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Bourdieu e a renovação da sociologia contemporânea da cultura, Notas de estudo de Ciências Sociais

O artigo examina a sociologia da cultura de Pierre Bourdieu à luz de três conceitos chaves - as noções de prática, habitus e campo -, buscando, de um lado, apreender os significados cambiantes desses termos em diferentes momentos da trajetória intelectual do autor e, de outro, ressaltando as conexões entre os objetos empíricos abordados e os respectivos modelos de interpretação sociológica da vida intelectual e cultural ancorados nesse paradigma.

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 26/03/2010

van-mnz
van-mnz 🇧🇷

4.8

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Baixe Bourdieu e a renovação da sociologia contemporânea da cultura e outras Notas de estudo em PDF para Ciências Sociais, somente na Docsity! Dentre os diversos veios de renovação da sociologia contemporânea da cul- tura, a contribuição de Pierre Bourdieu talvez possa evidenciar-se, com maior nitidez e impacto, por conta das transformações por que passaram os enunciados e os registros de sentido de dois conceitos-chave de sua obra, as noções de campo e habitus. Tentarei fazer um apanhado sintético de sua apreensão do mundo social por meio de momentos decisivos de inflexão, nos quais se pode captar a complexidade crescente das notações de sentido e, ainda mais, da substância de entendimento expressa e recoberta por esse par conceitual. Nos trabalhos e pesquisas da primeira fase de sua carreira – a saber, grosso modo, entre o final dos anos de 1950 até o começo dos de 1970, desde os estudos etnográficos sobre a Argélia, sobre a sociedade campone- sa, passando pelas obras consagradas ao sistema de ensino francês, aos usos sociais da fotografia, aos padrões de freqüência dos museus, até o lança- mento do manual de combate Le métier de sociologue –, as primeiras tenta- tivas de formulação conceitual das noções de campo e habitus, bem como de seu emprego na prática analítica, foram motivadas amiúde por suas reflexões sobre as condições sociais de emergência e operação da atividade intelectual. A idéia de um campo intelectual já se encontra esboçada no famoso artigo sobre a sociologia e a filosofia francesas no segundo pós- guerra; a noção de habitus foi desentranhada de sua releitura iluminadora de um dos textos seminais de Panofsky1. Bourdieu e a renovação da sociologia contemporânea da cultura Sergio Miceli 1. Bourdieu e Passeron (1967); Posfácio à obra de Panofsky (1967), traduzida por Bourdieu. Bourdieu e a renovação da sociologia contemporânea da cultura Tempo Social – USP6 4 A esses dois textos publicados em 1967 vieram se juntar os artigos “Cam- po do poder, campo intelectual e habitus de classe” e “Gênese e estrutura do campo religioso”, ambos de 1971. O primeiro deles busca articular o empre- go de ambos os conceitos, numa espécie de guia prático para futuras incur- sões de pesquisa a respeito dos intelectuais e suas obras, salientando as rela- ções desses domínios da experiência social ao sistema de poder (renomeado campo do poder) e à estrutura da classe dirigente. Todavia, outra figura decisiva no itinerário intelectual de Bourdieu de- sempenha um papel crucial na demonstração empírica explicitada, de modo sucinto, no miolo do trabalho. Refiro-me à invocação de Gustave Flaubert, que faz as vezes de representante típico-ideal da vertente da “arte pela arte”, como componente estratégico de um retrato histórico compacto sobre a emergência do campo literário francês. Tanto a figura do romancista como a menção crítica à clássica monografia de Sartre (1971) a seu respeito serão objetos das atenções de Bourdieu vinte anos mais tarde. Por enquanto, vale a pena rememorar as balizas e as significações com que Bourdieu deu recheio sociológico à sua compreensão da atividade intelec- tual e artística, a qual, nesse primeiro momento, ainda se encontrava quase por inteira caudatária de sua releitura dos trabalhos de Max Weber, em espe- cial, as sociologias da religião e do direito. Talvez se possa começar pelo início, isto é, a recusa das formulações ideográficas da história literária ou da crítica de arte de perfil convencional – a ideologia romântica do gênio criador, a biografia como resgate de um pro- jeto puramente estético, a vida do autor ou artista como obra de arte – estava na raiz dessa outra apreensão, sociológica, crítica, desveladora, acerca dos con- dicionantes estruturais do trabalho intelectual. Em lugar desse modelo explicativo estetizante, de feitio estilístico, filoló- gico, ou até mesmo imerso numa certa atmosfera histórica rarefeita, como nos melhores exemplos de toda uma corrente marxista de crítica literária (Lukács, Benjamin, Adorno etc.), obcecado pela singularidade extremada de cada obra, Bourdieu pretendia elaborar um modelo de encaixe e interpreta- ção dos fatores sociais retidos como pertinentes para dar conta de um dado estado da cena intelectual. O conceito de campo foi tomando corpo no in- tuito de nomear essa nova amplitude de perspectivas sobre a sucessão de ex- perimentos históricos que estão na origem das feições da cultura erudita na