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O modelo primario exportador e as politicas sociais na America Latina, Notas de estudo de Economia

Este artigo analisa a articulação entre a evolução dos modelos de desenvolvimento e das políticas sociais na América Latina desde a formação dos Estados independentes até o presente. O argumento central é que, historicamente, as políticas sociais foram concebidas como parte integrante do funcionamento dos sistemas econômicos.

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 06/08/2010

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Baixe O modelo primario exportador e as politicas sociais na America Latina e outras Notas de estudo em PDF para Economia, somente na Docsity! MODELOS DE DESENVOLVIMENTO E POLÍTICAS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA EM UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA* Vinícius C. Pinheiro** Resumo Este artigo analisa a articulação entre a evolução dos modelos de desenvolvimento e das políticas sociais na América Latina desde a formação dos Estados indepen- dentes até o presente. O argumento central é que, histo- ricamente, as políticas sociais foram concebidas como parte integrante do funcionamento dos sistemas econô- micos. No modelo primário-exportador, o Estado intervi- nha na sociedade com o objetivo de assegurar condições de trabalho para viabilizar as empresas monocultoras e de criar um espaço-nação nos limites das atividades produtivas. No modelo de substituição de importações, sob a égide do populismo, as políticas sociais foram direcionadas para fortalecer a classe média, em busca do apoio ao regime autoritário e de modo a favorecer a consolidação do mercado interno. Com o esgotamento da estratégia industrializante, a transição para um novo padrão de desenvolvimento foi permeada por orientações de agências internacionais que atuam na região, enfati- * O autor agradece os comentários e sugestões de Elizabeth Barros, Janice Dorneles de Castro, Carlos Alberto Ramos e Luciana Teixeira. ** Do IPEA. PLANEJAMENTO E POLÍTICAS PÚBLICAS Nº 12 - JUN/DEZ DE 1995 64 zando o caráter compensatório e focalizado das políticas sociais. Tais prognósticos induzem, mais uma vez, à idéia de operacionalidade das políticas sociais em relação ao modelo econômico, dado que sugerem o direcionamento daquelas para amortecer os impactos no tecido social, causados pela reorganização do sistema produtivo, asse- gurando a estabilidade do regime de transição. MODELOS DE DESENVOLVIMENTO NA AMÉRICA LATINA EM UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA 67 caracterizando-as a partir do marco de consolidação e erosão do popu- lismo como legitimação do Estado na América Latina. Neste capítulo, também discorreremos sobre os legados da interação entre política econômica e social deixados pelo modelo substitutivo. Finalmente, apontaremos as mudanças nas orientações para a política social, advin- das da necessidade de implementação dos ajustes econômicos na regi- ão. 1 O Modelo Primário-Exportador e as Políticas Sociais No modelo primário-exportador, a inserção da economia latino- americana no sistema global de comércio ocorreu mediante uma clara divisão internacional do trabalho. Em um primeiro momento, aos países da região coube o papel de fornecimento de matérias-primas, riquezas minerais e alimentos para o fortalecimento dos Estados nacionais euro- peus e a expansão do mercantilismo. A partir do século XVIII, a América Latina contribuiu para a acumulação primitiva do capital que iria financiar a Revolução Industrial na Inglaterra. Nos séculos XVIII e XIX, sob a influência das idéias liberais de Adam Smith, cada país procurava seu espaço no comércio internacional com base na especialização na produção de mercadorias para as quais ti- vesse maiores vantagens competitivas, determinadas por fatores natu- rais, culturais, sociais e históricos. Desta forma, do Chile exportavam o salitre; do Brasil, o café, o açúcar e os metais preciosos; da América Central, as bananas; da região andina do Peru e Bolívia, os metais pre- ciosos; da Argentina e Uruguai, a carne. O liberalismo econômico fazia parte da estratégia política internacional inglesa, que o empregava com o intuito de conseguir acesso direto aos fornecedores de matérias-primas e aos mercados consumidores mundi- ais, rompendo com a ordem mercantilista.2 É interessante ressaltar que, no mesmo período, EUA e Alemanha adotavam políticas protecionistas. 