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A teoria queer e a sociologia, Notas de estudo de Sociologia

Artigo que propõe uma análise dos Estudos Culturais, e mais especificamente da teoria queer, à luz da sociologia.

Tipologia: Notas de estudo

2011

Compartilhado em 07/03/2011

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Baixe A teoria queer e a sociologia e outras Notas de estudo em PDF para Sociologia, somente na Docsity! SOCIOLOGIAS150 Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 21, jan./jun. 2009, p. 150-182 A DOSSIÊ A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização RICHARD MISKOLCI* Resumo Originada a partir dos Estudos Culturais norte-americanos, a Teoria Queer ganhou notoriedade como contraponto crítico aos estudos sociológicos sobre minorias sexuais e à política identitária dos movimentos sociais. Baseada em uma aplicação criativa da filosofia pós-estruturalista para a compreensão da forma como a sexualidade estrutura a ordem social contemporânea, há mais de uma década debatem-se suas afinidades e tensões com relação às ciências sociais e, em particular, com a Sociologia. Este artigo se insere no debate, analisa as similarida- des e distinções entre as duas e, por fim, expõe um panorama do diálogo presente que aponta para a convergência possível no projeto queer de criar uma analítica da normalização. Palavras-chave: Teoria Queer. Sociologia. Sexualidade. Diferenças. Michel Foucault. Analítica da normalização. Teoria Queer emergiu nos Estados Unidos em fins da déca- da de 1980, em oposição crítica aos estudos sociológicos sobre minorias sexuais e gênero. Surgida em departamen- tos normalmente não associados às investigações sociais - como os de Filosofia e crítica literária - essa corrente teóri- ca ganhou reconhecimento a partir de algumas conferências em Universi- dades da Ivy League, nas quais foi exposto seu objeto de análise: a dinâmica * Professor do Departamento de Sociologia da UFSCar. Doutor em Sociologia pela USP. Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 21, jan./jun. 2009, p. 150-182 SOCIOLOGIAS 151 1 Refiro-me aqui à coletânea editada pelo sociólogo Steven Seidman para a coleção Twentieth- Century Social Theory. Malden, Blackwell, 1996. 2 Durante a década de 1990, a Sociologia canônica começaria a valorizar o estudo da sexualidade a partir de obras como As Transformações da Intimidade: Sexualidade, Amor e Erotismo nas Sociedades Modernas (1992) de Anthony Giddens e A Dominação Masculina (1998) de Pierre Bourdieu. Não por acaso, estas obras buscam reorganizar toda uma bibliografia externa à disciplina, a partir dos edifícios teóricos de cada um dos autores. Ao invés de inovação, revelam-se tentativas de recuperar o passo perdido no estudo da sexualidade, mas sem necessariamente reconhecer sua centralidade para a análise sociológica. da sexualidade e do desejo na organização das relações sociais. A tensão crítica com relação às ciências sociais impulsionou o empreendimento queer e o estabelecimento de um diálogo que já era patente quando, em uma coleção de livros sobre teoria social contemporânea, figurou o título Queer Theory/Sociology (1996).1 O diálogo entre a Teoria Queer e a Sociologia foi marcado pelo estranhamento, mas também pela afinidade na compreensão da sexualida- de como construção social e histórica. O estranhamento queer com relação à teoria social derivava do fato de que, ao menos até a década de 1990, as ciências sociais tratavam a ordem social como sinônimo de heterossexualidade. O pressuposto heterossexista do pensamento socioló- gico era patente até nas investigações sobre sexualidades não-hegemônicas. A despeito de suas boas intenções, os estudos sobre minorias terminavam por manter e naturalizar a norma heterossexual. Os primeiros teóricos queer rejeitaram a lógica minorizante dos estu- dos socioantropológicos em favor de uma teoria que questionasse os pres- supostos normalizadores que marcavam a Sociologia canônica.2 A escolha do termo queer para se autodenominar, ou seja, um xingamento que deno- tava anormalidade, perversão e desvio, servia para destacar o compromisso em desenvolver uma analítica da normalização que, naquele momento, era focada na sexualidade. Foi em uma conferência na Califórnia, em fevereiro de 1990, que Teresa de Lauretis empregou a denominação Queer Theory SOCIOLOGIAS154 Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 21, jan./jun. 2009, p. 150-182 suplementaridade é o efeito da interpretação porque oposições binárias como a de hetero/homossexualidade, são reatualizadas e reforçadas em todo ato de significação, de forma que estamos sempre dentro de uma lógica binária que, toda vez que tentamos quebrar, terminamos por reins- crever em suas próprias bases. 