contra a doença. Tirando proveito do interesse da imprensa pela fundação do Cen- tro, ele pretendia usar o poder de fogo dos jornalistas em favor da propaganda pelo diagnóstico precoce. Uma outra importante iniciativa foi dirigir-se ao grupo de médicos que liderava a fundação que pretendeu criar um hospital contra o câncer no Rio de Janeiro para home- nagear a memória de Oswaldo Cruz, e lhes solicitar os terrenos que a fundação tinha obtido para a construção do hospital. Os recursos provenientes da alienação des- ses terrenos seriam usados por Kroeff numa viagem de estudos aos Estados Unidos e na compra de rádio para Centro de Cancerologia. Reuni os jornalistas, numa entrevista coletiva, pra pedir a colaboração da imprensa na campanha contra o câncer, ora iniciada pelo governo, com a criação do Instituto de cancerologia, no Serviço de Assistência Hospitalar do Dis- trito Federal. O papel da imprensa pode ser nesse sentido de capital importância (...) Como o grande público nada sabe a respeito da doença, cumpre-nos a tarefa de difundir largamente certas noções práticas de cancerologia, por meio de conselhos e peque- nas notícias publicadas em jornais, em cartazes sugesti- vos, pregados pelos muros, em folhetos, distribuídos a granel, em conferências populares, em palestras pelo rá- dio, etc., etc., para assim, atrair os doentes a exame e tra- tamento.(...) A profilaxia do câncer fica sendo assim, em última análise uma questão de propaganda. A imprensa poderá desempe- nhar relevante serviço educacional e sanitário, se quiser colaborar conosco, com o Centro de Cancerologia, onde se encontram agora reunidos, os meios clássicos de trata- mento, para a grande massa popular. (Kroeff, 1947: 285). O Centro de Cancerologia do Hospital Estácio de Sá começaria a funcionar efetivamente no segundo se- mestre de 1938, após a obtenção de um crédito especial do ministério para atender às suas necessidades mais prementes e à contratação de pessoal técnico. Logo seus leitos foram ocupados, foi dado início às cirurgias e implementadas atividades de capacitação dos profissio- nais. Ainda em 1938, Kroeff traria ao Centro de Cance- rologia o médico alemão Wisswange, especialista em radioterapia, que estava na Argentina proferindo pales- tras sobre sua especialidade. Sua vinda fazia parte de um projeto de Kroeff de estreitar os laços com a comunidade científica alemã que na época vinha se notabilizando no desenvolvimento de técnicas de tratamento da doen- ça. No Centro de Cancerologia, Wisswange ministrou um curso sobre radioterapia aberto a todos os profissio- nais interessados no assunto. O novo espaço institu- cional também funcionaria como vitrine da atuação anticancerosa e como ponta de lança para a colocação em marcha de outras iniciativas voltadas para o combate à doença. Um bom exemplo disso foi a criação da Asso- ciação Brasileira de Assistência aos Cancerosos e seu hos- pital para cuidados paliativos no subúrbio carioca da Penha Circular, posta em marcha por Kroeff e seus cola- boradores a partir de uma visita da primeira-dama Darcy Vargas ao Centro de Cancerologia (Kroeff, 1947). Figura central na criação do Centro de Cancero- logia e, de forma mais ampla, em todo o processo de desenvolvimento de uma política de controle do câncer no País entre o final dos anos 1920 e a década de 1950, Mario Kroeff foi bastante perspicaz para compreender as mudanças que vinham ocorrendo em relação à preven- ção e ao tratamento do câncer no período, e para refor- mular suas concepções iniciais sobre o tema. Se, no iní- cio de sua carreira de cancerologista, suas propostas para o controle do câncer no País apregoavam quase que ex- clusivamente a maior utilização da eletrocirurgia, com o passar dos anos elas passaram a ter como base a cria- ção de uma rede de instituições que tratassem os doen- tes com o conjunto de tecnologias que a medicina ofere- cia, implementassem campanhas publicitárias em rela- ção à necessidade de diagnóstico precoce e que também pudessem oferecer cuidados paliativos para os desprovi- dos de recursos. Com esse propósito, ele moveu uma luta particular para ampliar as iniciativas de controle da do- ença, tanto no âmbito da instituição que dirigia como fora dela. No entanto, nem sempre suas iniciativas fruti- ficaram rapidamente, muitas vezes injunções diversas fizeram com elas tivessem de ser adiadas ou reformuladas. Assim seria com o próprio Centro de Cancerologia. Pouco tempo depois de iniciadas as atividades do 69 MARIO KROEFF E A CRIAÇÃO DE UM ESPAÇO PARA O TRATAMENTO DO CÂNCER NO DISTRITO FEDERAL Construção do Hospital dos Cancerosos, anexo ao Asilo da Penha, 1954. tado para receber os doentes incuráveis desprovidos de recursos. As palavras de nosso empreendedor mostram como foi finalizada a aquisição do imóvel que viria a ser o asilo e posteriormente abrigar o novo hospital. “O acaso aproximou-me do primeiro benfeitor, Antonio Almeida Gonzaga Jr. Pedi-lhe uma casa apropriada para os cancerosos que não tinham teto onde morrer. Ofere- ceu-me prontamente um prédio na Rua André Cavalcante. Julgando-o inadequado às finalidades previstas, propus vende-lo ao próprio doador. A resposta foi curiosa: – ‘Quanto você quer por minha casa?’ – ‘Cem contos’, res- pondi. – ‘Está fechado o negócio, não precisa de escritura, porque a propriedade se acha em meu nome’. E deu-me um cheque sem pechinchar. Com esse dinheiro, a Asso- ciação comprou, em agosto de 1943 um velho casarão iso- lado, no centro de vasto terreno, à Rua Magé 326, na Penha Circular. Ali, em 2 de fevereiro de 1944 foram inter- nados os primeiros asilados” (Kroeff, 1971:274). Inaugurado o asilo, a direção técnica foi confiada a Kroeff, que passou a acumular essa função com a de diretor do Serviço Nacional de Câncer (SNC). Era uma instituição privada e filantrópica, destinada a auxiliar o sistema de saúde, recebendo doentes incuráveis e, assim, desafogando os hospitais gerais. Inicialmente o asilo ocu- pou uma antiga construção já existente, que foi refor- mada para abrigar 15 leitos. Acabadas as festividades, o incansável Kroeff se voltou para uma nova empreitada. Agora objetivava obter rapidamente financiamento da prefeitura do Distrito Federal, da Legião Brasileira de Assistência e do próprio SNC para a manutenção do asi- lo, que até então, era feita somente com os donativos privados. A partir de 1945, seus objetivos começam a 70 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL serem encaminhados, mas ainda por meio da iniciativa filantrópica. Com a ajuda financeira do comendador José Martinelli, Kroeff consegue erguer dois pavilhões ao lado do prédio principal e um necrotério. No ano seguinte, com a morte do industrial, a fundação herda novos re- cursos, que lhe permitem ir aos poucos ampliando o nú- mero de internações. Tanto Kroeff, como Alberto Coutinho, que o substi- tuiria na direção do asilo a partir de 1949, achavam que a instituição deveria se complementar com um hospital para cancerosos erguido na mesma propriedade. Assim, com as rendas da associação e auxílios governamentais do SNC, começou-se, ainda em 1949 a construção do novo hospital. Em 1952, a associação moveria uma grande cam- panha para a sua finalização, que contou com o apoio da imprensa, de diversas instituições filantrópicas, de repre- sentantes de nossa elite econômica e, também, da popu- lação. A soma dos recursos auferidos permitiu que dois anos depois fosse inaugurado o novo hospital, agora vol- tado para o tratamento mais geral da doença. Em 1954, o hospital passou a denominar-se Hos- pital Mario Kroeff. Em tom de brincadeira, Kroeff atri- buiu a homenagem ao fato de ele ter precisado fazer uma repentina viagem aos Estados para tratar de um grave problema de saúde. Na sua ausência, os dirigentes da Asso- ciação, querendo homenageá-lo e vislumbrando seu pos- sível desenlace, resolveram rebatizar o hospital com seu nome (Kroeff, 1971). A partir da década de 1970, o Hos- pital Mario Kroeff passou a ter parte de suas rendas pro- venientes das internações pagas pela previdência social. Hoje ele se volta para diversos campos das atividades médicas, mas se mantém fiel a sua especialidade de cen- tro de referência no tratamento do câncer. Ainda man- tido pela Associação Brasileira de Assistência aos Cance- rosos (ABAC), atende diariamente entre 150 e 200 pes- soas, provenientes em sua maior parte das regiões mais carentes da cidade e de cidades próximas ao Rio de Ja- neiro. A grande maioria de seus leitos está voltada a aten- dimento ao SUS, que garante grande parte dos seus re- cursos, ainda complementados pela iniciativa filantró- pica (http://www.mariokroeff.org.br). Mario Kroeff mostrando o aparelho de eletrocirurgia à primeira dama, Sra. Darcy Vargas Mario Kroeff em visita ao Hospital dos Cancerosos da Penha 71 MARIO KROEFF E A CRIAÇÃO DE UM ESPAÇO PARA O TRATAMENTO DO CÂNCER NO DISTRITO FEDERAL ”Ao despedir-se, o Presidente acaricia meus filhos; Marina e Mariozinho”. No fundo, João Pinheiro Filho (Mario Kroeff, sd)Natal no Asilo da Penha, 1953 Visita ao Hospital dos Cancerosos da Penha, 1943 74 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL abrangência nacional. No entender do ministro Capa- nema, se o problema do câncer estava relacionado à pes- quisa científica, deveria ser sanado com a criação de uma seção no Instituto Oswaldo Cruz, voltada priorita- riamente para pesquisas nessa área. Se estivesse afeito à formação de pessoal técnico, o ideal seria a criação de cursos de cancerologia na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Se a questão tivesse como principal aspecto a assistência, a orientação do Governo era deixar esse se- tor nas mãos dos governos estaduais e das instituições filantrópicas. No entanto, a resistência do governo na criação de um instituto para o câncer seria ultrapassada pelo pro- cesso de transformações das políticas do setor saúde, possibilitando uma solução de consenso que recolo- cariam a doença no âmbito federal. Em 1941, uma nova reforma da saúde, de cunho ainda mais centralizador, reorganizava o Departamento Nacional de Saúde instau- rando 13 serviços nacionais, todos relacionados ao con- trole de doenças específicas que na época se mostravam prioritárias (Decreto lei no 3.643, de 23 de setembro). Todos os Serviços Nacionais, então instituídos, tinham sua equipe exclusiva nos estados, normas e orientações específicas, e