2 O monopólio do comércio das colônias pelas metrópoles representava um ônus enorme sobre a expansão da economia inglesa, dado que estas tinham que arcar com os custos do entreposto, ou seja, de não terem acesso direto às colônias. Desta forma, o liberalismo era funcional aos interesses de expansão da Inglaterra, impulsionados pela Revolução Industrial. Contudo, é interesante ressaltar o caráter pragmático da utilização do liberalismo pela Inglaterra. No século XIX, apesar de o Brasil haver reduzido a alíquota de importação de tecidos, o açúcar brasileiro continuava sendo sobretaxado no mercado internacional. O argumento utilizado para a aplicação deste liberalismo unilateral era o fato de a produção brasileira ser baseada em trabalho escravo, o que provocava distorções no preço do produto PLANEJAMENTO E POLÍTICAS PÚBLICAS Nº 12 - JUN/DEZ DE 1995 68 O eixo dinâmico das economias primário-exportadoras reside no setor externo. As exportações são a variável exógena responsável pela maior parte da renda nacional, e via importações adquire-se a maior parte dos produtos manufaturados consumidos no país. Tais economias são bas- tante vulneráveis às crises no mercado externo, dado que as oscilações do preço dos produtos repercutem de maneira avassaladora sobre a renda nacional e, conseqüentemente, sobre a atividade econômica in- terna. A natureza monocultora ou monoextrativista e latifundiária do sistema primário-exportador é concentradora de poder econômico e de poder político. Cria-se uma oligarquia nacional responsável pelo controle do sistema de produção, sendo a comercialização dos produtos e a distri- buição da riqueza gerada de forma dependente das orientações da me- trópole. Essas mesmas oligarquias constituem o poder político local. À medida que se consolidam os processos de independência, as elites locais ganham mais espaço no controle do sistema econômico, influen- ciando a política econômica de acordo com seus interesses, que pas- sam a ser chamados de nacionais. A decomposição dos Estados coloniais traz consigo o fenômeno do caudilhismo. Como nos ensina Rouquié (1994, p. 260-273), os caudilhos são elementos provenientes das oligarquias regionais que se consolidam como novos líderes, em substituição ao poder da metrópole, oferecendo proteção àqueles que se colocam sobre a sua tutela. Esses oligarcas são a pedra fundamental dos nascentes Estados latino-americanos, que, como primeira função, recebem a tarefa de garantir a independência política e as fronteiras delimitadoras dos territórios recém-libertados contra as oligarquias vizinhas. O perfil das oligarquias é modelado conforme a estrutura econômica das atividades exploratórias, o que define um caráter heterogêneo do tipo de caudilho que surge em cada região, acirrando cada vez mais as disputas locais e esfacelando o sonho da unidade americana de Simón Bolívar. A consolidação dos territórios nacionais de acordo com o atual desenho do mapa do continente foi resultado de grandes disputas entre elites no mercado internacional, prejudicando ex-colônias inglesas que utilizavam o trabalho assalariado. Dessa forma, o “liberalismo de resultados” inglês consistia em utilizar um argumento semelhante ao que hoje conhecemos como dumping social para beneficiar suas ex-colônias. MODELOS DE DESENVOLVIMENTO NA AMÉRICA LATINA EM UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA 69 criollas que, em alguns casos, avançaram até o século XX. No México, por exemplo, durante toda a primeira metade do século XIX até o gover- no de Porfírio Diaz, as oligarquias locais não entraram em acordo sobre a divisão política do Estado, e este país mergulhou em uma guerra civil interna, mediada por intervenções francesas e norte-americanas, que lhe valeram a perda de mais da metade do seu território.3 Os Estados latino-americanos surgem, portanto, como braço armado das oligarquias primário-exportadoras, que o utilizam para consolidar seu poder em escala nacional. No Brasil, durante o século XIX, explodi- ram revoltas por todo o país, que só puderam ser controladas devido à utilização de recursos provenientes do setor cafeeiro. Cientes do poder que detinham, os cafeicultores influenciavam a política econômica esta- tal para patrocinar seu produto no mercado exterior via instrumentos de desvalorização cambial, abertura de linhas de