8 A partir das contribuições acima, teóricos como Eve K. Sedgwick, David M. Halperin, Judith Butler e Michael Warner começaram a empreender análises sociais que retomavam a proposta de Foucault, ao estudar a sexuali- dade como um dispositivo histórico do poder que marca as sociedades ocidentais modernas e se caracteriza pela inserção do sexo em sistemas de unidade e regulação social (FOUCAULT, 2005, p.99-100).9 Os estudos “queer” sublinham a centralidade dos mecanismos sociais relacionados à operação do binarismo hetero/homossexual para a organização da vida social contemporânea, dando mais atenção crítica a uma política do conhecimen- to e da diferença. Nas palavras do sociólogo Steven Seidman, o queer seria o estudo “daqueles conhecimentos e daquelas práticas sociais que organi- zam a ‘sociedade’ como um todo, sexualizando – heterossexualizando ou homossexualizando – corpos, desejos atos, identidades, relações sociais, conhecimentos, cultura e instituições sociais”. (SEIDMAN, 1996, p.13) Os teóricos queer compreendem a sexualidade como um dispositivo histórico do poder.10 Um dispositivo é um conjunto heterogêneo de discursos 8 Em sintonia com as reflexões de Derrida encontra-se um dos trechos fundadores da reflexão queer na afirmação foucaultiana: “Não se deve fazer divisão binária entre o que se diz e o que não se diz; é preciso tentar determinar as diferentes maneiras de não dizer, como são distribuídos os que podem e não podem falar, que tipo de discurso é autorizado ou que forma de discrição é dirigida a uns e outros. Não existe um só, mas muitos silêncios e são parte integrante das estratégias que apóiam e atravessam os discursos”. (FOUCAULT, 2005, p.30) 9 A lista de teóricos queer é extensa e há nomes difíceis de situar, como é o caso da antropóloga cultural Gayle Rubin. Seu texto Thinking Sex (1984) é uma das referências queer, mas a autora se distancia de objetos de análise textual e de vários procedimentos metodológicos a eles associados. Seu posicionamento crítico com relação ao queer é perceptível na entrevista concedida a Butler (2003). 10 Segundo Foucault: “A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não à realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à grande rede da superfície em que Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 21, jan./jun. 2009, p. 150-182 SOCIOLOGIAS 155 a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder”. (2005:100) 11 Dispositivo é: “um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos”. (FOUCAULT, 2006, p.244) e práticas sociais, uma verdadeira rede que se estabelece entre elementos tão diversos como a literatura, enunciados científicos, instituições e propo- sições morais.11 Oriundos predominantemente dos Estudos Culturais, os teóricos queer deram maior atenção à análise discursiva de obras fílmicas, artísticas e midiáticas em geral. A investigação da emergência da forma contemporânea como lida- mos com a sexualidade foi empreendida por Eve Kosofsky Sedgwick em seu livro Between Men: English Literature and Male Homosocial Desire (1985), obra em que o autor não se prendia a uma discussão de gênero (marcada pelo heterossexismo da oposição homens versus mulheres) nem a uma perspectiva dos estudos de minorias (gays e lésbicas). Sua proposta era mais ambiciosa: demonstrar que a dominação das mulheres é associada à rejeição das relações amorosas entre homens. A misoginia e a homofobia se revelam interdepentendes. Ao estudar os triângulos amorosos nos ro- mances ingleses do século XIX, a díade homo/heterossexualidade emergiu não mais como uma oposição excludente, antes como necessariamente relacionada. Sedgwick afirmou que certas formas de dominação homossocial, em especial a do presente, dependem do repúdio a laços eróticos entre homens e na projeção deles em uma figura estigmatizada: o homossexual. Uma reflexão da pesquisadora feminista Joan W. Scott resume bem a descoberta de Sedgwick: Não apenas a homossexualidade define a heterosse- xualidade especificando seus limites negativos, e não SOCIOLOGIAS156 Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 21, jan./jun. 2009, p. 150-182 12 A primeira teórica a empregar o termo foi a feminista norte-americana Adrienne Rich em um ensaio de 1980 publicado em 1986 com o título “Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence”. apenas a fronteira entre ambas é mutável, mas ambas operam dentro das estruturas da mesma ‘economia fálica’ – uma economia cujos fundamentos não são le- vados em consideração pelos estudos que procuram apenas tornar a experiência homossexual visível. [...] Teorizado desta forma, homossexualidade e heterosse- xualidade trabalham de acordo com a mesma econo- mia, suas instituições sociais espelhando uma à outra. [...] Na medida em que esse sistema constrói sujeitos de desejo (legítimos ou não), simultaneamente estabe- lece-os, e a si mesmos, como dados e fora do tempo, do modo como as coisas funcionam, com o modo que inevitavelmente são. (SCOTT, 1998, p.303-304) Sedgwick deu o pontapé inicial para a compreensão de que a ordem social contemporânea não difere de uma ordem sexual. Sua estrutura está no dualismo hetero/homo, mas de forma