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Dicionário Filosófico - Apostilas - Letras Part1, Notas de estudo de Literatura

Apostila de Letras sobre o estudo do Dicionário Filosófico de Voltaire, Biografia do Autor.

Tipologia: Notas de estudo

2013

Compartilhado em 27/06/2013

jacare84
jacare84 🇧🇷

4.5

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Baixe Dicionário Filosófico - Apostilas - Letras Part1 e outras Notas de estudo em PDF para Literatura, somente na Docsity! DICIONÁRIO FILOSÓFICO Voltaire APRESENTAÇÃO Nélson Jahr Garcia Voltaire (1694-1778) foi um dos maiores pensadores de seu tempo. Seu estilo, inconfundível, está presente em todos os seus romances, peças teatrais, trabalhos sobre filosofia e ciências. O traço mais marcante de seus textos é a agressividade inteligente, manifesta através de críticas ácidas e de uma ironia grave, geralmente beirando o sarcasmo. É o patrono deste site, cujo lema é "Ridendo Castigat Mores" (com o riso se castigam os costumes). Voltaire, com humor, castigou reis, nobres, ministros, religiões, teorias científicas e filosóficas. Nesse aspecto "Dicionário filosófico" é, talvez, o trabalho mais significativo. Não perdoou autoridades, costumes, crenças ou teorias; é difícil lembrar alguma que não tenha sido alvo de sua verve. Suas críticas procuram demonstrar as contradições embutidas nas concepções que ataca. Às vezes o faz de forma leve e sutil, como neste argumento, em que ridiculariza a certeza humana: Se perguntásseis a todos os homens antes de Copérnico:- O sol levantou-se hoje? O sol se pôs? - Temos absoluta certeza - responder-vos-iam à uma Tinham certeza, e no entanto estavam errados. Em outros momentos, investe com mais severidade: Pretendiam alguns escritores europeus que nunca haviam estado na China que o governo de Pequim era ateu. Wolf elogiara Pequim. Logo, Wolf era ateu. Melhores silogismos nunca souberam forjar a inveja e o ódio Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (1 of 185) [19/06/2001 11:46:56] Não raro recorre à hostilização aberta: As inimitáveis tragédias de Racine foram todas criticadas, e pessimamente: porque as criticaram rivais. Certo, os artistas são juizes de arte competentes, porém quase sempre lhes falta integridade. Chega a apelar para a pilhéria: Assistia eu certa vez à representação de uma tragédia em companhia de um filósofo. - Como é belo! - dizia ele. - Que viu o sr. de belo? - O autor atingiu seu fim. No dia seguinte ele tomou um purgante que lhe fez efeito. - O purgante atingiu seu fim - disse-lhe eu. Eis um belo purgante. Ele compreendeu não se poder dizer que um purgante seja belo, e que para chamar belo a alguma coisa é preciso que nos cause admiração e prazer. Conveio em que a tragédia lhe inspirara estas duas emoções, e que nisso estava o to kalon, o belo. Em outros casos o chiste chega a ser corrosivo: Ben al Betif, digno chefe dos dervís, disse-lhes um dia: "Meus irmãos, muito conveniente é que useis com toda freqüência esta fórmula sagrada do nosso Alcorão: Em nome de Deus mui misericordioso, pois Deus usa de misericórdia e vós aprendereis a praticá-la com repetir freqüentemente os termos que recomendam uma virtude sem a qual poucos homens restariam sobre a terra. Mas, meus irmãos, abstende-vos de imitar esses temerários que a todo transe se jactam de trabalhar pela glória de Deus. Se um jovem imbecil sustenta uma tese sobre as categorias, tese presidida por um ignorante encasacado, não deixa de escrever em grossos caracteres no cabeçalho de sua tese: Ek Allah abron doxa: ad majorem Dei gloriam. Um bom muçulmano fez pintar o seu salão gravando em sua porta essa tolice; um saca carrega água para maior glória de Deus. É um costume ímpio, piedosamente posto em uso. Que diríeis de um pequeno tchauch que ao limpar a privada do nosso ilustre sultão gritasse: "Para maior glória do nosso invencível monarca"? Há certamente maior distância do sultão a Deus que do sultão ao pequeno tchauch. Voltaire não simpatizava com menções a milagres e reprovava: Segundo a energia do termo, um milagre é uma coisa admirável. Nesse caso, tudo é milagre. A ordem prodigiosa da natureza, a rotação de cem milhões de globos ao redor de um milhão de sóis, a atividade da luz, a vida dos animais, constituem perpétuos milagres. Segundo as idéias aceitas, chamamos milagre à violação dessas leis divinas e eternas. Assim, quando houver um eclipse do Sol durante a Lua cheia, quando um morto fizer a pé duas léguas de caminho levando a cabeça de baixo do braço, isto quer dizer que sucedeu um milagre. O tema da ressurreição tampouco o animava, disparava com precisão: Gabam-se-lhes as pirâmides. Mas as pirâmides são monumentos de um povo de escravos. Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (2 of 185) [19/06/2001 11:46:56] Escala dos Seres Estados, Governos Ezequiel (De) Fábulas Falsidade das Virtudes Humanas Fanatismo Fim, Causas Finais Fraude Fronteiras do Espírito Humano Glória Graça Guerra História dos Reis Judeus e Paralipômenos Ídolo, Idólatra, Idolatria Igualdade Inferno Inundação Irracionais Jefté José Leis (Das) Leis Civis e Eclesiásticas Liberdade (Da) Loucura Luxo Matéria Mau Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (5 of 185) [19/06/2001 11:46:57] Messias Metamorfose, Metempsicose Milagres Moisés Pátria Pedro Preconceitos Religião Ressurreição Salomão Sensação Sonhos Superstição Tirania Tolerância Virtude Notas BIOGRAFIA DO AUTOR FRANÇOIS-MARIE AROUET, filho de um notário do Châtelet, nasceu em Paris, em 21 de novembro de 1694. Depois de um curso brilhante num colégio de jesuítas, pretendendo dedicar-se à magistratura, pôs-se ao serviço de um procurador. Mais tarde, patrocinado pela sociedade do Templo e em particular por Chaulieu e pelo marquês de la Fare, publicou seus primeiros versos. Em 1717, acusado de ser o autor de um panfleto político, foi preso e encarcerado na Bastilha, de onde saiu seis meses depois, com a Henriade quase terminada e com o esboço do OEdipe. Foi por essa ocasião que ele resolveu adotar o nome de Voltaire. Sua tragédia OEdipe foi representada em 1719 com grande êxito; nos anos seguintes, vieram: Artemise (1720), Marianne (1725) e o Indiscret (1725). Em 1726, em conseqüência de um incidente com o cavaleiro de Rohan, foi novamente recolhido à Bastilha, de onde só pode sair sob a condição de deixar a França. Foi então para a Inglaterra e aí se dedicou ao estudo da língua e da literatura inglesas. Três anos mais tarde, regressou e publicou Brutus Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (6 of 185) [19/06/2001 11:46:57] (1730), Eriphyle (1732), Zaïre (1732), La Mort de César (1733) e Adélaïde Duguesclin (1734). Datam da mesma época suas Lettres Philosophiques ou Lettres Anglaises, que provocaram grande escândalo e obrigaram a refugiar-se em Lorena, no castelo de Madame du Châtelet, em cuja companhia viveu até 1749. Aí se entregou ao estudo das ciências e escreveu os Eléments de le Philosophie de Newton (1738), além de Alzire, L'Enfant Prodigue, Mahomet, Mérope, Discours sur l'Homme, etc. Em 1749, após a morte de Madame du Châtelet, voltou a Paris, já então cheio de glória e conhecido em toda a Europa, e foi para Berlim, onde já estivera alguns anos antes como diplomata. Frederico II conferiu-lhe honras excepcionais e deu-lhe uma pensão de 20.000 francos, acrescendo-lhe assim a fortuna já considerável. Essa amizade, porém, não durou muito: as intrigas e os ciúmes em torno dos escritos de Voltaire obrigaram-no a deixar Berlim em 1753. Sem poder fixar-se em parte alguma, esteve sucessivamente em Estrasburgo, Colmar, Lyon, Genebra, Nantua; em 1758, adquiriu o domínio de Ferney, na província de Gex e aí passou, então, a residir em companhia de sua sobrinha Madame Denis. Foi durante os vinte anos que assim viveu, cheio de glória e de amigos, que redigiu Candide, Histoire de la Russie sous Pierre le Grand, Histoire du Parlement de Paris, etc., sem contar numerosas peças teatrais. Em 1778, em sua viagem a Paris, foi entusiasticamente recebido. Morreu no dia 30 de março desse mesmo ano, aos 84 anos de idade. ABRAÃO Abraão é um desses nomes célebres na Ásia Menor e na Arábia, como Tot entre os egípcios, o primeiro Zoroastro na Pérsia, Hércules na Grécia, Orfeu na Trácia, Odin nas nações setentrionais e tantos outros mais conhecidos por sua celebridade do que por uma história bem comprovada. Não falo aqui senão da história profana, pois quanto à dos judeus, nossos mestres e nossos inimigos, em quem cremos e que detestamos, tendo sido a história desse povo visivelmente escrita pelo próprio Espírito Santo, temos por ela os sentimentos que devemos ter. Dirijo-me apenas aos árabes; que se gabam de descender de Abraão por Ismael; que acreditam ter sido esse patriarca o fundador de Meca, onde teria morrido. O fato é que a raça de Ismael foi infinitamente mais favorecida por Deus do que a raça de Jacó. Uma e outra, é verdade, produziram ladrões. Mas os ladrões árabes foram incomparavelmente superiores aos ladrões judaicos. Os descendentes de Jacó não conquistaram mais que uma faixa de terra insignificante, que perderam. Os descendentes de Ismael avassalaram parte da Ásia, parte da África e parte da Europa, edificaram um império mais vasto que o império dos romanos e enxotaram os judeus de suas cavernas - que estes chamavam terra da promissão. Bem difícil seria, à luz da história moderna, ter sido Abraão pai de duas nações tão diferentes. Dizem que nasceu na Caldéia, filho de pobre oleiro que ganhava a vida fazendo pequenos ídolos de barro. É pouco verossímil que esse filho de oleiro se haja abalançado a ir fundar Meca a trezentas léguas de distância, de baixo do trópico, tendo de vingar desertos intransitáveis. Se foi um conquistador, certamente ter-se-á dirigido ao belo pais da Assíria. Se, como o despintam, não passou de um pobre diabo, então não terá fundado reinos senão na própria terra Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (7 of 185) [19/06/2001 11:46:57] divisíveis. Possui gravitação para um centro, que Deus lhe deu. Essa gravitação não é formada de partes, não é divisível. A força motriz dos corpos não é ente composto de partes. A vegetação dos corpos organizados, sua vida, seu instinto, não são seres à parte, seres divisíveis. Não podeis cortar em duas a vegetação de uma rosa, a vida de um cavalo, o instinto de um cão, da mesma forma como não podeis cindir em duas uma sensação, uma negação, uma afirmação. Portanto vosso grande argumento inferido da indivisibilidade do pensamento absolutamente nada prova. Que chamais então vossa alma? Que idéia tendes dela? Por vós mesmos, sem revelação, não podeis admitir em vós senão um poder de vós desconhecido de sentir, de