crédito e formação de estoques para controlar a oferta de café. As políticas sociais também se associavam à lógica dos interesses da oligarquia regional e, portanto, à operacionalização do modelo primário- exportador. A intervenção do Estado direcionava-se para a construção da identidade nacional e a garantia das condições de trabalho tanto dos imi- grantes como do restante da população, que vinham sendo mobilizados para fazer prosperar o sistema econômico. Em toda a América Latina no século XIX, o Estado, preocupado com o grande fluxo migratório internacional e com as tênues fronteiras deixadas pelo processo de independência, orientava suas ações com base na homogeneização de símbolos. Por meio de políticas de educação bási- ca, patrocinava o idioma comum e a formação de valores nacionais. Além disso, as políticas sociais tratavam de estabelecer condições mí- nimas para assegurar a capacidade de trabalho, principalmente nos 3 Em trinta anos (1821-1850), passaram pelo poder cinqüenta governantes, sendo a maioria deles proveniente dos quartéis. Em 1838, tropas francesas invadem a cidade de Veracruz sob o pretexto de recuperar dívidas de cidadãos franceses lesados pelo governo mexicano. Em 1836, o estado do Texas, depois de defrontar-se com as tropas republicanas, adquire sua independência, que se prolonga até 1845. Neste ano, ele é admitido pelo Congresso norte-americano como integrante dos Estados Unidos da América. Isto foi motivo de declaração de uma guerra de dois anos, quando a Cidade do México foi invadida e a bandeira norte-americana tremulou no pátio do Palácio Nacional, sede do governo mexicano. A derrota implicou não só a perda do Texas, como também a perda do estado da Nova Califórnia e do Novo México, somando um total de 2 milhões 400 mil quilômetros quadrados, ou seja, mais da metade do então território mexicano. PLANEJAMENTO E POLÍTICAS PÚBLICAS Nº 12 - JUN/DEZ DE 1995 72 pela crise. Dessa forma, a indústria substitutiva de importações ganhou espaço em relação à atividade exportadora,4 e as variáveis dinâmicas da economia passam a ser endógenas, com o crescimento voltado para o mercado interno. Do ponto de vista político, as elites urbanas, em conjugação com alguns setores rurais que estavam marginalizados da configuração anterior de poder, substituem ou fazem pactos com as elites agroexportadoras produzindo alterações no papel do Estado. O Estado assume as rédeas do processo de desenvolvimento interno, protegendo a atividade eco- nômica nacional, promovendo a acumulação inicial de capital, fornecen- do a infra-estrutura e planejando o modelo substitutivo. Surge o Estado desenvolvimentista trazendo consigo o centralismo, o autoritarismo, o nacionalismo e o populismo. Tal movimento apresenta como casos pa- radigmáticos os governos de Vargas no Brasil, de Perón na Argentina e, em alguma escala, de Cárdenas no México. No Brasil, o desenvolvimentismo, o centralismo e o autoritarismo surgem como um fenômeno conjugado de repressão às forças desarticuladoras regionais e de desencanto com a democracia representativa e o merca- do. Depois da crise de 30, o mercado aparecia como uma imagem- objetivo idealizada, mas que na prática se traduzia em monstruosidade operacional. Havia a necessidade de um Estado interventor, investidor e planejador, capaz de conferir alguma racionalidade às disfunções da mão invisível e conduzir a economia em prol do bem-estar da população. Tal Estado deveria ser central e autoritário, capaz de impor a racionali- dade planificadora a todos os segmentos regionais e setoriais da eco- nomia nacional. A democracia e a descentralização eram percebidas como comprometedoras do processo de desenvolvimento, porque a pulverização do poder entre as regiões e os setores da sociedade atra- 4 Warren Dean tem uma posição polêmica sobre o início da industrialização no Brasil ao defender que as crises externas e as interferências governamentais atrapalharam o processo de surgimento de indústrias, que estava ocorrendo naturalmente em função do desenvolvimento do setor exportador, pois nas épocas de prosperidade seria mais fácil importar bens de capital [Dean (1971)]. Esta abordagem difere da tradicional, que privilegia o papel dos choques adversos no setor externo (guerras e crises internacionais) como elemento propulsor para que o país adquira condições para produzir o que antes importava. Versiani e Versiani expõem