disputavam entre si os recursos financeiros que, dependendo da conjuntura sanitária, eram mais ou menos concentrados nas ações de erradicação ou con- trole de uma determinada doença. Os serviços deveriam atuar em conjunto com as delegacias federais e com os órgãos locais, mas, em verdade, cada um deles era uma instância de poder burocrático em disputa permanente com os demais (Fonseca, 2007). Entre esses serviços, esta- va o Serviço Nacional de Câncer. A criação de um serviço nacional voltado para o controle da doença, embora ge- rasse um perfil institucional diferenciado do previsto por Kroeff, à medida que buscava ações locais – governamen- tais e filantrópicas –, em detrimento da maior valoriza- ção de um instituto central para a realização de ações contra a doença, acabaria por lhe permitir pôr em prática seu projeto de ampliação das ações contra a doença. O Serviço Nacional de Câncer incorporava defini- tivamente o câncer na pauta das ações de saúde pública. Com poderes normativos e supletivos em todo o territó- rio nacional, o Serviço era mais uma das ações da política centralizadora do Estado Novo. Muito mais do que a idéia de um centro de pesquisas clínicas e assistência aos doentes, o Ministério lhe atribuiu um perfil de ponta de lança de uma campanha permanente contra o câncer, voltada prioritariamente para os estudos epidemioló- gicos, para a prevenção, baseada na propaganda dirigida ao diagnóstico precoce e para o auxílio federal a inicia- tivas locais de criação de unidades de tratamento de doen- tes (Capanema, 1941). O Decreto que criou o Serviço Nacional de Câncer em seu artigo 2o dispunha que ele teria como objetivo orientar e controlar em todo o País a campanha contra o câncer, tendo suas ações centradas em cinco pontos prin- cipais: a investigação sobre a etiologia, a epidemiologia, a profilaxia, o diagnóstico e a terapêutica da doença; a execução de ações preventivas de natureza individual e coletiva; a propaganda das práticas dos exames periódi- cos de saúde para obtenção do diagnóstico precoce; o tra- tamento e vigilância dos recuperados; e o internamento dos cancerosos necessitados de amparo (Brasil, 1941). Essas medidas não ficariam a cargo da ação direta do Serviço; a ele cabia somente coordenar as ações das re- partições estaduais, municipais e privadas que atuassem no setor, além de patrocinar a criação de novas instituições voltadas para o câncer. Para efetivar essas ações, a nova legislação estabelecia a criação de um centro de can- cerologia no Distrito Federal e também objetivava a coo- peração com a Faculdade de Medicina na formação de profissionais para a área, por meio de cursos de especia- lização em cancerologia. O Decreto ainda fazia menção à criação de uma revista de cancerologia a ser publicada pelo novo serviço. Na semana seguinte à criação do Serviço Nacional de Câncer, Mario Kroeff foi nomeado seu diretor. Para chefes de serviço foram convidados os médicos Sérgio Lima de Barros Azevedo e Alberto Lima de Moraes Cou- tinho. O novo serviço foi organizando no Centro de Cancerologia que Kroeff dirigia no Hospital da Estácio de Sá, e contava com 11 médicos assistentes: Luis Carlos 75 O SERVIÇO NACIONAL DE CÂNCER Estrutura do Serviço Nacional de Câncer, 1944 Fonte: Kroeff, 1947 76 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL de Oliveira Junior, Jorge Marsilac Motta, Egberto Penido Burnier, Osolano Machado, João Brancroft Vianna, Eva- risto Netto Jr., Turíbio Braz, Francisco Fialho, Moacir dos Santos Silva, Antonio Pinto Vieira, Amador Correia Cam- pos. Muitos desses pioneiros cumpririam uma longa car- reira no campo da cancerologia, vindo a se transformar nos principais atores do processo de institucionalização dessa área, tanto no que concerne ao seu lado acadêmico, como em relação às políticas de saúde. Embora instituído com pompa e circunstância, o Serviço Nacional de Câncer (SNC) não teve como iniciar rapidamente o grande conjunto de atividades que seu diretor apregoava como centrais. Em seu primeiro ano de atuação, limitou-se à elaboração de um inquérito epide- miológico sobre a doença nas principais capitais do País e dar continuidade às atividades que já vinham sendo realizadas no Centro de Cancerologia. Apesar da abran- gência da legislação que agora sustentava o controle do “Membros do Corpo Clínico, técnico, de Enfermagem e Administrativo do SNC em 1953” (Mario Kroeff) 79 O SERVIÇO NACIONAL DE CÂNCER Sala de radioterapia comum aos hospitais da época localidades e de institutos mais aparelhados nos gran- des centros não foi à frente. De forma semelhante, as pou- cas verbas do Serviço impediram a rápida ampliação das atividades do instituto sede do SNC no Distrito Federal. O movimento que marcou esse início de atuação do SNC foi a progressiva vinculação de instituições vol- tadas para a doença existente nos principais estados da federação ao novo serviço, num processo que conformou a então denominada Campanha Nacional contra o Cân- cer. Em novembro de 1942, a Sociedade de Combate o Câncer do Rio Grande do Sul se vinculou à Campanha, no ano seguinte foi a vez da Associação Paulista de Com- bate ao Câncer, em 1944, a Liga Baiana de Combate ao Câncer