a priorizar a heterossexualidade por meio de um dispositivo que a naturaliza e, ao mesmo tempo, torna-a com- pulsória. Em resumo, a ordem social do presente tem como fundamento o que Michael Warner denominaria, em 1991, de heteronormatividade. O dispositivo de sexualidade tão bem descrito por Foucault em sua gênese ganha, nas análises queer, um nome que esclarece tanto a que ele direciona à ordem social como seus procedimentos neste sentido. A heteronormatividade expressa as expectativas, as demandas e as obrigações sociais que derivam do pressuposto da heterossexualidade como natural e, portanto, fundamento da sociedade (CHAMBERS, 2003; COHEN, 2005, p.24) Muito mais do que o aperçu de que a heterossexualidade é compulsória,12 a heteronormatividade é um conjunto de prescrições que fundamenta processos sociais de regulação e controle, até mesmo aqueles que não se relacionam com pessoas do sexo oposto. Assim, ela não se Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 21, jan./jun. 2009, p. 150-182 SOCIOLOGIAS 159 pós-colonial, passou a designar qualquer grupo que, submetido a outro, adota uma postura hegemônica. Não se trata, portanto, de propor uma mudança de perspectiva dentro dos pólos Ocidente/Oriente, mas de explorar a interdependência que funda aparentes oposições. 16 Refiro-me a Subaltern Studies Reader (1988) no que concerne aos Estudos Pós-Coloniais e, na vertente queer, a Fear of a Queer Planet organizado por Michael Warner em 1993. danças profundas de meados do século XX, quando problemáticas surgidas fora da Academia e, muitas vezes, em confronto com a dinâmica institucional que passara a reger as disciplinas, foram reconhecidas pelos Estudos Cultu- rais britânicos. Foram eles os primeiros a refutarem distinções hierárquicas que distinguiam cultura erudita e popular e a proporem investigações sobre a experiência dos grupos sociais historicamente subalternizados e explora- dos (MATTELART e NEVEU, 2004). Stuart Hall afirma que a origem dos Estudos Culturais se deveu a uma oposição crítica às versões economicistas do marxismo vigente entre o final da década de 1950 e a seguinte no contexto acadêmico britânico (HALL, 2003). Assim, os estudos subalternos nascem do marxismo, mas em oposi- ção a certa corrente ortodoxa que se tornara hegemônica, ao mesmo tem- po em que deixava de responder às demandas de grupos sociais de sua época, inicialmente operários, aos quais se somaram os imigrantes, negros, mulheres e homossexuais. Os Estudos Culturais foram tão profícuos e bem-sucedidos que geraram as subdivisões dos Estudos Pós-Coloniais e da Teoria Queer. O nascimento da primeira costuma ser associado à publicação, em 1978, de Orientalismo de Edward W. Said, enquanto a segunda receberia seu impulso criador com Between Men de Eve K. Sedgwick em 1985. A primeira coletânea popular dos Estudos Pós-Coloniais foi publicada em 1988 ao passo que a da Teoria Queer aconteceu em 1993.16 Emergindo quase ao mesmo tempo, há tanto conexões quanto tensões entre eles neste período inicial. As demandas feministas, de imigrantes de ex-colônias, de movimen- tos negros e homossexuais impulsionariam empreendimentos científicos SOCIOLOGIAS160 Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 21, jan./jun. 2009, p. 150-182 que colocaram em xeque formas canônicas de compreender as desigualda- des sociais. Assim, em um movimento que os impulsionou e renovou, os Estudos Culturais geraram subdivisões focadas em formas particulares de opressão. Segundo Beatriz Preciado: A crítica pós-colonial e queer responde, em certo senti- do, à impossibilidade de o sujeito subalterno articular sua própria posição dentro da análise da história do marxismo clássico. O lócus da construção da subjetivi- dade política parece ter-se deslocado das categorias tra- dicionais de classe, trabalho e da divisão sexual do tra- balho, para outras constelações transversais como po- dem ser o corpo, a sexualidade, a raça, mas também a nacionalidade, a língua, o estilo ou, inclusive, a lingua- gem. (2007, p.383) Ainda que a Teoria Queer costume ser associada ao estudo do desejo e da sexualidade, nos últimos anos intensificaram-se as formas como estudos nesta linha, apontando para a articulação de múltiplas diferenças nas práticas sociais. Daí interpretações contemporâneas do queer como uma resposta crítica à globalização e aos modelos norte-americanos de identidade sexual hetero, mas também do feminismo liberal e da cultura gay integracionista (PRECIADO, 2007, p.387), em outras palavras, como uma teoria que resiste à americanização branca, hetero-gay e colonial do mundo (Ibidem, p.400). Na compilação de estudos queer intitulada What´s Queer about Queer Studies Now? (ENG, HALBERSTAM e MUÑOZ, 2005), manteve-se a oposi- ção crítica aos projetos minoritários – quer sejam políticos ou teóricos – mas ganhou força a compreensão do queer como metáfora sem um referente fixo. Não é mais garantido que a sexualidade seja o eixo principal de proces- sos sociais que marcaram e ainda moldam as relações sociais, mas, ao contrá- rio, emerge a idéia de um ponto nodal de intersecções de diferenças. Michael Warner observara, no início da década de 1990, que o multiculturalismo quase sempre pressupunha uma organização étnica da Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 21, jan./jun. 2009, p. 150-182 SOCIOLOGIAS 161 17 Sobre estes paradoxos consulte os instigantes estudos de Sedgwick sobre o regime do armário (1990, 2007). Na última coletânea queer intitulada After Sex? On Writing Since Queer Theory (2007) é visível o consenso de que Epistemology of the Closet (1990) é o marco fundador desta corrente teórica. 