moderna sociedade capitalista. Em vez de mirar as mediações modeladoras da individualidade singular do artista, tal como Sartre procede em relação a Flaubert, Bourdieu dava mostras de estar mais interessado em explorar os fatores incidentes sobre as práticas de todo escritor, que derivavam da operação do sistema mais inclu- 6 7abril 2003 Sergio Miceli uma espécie de mapeamento tenso e concatenado dos princípios sociais ca- pazes de impulsionar, motivar e assim constituir o cerne da concorrência envolvendo os escritores ocupantes das diversas posições disponíveis no inte- rior do campo intelectual. A ênfase recai por inteiro num esforço empenhado de objetivação, enredando até mesmo as disposições internalizadas pelos agen- tes nessa teia intrincada de condicionantes. Na verdade, confrontados a essas determinações, tais agentes não teriam muito a fazer, a dizer, ou a dizer como fazer de outro modo, em suma, de inventar um modo novo de ser ou de fazer ou mesmo de dizer. Embora jamais chegue ao limite de nomear os agentes como meros exe- cutantes de condicionantes objetivos, tal como, mais tarde, denunciaria na teoria da ação racional, Bourdieu começou compondo um perfil sociológico do agente a reboque do sistema inclusivo de tensões e competição em que estão imersos, caudatários de forças e constrangimentos sociais dotados de um poder medonho de arrastão. Talvez ainda sob impacto da lição aprendida em Panofsky, buscando, nesse momento, adaptar a idéia de habitus, procedente do paradigma escolástico, ali expresso nas coordenadas arquitetônicas do gó- tico, Bourdieu ainda não havia encontrado um jeito mais desarmado de lidar com as disposições num registro próximo ou assimilável à idéia de uma práti- ca social. Essa mistura de improvisação plasticamente ajustada às coordenadas de uma situação muito mais colada às razões de ser singulares e idiomáticas do agente do que derivada de um sistema de constrições inelutáveis, ou melhor, essa prática muito mais a serviço da invenção do que da resposta, mesmo autoral, a um quase mandato, tais soluções ficavam, por enquanto, apenas entrevistas, na verdade, melhor expressas na intenção heurística do que no plano da análise propriamente dita. Entretanto, muitos dos atributos responsáveis pela força do conceito de campo já se mostravam desde o primeiro momento de sua concepção. A começar pela ambição de engatar o trabalho intelectual ou artístico à mol- dura mais ampla das relações de força, no itinerário histórico de uma dada formação social, logrando assim resgatar, em sua inteireza, tudo que as obras e as significações de sentido devem às suas condições mais gerais de exis- tência. Se bem que tal ênfase de qualificação pudesse dar seqüência à tra- dição de contextualização, tal como se manifesta em análises memoráveis dos mestres fundadores da sociologia – os estudos históricos de Marx, a sociologia religiosa de Weber, a sociologia educacional de Durkheim –, a contribuição mais importante e original de Bourdieu tinha a ver com os modos de fatura conceitual da própria atividade intelectual por meio desse termo estruturalista de campo. Bourdieu e a renovação da sociologia contemporânea da cultura Tempo Social – USP6 8 Ao salientar a natureza ferozmente relacional das posições e de seus ocu- pantes, o conceito de campo dilatava o objeto de análise para bem longe das lentes ideográficas tradicionais, embaladas nos formatos monográficos da biografia encomiástica ou detratora, do ensaio estetizante, ou melhor, cance- lava de uma vez por todas a pretensão de se poder enxergar os traços distinti- vos de toda e qualquer obra apenas com base em seus materiais expressivos internos. A ojeriza a tudo que estava ou, melhor ainda, que podia estar fora do texto via-se doravante na contingência de averiguar ou, pelo menos, começar a trabalhar, com mais capricho, os ligamentos entre o texto e suas circunstâncias. Na impossibilidade de fazer avançar o trabalho de interpretação sem an- tes garantir um mapeamento do conjunto de instâncias e de lugares sociais de onde se nutriam os projetos criativos de escritores e artistas, por exemplo, Bourdieu acabou logrando instituir uma espécie de imersão forçosa do analista no tumulto de experiências, aparentemente desencontradas, de cujas proprie- dades poder-se-ia compor um retrato conciso dos móveis internos de jogo e competição. Nesse movimento de retorno descritivo e analítico sobre as engrena- gens e as transações de todo tipo, sobre as quais cada setor de atividade cultural ancorava as razões de ser que faziam sentido aos olhos de seus integrantes, o conceito de campo fortalecia suas pretensões cognitivas ao propiciar as provas palpáveis de seu arrazoado totalizador. Ou seja, o movi- mento de abrangência requerido pelo conceito apenas lograva seu sentido pleno de esclarecimento ao se transmutar numa história social imersa em confrontos, numa competição acirrada, lançando os agentes produtores de símbolos num jogo de vida ou morte, perante o qual se orientariam por tradições, acervos, linguagens, genealogias, formas expressivas, problemáti- cas, em suma, por tudo que dá feição e sentido a cada universo de práticas sociais em particular. Com