e o Instituto do Radium de Belo Horizonte tam- bém seguiram o mesmo caminho. A incorporação des- sas instituições à Campanha Nacional contra o Câncer seria um passo importante na ação nacional integrada contra a doença. A seu modo, cada uma delas desempe- nhava ações contra a doença: o Instituto de Belo Hori- zonte, além do tratamento cirúrgico, fazia tratamentos 80 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL radioterápicos e mantinha leitos para os pacientes, já as ligas gaúcha, paulista e baiana se voltavam priorita- riamente para a propaganda de prevenção e buscavam fundos para a construção futura de centros ou hospitais de cuidados paliativos. Vinculadas à Campanha contra o Câncer, elas teriam acesso a recursos federais o que lhes possibilitavam a ampliação de seu raio de ação. Em 1944, o SNC teve seu funcionamento regula- mentado por um regimento que detalhava sua estrutura, objetivos e formas de atuação (Decreto no15971 de 14/ 07/1944). Ele previa que o Serviço seria composto de três Fonte: Bodstein, 1987:59 Estrutura do Departamento Nacional de Saúde em 1941 seções, uma administrativa e duas outras voltadas para as atividades fins: o Instituto de Câncer e a Seção de Orga- nização e Controle. O primeiro nada mais era que o Cen- tro criado por Kroeff no Hospital Estácio de Sá, que, embora seguisse efetuando importante ação de diagnós- tico e tratamento, atendendo a mais de mil pessoas a cada ano, vivia uma verdadeira via-crucis na busca de uma sede definitiva na qual pudesse efetuar seus traba- lhos em instalações adequadas. A Seção de Organização e Controle deveria estabelecer e ser responsável pelo plano – ou campanha – de controle da doença em todo o País. 81 O SERVIÇO NACIONAL DE CÂNCER Seguindo o espírito normatizador da política de saúde então vigente, deveria orientar, padronizar e uniformi- zar as atividades das instituições públicas e privadas em nível nacional. Também prestaria consultoria ao Minis- tério em relação à subvenção federal a instituições pri- vadas. Esta se faria através de convênios tripartidos, en- volvendo recursos do Ministério através do SNC, do estado no qual estava organizada e das próprias insti- tuições. Além dessas atividades, a Seção de Organização e Controle era responsável pela execução das medidas preventivas necessárias em relação à doença. Ou seja, cabia a ela a elaboração e a execução da política nacio- nal contra ao câncer. Apesar da amplitude das incumbências atribuídas ao SNC, durante todo o Estado Novo sua ação foi bas- tante tímida, tendo como principais atividades os trata- mentos clínicos e as primeiras ações de educação sanitá- ria desenvolvidas pelo Instituto de Câncer. Os relatórios do Serviço mostram que até 1945 havia sido iniciado um inquérito epidemiológico e começavam a ser postas em marcha algumas iniciativas de educação sanitária centradas na distribuição de panfletos educativos sobre a doença e em palestras radiofônicas. No campo da for- mação de pessoal técnico, o Instituto de Câncer tinha dado início a um curso de capacitação voltado para os médicos. Visando ampliar a clientela e alcançar os mé- dicos das diferentes regiões do país, esse curso oferecia bolsas para os médicos de outras regiões interessados no tema. Fora as atividades atinentes ao Instituto de Cân- cer, postas em marcha inicialmente por Kroeff e, em se- guida, por Alberto Coutinho, que em 1944 passou a di- rigi-lo, muito restava a ser feito no que concernia à exe- cução de uma política consistente contra a doença. Consolidando um projeto O ano de 1945 marca a derrocada da ditadura de Getúlio Vargas e o início do processo de democratização do País. No campo da saúde pública, essa mudança não implicou de pronto grandes alterações organizacionais, pois a estrutura criada no Estado Novo, com a reforma Capanema, permaneceria quase inalterada até a criação do Ministério da Saúde em 1953. Em relação ao câncer observamos o mesmo processo, no entanto, o período mar- ca a consolidação da forma de atuação do Estado em re- lação à doença, em que o papel governamental se cen- trava na normatização, no auxílio técnico e financeiro e na fiscalização da iniciativa privada filantrópica ou estadual conjugada a uma atuação direta centrada no Distrito Federal. Em relação ao SNC, o período também marca o início da institucionalização de suas duas ver- tentes, representadas pela Seção de Controle e pelo Ins- tituto de Câncer. A primeira, aos poucos, foi ampliando sua capacidade propositiva no campo das políticas de saúde, já o Instituto de Câncer, instalado em nova sede, começou a pôr em marcha um processo de ampliação e modernização de suas atividades que o transformaria no mais importante centro de tratamento e pesquisa sobre o câncer na América Latina. Todo esse processo, em alguma medida, se relacio- nou à capacidade dos cancerologistas de garantir o mo- nopólio em relação às propostas de políticas públicas para combate à doença e de mostrar ao Estado a impor- tância de sua atuação profissional no controle de um problema cada vem mais valorizado socialmente. Para tanto, foi fundamental a criação de espaços institu- cionais e regulamentações profissionais que os auxilias- sem na