pensar. Agora dizei-me sinceramente: é esse poder de sentir e pensar o mesmo que vos faz digerir e andar? Confessais que não. Porque debalde ordenaria vosso entendimento a vosso estômago doente: Digere! Ele não digeriria. Debalde vosso ser imaterial intimaria a vossos pés gotosos: Caminhem! Eles não caminhariam. Com razão observaram os gregos não ter o pensamento quase nenhuma influência no funcionamento dos órgãos. Admitiam para os órgãos uma alma animal. Para o pensamento uma alma mais tênue, mais sutil: um nous. Mas eis a alma do pensamento que em milhares de ocasiões governa a alma animal. Ordena a alma pensante às mães que apreendam: as mãos apreendem. Porém não pode ordenar ao coração que bata. Ao sangue que circule. Que se forme o quilo. Tudo isso se faz independentemente dela. Aí estão as vossas duas almas metidas em maus lençóis e feitas péssimas donas de casa. Claro que a primeira alma não existe. Não passa do movimento dos órgãos. Em guarda, homem! Tua fraca razão não é capaz de provar a existência da outra também. Não podes concebê-la senão pela fé. Tu Nasces. Vives. Ages. Pensas. Velas. Dormes. Sem saber como. Deus conferiu-te a faculdade de pensar como tudo o mais. E se não viesse ensinar-te nas idades assinaladas pela sua providência que tens uma alma imaterial e imortal, dela não terias prova alguma. Relanceemos os interessantes sistemas arquitetados pela tua filosofia em torno dessas almas. Um diz que a alma humana é parte da substância do próprio Deus. Outro que é parte do todo infinito. Terceiro que foi criada ab eterno. Quarto que foi feita e não criada. Outros afirmam que Deus as fabrica à proporção necessária, e que chegam no instante da cópula. Alojam-se nos animálculos seminais, exclama este. Não, diz aquele, vão habitar as trompas de Fallopio. Todos vós estais errados, intervêm aqueloutro: a alma espera seis semanas até que esteja formado o feto; então se acomoda na glândula pineal; se, porém, encontra um germe maligno, volta, a espera de melhor ocasião. A última opinião é que sua morada é no corpo caloso. É o local que lhe atribui La Peyronie. Era preciso ser primeiro cirurgião do rei de França para dispor assim do alojamento da alma. Pena é que o corpo caloso do ar. La Peyronie não tenha tido a mesma fortuna que o dono. Diz Santo Tomás (questão septuagésima quinta e subseqüentes) que a alma é uma forma subsistante per se. Que está em todas as coisas. Que sua essência difere de sua potência. Que há três almas vegetativas: nutritiva, aumentativa, generativa. Que a memória das coisas espirituais é espiritual. Que a memória das coisas corporais é corporal. Que a alma racional é uma forma imaterial quanto às operações Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (10 of 185) [19/06/2001 11:46:57] e material quanto ao ser. Sto. Tomás escreveu duas mil páginas dessa força e dessa clareza. É o pai da escola. Não é menor o número de sistemas forjados sobre a maneira de sentir da alma depois de desertar do corpo por meio de que sente. Como ouvirá sem ouvidos. Como olfatará sem nariz. Como tocará sem mãos. Que corpo retomará de futuro: o que tinha aos doze ou aos oitenta anos? Como o eu, a identidade da mesma pessoa subsistirá. Como a alma de um indivíduo tornado cretino à idade de quinze anos e que cretino tenha morrido aos setenta anos retomará o fio das idéias interrompido na puberdade. Por que milagre uma alma que haja perdido uma perna na Europa e um braço na América reencontrará essa perna e esse braço. (Que, tendo se transformado em legumes, terão virado sangue de algum outro animal). Singular é não haver nas leis do povo de Deus palavra sequer a respeito da espiritualidade e imortalidade da alma. Nem no Decálogo, nem no Levítico nem no Deuteronômio. Em passo algum - e sobre isto não paira a menor dúvida - Moisés promete aos judeus recompensas e castigos em outra vida. Nem lhes fala da imortalidade da alma. Não lhes acena com céu nem os ameaça com inferno. Tudo é temporal. Antes de morrer diz-lhes no Deuteronômio: "Se depois de terdes filhos e netos vós prevaricardes, sereis exterminados no país e reduzidos a número ínfimo entre as nações. "Eu sou um deus cioso que pune a iniqüidade dos pais até terceira e quarta geração. "Honrai pai e mãe para que vivais longo tempo. "Nunca vos faltará o que comer. "Se seguirdes deuses estrangeiros sereis destruídos... "Se obedecerdes tereis chuva na primavera como no outono. Tereis frumento, óleo e vinho. Tereis feno para os vossos animais. Para que comais e vos farteis. "Gravai estas palavras em vossos corações, em vossas mãos, aos vossos olhos. Escrevei-as em vossas portas. Para que vossos dias se multipliquem. "Fazei o que vos ordeno sem tirar nem pôr. "Se se erguer um profeta e vos predisser causas prodigiosas; se a predição for verdadeira e se cumprir; e se ele vos disser: Vamos! Sigamos deuses estrangeiros...- matai-o incontinenti. E que todo o povo vos acompanhe. "Quando o Senhor vos entregar nações estrangeiras, degolai a todos. Não poupeis um só homem. Não tenhais piedade de ninguém. "Não comais aves impuras como a águia, o grifo, o ixiao. Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (11 of 185) [19/06/2001 11:46:57] "Não comais animais que ruminem e que não tenham a unha fendida, como o camelo, a lebre, o porco espinho, etc. "Observando todos os preceitos sereis abençoados na cidade como no campo. Abençoados serão os frutos do vosso ventre, da vossa terra, dos vossos animais... "Se não observardes todos os mandamentos e todas as cerimônias, amaldiçoados sereis na cidade como no campo... Padecereis fome, pobreza. Morrereis de miséria, de frio, de penúria, de febre. Tereis ronha, rabugem, fístula. Tereis úlceras nos joelhos e na barriga das pernas. "O estrangeiro vos emprestará a onzena, e vós não lhe emprestareis a onzena... Por não servirdes ao Senhor. "E comereis o fruto do vosso ventre. A carne dos vossos - filhos, etc. ". É manifesto nada haver em todas essas promessas e ameaças que não seja temporal. Nem uma palavra sobre imortalidade da alma. Nem uma palavra sobre vida futura. Muitos comentadores ilustres foram de parecer que Moisés estava perfeitamente avisado destes dois grandes dogmas. Provam-no com palavras de Jacó, que julgando que seu filho fora devorado pelas feras, exclamou em sua dor: "Eu acompanharei meu filho à sepultura, in infernum, ao inferno". Isto é: eu morrerei, já que meu filho morreu. Provam-no ainda com trechos de Isaías e Ezequiel. Porém os hebreus a quem falava Moisés não podiam ter lido Ezequiel nem Isaías. Porque Ezequiel e Isaías só viveram muitos séculos depois. Inútil discutir quanto aos sentimentos secretos de Moisés. O fato é que nas leis públicas ele nunca falou de vida futura. Todos os castigos, todos os prêmios, restringe-os ao presente. Se conhecia a vida vindoura, por que não expôs expressamente tão importante dogma? E se não a conheceu, qual o objeto de sua missão? É o que perguntam muitas personagens ilustres. E respondem que o Mestre de Moisés e de todos os homens se reservava o direito de explicar a bom tempo aos judeus uma doutrina que eles não estavam em condições de compreender quando no deserto. Houvesse Moisés anunciado o dogma da imortalidade da alma, não o teria combatido uma grande escola de judeus. Não teria sido autorizada pelo estado a grande escola dos saduceus. Os saduceus não teriam ocupado os primeiros cargos. De seu seio não teriam saído grandes pontífices. Parece que só depois da fundação de Alexandria os judeus se cindiriam em três seitas: fariseus, saduceus, essênios. Ensina o historiador fariseu José no livro 13 das Antigüidades que os fariseus acreditavam na metempsicose. Criam os saduceus que a alma se extinguia com o corpo. Para os essênios - é ainda José quem o afiança - a alma era imortal; segundo eles as almas, sob forma aérea, desciam do fastígio do firmamento violentamente atraídas pelos corpos. Após a morte as almas das pessoas boas iam morar além oceano, num país onde não fazia calor nem frio, não ventava nem chovia. Lugar de todo em todo oposto era o desterro das almas ruins. Tal a teologia dos judeus. Aquele que devia ensinar todos os homens veio condenar essas três seitas. Sem ele, porém, jamais Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (12 of 185) [19/06/2001 11:46:57] ilhas onde os homens viviam na inocência e de lá propagou pelo mundo antigo. Se alguma vez se pôde acusar a natureza de desamar a própria obra, de contradizer o próprio plano, de tramar contra os próprios fins, foi então. Não tínhamos o melhor dos mundos possíveis? Se César, Antônio, Otávio não foram vítimas desse mal, por que o foi Francisco I? Não, direis, tudo foi disposto da melhor forma possível. Quero crer. Mas é difícil. AMOR PRÓPRIO Um mendigo dos arredores de Madri esmolava nobremente. Disse-lhe um transeunte: - O sr. não tem vergonha de se dedicar a mister tão infame, quando podia trabalhar? - Senhor, - respondeu o pedinte - estou lhe pedindo dinheiro e não conselhos. - E com toda a dignidade castelhana virou-lhe as costas. Era um mendigo soberbo. Um nada lhe feria a vaidade. Pedia esmola por amor de si mesmo, e por amor de si mesmo não suportava reprimendas. Viajando pela Índia, topou um missionário com um faquir carregado de cadeias, nu como um macaco, deitado sobre o ventre e deixando-se chicotear em resgate dos pecados de seus patrícios hindus, que lhe davam algumas moedas do país. - Que renúncia de si próprio! - dizia um dos espectadores. - Renúncia de mim próprio? - retorquiu o faquir. - Ficai sabendo que não me deixo açoitar neste mundo senão para vos retribuir no outro. Quando fordes cavalo e eu cavaleiro. Tiveram pois plena razão os que disseram ser o amor de nós mesmos a base de todos as nossas ações - na Índia, na Espanha como em toda a terra habitável. Supérfluo é provar aos homens que têm rosto. Supérfluo também seria demonstrar-lhes possuírem amor próprio. O amor próprio é o instrumento da nossa conservação. Assemelha-se ao instrumento da perpetuação da espécie. Necessitamo-lo. É-nos caro. Deleita-nos - E cumpre ocultá-lo. AMOR SOCRÁTICO Por que motivo um vício que se fosse geral extinguiria o gênero humano, atentado infame à natureza, é contudo tão natural ? Parece o último degrau da corrupção refletida - Entanto manieta de cotio adolescentes que nem sequer tiveram tempo de ser corrompidos. Entra corações tenros que não Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (15 of 185) [19/06/2001 11:46:57] conhecem nem a ambição, nem a fraude, nem a sede de riqueza. É a juventude cega que, por instinto mal definido, se precipita na depravação apenas dobra a infância. Bem cedo se manifesta a inclinação recíproca dos sexos. Mas, diga-se o que se disser das mulheres