um posição sintética ao tratar o início da industrialização brasileira como uma sucessão de ciclos de investimento e de produção. Os primeiros ocorrem favorecidos pela prosperidade do setor externo e facilidade de acesso à importação de bens de capital. Os segundos acontecem a partir das dificuldades de importar, o que leva à utilização da capacidade instalada adquirida no período anterior [Versiani e Versiani (1977)]. MODELOS DE DESENVOLVIMENTO NA AMÉRICA LATINA EM UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA 73 vancava a formação de consensos sobre a política econômica e com- prometia a alocação ótima dos fatores produtivos. Segundo a cultura autoritária que se formava na época, a democracia constituía um jogo em que cada ator estaria disposto a intervir somente de acordo com seu próprio interesse, impedindo a consolidação de um projeto nacional integrado. O nacionalismo surge como um eixo ideológico de elaboração de um conceito único de cultura brasileira e de projeto nacional. A centralização autoritária necessitava de um conjunto uniforme de valores e símbolos para homogeneizar e padronizar as diferenças regionais acentuadas pela divisão social do trabalho. Afirmava-se o interesse nacional que deveria ser protegido e estimulado, em contraposição ao interesse es- trangeiro espoliador, que deveria ser rechaçado. Castañeda (1994, p. 249-271) afirma que todo nacionalismo se desenvolve contra algum inimigo imaginário ou real; no nosso caso, a divisão internacional do trabalho. Além disso, o projeto nacional devia estabelecer um grande pacto entre os setores industriais e os trabalhadores urbanos, que constituíam a mola mestra do sistema produtivo e da formação do mercado interno, definindo o caráter populista do Estado desenvolvimentista. 2.3 Populismo e Políticas Sociais As políticas sociais configuraram-se como expressão instrumental do populismo. Tinham dois objetivos: proteger o trabalhador assalariado, cooptando-o para conferir sustentação ao regime autoritário, e apoiar a consolidação de grupos sociais com capacidade de demandar os novos bens manufaturados nacionais. O espírito de colaboração de classes, de inspiração fascista, implantou uma estrutura sindical verticalizada inte- grante do aparelho estatal, na qual a figura do pelego5 amortecia os conflitos entre trabalhadores e empresários, unidos no projeto nacional desenvolvimentista coordenado pelo Estado. 5 O termo pelego surgiu nesta época para designar os líderes sindicais. No hipismo, pelego é uma espécie de manta colocada sob a sela para amortecer os impactos entre o animal e o cavaleiro. No caso, o líder sindical, indicado pelo Estado, amortecia os conflitos entre o capital e o trabalho, estimulando a cooperação para o projeto desenvolvimentista. PLANEJAMENTO E POLÍTICAS PÚBLICAS Nº 12 - JUN/DEZ DE 1995 74 Na década de 40 no Brasil, a política social confundia-se com os benefí- cios trabalhistas estendidos somente aos trabalhadores urbanos. Estabi- lidade no emprego, férias remuneradas, indenização por demissões, salário-mínimo, jornada de trabalho de 48 horas, equivalência de traba- lho entre mulheres e homens, desenvolvimento do sistema previdenciá- rio e de saúde faziam parte do rol de benefícios oferecidos pelo Estado para embarcar a classe média urbana no projeto de desenvolvimento. Da mesma forma, durante as décadas de 60 e 70, produziram-se políti- cas deliberadas de concentração de renda, objetivando fortalecer uma classe média capaz de oferecer dinamismo ao mercado interno. Segun- do os teóricos do modelo, a concentração inicial criaria uma demanda poderosa que estimularia a consolidação e o desenvolvimento das in- dústrias de bens de consumo duráveis, que, por sua vez, teriam um grande efeito multiplicador sobre o restante da economia, incrementando o nível de emprego e de atividade dos outros setores produtivos [Tava- res (1973)]. Esse era o esboço inicial da chamada “teoria do bolo”, ou seja, uma política econômica cujo pressuposto apóia-se na idéia de que, primeiro, deve haver crescimento da riqueza, para posterior repartição entre os diferentes segmentos sociais. Como podemos observar, a inserção das classes médias colocava-se como uma questão operacional para a viabilidade do modelo econômico baseado no mercado interno e para a sustentação do modelo político autoritário. As políticas sociais operavam como instrumentos utilizados pelo