18 No Brasil, esta proposta de estudos associados de categorias foi sintetizada por Safiotti (1992). identidade (mesmo que dentro do essencialismo estratégico teorizado por Spivak) que se baseava em valores como família, língua e tradição. A Teoria Queer não tem nem ambiciona ponto de apoio similar. Enquanto os estudos da diáspora se apóiam, em maior ou menor grau, na existência de uma ori- gem cultural e/ou étnica alternativa a que podem recorrer, o queer lida com sujeitos sem alternativa passada nem localização presente, daí frases como “estamos em toda parte” ou “estranhos internos à sociedade” que demons- tram paradoxo de presença e invisibilidade, internalidade e exclusão.17 A linguagem do multiculturalismo traduzida na aliança teórica que apre- goava o estudo associado de raça, classe e gênero era, segundo Warner, uma fantasia de identidades que seriam visivelmente representadas em paralelo, tradução de um desejo político etnicizante que alguns queer ironizaram como a Teoria do Arco-Íris.18 Na década de 1990, compreendia-se que diferentes formas de opressão se relacionavam, daí a afirmação popular em movimen- tos sociais identitários: “Racismo, Sexismo, Homofobia: trace as conexões”. Ainda que as conexões fossem incontestáveis, também era inegável que elas podiam ser estudadas ou confrontadas politicamente, em separado. Raça, classe e gênero se apresentavam como formas diferentes e particulares de organizar as pessoas em resposta a diferentes formas de poder. Recentemente, as alianças esboçadas entre os Estudos Pós-Coloniais e a Teoria Queer parecem renascer a partir de um nó da intersecção: aque- le formado pelas categorias sexualidade e raça. Não se trata apenas de aliança estratégica, mas de certo consenso de que as formas de opressão priorizadas por cada linha de pesquisa em particular são interdepentendes em um mesmo processo de racialização do sexo e sexualização da raça, SOCIOLOGIAS164 Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 21, jan./jun. 2009, p. 150-182 Quer na Antropologia ou na Sociologia, a disciplinarização brasileira dos estudos sobre sexualidade contribuiu tanto para sua reconhecida sofis- ticação quanto para a incorporação seletiva e parcial das contribuições das chamadas teorias subalternas. No que concerne à Sociologia, até recente- mente ela não era um campo disciplinar acolhedor para investigações que lidavam com temas e fontes teóricas como os Estudos Culturais, Pós-Colo- niais e a Teoria Queer. As razões exigiriam um estudo à parte, mas provavel- mente se relacionam a fatos como o de ser marcada por um intercâmbio intelectual predominante com a Academia Francesa, que, nas últimas déca- das, revelou-se refratária a fontes teóricas “estrangeiras”.20 A discussão que segue focará no debate, principalmente a partir do contexto norte-americano, no qual o diálogo se dá predominantemente entre a Sociologia e a Teoria Queer. Assim, contarei com o engajamento reflexivo do/a leitor/a para preencher as lacunas que vierem a restar sobre as particularidades de nossa realidade acadêmica e institucional. Os clássicos da Sociologia não deram a devida atenção aos esforços para organizar corpos, prazeres e desejos, de forma a constituir identidades sexuais ou de gênero como parte do processo de modernização que origi- nou a sociedade contemporânea (cf. PARKER, 1993; FERGUSON, 2004). Na vertente alemã, Georg Simmel e Max Weber atribuíram relevância à vida sexual em estudos esparsos que a apresentam como força subjetiva dentro da dinâmica das relações sociais. Norbert Elias, por sua vez, também não reconhece sua centralidade e apresenta apenas como integrante do processo civilizador.21 Na vertente norte-americana, William Thomas escre- 20 Mattelart e Neveu (2004) referem-se ao fechamento francês aos Estudos Culturais como sinal de provincianismo. Beatriz Preciado (2007), teórica espanhola radicada na França, analisa a ausência de interesse em traduzir os teóricos queer ou de dialogar com eles como produto do contexto xenofóbico e da tentativa de preservar tradições intelectuais colocadas em xeque pelos novos paradigmas nomeados de “estrangeiros”, ainda que suas fontes sejam elas próprias provenientes da intelectualidade francesa. 