legitimação de suas proposições. A Sociedade Bra- sileira de Cancerologia, fundada em 25 de junho de 1946, na sede da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, foi central nesse projeto. Mantendo em seus quadros – e mesmo em sua presidência – médicos do SNC, ela atuou no reforço das demandas desses espe- cialistas frente ao Estado, se caracterizando como o seu principal espaço de afirmação. No que tange ao controle profissional de seu campo de atuação, os cancerologistas conseguiram em 1949 alterar o regimento do SNC, res- tringindo as chefias do Instituto de Câncer e da Seção de Organização e Controle somente a funcionários da car- reira de médico sanitarista ou por médicos extranu- merários que possuíssem certificados do Curso de Can- cerologia do Departamento Nacional de Saúde, minis- 84 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL transmitido pelas rádios Mayrink e Veiga e Nacional e publicado pelo Diário Carioca (Carvalho, 2006). A trans- missão gerou uma forte comoção popular e, além de pro- porcionar um grande número de doações para a funda- ção do Hospital Laureano, deixou o Instituto de Câncer em grande evidência. Ainda em 1951, como conseqüên- cia desse acontecimento, a Comissão de Saúde do Con- gresso Nacional chamaria Kroeff para proferir conferên- cia numa seção exclusivamente voltada para o câncer. Presidida pelo médico Jandui Carneiro, conterrâneo e amigo de Laureano, a Comissão propôs um projeto de lei concedendo um crédito de 100 milhões de cruzeiros para o SNC. Recursos que seriam utilizados no apoio às instituições de combate ao câncer nos estados, na mo- dernização do Instituto de Câncer principalmente na finalização de sua nova sede na praça da Cruz Vermelha (idem). Com os novos aportes de recursos, o Instituto de Câncer conseguiu ampliar seu pessoal e reestruturar suas atividades. A partir de 1952, ele passaria a contar com várias áreas relacionadas às especialidades médicas e ci- rúrgicas. Entre elas estavam a Seção de Cirurgia do Tórax, a Seção de Cirurgia da Cabeça e do Pescoço e um Labora- tório de Citologia vinculado à Seção de Anatomia Patológica. Esse último era chefiado por Edésio Maesse, que havia se especializado em citologia esfoliativa no Medical College da Cornell University. Ainda em 1952, seria criado o primeiro ambulatório de preven-ção do câncer ginecológico no Instituto (Marsillac, 1968). No ano seguinte, Sérgio Barros de Azevedo e Antoine Canteiro (diretor do “Ins- Hospital da Fundação Gaffreé e Guinle, fachada principal, projeto Porto d‘Ave & Haering. Enga e Archos Napoleão Laureano titute du Cancer” de Montreal) dão os primeiros passos para a introdução da pesquisa básica na instituição, ob- tendo bolsas e enviando médicos para treinamento no Canadá. Ampliando cada vez mais os convênios com insti- tuições locais e intensificando suas ação de pesquisa e tratamento em seu Instituto de Câncer, o SNC foi cami- 85 O SERVIÇO NACIONAL DE CÂNCER nhando a passos largos em seu processo de institucio- nalização. A intensificação dos ideais desenvolvimentis- tas que marcam os anos 1950 reforçaria o interesse do Es- tado no controle do câncer, favorecendo a consolidação do SNC e de seu Instituto de Câncer. No entanto, esse novo momento da “luta contra o câncer” se daria sem a pre- sença de Kroeff, que, em 1954, num processo mais geral de renovação dos quadros da saúde pública, deixaria a direção do SNC, sendo substituído por Antonio Prudente. Desenvolvimentismo e políticas contra o câncer Embora o segundo governo Vargas (1951-1954) tenha limitado sua ação em saúde pública à continuidade das atividades e arranjos institucionais forjados no Es- tado Novo, o período que se estende até o golpe de Estado de 1964 encerra importantes acontecimentos no campo da saúde pública com conseqüências para a política de controle do câncer. Um deles foi a criação do Ministério da Saúde, em 1953, que, embora se constituísse como uma antiga demanda dos sanitaristas, não significou um grande avanço para saúde, uma vez que a ele foi destinado apenas um terço dos recursos alocados no antigo Minis- tério da Educação e Saúde Pública. No âmbito mais res- trito da política de controle do câncer, a criação do Mi- nistério veio determinar a substituição de Kroeff na direção do SNC em janeiro de 1954. Num processo de renovação de dirigentes, o então ministro Miguel Couto Filho o substituiu pelo cancerologista paulista Antonio Prudente de Moraes, que permaneceria à frente do SNC por menos de um ano, passando o cargo a Ugo Pinheiro Guimarães, em 1954. Em sua curta estada à frente do Serviço, Prudente separou fisicamente o SNC do Instituto de Câncer, transferindo a sede do Serviço para o prédio ocupado pelo Ministério da Saúde no centro do Rio. Como pano de fundo dessa mudança institucional, vinha se fortalecendo uma nova forma de pensar a saú- de que passou para a história com a denominação de sanitarismo desenvolvimentista. Essa concepção, surgida nos anos 1950, se contrapunha às idéias que tinham nas grandes campanhas contra doenças específicas e no uso intensivo de tecnologias de alto custo com objetivos res- tritos a seus principais instrumentos. A idéia central de seus defensores