Estado para promover essa inserção. As contradições desse mo- delo começam a aparecer, de um lado, a partir do esgotamento da es- tratégia industrializante, discutido no próximo capítulo, e, do outro, com a penetração dos interesses privados corporativos no Estado. O engrandecimento da máquina estatal nos anos 70 e 80, de acordo com uma perspectiva burocrático-autoritária, faz com que, na mesma medida em que o Estado penetra as relações sociais e econômicas, ele se torne permeável aos grupos sociais organizados. Assim, o gigante autoritário torna-se fraco, controlado pelo que Cardoso (1979) chamou de anéis burocráticos, formado por ilhas de poder do setor privado dentro do aparelho estatal. Esses grupos corporativos de origem empresarial ou da classe trabalhadora encrustram-se na estrutura burocrática e dese- nham políticas públicas e econômicas em prol de seus interesses. MODELOS DE DESENVOLVIMENTO NA AMÉRICA LATINA EM UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA 77 sobre o Estado, incapaz de transferir ao setor empresarial o ônus do ajuste. O Estado operou como mecanismo de socialização de perdas sobre toda a sociedade, principalmente as camadas menos organizadas. O comprometimento com o financiamento da dívida interna e externa, aliado aos custos do regime de inflação alta, pressionou os cofres públi- cos, penalizando o financiamento das políticas sociais. No plano externo, no transcorrer da década de 80 e começo dos anos 90, uma série de mudanças acontecem no cenário internacional, em função do colapso da ordem bipolar marcada pela disputa Leste-Oeste e das transformações na base produtiva e nos fluxos econômicos mun- diais. Redefine-se a divisão do poder econômico mundial, com a pre- ponderância dos blocos continentais — Europa, América do Norte e Sudeste Asiático. Tal dinâmica da economia mundial sugere a ocorrên- cia paralela dos fenômenos da globalização e da regionalização.6 Tais fenômenos repercutem na perda de graus de autonomia dos Esta- dos nacionais em relação à condução da política econômica e ao con- trole do sistema financeiro e produtivo. O novo Estado já não dispõe da mesma flexibilidade da utilização das políticas fiscal, monetária e cambi- al que tinham os Estados desenvolvimentistas. Com a globalização, aumenta a volatilidade do capital financeiro interna- cional, e os investimentos externos são extremamente vulneráveis à instabilidade macroeconômica, fazendo com que os Estados que não seguem uma linha ortodoxa de política econômica sejam penalizados pela fuga de capitais necessários para financiar o período de transição dos modelos. Da mesma maneira, a evolução da formação dos blocos regionais demanda a coordenação e a sintonia de políticas macroeco- nômicas, restringindo a liberdade de ação de cada Estado no seu espa- ço nacional, em prol do fortalecimento da capacidade de atuação do bloco econômico no cenário mundial. 6 Por globalização entendemos a crescente interdependência entre países e regiões, gerada em virtude do aumento do fluxo de bens, serviços e capitais, do processo de inovações tecnológicas, assim como do aumento da importância das empresas transnacionais na alocação de recursos produtivos e comercialização em escala global. Trata-se, portanto, de um processo que tem origem no nível microeconômico nas novas organizações da produção industrial, erodindo o modelo fordista de produção e de relação de trabalho, e reduzindo a vantagem comparativa da disponibilidade de recursos naturais e mão-de-obra barata. Por sua vez, a regionalização é um fenômeno macropolítico e macroeconômico, visando ao fortalecimento da presença regional no cenário multilateral internacional, além do reforço coletivo da capacidade de regulação da esfera pública, em face das novas realidades emergentes. PLANEJAMENTO E POLÍTICAS PÚBLICAS Nº 12 - JUN/DEZ DE 1995 78 Na América Latina, tais constrangimentos externos aliaram-se a dois processos complexos que atuaram em direções opostas. De um lado, como assinalado, houve a crônica afirmação da crise econômica, mani- festando-se como sinal do esgotamento do modelo de substituição de importações. De outro, assistiu-se à progressiva redemocratização e abertura política do continente, pulverizando-se o poder autoritário cen- tral dos anos 70. Novos atores passaram a ter influência no processo decisório, vocali- zando demandas antes reprimidas. Nesse sentido, o político e