21 A sexualidade era vista como algo marginal à ordem social e às forças modernizadoras, daí ter sido abordada a partir de questões como a prostituição (SIMMEL, 1892), como força “irracional” Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 21, jan./jun. 2009, p. 150-182 SOCIOLOGIAS 165 (Weber) ou apenas um componente do processo civilizador (Elias). Sobre estas abordagens iniciais dos clássicos da Sociologia e também da Antropologia, consulte Duarte, 2004, p.39-80, esp. p.53-59. 22 Steven Seidman considera que o silêncio dos clássicos a respeito da sexualidade é ligado às suas posições privilegiadas em termos sexuais e de gênero, o que fez com que tomassem como dados os aspectos que lhes conferiam privilégios e poder. 23 Na análise irônica e elucidativa de Sedgwick: “Ao final do século XIX, quando virou voz corrente – tão óbvio para a Rainha Vitória quanto para Freud – que conhecimento significava conhecimento sexual e, segredos, segredos sexuais, o efeito gradualmente reificante dessa recusa significou que havia se desenvolvido, de fato, uma sexualidade particular, distintivamente constituída como segredo: o objeto perfeito para a ansiedade epistemológica/sexual do sujeito da virada do século, hoje exacerbada.” (SEDGWICK, 2007, p.30) 24 Gayle Rubin discute a importância dos estudos sexológicos para a compreensão da história da sexualidade em uma entrevista a Judith Butler (2003, p.157-209) veu seis artigos sobre a sexualidade, entre 1897 e 1907, mas não teve seguidores, de forma que a Escola de Chicago só retomaria o tema reduzin- do-o aos estudos sobre desvios e problemas sociais, a partir da década de 1930. Curiosamente, a Sociologia se institucionalizou no mesmo período de ascensão da sexologia e da psicanálise,22 naquele momento crucial de elaboração de um elo entre conhecimento e sexualidade estruturado na recusa cognitiva das relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo.23 A sexologia ganhou força por meio da classificação e descrição de todos os desvios das funções reprodutivas. Inicialmente, suas relações com a psi- quiatria institucionalizada, em particular com a vertente criminológica, torna- ram-na um saber destinado ao poder, provedor de justificativas para a persegui- ção, controle e até aprisionamento dos que considerava perversos. Essa versão sexista e homofóbica da sexologia é corporificada na obra de Richard Von Krafft-Ebing, mas precisa ser confrontada com outra, voltada para o reconheci- mento da variabilidade sexual e sua despatologização, vertente iniciada com os estudos de Magnus Hirschfeld na Alemanha e desenvolvida também por Havelock Ellis na Inglaterra.24 No final da década de 1940, chegaram a público as pesquisas de Alfred Kinsey sobre a grande variedade de práticas sexuais, constatação tão liberal quanto impregnada de justificativas essencializantes. SOCIOLOGIAS166 Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 21, jan./jun. 2009, p. 150-182 Em contraste com a sexologia de seu tempo, Sigmund Freud criou a Psicanálise com uma proposta de compreensão universalizante da sexualidade baseada na mobilidade multiforme do desejo sexual e na bissexualidade como potencial em qualquer pessoa. Este argumento antiminorizante, no entanto, só se tornou palatável ao ser articulado a uma teoria que via no interesse por indivíduos do mesmo sexo apenas uma fase no caminho para a vida adulta, compreendida como sinônimo de heterossexualidade. A articulação entre universalismo antiminorizante com uma teoria desenvolvimentista camuflou seu heterossexismo e masculinismo (SEDGWICK, 2007, p.44). De qualquer forma, Freud, ao contrário dos sexólogos, não se preocupava em classificar, caracterizar nem julgar “pervertidos” ou “invertidos”, pois seu foco era o custo psíquico (neurose) cobrado pela “normalidade sexual” (RUBIN, 2003, p.183). Tanto a sexologia quanto a Psicanálise colaboraram para que o regime da sexualidade operasse por meio de uma fronteira entre o hegemônico (heterossexualidade) e o subordinado (homossexualidade), um regime que permite definir a si mesmo como hétero em oposição a um outro - carica- tura ou estereótipo - que sintetiza tudo o que não é nem é desejável que seja (o homossexual). Nos termos da suplementaridade de Derrida, ainda que a homossexualidade seja parte da constituição lógica e semântica da relação com o hegemônico (heterossexualidade), isto se dá em um proces- so de subordinação que lhe atribui uma condição de inferioridade ontológica, imutável e essencializada. A partir da década de 1960, surgem os primeiros estudos sociológicos sobre a sexualidade. Neles, inicialmente, a prioridade foi a sexualidade convencional (pré-marital, marital e extramarital), o que mantinha a per- cepção de que sexo e sociedade seriam antitéticos, o que é perceptível pela popularidade da hipótese repressiva, mais conhecida como a corrente freud-marxista.25 Foram esses estudos pioneiros que desferiram o primeiro ataque sociológico à teoria psicanalítica do desejo sexual (predominante- 25 Sobre a questão, consulte a análise de Foucault em “A Hipótese Repressiva” (2005, p.19-50). Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 21, jan./jun. 2009, p. 150-182 SOCIOLOGIAS 169 promete sua objetividade científica e serve, contra seu próprio intuito, para reessencializar fenômenos sociais como parte da “cultura”.28 É neste contexto que, como dito anteriormente, a Teoria Queer sur- giu nos Estados Unidos propondo uma mudança de foco dos estudos de minorias que caracterizaram a maioria dos empreendimentos na sociologia para os processos de construção da sexualidade a partir da díade hetero/ homossexualidade. Na perspectiva queer, o sistema moderno da sexualida- de passou a ser encarado como um conjunto de saberes e práticas que estrutura toda a vida institucional e cultural de nosso tempo. Os teóricos queer focaram na análise dos discursos produtores de saberes sexuais por meio de um método desconstrutivista. Ao invés de priorizar investigações sobre a construção social de identidades, estudos empíricos sobre comportamentos sexuais que levem a classificá-los ou compreendê-los, os empreendimentos queer partem de uma desconfiança com relação aos sujeitos sexuais como estáveis e foca nos processos sociais classificatórios, hierarquizadores, em suma, nas estratégias sociais normalizadoras dos comportamentos. Ao colocar em xeque as coerências e estabilidades que, no modelo construtivista, fornecem um quadro compre- ensível e padronizado da sexualidade, o queer revela um olhar mais afiado para os processos sociais normalizadores que criam classificações, que, por sua vez, geram a ilusão de sujeitos estáveis, identidades sociais e compor- tamentos coerentes e regulares. A origem nos Estudos Culturais marcou o queer em sua atenção aos discursos. Os cientistas sociais criticam a limitação de encarar o social como 28 Há um grande descompasso entre os estudos sociológicos sobre sexualidade desenvolvidos na tradição anglo-saxã e francesa. A sociologia da sexualidade francesa tem sua abordagem construtivista limitada pela influência do estruturalismo heterossexista. Além de A Dominação Masculina (1998) de Pierre Bourdieu, tal limitação se faz sentir de forma mais forte no Sociologia da Sexualidade (2002) de Michel Bozon, livro em que sexualidades não-hegemônicas surgem apenas como adendos em processos sociais cuja centralidade é reservada às tradicionais discussões sobre reprodução, contracepção e “liberalização” dos costumes. SOCIOLOGIAS170 Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 21, jan./jun. 2009, p. 150-182 29 Para compreender essa mudança teórica consulte a já citada entrevista de Rubin a Judith Butler (2003). um texto, o que levaria a ignorar, por exemplo, componentes institucionais. Também criticam o corte instaurado pelos teóricos queer com as pesquisas construtivistas desenvolvidas em suas disciplinas, de forma a levantar sus- peitas com relação à solidez científica do empreendimento queer sem atentar para as razões que explicam a não filiação dele à tradição disciplinar. Desta forma, esses críticos tendem a obliterar as críticas importantes que a Teoria Queer faz à Sociologia (e também à Antropologia). Michael Warner esclareceu as principais razões responsáveis pelo surgimento da Teoria Queer na introdução à famosa coletânea Fear of a Queer Planet: Queer Politics and Social Theory (1993). A oposição às teorias sociais hegemônicas naquele período foi fundamental e revela sem fundamento a acusação de que seus teóricos desconheciam a tradição socioantropológica. Basta recordar o seminal artigo da antropóloga Gayle Rubin intitulado Thinking Sex (1984), no qual é patente o rompimento com os paradigmas correntes de reflexão baseados no sistema sexo-gênero ou nos estudos gays e lésbicos.29 Alguns sociólogos ironizam aqueles que hoje associam ao queer a invenção do Construtivismo social, mas a ingenuidade desses jovens pes- quisadores não difere daquela dos cientistas sociais que imaginam que o queer “reinventou a roda”. A Teoria Queer é mais sofisticada do que o Construtivismo e ainda impõe, ao menos, dois grandes desafios às investi- gações sociológicas: perceber que nenhuma faceta da vida social pode ser compreendida sem um exame de como os significados sexuais se interseccionam com ela e, por fim, mas não por menos, o queer impõe às ciências sociais a necessidade de rever seus pressupostos, de forma a focar no hegemônico como objeto de estudo e análise crítica. A Teoria Queer desafia a Sociologia a não mais estudar apenas os que rompem as normas (o que redundaria nos limitados estudos de minorias) Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 21, jan./jun. 2009, p. 150-182 SOCIOLOGIAS 171 30 Alguns especulariam se este intuito de compreender processos sociais macro define a maior afinidade entre a proposta da Teoria Queer com a Sociologia enquanto a Antropologia Social estaria mais voltada para a compreensão de um dos resultados desse processo maior, ou seja, as relações do