era de que o nível de saúde de uma popu- lação estava relacionado diretamente ao grau de desen- volvimento econômico de sua região ou país. Assim, as medidas sanitárias só seriam efetivas quando acompa- nhadas de um processo mais amplo de desenvolvimento. Os sanitaristas desenvolvimentistas postulavam a cria- ção de um modelo de saúde pública, apropriado às neces- sidades do País, com ampla cobertura e uma atuação horizontal rotinizada. Essa estrutura deveria ter como base a municipalização dos serviços, deixando no nível fede- ral somente as ações de coordenação e controle. Embora grande parte dos sanitaristas compartilhasse esse diag- nóstico, nem todos apostavam nas mesmas diretrizes para a saúde. Muitos deles continuaram apoiando as ações campanhistas – relacionadas prioritariamente a doen- ças transmissíveis e baseadas em atividades específicas de curta duração. Essas práticas ocupariam lugar de des- taque nos anos 1950, incrementadas pelos promissores avanços científicos no campo da imunização e da des- truição de vetores e pelo incentivo das agências inter- nacionais de saúde como a OPS e posteriormente a OMS. Em relação ao câncer, essas formas de pensar a saú- de implicavam concebê-lo como um problema de saúde pública, passível de controle pela contínua prevenção associada a ações curativas de base local. Para os cancero- logistas, esse encaminhamento seria muito mais factível e eficaz do que o simples investimento em tecnologia e em ações curativas pelo poder central. A ampla aceitação social dessa diretriz foi facilitada pelo processo de forta- lecimento dos cancerologistas observado inicialmente com a criação do curso de cancerologia no Instituto de Câncer e, no período em tela, pela criação da Sociedade Brasileira de Cancerologia (1946) e pela reunião do Con- gresso Internacional do Câncer em São Paulo, em 1954. Essas instituições e eventos apontavam que o caminho do controle do câncer no país passava por uma forte ação do Estado na orientação e supervisão das ações da ini- ciativa privada, na suplementação de recursos a essas ins- 86 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL Construção do edifício que abrigaria o Instituto Nacional de Câncer, na praça Cruz Vermelha 89 O SERVIÇO NACIONAL DE CÂNCER pobreza e conseqüentemente à saúde. Em relação ao con- trole do câncer, Juscelino destinou maiores recursos ao SNC, possibilitando a ampliação das verbas destinadas às instituições privadas filantrópicas ou dos estados que se vinculavam ao Serviço. Essa iniciativa fazia parte de uma diretriz de aumento dos gastos com a medicina hos- pitalar, e com a previdenciária em geral, que foi posta em prática no final do seu governo com a aprovação da Lei Orgânica da Previdência Social. Juscelino Kubitschek ficaria identificado com o controle do câncer no País por ter inaugurado a sede pró- pria do Instituto de Câncer na praça da Cruz Vermelha. Fruto de uma longa luta de Mario Kroeff e de seus cole- gas cancerologistas, o hospital da Cruz Vermelha, en- fim, proporcionaria ao Instituto de Câncer instalações adequadas a suas atividades, que, desde a sua instalação nas dependências do Hospital Gafreé Guinle vinham se tornando mais complexas. Meses antes da inauguração, Juscelino já havia estado no Instituto pra inaugurar sua primeira bomba de cobalto, importante instrumento no tratamento do câncer. Em agosto de 1957, ele retornaria ao instituto para descerrar sua placa de inauguração. O discurso que proferiu na ocasião assinalava que a doen- ça era uma ameaça ao desenvolvimento e reforçava a importância dada ao Instituto como elemento central da organização anticancerosa e a necessidade de amplia- ção da rede hospitalar de tratamento da doença (Kubits- chek, 1958:12). Com a inauguração do novo prédio, o Instituto passou a contar com instalações de primeira linha. Trata- va-se de um monobloco de 11 andares com capacidade para 350 leitos, no qual seriam instalados os serviços especializados. Mais que uma mudança de endereço, a nova sede representava um reforço do compromisso dos cancerologistas do Instituto com seu projeto em relação ao câncer. O discurso de Ugo Pinheiro Guimarães na so- lenidade de inauguração do prédio deixa claro a diretriz que deveria ser perseguida nesse sentido. “Nosso instituto dispõe de quanto existe de mais avança- do para atingir essa finalidade. No âmbito da terapêutica, ao lado das seções cirúrgicas e odontológicas, dotadas de todo o material, possuímos a bomba de cobalto 60, oito aparelhos de radioterapia de alta e baixa voltagem, três gramas de rádio bem distribuído. Agentes quimiotera- pêuticos de valor cientificamente comprovados são utili- zados. Cultivar-se-á, de mais em mais a experimentação clínica e experimental, para o que tenho distribuído crescentes re- cursos. Deste modo, não nos esquecemos que o problema do câncer não é apenas médico, mas de biologia, abran- gendo as complexas cogitações da genética, da biofísica, da bioquímica, da hormonologia, da imunologia, entre outros. Aplicaremos e refinaremos, pelo regime de bolsas de estudo e de residência o preparo dos técnicos, função que o SNC se orgulha de vir executando. Esperamos que nosso Instituto, desempenhando