o econô- mico inauguram a década de 80 na América Latina em rota de colisão. De um lado, segmentos até então marginalizados do processo político invadem as arenas de disputa por espaço nas políticas públicas. Por outro lado, as finanças públicas do Estado desenvolvimentista sucum- bem junto com o modelo substitutivo, mostrando-se incapaz de atender às demandas. No Brasil, esses dois movimentos caracterizaram o que alguns autores denominaram de crise de governabilidade. Segundo Fiori (1994, p. 41), "o esgotamento da coalizão autoritária (...) não logrou produzir nem uma pactuação social, nem um comando nítido que conseguisse deter o avanço da ingovernabilidade...". O processo de distensão do regime autoritário, depois denominado de abertura democrática, veio acompa- nhado da progressiva fragilização financeira do Estado. A mudança de padrão de representação de interesses não teve como contrapartida a articulação de uma administração das contas públicas ajustada à nova realidade, provocando a incapacidade do poder central de conduzir uma política econômica sustentada pelo tempo mínimo que a sua eficiência exigiria.7 Apesar disso, desde o final do governo Sarney, 7 No Brasil, a Constituição de 1988 configura-se como um reflexo da confrontação entre o falido Estado do modelo de substituição de importações e o avanço das novas demandas políticas. Nos capítulos constitucionais referentes ao regime de proteção social, garantiu-se a universalidade, integralidade e eqüidade do atendimento à saúde, além da universalização da previdência, prevendo fontes de receitas específicas para o financiamento destas atividades, consolidadas no Orçamento da Seguridade Social. Com respeito à educação, ampliou-se a vinculação de receitas fiscais federais e estaduais. Avançou-se também em direção à descentralização, aumentando-se a participação de estados e municípios no total dos tributos. Entretanto, relegou-se para momento posterior uma reforma fiscal que ajustasse o orçamento federal ao financiamento destas novas demandas. Como resultado, registra-se a pressão por gastos superiores à arrecadação tributária, obrigando o Tesouro Nacional a incorrer em aumento do déficit público com impactos inflacionários. MODELOS DE DESENVOLVIMENTO NA AMÉRICA LATINA EM UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA 79 o país vem passando por uma verdadeira restruturação produtiva com gradual liberalização da economia e reforma do Estado. Outros países da América Latina, como Argentina, Bolívia, Peru e Co- lômbia, após mergulharem no processo hiperinflacionário, optaram por radicais mudanças em suas estruturas econômicas, adotando medidas de desregulamentação, liberalização comercial, privatização, equilíbrio fiscal, dolarização da economia, abertura ao capital estrangeiro e redu- ção da intervenção estatal. É interessante ressaltar que tais medidas de caráter recessivo8 só foram possíveis nos governos democráticos, em função da memória da catástrofe hiperinflacionária entre os eleitores. Sendo que, em alguns países, houve a eclosão de movimentos popula- res em protesto contra a situação de miséria provocada pelo ajuste, como por exemplo as rebeliões no norte da Argentina e na Venezuela, em 1993, e em Chiapas, no México, em 1994. Após esses resultados desfavoráveis da adoção abrupta do neolibera- lismo, observou-se uma progressiva sensibilização para duas questões básicas: a sustentação da democracia e o resgate da dívida social. O advento da democratização em conjunto com a crise econômica poderia comprometer a viabilidade da transição entre os modelos econômicos sob o véu da democracia. Em tal ambiente, tornar-se-ia extremamente factível a associação do autoritarismo com o desenvolvimento econômi- co, como ocorreu no Chile, enquanto a democracia estaria conectada ao caos produtivo e ao catastrofismo inflacionário. Da mesma forma, o aumento da miséria poderia provocar a deslegitimação do regime. O respeito ao timing da formação dos blocos políticos de sustentação das reformas e o combate à pobreza tornam-se, portanto, condições operacionais para a eficácia do ajuste estrutural. Nesse sentido, os ele- mentos relacionados às condições políticas de implementação e sus- tentação das políticas de estabilização econômica e ajuste estrutural, e a ênfase nas políticas sociais compensatórias, começam a ganhar rele- vância, principalmente nas orientações das instituições