Outro com o hegemônico. O risco deste tipo de especulação é discutir disciplinas como entidades fixas e universais, ao invés de produto de circunstâncias históricas e institucionais espe- cíficas. A aceitação irrefletida do próprio contexto acadêmico como perspectiva (neutra) faz com que tais especulações não difiram de propostas de divisão do trabalho que, sob argumentos práticos, mascaram interesses estratégicos dentro do campo intelectual. nem apenas os processos sociais que os criam como desviantes (o que a teoria da rotulação já fez com sucesso), antes focar nos processos normalizadores marcados pela produção simultânea do hegemônico e do subalterno.30 Convergências em uma analítica da normalização Surgida em tensão com os estudos socioantropológicos sobre minorias sexuais, no entanto, a Teoria Queer não colocou em questão o valor da Sociologia como empreendimento intelectual. Suas críticas iniciais pareciam dirigidas a uma de suas subáreas, particularmente a da emergente sociolo- gia da sexualidade, mas progressivamente se revelaram mais amplas. Suas críticas apontam para uma possível renovação do empreendimento socioló- gico por meio do desenvolvimento sistemático de uma orientação teórica que viabilize a criação conjunta de uma analítica da normalização. Desta forma, é possível interpretar o objetivo queer como integrador e interseccional, pois tende a difundir-se por todas as áreas da disciplina. O diálogo atual entre o queer e a Sociologia aponta para uma síntese de enfoques teóricos (originados dentro, mas também fora, da disciplina), uma tentativa de articular teorias que incidem sobre vários níveis da ordem social: o micro (relativo a agentes individuais e suas interações), o médio (grupos, associações e movimentos sociais) e, em especial, o nível macro SOCIOLOGIAS174 Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 21, jan./jun. 2009, p. 150-182 33 Algo provavelmente ficaria de fora deste encontro e permaneceria alocado na Teoria Queer que, como marco analítico que explora a articulação entre sujeito e discurso, está melhor equipada para identificar o espaço de criatividade do sujeito. O queer acolhe especulações sobre formas alterna- tivas de subjetivação e constituição de outras relações com o outro, portanto, insere-se na proposta foucaultiana de sabotagem do projeto de sujeito moderno. A proposta foucaultiana está nos dois últimos volumes de ‘História da Sexualidade’ e também em suas últimas entrevistas. Sobre discus- sões da estética da existência, consulte Miskolci, 2006, 2006b. 34 Os estudos de Steven Seidman exploram sociologicamente o dispositivo do armário inicialmente exposto por Sedgwick (SEIDMAN, 2002). Os movimentos sociais são objeto de reflexões críticas como as de Joshua Gamson (1996), sociólogo que também estudou a mídia televisiva (1998). Recentemente, Roderick A. Ferguson analisou os processos sociais interdependentes de racialização e sexualização a partir da releitura crítica da sociologia canônica e da literatura afro-americanas (FERGUSON, 2004). vezes não explicitada)”.(SCOTT, 1998, p.297) Daí a necessidade de reconstituir historicamente e analisar sociologicamente os processos sociais normalizadores que produzem esses Outros, sem os quais o hegemônico também não se constituiria nem manteria seu poder. Ferramentas sociológicas são importantes para a compreensão de tra- jetórias históricas e presentes das circunstâncias culturais e práticas que produzem as condições para a construção das identidades de grupo. Proce- dimentos da teoria queer permitem explorar melhor as relações entre lin- guagem e consciência, sociedade e subjetividade, ou seja, descentrar o sujeito, de forma a complementar os determinantes sociais com os subjeti- vos na reconstituição e análise de processos sociais. A tendência sociológica a lidar com sujeitos seria colocada em tensão com a proposta queer de desnaturalizá-los como produtos de processos normalizadores,33 o que per- mitiria analisar de forma mais crítica fenômenos como as categorizações sociais, os movimentos sociais, instituições como o Estado e a mídia. 34 A interseccionalidade de opressões adotada como parte do diálogo entre teóricos queer e sociólogos contemporâneos, particularmente os in- fluenciados pelos estudos pós-coloniais, é um empreendimento tão pro- missor quanto incerto. Aparentemente, o diálogo tende a se intensificar entre os saberes subalternos em um processo ainda incerto de síntese teó- Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 21, jan./jun. 2009, p. 150-182 SOCIOLOGIAS 175 35 Nesta interpretação, o queer caracterizar-se-ia por uma mudança de foco em relação aos antigos estudos gays e lésbicos que lidavam, em sua grande maioria, com pessoas brancas de classe-média ou alta para sujeitos mais estigmatizados, freqüentemente das classes populares e afro-descenden- tes. Ainda que essa interpretação do queer exista em outros contextos nacionais, sua adoção no Brasil exige relacioná-la à