sua mis- são, seja um foco de irradiação de conhecimentos, de pa- dronizações técnicas, de progresso em múltiplo sentido, médico, de enfermagem e mesmo de administração hos- pitalar” (Guimarães, 1958). Junto com a inauguração do novo prédio, o Insti- tuto elaborou uma proposta de regimento para seu fun- cionamento. O documento procurava tornar legal uma organização já existente. Ele previa a divisão do Instituto em seis divisões: Conselho Técnico-Administrativo; Cen- tro de Estudos e de Ensino; Serviço de Pesquisa e Expe- rimentação; Divisão de Medicina e Cirurgia; Serviço de Administração e Manutenção e Secretaria. A Divisão de Medicina e Cirurgia era um dos espaços centrais da ins- tituição, responsável pelos diagnósticos e tratamentos efetuados na parte hospitalar. Ela se subdividia nos ser- viços de clinica médica, cirurgia especializada, radiote- rapia, radiodiagnóstico, laboratório, enfermagem, rea- bilitação e assistência social e diretoria. Cada um desses serviços contava com diferentes seções especializadas, como as de oncologia pediátrica, de mastologia, de gine- cologia e de citologia, criadas quando da inauguração do novo prédio e as de estatística e arquivo médico e a de tecidos conectivos, incorporadas no ano seguinte. A ou- tra importante divisão, de Pesquisa e Experimentação se subdividia nos serviços de biologia e química e na seção de radiobiologia. Ela seria instituída, em 1958, pelo pes- quisador Sérgio Barros de Azevedo. 90 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL Serviço de Pesquisa do Instituto Nacional de Câncer, em 1958 O presidente Juscelino Kubitschek durante a inauguração do Instituto de Câncer. Ao lado, Ugo Pinheiro Guimarães As novas instalações do Instituto de Câncer mar- cam o início de uma nova fase de sua história. Bem apa- relhado e contando com uma equipe médica de mais de cem pessoas, o Instituto se caracterizava como a maior instituição do gênero na América Latina, exercendo múltiplas atividades no campo do controle, pesquisa e da formação profissional. Sua rápida consolidação se deu num período favorável, onde o orçamento para o Servi- ço Nacional de Câncer foi constantemente ampliado com o objetivo de controlar uma doença de índices preocupantes que chamava a atenção dos poderes públi- cos por ser considerada um entrave ao processo de de- senvolvimento do País (Bodstein, 1987). No entanto, essa conjuntura promissora não impediu que na década se- guinte o Instituto passasse por novos reveses. As campanhas educativas como protagonistas da prevenção Data do final da década de 1910 o surgimento das primeiras práticas educativas em saúde no País. Nesse momento, nossos sanitaristas, antenados com as con- cepções de saúde pública americanas, popularizadas pela Fundação Rockefeller, passaram a ter nessas atividades uma alternativa às autoritárias ações de saúde baseadas principalmente na imposição de medidas obrigatórias a uma população passiva. Inicialmente votadas para a popularização da prevenção de doenças evitáveis pela incorporação de hábitos simples, a educação em saúde logo se ampliaria em diversos campos, dando origem a profissões práticas e instituições de saúde específicas. Enfermeiras visitadoras, exames periódicos, postos de saúde passam a ser os novos instrumentos de uma saúde pública cada vez mais voltada para uma postura ativa da população pronta a assimilar os preceitos saudáveis pela educação. Nesse contexto, Mario Kroeff fez sua entrada no mundo da saúde pública, ainda como inspetor sanitário da Inspetoria da Lepra, Doenças Venéreas e Câncer. Sua passagem nesta seção do Departamento Nacional de Saú- de Pública, fortemente empenhada em ações educativas 91 O SERVIÇO NACIONAL DE CÂNCER A política de controle do câncer na visão do candidato à presidência da República Juscelino Kubitschek (...) Desejo chamar-lhes a atenção para um novo problema de saúde que não é apenas nosso, mas de todos os povos civilizados – o problema do câncer. Basta pronunciar essa palavra para sentirmos uma verdadeira repulsão. É uma doença que ninguém gosta de ouvir falar e que enche o homem de pavor. Sendo, assim, implacável e amedrontadora, zombando em quase todos os casos dos poderes atuais das ciência, isso é mais um motivo para discuti-la e tratar da melhor maneira de combatê-la. É uma doença horrível, traiçoeira e quase sempre inapelável. Parece que devemos olhar o câncer de frente, com decisão corajosa. Tratar de vencê-lo e não deixar que ele nos aterrorize e vença. Como podemos cruzar os braços sabendo que o Brasil deve ter cerca de 103 mil cancerosos, registrando-se anualmente cerca de 72 mil casos novos e 36 mil mortes. Para esses doentes, contamos apenas com 500 leitos prontos e 1.300 em construção, quando precisamos de 4 mil! Podemos cruzar os braços, podemos deixar de falar desse problema porque mete medo, porque é desagradável? De modo algum, sobretudo sabendo-se ser o câncer muitas vezes curável, quando sob diagnóstico precoce. Para combatê-lo, portanto, reduzindo seus efeitos, cumpre ao Governo promover inicialmente ampla campanha educativa, destinada a ensinar a todos noções fundamentais sobre o câncer. Ensinar ao povo que a descoberta do