financeiras inter- 8 O caráter recessivo das políticas de ajuste deve ser relativizado conforme as políticas de estabilização efetivadas em cada país. Nos países onde o componente inercial tem grande peso na explicação do processo inflacionário, em um primeiro momento, a estabilização provoca um aumento real da renda da parcela da população que não tinha acesso aos mecanismo de indexação. Isso contribui para o aumento da demanda agregada, provocando novas pressões inflacionárias. Para equacionar esse problema, em um segundo momento, vem a fase recessiva da estabilização com políticas monetária e fiscal de contenção da demanda. PLANEJAMENTO E POLÍTICAS PÚBLICAS Nº 12 - JUN/DEZ DE 1995 82 É importante ressaltar, novamente, que não é objetivo deste trabalho discutir a exeqüibilidade ou o mérito destas tendências e orientações em detrimento das anteriores, e sim apontar os condicionantes estrutu- rais que as relacionam com a emergência do novo modelo de desenvol- vimento. A distinção fundamental entre os dois modelos trata da contraposição entre universalização e focalização. Em se tratando do critério alocativo e da população-objetivo, o modelo tradicional define uma ampliação pro- gressiva da prestação de serviços e distribuição de benefícios, com financiamento público para todo o universo de beneficiários. Entretanto, como a cobertura se expande de cima para baixo, dos setores mais organizados e corporativos para a massa nebulosa e desorganizada, o Estado acaba por concentrar seus esforços nas classes médias. O mo- delo proposto sugere que o Estado deveria focalizar a sua ação nos mais carentes e estimular mecanismos, como o cofinanciamento, para os que têm capacidade contributiva, direcionando o gasto social para a população-objetivo dos mais necessitados. Da mesma forma, o modelo emergente inverte a direção do subsídio. Ao invés de subsidiar a oferta por meio do pagamento de prestadores de serviços de saúde ou da promoção do ensino gratuito, o Estado financia- ria a demanda por meio do fornecimento de cupons ou bolsas aos mais carentes. Enquanto o modelo vigente se baseia em um Estado fortemente centra- lizado, responsável direto pelo desenho, formulação, implementação e financiamento das políticas sociais, a nova perspectiva privilegia a des- concentração e a descentralização. Transfere-se o poder de decisão sobre a alocação de recursos a esferas subestatais, que podem atuar de maneira mais informada, em conjunto com atores não-governamentais, e sujeitos ao controle social dos agentes envolvidos no processo. A lógica de decisão sobre a alocação dos recursos deixa, portanto, de ser centralizada, baseada em um Estado munido de um corpo burocráti- co racional-legal, e passa a operar segundo a lógica dos projetos e con- vênios. Com isso, busca-se a participação de outros atores, como ONGs, instituições de pesquisa e universidades, competindo na formulação de alternativas para os problemas sociais. MODELOS DE DESENVOLVIMENTO NA AMÉRICA LATINA EM UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA 83 O enfoque da política social deixa de ser nos meios, ou seja, na amplia- ção da oferta de serviços e da cobertura, por meio do aumento da infra- estrutura social, que se reflete no indicador Gasto Público Social. O novo paradigma preocupa-se mais com a meta de produzir impacto na popu- lação-objetivo, privilegiando o indicador custo-impacto. Tal redireciona- mento da política social está relacionado com o papel do Estado na transição dos modelos de desenvolvimento. Assim como o Estado desenvolvimentista sustentava-se politicamente com o apoio das classes organizadas, direcionando para estas a política social, o novo Estado direciona o gasto social para os grupos mais necessitados, de forma a amortecer a implementação das políticas de ajuste, operacionalizando o novo modelo econômico por meio da preservação do tecido social e, portanto, da capacidade de governo; da consolidação de uma imagem externa favorável e otimista para a atração de capitais estrangeiros; e da compatibilização com estruturas clientelísticas de manutenção do poder. Em relação ao primeiro ponto, observa-se que os custos dos ajustes são extremamente altos para as classes mais baixas, o que gera situações de convulsão social, dado o aumento progressivo da pobreza, condicio- nando as políticas sociais a adquirirem status de compensação em rela- ção à política