africanas e da Ásia meridional, essa inclinação é geralmente muito mais forte no homem que na mulher. É uma lei que a natureza ditou aos animais. É sempre o macho que ataca a fêmea. Sentindo essa força que a natureza começa a insuflar-lhes e não encontrando o objeto natural do instinto, atiram-se os jovens machos da nossa espécie sobre o que melhor se lhe semelhe. Não raro, pela frescura da tez, pelo lustre das cores, pela doçura dos olhos, durante dois ou três anos um jovem parece-se a uma rapariga. Se o amamos, é porque a natureza se equivoca. Amamos nele o sexo a que evoca sua beleza. Até que, dissipando-se a semelhança, a natureza se corrige Citraque juventam oetatis breve ver et primos carpere flores(3) Assaz sabido é ser esse equívoco da natureza muito mais comum nos climas suaves que nos gelos do norte. Porque nos climas mais doces o sangue é mais quente e mais freqüente a ocasião. Daí o que não se considera mais que uma fraqueza no jovem Alcibíades ser uma abominação num marinheiro holandês ou num vivandeiro moscovita. Não posso admitir que, como se pretende, tenham os gregos autorizado semelhante licenciosidade. Cita-se o legislador Sólon por haver dito em dois maus versos: Algum dia inda amarás um glabro e belo rapaz. Mas seria Sólon legislador quando escreveu essa ridícula parelha? Ainda era jovem. E quando o libertino se fez sábio, não iria incluir .tamanha infâmia nas leis da sua república. É como se se acusasse Teodoro de Besis de ter pregado o homossexualismo em sua igreja por haver, na juventude, dedicado versos ao jovem Cândido e dito: Amplector hunc et illam. Abusa-se do texto de Plutarco, que, em suas tagarelices no Diálogo do Amor, faz dizer a uma personagem que as mulheres não são dignas do amor verdadeiro. Outra personagem, porém, sustenta devidamente o partido das mulheres. Certo é, tanto quanto o pode ser a ciência da antigüidade, que o amor socrático não era um amor infame. A palavra amor foi que enganou. O que se chamavam os amantes de um jovem era nem mais nem menos o que são hoje os infantes de companhia dos nossos príncipes, os jovens companheiros de educação de um menino distinto, participando dos mesmos estudos, dos mesmos exercícios militares - instituição guerreira e santa de que se abusou como das festas noturnas e das orgias. Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (16 of 185) [19/06/2001 11:46:57] A tropa dos amantes instituída por Laio era um corpo invencível de jovens guerreiros unidos pelo juramento de dar a vida uns pelos outros. Foi o que de mais belo possuiu a disciplina antiga. Asseveram Sexto Empírico e outros que o homossexualismo tinha guarida nas leis da Pérsia. Que citem o texto da lei. Que mostrem o código dos persas. Mas ainda que o provem eu não acreditarei - Direi que é mentira. Porque não seria possível, não é da natureza humana elaborar uma lei que contradiz e ultraja a natureza. Lei que aniquilaria o gênero humano se fosse literalmente observada. Práticas vergonhosas toleradas pelas leis do país! Sexto Empírico, que duvidava de tudo, devia duvidar dessa jurisprudência. Se vivesse em nossos dias e visse dois ou três jesuítas abusarem de alguns escolares, teria direito de concluir ser tal depravação permitida pelas constituições de Inácio de Loiola? Era tão comum o amor entre rapazes em Roma que ninguém pensava em puni-lo. Otávio Augusto, esse assassino devasso e poltrão que teve o desplante de exilar Ovídio, achou muito natural que Virgílio cantasse Aleixo e Horácio escrevesse odes a Ligurino. Não obstante, sempre subsistiu a lei Scantínia, preventiva da pederastia. Repô-la em vigor o imperador Filipe, que expulsou de Roma os meninos que se dedicavam ao ofício. Enfim não creio que em tempo algum nação civilizada haja lavrado leis contra os próprios costumes. ANJO Enviado em grego. Baldio será acrescentar que os persas tinham peris, os hebreu malakhs, os gregos seus daimones. Mas talvez nos aclare saber que uma das primeiras idéias do homem foi interpor seres intermediários entre a Divindade e nós. São os demônios, os gênios ideados pela antigüidade. O homem sempre criou os deuses à sua imagem. Viam-se os príncipes transmitir suas ordens por mensageiros: então a Divindade também tinha seus correios. Mercúrio, Isis, eram mensageiros, arautos. Os hebreus - povo conduzido pela própria Divindade - a princípio não deram nomes aos anjos que por fim Deus condescendia em enviar-lhes. Tomaram de empréstimo os nomes que lhes davam os caldeus, quando a nação judaica esteve cativa em Babilônia. Miguel e Gabriel são referidos pela primeira vez por Daniel, escravo entre aqueles povos. O judeu Tobias, que vivia em Nínive, conheceu o anjo Rafael, que viajou com seu filho para ajudá-lo a reaver certa soma que lhe devia o judeu Gabael. Não se faz nas leis dos judeus, isto é, o Levítico e o Deuteronômio, a menor menção à existência dos anjos. Muito menos ao seu culto. Tão pouco criam em anjos os saduceus. Nas histórias judaicas, porém, os anjos são a basto falados. Eram corporais e tinham asas nas costas, como imaginaram os antigos que tivesse Mercúrio nos calcanhares - Às vezes escondiam-nas sob as vestes. Como não teriam corpo se bebiam e comiam? Se os habitantes de Sodoma quiseram cometer o pecado da pederastia com os anjos que foram à casa de Ló? Segundo Ben Memon, admitia a antiga tradição judaica dez graus, dez ordens de anjos - Primeira: cheios acodesh - puros, santos. Segunda: ofamim - rápidos Terceira: oralim - fortes. Quarta: chasmalim - flamas. Quinta: seraphim - centelhas. Sexta: malakhim - mensageiros, deputados. Sétima: eloim - deuses Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (17 of 185) [19/06/2001 11:46:57] Era o boi Apis adorado em Menfis como deus, como símbolo ou como boi? É de crer que os fanáticos nele vissem um deus, os cultos mero símbolo e que o vulgo ignorante adorasse o boi. Terá Cambises feito bem, quando conquistou o Egito, em matar esse boi com as próprias mãos? Por que não? Com isso fez ver aos imbecis que se podia passar seu deus à faca sem que a natureza se armasse para vingar o sacrilégio. Incensaram-se muito os egípcios. Não sei de povo mais desprezível. Encarrapatou-se-lhes sempre no caráter e no governo um vício radical que os fez um povo de eternos e vis escravos. Que tenham, em épocas imemoriais, conquistado a terra. Na clareira dos tempos históricos, porém, avassalaram-nos quantos povos quiseram dar-se ao trabalho - assírios, persas, gregos, romanos, árabes, mamelucos, turcos, enfim, toda gente, salvo os cruzados, que não lhes conheciam a fraqueza. Foi a milícia dos mamelucos que venceu os franceses. Não há talvez mais que duas coisas sofríveis nessa nação: primeiro, que adorando um boi nunca constrangeram quem adorasse um macaco a mudar de religião; segundo, terem inventado a chocadeira artificial. Gabam-se-lhes as pirâmides. Mas as pirâmides são monumentos de um povo de escravos. Foi preciso pôr de baixo de canga toda uma nação, sem o que essas vis massas não teriam sido levantadas. Que finalidade tinham? Conservar em uma pequena câmara a múmia de algum príncipe, de algum governador, de um intendente qualquer, porque ao cabo de mil anos sua alma devia reanimá-la. Mas se esperavam a ressurreição dos corpos, por que lhes extraiam os miolos antes de embalsamá-los? Será que os egípcios deviam ressuscitar sem cérebro? APOCALIPSE Justino o Mártir, que escreveu pelo ano de 170(5) da nossa era, é quem primeiro fala no Apocalipse. Perfilha-o ao apóstolo João o Evangelista. Perguntando-lhe o judeu Trifão se não cria que Jerusalém devesse ser algum dia restaurada, respondeu Justino que sim, como o acreditavam todos os cristãos que pensavam com acerto. "Houve entre nós" - diz - "uma personagem de nome João, um dos doze apóstolos de Jesus, o qual predisse passarão os fiéis mil anos em Jerusalém". Foi opinião por muito tempo aceita pelos cristãos a de um reinado de mil anos. Esse período desfrutava de grande crédito entre os gentios. Passados mil anos retomavam os corpos as almas entre os egípcios. O mesmo espaço de tempo, et mille per annos, penavam as almas no purgatório de Virgílio. A nova Jerusalém de mil anos teria doze portas, em memória dos doze apóstolos. A forma seria quadrada. Comprimento, largura e altura seriam de doze mil estádios - quinhentas léguas - de maneira que as casas teriam também quinhentas léguas de alto. Haveria de ser bem desagradável morar no último andar. Mas enfim é o que diz o Apocalipse, capítulo 21. Se foi Justino o primeiro em atribuir o Apocalipse a S. João, personalidades houve que lhe refugaram o testemunho, atendendo a que no mesmo diálogo com o judeu Trifão diz ele que, consoante o relato dos apóstolos, Jesus Cristo, descendo ao Jordão, ferveu-lhe e inflamou-lhe as águas. O que não consta em Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (20 of 185) [19/06/2001 11:46:57] nenhum dos escritos dos apóstolos. O mesmo S. Justino não hesita em citar os oráculos das sibilas. E pretende ter visto restos das celas em que, no tempo de Herodes, foram encerrados no farol de Alexandria os setenta e dois intérpretes. O testemunho de um homem que teve a má fortuna de ver tais celas parece indicar mas é que devia ser metido nelas. Posteriormente Sto. Ireneu, que também acreditava no reinado de mil anos, diz ter sabido de um velho que o Apocalipse era de autoria de S. João(6). Mas já se reprochou a Sto. Ireneu o haver escrito não deverem existir senão quatro Evangelhos pela só razão de ter o mundo apenas quatro partes, quatro serem os ventos cardeais e não ter Ezequiel visto mais que quatro animais. Chama ele a isso demonstração. Em singularidade, a demonstração do ar. Ireneu não fica atrás da visão do sr. Justino. Clemente de Alexandria, nas Electa, só se refere a um Apocalipse de S. Pedro, a que se reportava extraordinária monta. Tertuliano, partidário ferrenho do reinado de mil anos, não se contenta em afirmar que S. João predisse a ressurreição e o reinado milenário na cidade de Jerusalém: quer também que esta Jerusalém já se começava a formar no ar; que todos os cristãos da Palestina, e até os pagãos, a tinham visto durante quarenta dias sucessivos às últimas horas da noite. Infelizmente, porém, mal despontava o dia a cidade se esvaecia. Em seu prefácio sobre o Evangelho de S. João e nas Homilias, cita Orígenes os oráculos do Apocalipse, mas igualmente cita os oráculos das sibilas. Já S. Dinis de Alexandria, que escreveu por meados do século III, diz em um de seus fragmentos conservados por Eusébio (7) que a quase totalidade dos eruditos rejeitava por uma boca o Apocalipse como livro destituído de razão. Que esse livro não o escreveu S. João, e sim um tal Cerinto, que se servira de um grande nome para dar mais peso a suas fantasias O concílio de Laodicéia (360) não recenseou o Apocalipse entre os livros canônicos. Singular é haver Laodicéia repulsado um tesouro que lhe fora enviado expressamente, e que também o refutasse o bispo de Éfeso, cidade em que se descobrira, enterrado, esse livro de S. João. Para todos S. João ainda padejava na sepultura, fazendo a terra levantar e baixar continuamente. Entanto esses mesmos senhores certos de que S. João não estava de todo morto, também estavam certos de que ele não escrevera o Apocalipse. Os advogados do reinado de mil anos, não obstante, mantiveram-se irremovíveis em sua opinião. Sulpício Severo (História Sagrada, livro 9) chama insensatos e ímpios aos que não acatavam o Apocalipse. Afinal, depois de muita dúvida, muita oposição de concílio a concílio prevaleceu o parecer de Sulpício Severo. Deslindado o mistério, decidiu a igreja ser o Apocalipse incontestavelmente de S. João. Não há, pois, apelar. Atribuíram as comunhões religiosas cada qual a si as profecias desse livro. Nele viram os ingleses as revoluções da Grã Bretanha. Os luteranos, as convulsões da Alemanha. Os reformados da França, o reinado de Carlos IX e a regência de Catarina de Médicis. Todos tiveram igualmente razão. Bossuet e Newton comentaram o Apocalipse. As declamações eloqüentes de um e as sublimes descobertas de outro foram-lhes, todavia, muito mais honrosas que seus comentários. Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (21 of 185) [19/06/2001 11:46:57] ATEU, ATEÍSMO Antigamente, quem quer que tivesse um segredo numa arte corria o risco de passar por bruxo. Toda seita nova era acusada de degolar crianças em seus mistérios. Todo filósofo que se desgarrasse da jíria da escola era criminado de ateísmo pelos fanáticos e espertalhões. E condenado pelos cretinos. Anaxágoras tem o atrevimento de pretender não ser o sol conduzido por Apolo montado numa quadriga: chamam-lhe ateu e o obrigam a expatriar-se. Aristóteles é culpado de ateísmo por um sacerdote. Não podendo fazer punir o caluniador, retira-se para Calcis. Mas a morte de Sócrates é o que de mais odioso tem a história da Grécia Quem primeiro induziu os atenienses a verem um ateu em Sócrates foi Aristófanes, que os comentadores admiram por ter sido grego, esquecendo-lhes que Sócrates também o era. Esse poeta cômico, que não foi nem cômico nem poeta, não seria admitido entre nós a representar farsas na feira de Saint-Laurent. Parece-me muito mais vil e desprezível do que o despinta Plutarco. Eis o que diz o sábio Plutarco de tal farsista: "A linguagem de Aristófanes denuncia o miserável charlatão que é. São as graçolas mais canalhas e repugnantes. Não chega a agradar o povo e as pessoas de discernimento e pundonor não o toleram. Não há quem suporte sua arrogância, e sua malignidade é intolerável às pessoas de bem"(8). Aí está - para dizê-lo de passo - o Tabarin que a sra. Dacier tem o ousio de admirar. Eis o homem que de longe confeccionou o veneno com que juizes infames assassinaram o homem mais virtuoso da Grécia. Curtidores, sapateiros e costureirinhas de Atenas aplaudiram uma comédia em que se representava Sócrates suspenso num cesto proclamando que não existiam deuses e jactando-se de haver roubado uma capa enquanto ensinava filosofia. Um povo cujo mau governo permitia tão infames licenças bem merecia o fim que teve - ser vassalo dos romanos e hoje dos turcos. Demos um salto à antigüidade. Detenhamo-nos na república romana. Os romanos, muito mais sábios que os gregos, nunca perseguiram filósofos por motivo de opiniões. A mesma isenção não exalça os povos bárbaros que medraram por sobre os destroços do império romano. Desde que o imperador Frederico II questiona com o papa, que o acusam de ateísmo e de ter escrito com seu chanceler de Vinéia o livro Dos Três Impostores. Manifesta-se o nosso grande chanceler do Hospital contrário às perseguições: é quanto basta para levar a tacha de ateu. Homo doctus, sed verus atheos. Um jesuíta que se acha tão abaixo de Aristófanes quanto Aristófanes o está de Homero, um miserável cujo nome se tornou ridículo entre os próprios fanáticos, em uma palavra, o jesuíta Garasse, em toda gente vê ateístas. É assim que chama a todos aqueles contra quem investe. De ateísta acoima ele Teodoro de Besis. Foi ele quem induziu em erro a respeito de Vanini. Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (22 of 185) [19/06/2001 11:46:57] duvidavam de tudo - De tudo inopinavam os acadêmicos. Estavam persuadidos os epicuristas de que a divindade não metia a colher torta nos negócios dos homens, e em verdade não admitiam deuses de espécie alguma. Abrigavam a convicção de não ser a alma de natureza substancial, mas rasamente uma faculdade que nasce e morre com o corpo. Não tinham, por conseguinte, outras rédeas além da moral e da honra. Verdadeiros ateus eram os senadores e cavaleiros romanos. Para quem não os temem e deles nada esperam os deuses não existem - Era pois o senado romano um congresso de ateus contemporâneos de César e Cícero. Na oração pró Cluêncio diz o grande orador ao senado reunido: "Que mal lhe pode trazer a morte? Nós impugnamos todas as fábulas ineptas dos infernos. Que então lhe tirou a morte? Nada mais que a sensação da dor". Querendo salvar a vida de seu amigo Catilina perante o mesmo Cícero, não lhe objeta César que condenar à morte não é punir, que a morte não é nada, senão apenas o fim dos sofrimentos, momento mais feliz do que fatal? E não reconheceram Cícero e todo o senado a justeza de tais razões? Não há negá-lo. Vencedores e legisladores do mundo conhecido formavam uma sociedade de homens destemerosos dos deuses - verdadeiros ateus, portanto. Pondera Bayle a seguir se não é a idolatria mais perigosa que o ateísmo, se crime maior não será nutrir sobre a divindade conceitos indignos que dela descrer. E opina com Plutarco ser preferível não ter de Deus concepção nenhuma a te-la má - Em que pese a Plutarco, porém, inegável é ter sido infinitamente preferível para os gregos temer Ceres, Netuno, Júpiter, a não temer coisa alguma. Irrecusavelmente é necessária a santidade dos juramentos, e antes fiar-se em quem creia que um falso juramento será punido do que em quem pense poder jurar falso impunemente. Não há dúvida ser preferível, em uma cidade policiada, ter uma religião ainda que má a não ter nenhuma. Parece-me que Bayle devia antes examinar qual o mais nocivo, se o fanatismo, se o ateísmo. O fanatismo é certamente mil vezes mais funesto, porquanto o ateísmo não inspira, como ele, paixão sanguinária. O ateísmo não se opõe ao crime: o fanatismo o atiça. Suponhamos com o autor do Commentarium Rerum Gallicarum fosse ateu o chanceler do Hospital. Não elaborou ele senão leis sábias, não aconselhou senão moderação e concórdia: os fanáticos cometeram as mortandades de São Bartolomeu. Havia-se Hobbes por ateu: entanto viveu tranqüila e inocentemente. Os fanáticos de seu tempo ensanguentaram a Inglaterra, Escócia e Irlanda. Spinoza, sobre ser ateu, ensinava o ateísmo: parece contudo não ter sido ele quem participou do assassínio jurídico de Barneveldt, quem fez em traçalhos os irmãos de Witt e os comeu à grelha. O mais das vezes são os ateus sábios audazes e tresmalhados que raciocinam mal e que, não compreendendo a criação, a origem do mal e outras dificuldades, recorrem à hipótese da eternidade das coisas e da necessidade. Aos ambiciosos, aos voluptuosos, falta-lhes tempo para raciocinar e abraçar maus sistemas. Têm mais que fazer que comparar Lucrécio com Sócrates - É o que sucede conosco. O mesmo não se dava com o senado romano, composto na quase totalidade de ateus que ateus eram Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (25 of 185) [19/06/2001 11:46:57] teórica e praticamente. Isto é: que não acreditavam nem na Providência nem na vida futura. Era uma congregação de filósofos, de voluptuosos e ambiciosos, todos nocentissimos e que perderam a república. Não me agradaria o depender de um príncipe ateu cujo interesse fosse mandar-me pilar num morteiro. Não quereria, se fosse soberano, ter de tratar com cortesãos ateus cujo interesse fosse envenenar-me: ser-me-ia necessário estar tomando ao acaso contravenenos todos os dias. É pois absolutamente imprescindível aos príncipes e aos povos o estar profundamente gravada nos espíritos a idéia de um Ser Supremo, criador, condutor, remunerador e vingador. Há povos ateus, assevera Bayle em suas Pensées sur les Comètes. Os cafres, hotentotes, tupinambás e muitas outras pequenas nações não têm Deus. É possível. Mas isso não quer dizer que neguem Deus não o negam nem o afirmam, porque nunca ouviram falar em tal. Dizei-lhes que Deus existe, e cre-lo-ão facilmente. Dizei-lhes que tudo se faz pela natureza das coisas, e cre-lo-âo da mesma forma - Pretender que sejam ateus é o mesmo que pretender que sejam anticartesistas: não são nem contra nem a favor de Descartes. São verdadeiras crianças. Uma criança não é atéia nem teista: não é nada. Que concluir de tudo isso? Que o ateísmo é um monstro perniciosíssimo para os que governam, e igualmente para os estadistas em disposição, ainda que cidadãos inocentes, pois podem um dia ou outro ser elevados à boléia do poder. Que, se não é tão funesto como o fanatismo, é quase sempre fatal à virtude. Ajuntemos principalmente que hoje em dia há menos ateus que nunca, depois que os filósofos reconheceram não haver nenhum ser vegetante sem germe, nenhum germe sem desígnio etc., e que o trigo não nasce da podridão. Geômetras não filosóficos enjeitaram as causas finais, porém os verdadeiros filósofos as admitem. E, como disse um autor conhecido, o catequista anuncia Deus às crianças e Newton o demonstra aos sábios. BATISMO Palavra grega que quer dizer imersão. Como sempre se guiam pelos sentidos, facilmente imaginaram os homens que quem lavasse o corpo também lavava a alma. Havia nos subterrâneos dos templos egípcios grandes cubas para os sacerdotes e iniciados. Desde tempos imemoriais que os hindus se purificaram nas águas do Ganges, e ainda hoje essa cerimônia está muito em voga. Da Índia passou à Judéia. Era costume entre os hebreus batizar todos os estrangeiros que abraçassem a lei judaica e não quisessem submeter-se à circuncisão. Sobre tudo batizavam-se as mulheres, que não faziam essa operação, salvo na Etiópia, onde a circuncisão era de lei. Tratava-se de uma regeneração. Criam os hebreus, como os egípcios, que o batismo dava alma nova. Consultem-se sobre o assunto Epifânio, Memonide e la Gemara. João batizou-se no rio Jordão. Ali também ele batizou Jesus, que, conquanto nunca haja batizado ninguém, condescendeu todavia em consagrar essa cerimônia Em si, todos os sinais são indiferentes. Confere Deus sua graça ao sinal que lhe aprouver escolher. Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (26 of 185) [19/06/2001 11:46:57] Bem cedo tornou-se o batismo em primeiro rito e chancela da religião cristã. Contudo, embora fossem circuncidados, não se sabe ao certo se receberam o batismo os quinze primeiros bispos de Jerusalém Muito se abusou desse sacramento nos primeiros séculos do cristianismo. Nada era mais comum que aguardar a agonia para receber o batismo. É assaz ilustrativo o exemplo do imperador Constantino. Eis como raciocinava: O batismo de tudo expurga; portanto posso matar minha mulher, meus filhos, todos os meus parentes; depois batizo-me e irei para o céu - O que efetivamente levou a prática. O exemplo era perigosíssimo. Paulatinamente foi se abolindo o vezo de esperar a morte para tomar o banho sagrado. Sempre conservaram os gregos o batismo por imersão. Pelo fim do século VIII os latinos, havendo estendido sua religião às Gálias e à Germânia, receosos de que a imersão pudesse matar as crianças nos países frios, substituíram-na por simples aspersão, o que lhes custou numerosos anátemas de parte da igreja grega. Perguntou-se a S. Cipriano se estavam realmente batizadas as pessoas que, em vez de tomarem o banho, eram apenas borrifadas. Respondeu ele (septuagésima sexta carta) que "achavam muitas igrejas não serem cristãs tais pessoas; quanto a ele, era de parecer que sim, bem que sua graça fosse infinitamente menor que a das imersas três vezes conforme o uso". Entre os cristãos, desde que um indivíduo recebia a imersão estava iniciado. Antes do batismo era simples catecúmeno. Para iniciar-se era de mister apresentar cauções, responsáveis, - a que se dava um nome correspondente a padrinho - a fim de que a igreja se certificasse da fidelidade dos novos cristãos e não fossem divulgados os mistérios. Essa a razão por que nos primeiros séculos fossem os gentios geralmente tão mal instruídos dos mistérios cristãos quanto o eram os cristãos dos mistérios de Isis e de Eleusina. Assim se expressava Cirilo de Alexandria em seu escrito contra o imperador Juliano: "Falaria do batismo se não temesse que minhas palavras chegassem aos não iniciados". Data do século II o costume de batizar crianças. Era natural desejassem os cristãos que seus filhos, que sem esse sacramento seriam condenados às penas eternas, dele fossem apercebidos. Concluiu-se enfim ser necessário ministrá-lo ao fim dos oito primeiros dias de vida por ser essa entre os judeus a idade da circuncisão. Ainda conserva o costume a igreja grega, conquanto no século III o uso a tenha levado a subministrar o batismo à morte. Quem morria na primeira semana de existência estava condenado, asseveravam os padres da igreja mais rigorosos. No século V, porém, ideou Pedro Crisólogo o limbo, espécie de inferno suavizado, e propriamente lindes do inferno, extramuros infernais, para onde iriam as criancinhas finadas sem batismo, e onde estariam os patriarcas antes da descensão de Jesus Cristo aos infernos. De sorte que desde então prevaleceu a opinião de que Cristo desceu ao limbo e não ao inferno. Perguntou-se se, nos desertos da Arábia, poderia um cristão ser batizado com areia: respondeu-se que não. Se se poderia batizar com água impura: estabeleceu-se ser conveniente água munda, mas que em última instância servia água barrenta. É fácil ver que toda essa disciplina foi ditada pela prudência dos primeiros pastores. Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (27 of 185) [19/06/2001 11:46:57] metafísico que ele. prestou ao gênero humano o serviço de lhe fazer ver que devemos estar contentíssimos e ter sido impossível a Deus fazer por nós mais do que fez. Que necessariamente Deus escolhera entre todos os partidos sem contradita o melhor. - E o pecado original? - perguntavam-lhe. - Foi o que podia ser - explicavam Leibnitz e seus amigos. Mas praceiramente escrevia ele entrar o pecado original necessariamente no melhor dos mundos. Ora essa! Ser expulso de um lugar de delícias onde se viveria eternamente se não se tivesse comido uma maçã! Como! Chafurdado na miséria, pôr no mundo filhos miseráveis que tudo hão de sofrer, que tudo farão sofrer aos outros! Que! Padecer todas as doenças, sofrer todos os martírios, morrer na dor, e como refrigério ser assado na eternidade dos séculos! Seria esse o melhor quinhão que tinha Deus para nos dar? Nada tem de bom para nós. E em que poderia tê-lo para Deus? Compreendia Leibnitz nada ter que responder. Escreveu também maçudos livros, mas calou o ponto. Negar a existência do mal, pode negá-la rindo um Luculo refestelado na opulência, após lauto jantar libado em companhia dos amigos e da amante no salão de Apolo. Mas que ponha a cabeça à janela. Verá o que é o mundo. Repugna-me citar. É empresa de ordinário espinhosa: negligencia-se o que precede e o que segue a citação, e se expõe a querelas. Cumpre-me, todavia, citar Lactâncio, padre da igreja, que em seu capítulo 13, Da Cólera de Deus, põe estas palavras na boca de Epicuro: "Ou Deus quer abolir o mal do mundo e não pode; ou pode e não quer; ou nem pode nem quer; ou enfim quer e pode. Se quer e não pode é impotente, o que contradiz a natureza divina; se pode e não quer, é mau, o que não é menos contrário à sua natureza; se não quer nem pode, é a um tempo mau e impotente; se quer e pode (a única conjuntura que convêm a Deus) qual então a origem do mal sobre a terra?" O argumento é instante. Lactâncio respondeu muito mal, dizendo que Deus quer o mal porém nos deu a sabedoria, com que podemos alcançar o bem. A resposta é fraquíssima. Supõe que Deus não podia dar a sabedoria senão de par com o mal. Demais nós possuímos uma sabedoria agradável! A origem do mal foi sempre um abismo de que ninguém conseguiu lobrigar o fundo. Daí tantos filósofos e legisladores antigos se socorrerem de dois princípios, um do bem e outro do mal. Tifão era o princípio do mal entre os egípcios, Arimã entre os persas. Adotaram essa teologia, como se sabe, os maniqueus. Como porém anteriormente nunca falaram nem em um nem em outro desses princípios, convêm não lhes dar ouvidos. Entre os absurdos de que regurgita o mundo, não é dos menores este, que pode entrar no rol dos nossos males: imaginar dois seres todo poderosos duelando-se para ver quem dá mais de si ao mundo, e acordando um convênio como os dois médicos de Molière Passe-me o emético que lhe farei a sangria. Rasteando os platonistas, pretendeu Basilídio no primeiro século da igreja que Deus acometera a tarefa de forjar o nosso mundo aos últimos de seus anjos, os quais não sendo lá muito peritos desalinhavaram as coisas como aí estão. Refuta tal fábula teológica esta objeção irretorquível: não é de Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (30 of 185) [19/06/2001 11:46:57] Deus onipotente e onisciente confiar a construção de um mundo a arquitetos inaptos. Sentindo a objeção, preveniu-a Simão asseverando que em virtude do péssimo desempenho da incumbência Deus condenou aos infernos o anjo que presidia à oficina celeste. Por mais esturricado que esteja, contudo, a condenação desse anjo não nos cala o sofrimento. Não responde melhor à objeção a aventura de Pandora dos gregos. Inegavelmente a história da boceta que encerra todos os males e em cujo fundo jaz a esperança é uma bela alegoria. Mas essa tal Pandora, tê-la Vulcano tão somente para fazer pique a Prometeu, que havia feito um homem de barro. Os hindus não foram mais engenhosos: tendo criado o homem, Deus lhe deu uma droga que lhe asseguraria permanente saúde; o homem carregou seu asno dessa droga, o asno ficou com sede, a serpente ensinou-lhe uma fonte: enquanto o asno bebia a serpente pilhou a droga. Imaginaram os sírios que, tendo o homem e a mulher sido criados no quarto céu, quiseram comer de uma torta em vez de ambrósia, seu manjar natural. A ambrósia exalava-se pelos poros. Comendo a torta, porém, era preciso ir à secreta. O homem e a mulher pediram a um anjo lhes indicasse onde ficava tal repartição do Paraíso. - Estão vendo - disse-lhes o anjo - aquele planetinha insignificante, a uns sessenta milhões de léguas daqui? Pois é lá. - Para lá se foram, e lá os deixaram. Desde então o mundo é o que é. É o caso de perguntar aos sírios por que Deus permitiu que o homem comesse da torta e que temos nós que ver com o pato. Para nos forrarmos ao tédio, saltemos do quarto céu ao Sr. Bolingbroke. Este homem, incontestavelmente genial, deu ao célebre Pope seu plano de tudo está bem, que de fato lá vem palavra por palavra nas obras póstumas de Bolingbroke, e que anteriormente inserira Shaftesbury em seus Característicos. Leia-se o capítulo deste livro dedicado aos moralistas. Lá se encontrará: "Há muito que responder a essas lamúrias sobre defeitos da natureza. Como saiu tão impotente e falha das mãos de um ser perfeito? Mas eu nego que a natureza seja imperfeita... Sua beleza resulta das contrariedades. De perpétuo combate nasce a concórdia universal... É preciso que cada ser seja imolado a outros: os vegetais aos animais, os animais à terra... Demais não será por amor de miserável verme que as leis do poder central e da gravitação, de que decorrem o peso e o movimento dos corpos celestes, serão perturbadas. Miserável verme que, por muito bem protegido que esteja por essas leis, longe não está o dia em que por elas mesmas será reduzido a pó de traque". Bolingbroke, Shaftesbury e Pope - lapidário dos primeiros - não solvem a questão melhor que os outros. Seu tudo está bem não diz senão que o todo é regido por leis imutáveis. Quem não sabe disso? Para ninguém é novidade saber, depois dos netos, que as moscas foram feitas para ser comidas pelas aranhas, as aranhas pelas andorinhas, as andorinhas pelas pegas, as pegas pelas águias, as águias para ser mortas pelos homens, os homens para matar-se uns aos outros, ser comidos pelos vermes e em seguida pelo diabo. Eis aí ordem nítida e constante entre os animais de todas as espécies. Em tudo existe ordem. Quando se forma um cálculo em minha bexiga, verifica-se uma mecânica admirável. Pouco a pouco aparecem no sangue sucos calculosos, que se filtram nos rins, passam pelas uréteres, caem na bexiga e ali se Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (31 of 185) [19/06/2001 11:46:57] depositam em virtude de excelente atração newtoniana; forma-se a concreção, que cresce, e eu sofro dores mil vezes piores que a morte, por mais maravilhosamente ordenado que esteja o mundo. Um cirurgião que aperfeiçoou a arte inventada por Tubalcain enterra-me um ferro agudo e trinchante no perineu, agarra o cálculo com suas tenazes: por um mecanismo necessário, a pedra se desfaz sob seus esforços. E pelo mesmo mecanismo necessário entrego a alma ao