câncer ou da lesão pré-cancerosa é essencial na profilaxia da doença; que o tratamento do seu início é o principal fator para a prevenção da morte prematura; que a doença não é irremediável, nem incurável, mas a sua profilaxia requer ativa cooperação do paciente do seu médico particular e dos serviços centrais de diagnóstico precoce e tratamento. Essa campanha educativa intensa poderá particularizar certos aspectos – ensinar a reconhecer as primeiras manifestações das anormalidades que podem predispor ou já realmente constituem um câncer em princípio de evolução; fazer com que as pessoas aprendam a procurar competente orientação médica, logo que apareça o mais precoce dos sinais de câncer ou de lesão pré-cancerosa. Para os bons resultados dessa campanha, será preciso dotar o Brasil do aparelhamento necessário. Deverá haver centros de diagnóstico, localizados em pontos estratégicos de fácil acesso. Na maior parte dos casos, esses dispensários exigirão o apoio financeiro do governo e deverão ser orientados por especialistas. Os pacientes serão encaminhados aos dispensários por seus médicos particulares, e os serviços prestados devem ser gratuitos. A hospitalização do canceroso é um condicional para o tratamento pronto e adequado. Devem ser previstos também os meios para que cada assistência seja gratuitamente prestada a pessoas que não possam arcar com as despesas. É também recomendável que os hospitais gerais disponham dos recursos necessários ao tratamento do câncer, compreendendo rádio, raios X e instalações cirúrgicas. Alguns hospitais localizados em centros estratégicos poderão ser equipados com aparelhamentos mais especializados, como por exemplo a radioterapia. Tudo isso visa aparelhar-nos convenientemente na luta contra o mal. Nossa rede hospitalar, os centros para diagnóstico e tratamento do câncer estão aumentando com o impulso dado pela Campanha Nacional do Câncer, que cada dia maior cooperação vem recebendo das classes e do povo. Mas estamos ainda longe de ter um aparelhamento à altura das nossas necessidades. (...) O câncer será vencido no mundo e no Brasil, com tanto maior rapidez quanto maior a coragem e serenidade com que o enfrentarmos. O que um Governo não pode fazer é voltar-lhe as costas, por seus aspectos amedrontadores ou desagradáveis. Deve olhá-lo de frente, sem temor, certo de que, mais tarde ou mais cedo, mais cedo talvez do que se pensa, a ciência e o Brasil o possam vencer definitivamente”. Programa de saúde pública do candidato à Presidência da República Juscelino Kubitschek 1955 Presidente Juscelino Kubitschek discursando na solenidade de inauguração do Instituto Nacional de Câncer, 1957 Presidente Juscelino Kubitschek na inauguração do Instituto Nacional de Câncer, 1957 94 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL 95 O SERVIÇO NACIONAL DE CÂNCER Propaganda americana de prevenção do câncer. Nova York, década de 1940 À esquerda, cartazes educativos do SNC da década de 1940 pelo próprio Mario Kroeff. Também voltado para a di- vulgação dos diversos aspectos da doença, visando à pro- moção do seu diagnóstico precoce, a película seria apre- sentada em seções especiais de alguns cinemas do Distrito Federal, Bahia, São Paulo e Rio Grande do Sul (idem). Mas Kroeff não estava sozinho, nem era pioneiro nas ações de educação em saúde em relação ao câncer. Muito em voga nos Estados Unidos nos anos 1930, essas iniciati- vas, no Brasil foram fortemente incentivadas por Anto- nio Prudente, que, através da Associação Paulista de Combate ao Câncer, criou diversas atividades educativas voltadas para o câncer, que também funcionavam como formas de incentivar a arrecadação de fundos para a fun- dação de um hospital para a Associação. Ainda em 1946, Prudente instituiu em São Paulo a “Campanha contra o Câncer” visando ampliar a propaganda sobre a doença. Nesse momento, além de uma grande distribuição de panfletos explicando a doença e as formas de preven- ção, foi montada uma exposição sobre a doença no cen- tro da cidade de São Paulo, que obteve grande sucesso de público. Seguindo os passos de Prudente, em novembro de 1948, Kroeff inauguraria a primeira campanha educativa contra do SNC. Ele tinha em mente criar uma progra- mação nos moldes do mês do câncer – evento realizado a cada mês de abril pela American Cancer Society, que patrocinava ações educativas voltadas para a doença em todos os Estados Unidos. Há muito querendo investir nessa atividade, mas sem ter recursos governamentais para implantá-la, ele conseguiu obter auxílio do Jockey Club e alugou uma loja na região central do Distrito Federal para montar uma exposição. A mostra era com- posta de fotografias e desenhos elaborados pelo artista gráfico John Rabong especialmente para esse fim. Em diversos painéis eram apresentadas imagens sobre os di- versos tipos de cânceres, localização no corpo, regiões geográficas de maior incidência etc. Um alto-falante es- condido explicava ao público os temas abordados nos painéis. No centro do salão foi instalada uma barrica destinada a receber doações do público me favor do asilo da Penha. 96 O INCA E O CONTROLE DO CÂNCER NO BRASIL
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