história de nossa própria tradição de investigações sobre sexualidades não-hegemônicas, na forma de estudos de minorias. rico-metodológica que toma seu objetivo comum como sendo a constitui- ção dessa analítica da normalização social. Isto é evidente no foco no pro- cesso histórico de sexualização da raça e racialização do sexo, que aponta para estudos promissores sobre as articulações antes negligenciadas entre opressão racial e sexual. A proposta acima contrasta tanto com o compromisso dos Estudos Pós-Coloniais com os movimentos identitários, patente na idéia de “essencialismo estratégico” de Spivak, quanto com a interpretação do queer como linha engajada na defesa de sujeitos socialmente estigmatizados (LOU- RO, 2001, 2004; BUTLER, 2004; OCHOA, 2004).35 Uma analítica da nor- malização enfatiza os procedimentos analíticos queer em seu caráter de crítica sem-sujeito (ENG et ALLI, 2005; GREEN, 2007), portanto, o foco nos sexualmente estigmatizados se justifica pelo caráter instabilizador da ordem. O interesse queer por travestis, transexuais e pessoas intersex se deve ao compromisso científico de crítica dos apanágios identitários e concepções de sujeitos unitários e estáveis. A Teoria Queer busca romper as lógicas biná- rias que resultam no estabelecimento de hierarquias e subalternizações, mas não apela à crença humanista, ainda que bem intencionada, nem na “defe- sa” de sujeitos estigmatizados, pois isto congelaria lugares enunciatórios como subversivos e ignoraria o caráter contingente da agência. A crítica da normali- zação aposta na multiplicação das diferenças que podem subverter os discur- sos totalizantes, hegemônicos ou autoritários. Neste sentido, a Teoria Queer mostra que identidades são inscritas através de experiências culturalmente construídas em relações sociais, e o SOCIOLOGIAS176 Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 21, jan./jun. 2009, p. 150-182 36 Alguns estudos apontam para a forma como as classes populares de sociedades pós-escravistas, majoritariamente formadas por afro-descendentes, foram tão racializadas quanto sexualizadas. O estu- do de Don Kulick (1997) sobre as travestis de Salvador apresenta comparações com a realidade de suas congêneres nos países nórdicos e conclui que, enquanto no Brasil as travestis têm na sexualidade o cerne constitutivo de suas identidades, suas congêneres nórdicas enfatizam a identificação de gênero. A sexualização das classes populares e grupos subalternos em geral, convidam a novas investigações desse aspecto antes negligenciado em favor de uma abordagem que priorizava apenas a racialização. êxito de investigações que busquem articular estas esferas dependerá do desenvolvimento de metodologias que não apenas permitam estudar cada um dos componentes dos processos sociais de constituição das identida- des, mas, sobretudo, analisem as interdependências entre as categorias, de forma que não resultem na soma de opressões. De forma simplificada e puramente explicativa, os processos normalizadores sempre operaram interseccionalmente tendo as categorias raça e sexualidade como eixo formador simultâneo de identidades hegemônicas e subalternas. O processo integrado de sexualização da raça e racialização do sexo expõe a normalização que caracteriza a história de sociedades pós-coloniais, em especial as que convivem com o legado da escravidão como o Brasil e os Estados Unidos. Nestes países, cada um com suas especificidades, o imperativo nacional de constituição de uma comu- nidade imaginária resultou em formas distintas e aparentemente contradi- tórias de organização social, por meio da regulação da sexualidade.36 O sexo é o principal meio de articulação entre indivíduo e sociedade, daí ter sido o foco dos dispositivos reguladores das relações “raciais”, entre classes e com o “estrangeiro”. Em outras palavras, não há questão sobre nacionalidade que não se confunda com raça e sexualidade. Como bem observou Homi Bhabha, nações se constituem a partir de um sinal de sub- tração na origem (BHABHA, 2005, p.219). Acrescentaríamos que o que é “retirado” de cena não deixa de ser fundamental para criar a comunidade imaginada como um todo homogêneo. O “subtraído”, na verdade, é seu Outro internalizado, necessário, mas mantido como inferior. Privilegiam-se Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 21, jan./jun. 2009, p. 150-182 SOCIOLOGIAS 179 sexuality shapes the contemporary social order, for more than a decade its affinities and tensions, as related to the social sciences, and particularly to sociology, are in discussion. This article joins the debate, analyzes the similarities and distinctions between those two, and finally presents an overview of the current dialogue, pointing to a possible convergence in the queer project to enable an analysis of normalization. Keywords: Queer Theory. Sociology. Sexuality. Differences. Michel Foucault. Analysis of normalization. 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