diabo em meio de tormentos medonhos. Tudo isso está bem. Tudo isso é conseqüência evidente dos inalteráveis princípios físicos. Reconheço-o. Mas, como vós, já o sabia Se fôssemos insensíveis, nada haveria que dizer a esta física. Não se trata disso, porém Pergunto-vos se não existem males sensíveis, e de onde provêem. "Não existem males" - decreta Pope em sua quarta epístola acerca do tudo está bem. "Ou, se os há particulares, compõem o bem geral". Singular bem geral, constituído de cálculos, gota, de todos os crimes, de todos os sofrimentos, da morte e da condenação. A queda do homem é o emplasto que aplicamos a todas essas doenças particulares do corpo e do espírito, que vós chamais saúde geral. Mas Shaftesbury e Bolingbroke escarnecem do pecado original. Pope não se digna mencioná-lo. É evidente que tal sistema solapa a religião cristã nos alicerces, e não explica coisa alguma. No entanto foi há pouco aprovado por muitos teólogos, que de bom grado admitem os contrários. Assim sendo, a ninguém é preciso invejar o consolo de raciocinar como melhor puder sobre o dilúvio de males que nos assoberba. Justo é conceder aos doentes sem esperança que comam o que quiserem. Chegou-se até a pretender ser esse sistema consolador. "Deus" - leciona Pope - vê com os mesmos olhos morrer o herói e o pardal, precipitar-se na ruína um átomo ou mil planetas, formar-se um mundo ou uma bolha de sabão". Deliciosa consolação! Não sentis grande lenitivo com o decreto do sr. Shaftesbury, que diz, Deus não vai modificar suas leis eternas por um miserável verme como o homem? Convenha-se contudo ter esse verme direito de lamentar-se humildemente e lamentando-se diligenciar compreender por que tais leis eternas não foram feitas para bem de todos. O sistema do tudo está bem apresenta o autor da natureza como um déspota poderoso e mau, pouco se incomodando que seus caprichos custem a vida a milhares de seres humanos, enquanto os restantes arrastam seus dias na penúria e na dor. Longe de consolar, a teoria do melhor dos mundos possível é desesperadora. O problema do bem e do mal permanece um caos inextricável para todos aqueles que perquirem de boa fé. Para os polemistas, é um motivo de chiste: são forçados brincando com os próprios grilhões. Para o povo não pensante, é o caso de peixes transportados de um rio para um reservatório; não alimentam a menor idéia que estão ali para ser comidos na quaresma. Nada sabemos do porquê do nosso destino. Cumpre subpor ao fim de quase todos os capítulos da metafísica as duas letras dos juizes romanos, quando não entendiam uma causa: N. L., non liquet, - não é claro. Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (32 of 185) [19/06/2001 11:46:57] Mascara-se de humilde e moribundo. Elegem-no papa: é quando dá à mola do natural toda a elasticidade longo tempo retesada pela política. É o mais arrogante e despótico dos soberanos. Naturam expellas furca, tamen usque recurret. Religião, moral, são freios retentores do caráter. Não podem, porém, matá-lo. Enclausurado, reduzido a dois dedos de sidra às refeições, pode o bêbedo deixar de embriagar-se, mas ansiará sempre pelo vinho. A idade amolenta o caráter. Transforma-o em uma árvore que não dá senão um ou outro fruto abastardado, mas sempre da mesma natureza. Enodoa-se, cobre-se de musgo, caruncha. Jamais deixará de ser carvalho ou pereira, porém. Se fosse possível alterar o caráter, a gente mesmo o plasmaria a bel prazer, seria senhor da natureza. Podemos lá criar alguma coisa? Não recebemos tudo? Experimentai animar o indolente de contínua atividade, inspirar gosto à musica a quem careça de gosto e de ouvido. Não tereis melhor resultado do que se empreenderdes dar vista a cego de nascença. Nós aperfeiçoamos, esborcelamos, embuçamos o que nos estereogravou a natureza. Não há, porém, alterar-lhe a obra. Direis a um criador: - O Sr. tem peixe demais nesse viveiro; assim eles não vingam. Seus campos estão sobrelotados de gado; o capim não dá, os animais emagrecerão. - Com isso deixa o nosso homem que as solhas lhe comam metade das carpas, e os lobos metade dos carneiros. Os restantes engordam. Gabar-se-á ele dessa economia? Este camponês és tu mesmo. Uma de tuas paixões devorou as outras, e tu julgas haver triunfado sobre ti próprio. Não parecemos quase todos nós com aquele velho general de noventa anos que, encontrando alguns jovens oficiais mexendo com umas moças, perguntou-lhes colérico: "Senhores, é esse o exemplo que lhes dou?". CATECISMO CHINÊS (Ou diálogos de Cu Su, discípulo de Cong-fu-tseu, com o príncipe Cu, filho do rei de Lou, tributário do imperador çhinês Gnenvã, 417 anos antes da nossa era. Traduzido em latim pelo padre Fouquet ex-jesuíta. Encontra-se o manuscrito na biblioteca do Vaticano, número 42.759). C. Que devo entender quando me dizem que adore o céu (Chang ti)? C. S. Não se trata do céu material que vemos, que não é outra coisa senão ar, composição de todas as Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (35 of 185) [19/06/2001 11:46:57] emanações da terra. Imenso disparate seria adorar vapores. C. Pois não me surpreenderia. Parece-me que os homens cometeram disparates ainda maiores. C. S. De fato. Mas vós estais destinado a governar. Cumpre-vos ser sábio. C. Há tantos povos que adoram o céu e os planetas! C. S. Os planetas não passam de mundos como o nosso. Temos tanto motivo para adorar a areia e o barro da Lua, por exemplo, como a Lua para se pôr de joelhos diante da areia e do barro da Terra. C. Que se quer dizer quando se fala: O céu e a terra, acenda ao céu, seja digno do céu? C. S. Diz-se tremenda asneira. Não existe céu: cada planeta é circundado como que de uma casca chamada atmosfera, e gira no espaço em torno de seu sol. Cada sol é centro de porção de planetas que o acompanham espaço em fora. Não existe alto nem baixo, subida nem descida. Compreendeis que se habitantes da Lua dissessem que se sobe para a Terra, que era preciso tornar-se digno da Terra, diriam Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (36 of 185) [19/06/2001 11:46:57] um absurdo. Da mesma forma proferimos uma frase sem nexo quando dizemos ser necessário fazer-se digno do céu. É como se disséssemos: é preciso tornar-se digno do ar, digno da constelação do Dragão, digno do espaço. C. Creio compreender. Devemos adorar somente o Deus que criou o céu e a terra. C. S. Isso! Só Deus merece ser adorado. Mas quando dizemos que Deus fez o céu e a terra, piamente proferimos uma grande ingenuidade. Porque, se por céu entendemos o espaço portentoso em que Deus acendeu tantos sóis e fez girar tantos mundos, é mais ridículo dizer o céu o a terra do que dizer as montanhas e um grão de areia. Infinitamente menor que um grão de areia é o nosso globo perto desses quintilhões de mundos, em meio aos quais desaparecemos. Tudo o que podemos fazer é juntar nossa débil voz ao coro dos seres incontáveis que no abismo da amplidão rendem homenagem a Deus. C. Então enganaram-nos quando nos disseram que Fo desceu do quarto céu e se nos apresentou sob a forma de um elefante branco? C. S. Isso são histórias que os bonzos contam às crianças e aos velhos. Não devemos adorar senão o autor eterno de todos os seres. C. Mas como pôde um ser fazer os outros? Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (37 of 185) [19/06/2001 11:46:57] Ser justo. C. Que mais? C. S. Ser justo. C. Mas diz a seita de Lao Quium não existir justiça nem injustiça, vício nem virtude. C. S. Diz a seita de Lao Quium não existir saúde nem doença? C. Não, ela não diria tamanho absurdo. C. S. Absurdo tão grande e mais funesto é pensar não existir saúde nem moléstia da alma, virtude nem vício. Os que disseram ser tudo a mesma coisa são monstros. Será a mesma coisa criar o filho ou esmagá-lo em cima de uma pedra? Assistir à mãe ou cravar-lhe um punhal no coração? Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (40 of 185) [19/06/2001 11:46:57] C. Fazeis-me estremecer. Eu execro a seita de Lao Quium. Mas são tantos os matizes do justo e do injusto! As vezes fica-se perplexo. Quem saberá precisamente o que é permitido e o que não o é? Quem será capaz de estabelecer seguramente as fronteiras que separam o bem do mal? Que norma me dais para discerni-los? C. S. As normas de Cong-fu-tseu, meu mestre: "Vive como ao morrer desejarias ter vivido. Trata o próximo como queres que ele te trate" C. Confesso que tais máximas devem ser o código do gênero humano. Mas que me importará ao morrer ter bem vivido? Que ganharei com isso? Acaso, ao se quebrar, se sentirá feliz aquele relógio por haver bem soado as horas? C. S. Aquele relógio não sente, não pensa Não pode ter remorsos, ao passo que vós os tendes quando vos sentis culpado. C. E se, após cometer muitos crimes, vier a não mais os sentir? C. S. Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (41 of 185) [19/06/2001 11:46:57] Nesse caso seria preciso reprimir-vos. E ficai certo que entre os homens que não gostam de ser oprimidos alguém haveria que vos tolheria as mãos. C. Quer dizer que Deus, que está neles, consentiria que fossem maus depois de tê-lo permitido a mim? C. S. Deus vos galardoou com a razão: que dela não abuseis nem vós nem eles. Não somente seríeis infeliz nesta vida, como ainda quem vos disse não o seríeis em outra? C. Quem vos disse existir outra vida? C. S. Na dúvida, procedei como se existisse. C. Se eu tivesse certeza de que não existe? C. S. Desafio-vos. Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (42 of 185) [19/06/2001 11:46:58] Dignai-vos responder-me: não é verdade ser Deus a suma justiça? C. Sem dúvida. E ainda que fosse possível deixar de sê-la (o que é uma blasfêmia) eu mesmo quereria proceder com eqüidade. C. S. Quando estiverdes no trono, não é verdade ser vosso dever recompensar as ações virtuosas e punir as culposas? Quereríeis que Deus não fizesse o que vós mesmo fareis? Sabeis que há e sempre haverá nesta vida virtudes infelizes e crimes impunes. Necessário é pois que bem e mal encontrem seu julgamento em outra existência. Foi esta idéia tão simples, tão natural, tão geral que gerou em tantas nações a crença da imortalidade da alma e da justiça divina, que a julgará quando se despir do despojo mortal. Haverá sistema mais razoável, mais conforme à Divindade e mais útil ao gênero humano? C. Por que então muitas nações não o abraçaram? Sabeis haver em nossa província coisa de duzentas famílias de antigos sinús(13) que habitaram outrora parte da Arábia Pétrea. Pois nem eles nem seus avitos jamais creram a alma imortal. Têm seus Cinco Livros, como nós temos nossos Cinco Quings(14). Li-lhes a tradução; suas leis, necessariamente semelhantes às de todos os outros povos, ordenam-lhes respeitar os pais, não furtar, não mentir, não cometer o adultério nem o homicídio. Não lhes falam, porém, de recompensas e castigos em outra vida. C. S. Se essa idéia ainda não se desenvolveu nesse pobre povo, desenvolver-se-á sem dúvida algum dia. Demais, que nos importa uma insignificante e miserável nação quando babilônios, egípcios, hindus, todos os povos civilizados admitiram esse dogma tão salutar? Se estivésseis doente, refugaríeis um remédio aprovado por todos os chineses só porque meia dúzia de bárbaros das montanhas não o tomariam? Deus concedeu-vos a razão, e diz-vos a razão que a alma deve ser imortal. É o próprio Deus que vo-lo diz, portanto. Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (45 of 185) [19/06/2001 11:46:58] C. Mas como poderei ser recompensado ou punido quando já não for eu mesmo, quando nada existir do que constitui a minha pessoa? Tão somente por força da memória é que sou sempre eu mesmo. Ora, a memória, perdê-la-ei na derradeira doença. Haverá então um milagre depois de minha morte que ma restitua, para que eu retorne à existência? C. S. Nesse caso um príncipe que houvesse decapitado a família para reinar, tiranizado os súditos, eximir-se-ia de culpa dizendo a Deus: - Não fui eu, eu perdi a memória, vós vos equivocais, eu já não sou a mesma pessoa. - Julgais que Deus se daria por achado com semelhante sofisma? C. Pois bem. Seja, rendo-me. Se praticaria o bem por mim próprio, fá-lo-ei igualmente para comprazer ao Ser Supremo. Eu pensava bastar minha alma ser justa nesta vida para ser feliz em outra. Vejo que tal opinião é boa para os povos e para os príncipes, mas o culto de Deus me preocupa. Quarto diálogo C. S. Que achais de esquisito em nosso Chu Quing, esse primeiro livro canônico tão respeitado por todos os imperadores chineses? Para servir de exemplo ao povo trabalhais um campo com as próprias mãos reais e dele ofertais as primícias a Chang-ti, a Tien, ao Ser Supremo. A ele sacrificais quatro vezes ao ano. Sois rei e pontífice. Prometeis a Deus todo o bem que estiver em vosso poder. Não há nisso algo que repugne? C. Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (46 of 185) [19/06/2001 11:46:58] Sei que Deus não tem nenhuma necessidade de nossos sacrifícios e de nossas preces. Nós é que temos precisão de nos sacrificarmos e de orar. O culto de Deus não foi estabelecido por ele, mas por nós. Muito me apraz orar, e quero sobretudo que minhas orações não sejam ridículas. Porque se me ponho a gritar que "a montanha do Chang-ti é uma montanha gorda, é que não se deve olhar para as montanhas gordas,"(15) e faço fugir o Sol e apagar a Lua, seriam essas algarvias do agrado do Ser Supremo, úteis a meus súdito e a mim mesmo? Não suporto principalmente a demência das seitas. De um lado vejo Lao Tseu concebido pela união do céu e da terra e cuja mãe o carregou no ventre durante oitenta anos. Não tenho mais fé em sua doutrina do aniquilamento e da renúncia universal que nos cabelos brancos com que nasceu ou na vaca preta que montou para ir pregar sua doutrina. Não creio mais no deus Fo, ainda que tenha tido por pai um elefante branco e prometa a vida eterna. Mais que tudo me desagrada serem tais fantasias continuamente pregadas pelos bonzos, que seduzem o povo para governá-lo. Fazem-se respeitáveis por mortificações que repugnam à natureza. Uns se privam toda a vida dos alimentos mais salutares, como se não se pudesse agradar a Deus senão com um mau regime. Outros põem argolas de ferro no pescoço, o que por vezes lhes dá um ar digníssimo. Enterram cravos nas coxas, como se fossem tábuas. E o povo segue-os em chusma. Se um rei decreta um édito que os desagrada, dizem-vos friamente que tal édito não se encontra no comentário do deus Fo, e que mais vale obedecer a Deus que aos homens. Como remediar tão extravagante e nociva doença popular? Sabeis ser a tolerância o princípio do governo da China como de todos os povos da Ásia. Não vos parece, porém, funesta semelhante indulgência, quando expõe um império a ser transtornado por opiniões fanáticas? C. S. Que o Chang-ti me livre de querer desenvolver em vós o espírito de tolerância, virtude tão respeitável, que é para a alma o que é para o corpo a liberdade de saciar a fome. Permite a lei natural a cada um crer o que quiser, como se alimentar do que bem entender. O médico não pode matar os clientes por não terem observado a dieta prescrita. Não assiste ao príncipe o direito de mandar prender os súdito que não pensarem como ele. Mas cumpre-lhe prevenir perturbações, e se for sábio, facílimo lhe será extirpar as superstições. Sabeis o que se passou com Daão, sexto rei da Caldéia, há cerca de quatro mil anos? C. Não. Dar-me-eis prazer contando-mo. Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (47 of 185) [19/06/2001 11:46:58] C. Tenho que uma dúzia será o suficiente. Mais poderia furtar-me ao trabalho. Não gosto desses reis que têm trezentas esposas e setecentas concubinas, e milhares de eunucos para servi-las. Essa mania de eunucos sobretudo parece-me um tremendo ultraje à natureza humana. Que se capem, quando muito, os galos. Com isso ficam melhores de comer. Nunca se viram, porém, eunucos na panela. Para que mutilá-los? Tem o dalai lama cinqüenta eunucos para cantarem em seu pagode. Gostaria de saber se é grato ao Chang-ti ouvir as vozes de taquara rachada desses cinqüenta desmembrados. Acho também muito ridículos esses bonzos que não se casam. Gabam-se de ser mais sábios que os demais chineses. Pois bem! Que façam então filhos sábios. Boa moda essa honrar o Chang-ti privando-o de adoradores! Singular maneira de servir o gênero humano, dando-lhe o exemplo da própria extinção! Dizia o bom pequeno lama Stelca ed isant Errepi(16) que todo padre devia fazer o maior número de filhos possível. Ele próprio dava o exemplo e foi muito útil em seu tempo. Por mim casarei todos os lamas e bonzos e lamizas e bonzas que tiverem vocação para esta santa obra. Serão melhores cidadãos, e com isso creio prestar grande benefício ao reino de Lou. C. S. Oh que excelente príncipe teremos! Fazeis-me chorar de alegria. Mas certamente não tereis só mulheres e súdito. Porque afinal não se pode passar a vida a lavrar éditos e fabricar filhos. Sem dúvida tereis amigos? C. Já os tenho, e bons. Advertem-me de meus defeitos e eu tomo a liberdade de apontar-lhes os seus. Consola-me e eu os consolo. A amizade é o bálsamo da vida, bálsamo superior ao do químico Erueil(17) e até aos saquetes do grande Ranoud(18). Admira-me não se haver feito da amizade um preceito de religião. Desejaria inseri-lo em nosso ritual. C. S. Preservai-vos de semelhante arbitrariedade. A amizade já é sagrada por si mesma. Nunca a forceis. O coração precisa ser livre. Se fizésseis da amizade um preceito, um mistério, um rito, uma cerimônia, Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (50 of 185) [19/06/2001 11:46:58] milhares de bonzos, pregando e escrevendo suas tolices, cobririam esse sentimento de ridículo. Não deveis expô-lo a semelhante profanação. Mas como procedereis em relação aos vossos inimigos? Vinte vezes recomenda Cong-fu-tseu que os amemos. Não vos parece um pouco difícil? C. Amar os próprios inimigos? Se é tão comum! C. S. Como o entendeis? C. Como é de mister, creio; Fiz o aprendizado da guerra sob o príncipe de Décon(19) contra o príncipe de Vis Brunck. Quando um inimigo era ferido e caía em nossas mãos; tratávamo-lo como se fosse nosso irmão. Muitas vezes demos o próprio leito a inimigos feridos e prisioneiros, dormindo-lhes ao pé sobre peles de tigre estendidas no chão. Servíamo-los nós mesmos. Que mais quereríeis? Que os amássemos como se ama às amantes? C. S. Muito me edifica tudo o que dissestes, e desejaria que todas as nações vos compreendessem. Porque me afirmam haver povos assaz impertinentes para dizer que nós não conhecemos a verdadeira virtude, que nossas boas ações não passam de pecados esplêndidos, que necessitamos das lições de seus talapões para que nos ensinem bons princípios. Coitados! Mal aprenderam a ler e escrever e já querem ensinar aos próprios mestres! Sexto diálogo Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (51 of 185) [19/06/2001 11:46:58] C. S. Não vos repetirei todos os lugares comuns que há cinco ou seis mil anos se repisam entre nós acerca de todas as virtudes. Há virtudes que não o são senão para nós mesmos, como a prudência para guiar a alma, a temperança para governar o corpo - meros preceitos de política e higiene. Verdadeiras virtudes são as virtudes úteis à sociedade: fidelidade, magnanimidade, beneficência, tolerância, etc. Graças aos céus não há avó entre nós que não ensine aos netos todas essas virtudes. Elas constituem o cimento da nossa juventude, na cidade como na aldeia. Há contudo uma grande virtude que começa a ser esquecida, o que é deplorável. C. Qual é? Vamos, dizei-me, eu tomarei a peito realentá-la. C. S. A hospitalidade. Essa virtude tão social, esse sagrado liame entre os homens, que começa a relaxar-se desde que temos tavernas. Ao que dizem, veio-nos essa perniciosa instituição de certos selvagens do Ocidente. Parece que esses miseráveis não têm casas para acolher os viajores. Que prazer receber na grande cidade de Lou, na linda praça de Honchã, na casa de Qui, um generoso estrangeiro recém chegado de Samarcande, para quem me tornaria de então em diante um homem sagrado e a quem todas as leis - divinas e humanas - obrigariam a receber-me em sua casa quando eu viajasse pela Tartária e a ser meu amigo íntimo! Os bárbaros de que vos falava só recebem os forasteiros quando pagos, e ainda assim em achavascados cochicholos. Vendem caro esse acolho miserável. Apesar de tudo ouço dizer que essa pobre gente se presume superior a nós e se vangloria de ter moral mais pura. Querem que seus pregadores falem melhor que Cong-fu-tseu. Enfim pretendem ensinar-nos justiça por venderem mau vinho nas estradas reais, suas mulheres saírem como loucas pelas ruas e dançarem enquanto as nossas cultivam bichos de seda. C. Acho plausível a hospitalidade e pratico-a com prazer. Mas receio o abuso. Existem, nas cercanias do grande Tibete, povos que vivem pessimamente alojados, amantes de andejar, que sem motivo algum Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (52 of 185) [19/06/2001 11:46:58] uma onça de prata por ano a esse grande cozinheiro do Tibete. Em paga dava-nos minguados pratos de horrível paladar chamados sobejos. E quando lhe dava na veneta alguma nova fantasia, como declarar guerra aos povos do Tangate, escorchava-nos com subsídios suplementares. Muitas vezes nos queixamos, porém baldamente, quando não nos fazia pagar mais ainda. Por fim o amor, que tudo resolve maravilhosamente, libertou-nos dessa servidão. Um de nossos imperadores desaveio-se com o grande lama por causa. de uma mulher. Mas devo confessar que quem mais nos valeram nessa questão foram os nossos canusi, também chamados paiscospie. A eles devemos a libertação. Eis o que se deu. O grande lama tinha uma mania engraçada: julgava sempre ter razão. Uma vez ou outra, pelo menos, queriam os nossos canusi tê-la também. O grande lama achou absurda tamanha pretensão. Nossos canusi não arredaram pé e romperam definitivamente com ele. Hindu E de então em diante vivestes sem dúvida felizes e tranqüilos? Japonês Não inteiramente. Fomos perseguidos, dilacerados, devorados durante perto de dois séculos. Em vão pleiteavam nossos canusi ter razão. Somente há cem anos são razoáveis. Também, desde então podemos orgulhosamente considerar-nos uma das nações mais felizes da terra. Hindu Como podeis ser felizes se - a crer no que me disseram - vosso império se acha dilacerado por doze facções de cozinha? No mínimo tereis doze guerras civis por ano. Japonês Por que? Será que por termos doze chefes de cozinha, cada qual com uma receita diferente, deveremos matar-nos em vez de jantar? Pelo contrário, comeremos todos às mil maravilhas, cada um do cozinheiro que mais lhe agradar. Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (55 of 185) [19/06/2001 11:46:58] Hindu De fato gostos não se devem discutir. A história, porém, é que ninguém se compenetra disso. Discutem, e da discussão às do cabo é um passo. Japonês Depois de muito discutirmos, vendo que com isso só tínhamos que perder, acabamos optando tolerar-nos mutuamente. Era, não há dúvida, o melhor partido que nos restava tomar. Hindu Poderíeis dizer-me quais são os chefes de cozinha que partilham a vossa nação na arte de beber e comer? Japonês Primeiramente há os breuseh, que em caso algum vos dariam morcela ou lardo. Preconizam as fontes puras da cozinha do tempo do onça. Prefeririam morrer a mordiscar um frango. Quanto ao mais, exímios calculadores, e fosse o caso de dividir uma onça de prata entre eles e os onze outros cozinheiros, açambarcariam logo a metade, deixando o resto para os que melhor soubessem contar. Hindu Presumo não costumais cear com gente tão esdrúxula? Japonês Claro. Em seguida vêm os pispatas, que em determinados dias da semana e em boa parte do ano prefeririam cem vezes comer rodelas de rodovalhos, trutas, linguados, salmões, esturjões, a saborear uma Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (56 of 185) [19/06/2001 11:46:58] fritada de vitela que lhes ficaria por um nada. Quanto a nós outros canusi, somos devotos apreciadores de carne de vaca e de certa pastelaria que em japonês se diz pudim. Toda gente convém em que os nossos cozinheiros sejam muito mais hábeis que os dos pispatas. Ninguém melhor que nós sabe preparar o garum dos romanos, as cebolas do antigo Egito, a pasta de gafanhoto dos primeiros árabes, a carne de cavalo dos tártaros. Sempre há o que aprender nos livros dos canusi, comumente chamados paiscospie. Escuso-me de falar dos que comem a Teluro, assim como dos adeptos do regime de Vicalno, dos batistandos e que tais. Os quekars, porém, merecem atenção particular. São os únicos convivas que nunca vi se emborracharem nem praguejarem. Dificílimos de enganar, também nunca enganam ninguém. Parece que a lei que manda amar o próximo como a si mesmo foi feita especialmente para eles. Porque, verdade se diga, como pode um japonês dizer amar o próximo como a si próprio se por uma bagatela mete-lhe uma bala de chumbo na cabeça ou decapita-o com um cris de quatro dedos de largo? Quando ele próprio vive em constante risco de ser degolado ou engolir balas de chumbo? Com mais propriedade se dirá que ele odeia o próximo como a si mesmo. Os quekars nunca tiveram desses furores. Dizem eles serem os homens efêmeros vasos de argila e que não vale a pena se despedaçarem deliberadamente uns contra os outros. Confesso que se não fosse canusi não me desagradaria ser quekar. Força é reconhecer que não há meio de brigar com cozinheiros tão pacíficos. Há outros, em número incontável, a que chamamos diestas. Dão os diestas de comer a toda gente indiferentemente e em sua casa sois livre de comer o que vos der na língua - recheado, lardeado, sem recheio, sem lardo, com ovos, com óleo; perdiz, salmão, vinho palhete, vinho tinto, tudo lhes é indiferente. Contanto que façais alguma oração a Deus antes ou após o jantar, ou simplesmente antes do almoço, e sejais honrado, de bom grado rirão convosco à custa do grande lama, de Vicalno, de Memnão e o mais que segue. Felizmente reconhecem que nossos canusi são doutíssimos em matéria culinária, e sobretudo nunca falam em cercear nossas rendas. Assim, vivemos na mais edênica harmonia. Hindu Mas a final deve haver uma cozinha predominante, a cozinha do rei. Japonês Confesso-o. Mas naturalmente depois de seus gordos banquetes o rei está derretendo de bom humor e não põe embargos à digestão de ninguém. Hindu Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (57 of 185) [19/06/2001 11:46:58] me ajudarão a praticar o bem. Espero ser feliz e felizes fazer os meus paroquianos. Aríston Não sentis não ter uma esposa Seria um grande consolo. Como seria agradável encontrardes no lar, após haver pregado, cantado, confessado, comungado, batizado, enterrado, uma mulherzinha doce e virtuosa, que cuidasse de vossa roupa e de vossa pessoa, que vos desagastasse na saúde e vos assistisse na doença, que vos brindasse com bonitos filhos cuja boa educação aproveitaria ao estado! Lamento-vos, a vós que servis aos homens, de vos ver privado de tão necessário lenitivo. Teótimo A igreja grega incita os clérigos ao casamento. O mesmo faz a igreja anglicana e os protestantes. Diversamente pensa a igreja latina, e forçoso é que me submeta. Talvez hoje, que o espírito filosófico realizou tão notáveis progressos, um concilio instituísse leis mais consoantes à humanidade que o concílio de Trento. Nesse em meio, porém, devo conformar-me às leis vigentes. É custoso, bem o sei, mas tanta gente melhor que eu a tanto se resignou que não devo murmurar. Aríston Sábio sois e sábia é a vossa eloquência. Como contais pregar aos camponeses? Teótimo Como pregaria a reis. Falar-lhes-ei a todo instante de moral e jamais de controvérsias. Defende-me Deus aprofundar a graça concomitante, a graça eficaz a que se resiste, a suficiente que não basta. Veda-me inquirir se tinham corpo os anjos que comeram com Abraão e Ló, ou se fingiram comer. Há mil coisas que meu auditório não entenderia, e eu tão pouco. Diligenciarei fazer gente de bem e igualmente sê-lo. Mas não farei teólogos, e se-lo-ei o menos possível. Aríston Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (60 of 185) [19/06/2001 11:46:58] Oh que excelente cura! Hei de comprar uma casa de campo na vossa paróquia. Que pensais da confissão? Teótimo A confissão é um ótimo freio contra os crimes, que nos legou a mais remota antigüidade. Era costume, outrora, confessar-se na celebração de todos os mistérios. Imitamos e santificamos esta sábia usança. A confissão move os corações ulcerados de ódio a perdoar e os ladrões à devolução do furto. Tem suas inconveniências: há muitos confessores indiscretos, particularmente entre os monges, que não raro ensinam às moças mais indecências que todos os rapazes de uma aldeia. Nada de pormenores na confissão. Não se trata de interrogatório judicial, senão do reconhecimento das próprias faltas perante Deus, feito por um pecador nas mãos de outro pecador, que de seu turno também se acusará. Não se faz esse desabafo salutar para satisfazer a curiosidade de ninguém. Aríston E a excomunhão? Usá-la-eis? Teótimo Não. Há rituais em que se excomungam as bailarinas, os feiticeiros e os comediantes. Não precisarei proibir a entrada à igreja às bailarinas, pois nunca a freqüentam. Não excomungarei os feiticeiros, pois não os há. Quanto aos comediantes, como os pensiona o rei e autoriza-os o magistrado, abster-me-ei de os difamar. Até vos confesso, como a amigo, que muito aprecio a comédia. quando não vai de encontro aos costumes. Nutro verdadeira paixão a O Misantropo, Atália e outras peças que me parecem da escola da virtude e do decoro. O senhor da minha aldeia faz representar em seu castelo peças dessa natureza por jovens de talento. Tais espetáculos inspiram a virtude em consórcio com o prazer. Educam o gosto, ensinam a bem falar e bem pronunciar. Não vejo nisso senão uma recreação inocente e até muito útil. Conto, para ilustrar-me, assistir a esses espetáculos. Fa-lo-ei todavia em camarote fechado, para não escandalizar os simples. Aríston Quanto mais me revelais vossos sentimentos, mais desejo tornar-me vosso paroquiano. Uma coisa preocupa-me: como fareis para evitar que os campônios se embriaguem nos dias de festa? É essa a Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (61 of 185) [19/06/2001 11:46:58] solenidade com que as celebram. Haveis de vê-los prostrados pelo álcool, cabeça pensa, mãos descaídas, estrouvinhados, reduzidos a estado mais vil que o dos brutos, reconduzidos titubeantes para casa pelas esposas desfeitas em pranto, incapazes de enfrentar o trabalho no dia seguinte, muitas vezes doentes e embrutecidos para o resto da existência. Ve-los-eis, enfunados pelo vinho, travar rixas sangrentas, atarracarem-se como feras, e não raro desfecharem em morte estas cenas que cobrem de opróbrio a espécie humana. Perde o estado mais súdito em festas do que em batalhas. Como atalhareis em vossa paróquia tão execrando abuso? Teótimo Meu partido está tomado. Consentirei, instarei até que cultivem seus campos nos dias de festa, após o serviço divino, que celebrarei ao alvorecer. O ócio do feriado é que os leva à taverna. Não há cabida, nos dias consagrados ao trabalho, para a devassidão e o assassínio. O trabalho moderado é propiciador de saúde do corpo e da alma. Demais, necessita-o o estado. Suponhamos pessimistamente cinco milhões de homens cujo trabalho diário renda dez mil réis por indivíduo. Ao cabo de um ano, cinco milhões de homens inúteis durante trinta dias serão trinta vezes cinco milhões de notas de dez mil réis perdidas pelo estado em mão de obra. Ora, claro é que Deus jamais preceituou semelhantes desperdícios e borracheiras. Aríston Assim conciliareis a religião e o trabalho. Um e outro foram prescritos por Deus. Servireis a Deus e ao próximo. Mas que partido tomareis em face das disputas eclesiásticas? Teótimo Nenhum. Como controverter a virtude, se a virtude provém de Deus? Discutir, só as opiniões dos homens. Aríston Oh excelente pároco! Sapientissimo pároco! CERTO, CERTEZA Dicionário Filosófico. file:///C|/site/livros_gratis/dicionario_filosofico.htm (62 of 185) [19/06/2001 11:46:58]
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