econômica. Assim, o objetivo das políticas sociais passa a ser a manutenção da governabilidade, eliminando os focos de pobreza e de possível desestruturação do sistema social e político. A lição de Chiapas foi muito clara. O Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) canalizou para o movimento guerrilheiro as demandas provenientes da deterioração das condições de vida dos camponeses do estado historicamente mais pobre do México. Os líderes, entretanto, não são milagreiros, e tampouco estão bradando com cartilhas socialistas nas mãos. Eles estão pedindo nada mais que justiça social e democra- cia com instituições sólidas e limpas. É o próprio ideal social-democrata fazendo guerra de guerrilhas nas selvas chiapanecas, e que perdura há mais de dois anos enfileirando indígenas em combate contra o exército mexicano. Mais danosos que os estragos feitos nos municípios e estradas de Chia- pas é a repercussão do evento na opinião pública e nos centros financei- ros internacionais. A modernidade coloca à disposição da insurgência revolucionária vários instrumentos, que vão desde as mensagens ele- trônicas nas grandes redes de computadores até os discursos do sub- comandante Marcos, publicados em várias línguas nos maiores jornais PLANEJAMENTO E POLÍTICAS PÚBLICAS Nº 12 - JUN/DEZ DE 1995 84 do mundo. Trata-se de uma guerrilha pós-moderna, que utiliza as armas para criar um fato internacional, chamando atenção para a sua causa. Do ponto de vista econômico, a deterioração e o rompimento do tecido social repercutem sobre a imagem externa dos países latino- americanos, condicionando a fuga dos capitais financeiros especulativos internacionais, base do equilíbrio do balanço de pagamentos e das expe- riências de ajustamento. A liberalização comercial ocorre mediante um grande aumento de importações que não tem contrapartida no lado das exportações, provocando crônicos déficits na balança comercial, agra- vados mais ainda pela sobrevalorização cambial. Estes déficits são fi- nanciados por uma política de elevação da taxa de juros para a atração dos capitais especulativos internacionais de curto prazo, para equilibrar o balanço de pagamentos. Entretanto, a volatilidade desses capitais é muito grande e quaisquer distúrbios de natureza econômica, social e política podem influir sobre a expectativa de rentabilidade, condicionando a imigração destes para outros mercados mais atraentes no mundo. Nesse sentido, o Estado encontra-se diante da necessidade de direcionar as suas políticas soci- ais para os bolsões de miséria, de forma a impedir que estes compro- metam o ajustamento, e o combate à pobreza passa a ser a principal linha de intervenção do Estado na vida social. A focalização das políticas sociais também pode ser entendida como uma forma de focalização eleitoral. Os novos paradigmas sociais direci- onados para populações específicas atendem a um velho paradigma da prática política latino-americana — o clientelismo assistencialista. Dessa forma, o velho se articula com o novo, coerentemente com a constituição do novo Estado ajustador, fruto de um pacto conservador gerado a partir das elites do modelo anterior. As mudanças observadas nas políticas sociais da América Latina pare- cem ser resultado da necessidade de operacionalização do novo Estado e do novo modelo econômico. Elas compatibilizam as necessidades de mudança na ordem econômica com a estrutura arcaica e conservadora das práticas políticas históricas das elites latino-americanas, pois, ao mesmo tempo em que racionalizam a alocação dos recursos, direcionam estes para os currais eleitorais. MODELOS DE DESENVOLVIMENTO NA AMÉRICA LATINA EM UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA 87 Bibliografia BOSI, A. Dialética da colonização. — São Paulo: Cia da Letras, 1994. CARDOSO, F.H. O modelo político brasileiro. — Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. CASTAÑEDA, J. Utopia desarmada: intrigas, dilemas e promessas da esquerda Latino-America. — São Paulo: Cia da Letras, 1994. CEPAL - División de Dessarollo Social. Modelos de desarrollo, papel del estado y políticas sociales: nuevas tendencias en América Latina. 1995. COHEN, E. e FRANCO, R. Evaluación de proyectos sociales. — Espa- nha: Siglo XXI, 1993. DEAN, W. A industrialização de São Paulo. — São Paulo: Difusão Euro- péia, 1971. FIORI, J.L. e KORNIS, G. 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