efeito, os méritos desse empenho totalizador mostravam-se particu- larmente esclarecedores no tocante ao desmonte e reconhecimento dos pro- cedimentos e expedientes da linguagem empregada, em especial naquelas tidas como obras inovadoras, em ruptura com os cânones vigentes. Dito de outro modo, sem querer estragar a festa dos chegados à imanência da obra de arte, até mesmo as feições mais singulares de uma dicção autoral respon- diam, em idioma mais ou menos cifrado, aos reptos formulados pelos de- mais competidores, pares, asseclas e epígonos. Mas muito desse vigor explicativo ainda estava em latência, dormente por sob o tumultuado torve- linho das práticas dos agentes num campo em processo de gestação, como que aguardando pelos desdobramentos dos riscos analíticos postos num pro- longado horizonte de trabalho, empírico e reflexivo. 6 9abril 2003 Sergio Miceli Já em 1972, Bourdieu redigiu o famoso texto “Esboço de uma teoria da prática”, segunda parte do livro, com o mesmo título, publicado nesse ano; conforme ele esclarece em nota introdutória, o texto apoiava-se em notas de trabalho feitas entre 1960 e 1965 (Bourdieu, 1972). Embora o lastro empírico do ensaio proceda do período intensivo de trabalho etnográfico, o intróito me- morialístico, a tonalidade polêmica, o desígnio classificatório, a nomeação ex- plícita dos interlocutores e, sobretudo, o índice de matérias abordadas, eis alguns dos indicadores a sinalizar uma intenção indubitável de combate científico. A importância estratégica dessa intervenção teórica prendia-se, de um lado, ao empenho em conectar suas análises etnográficas, aliás republicadas na primeira parte do volume mencionado, a uma concepção propriamente so- ciológica do mundo social, como que assumindo com nitidez certa tomada de distância em relação ao paradigma estruturalista, tão modelador dos estudos citados e, de outro, ao projeto deliberado de conceder um status ativo e de- terminante à prática social enquanto tal. Como atesta a epígrafe extraída das Teses sobre Feuerbach, de Marx, Bourdieu queria mesmo haver-se com “a atividade real, concreta, enquanto tal”, no intento de formular uma teoria sociológica da prática, distinta tanto de uma restituição fenomenológica da experiência vivida como dos confortos ine- rentes a uma ciência objetivista. Após longa peroração em torno dessa expe- riência cruzada do mundo social – a familiarização com um mundo estran- geiro e o desenraizamento de um mundo familiar –, que está no fundamento de qualquer projeto nas ciências humanas e, por extensão, do próprio traba- lho intelectual, Bourdieu rechaça os três modos de conhecimento teórico infensos ao modo de conhecimento prático. O conhecimento fenomenológico, empregado pelo interacionismo e pela etnometodologia, explicita a verdade da relação de proximidade com o am- biente familiar como se fosse algo natural, sem levar em conta suas próprias condições de possibilidade. O conhecimento objetivista, tão bem representa- do pela hermenêutica estruturalista, constrói as estruturas objetivas do mundo social em completa dissociação da verdade objetiva da experiência primeira, por considerá-la carente do conhecimento explícito daquelas estruturas. A única saída (praxeológica) seria conciliar ambas as tendências, ou seja, tomar como objeto não apenas o sistema de relações objetivas, mas também as relações dialéticas entre elas e as disposições estruturadas, nas quais as pri- meiras se atualizam e que tendem a reproduzi-las. Dito de outro jeito, Bourdieu assinala os limites do ponto de vista objetivista e objetivante, inclinado a captar as práticas pelo aspecto externo, como algo pronto, em lugar de construir o princípio gerador de tais práticas em meio ao movimento de sua constitui- ção. A dupla pretensão teórica consistiria em repor o conhecimento sobre Bourdieu e a renovação da sociologia contemporânea da cultura Tempo Social – USP7 2 resposta às minhas indagações curiosas, ele havia se empenhado em coligir uma documentação circunstanciada a respeito de Manet e estava a par da for- nada de monografias que lhe foram consagradas nos últimos anos2. Talvez estivesse preferindo apurar a elaboração de um argumento analítico sobre o líder impressionista, ou então, quem sabe, estaria guardando munição e investidas iluminadoras para um repertório de exemplos a serem incorpora- dos ao acerto de contas com a teoria do campo. O terceiro capítulo das Meditações pascalianas escarafuncha as dimensões centrais do conceito de campo. Logo de saída, em vez de a ênfase recair sobre a vertebração interna, ou melhor, sobre divisões e conflitos que possam en- volver agentes posicionados em confronto, Bourdieu prefere explorar seu “princípio de visão e de divisão”, ou, para usar sua expressão, sua “lei funda- mental”, a qual reitera a adesão de todos os agentes aos sentidos que estão na raiz de sua existência arbitrária, à ilusão instituinte de todos os móveis de interesse e de luta para os que se encontram enredados no jogo. Entre as muitas acepções surpreendentes nessa formulação, basta salientar o quanto Bourdieu empenhou-se em desbastá-la como sucedâneo de um fundamento, capaz, em última análise, de dar conta de sua arbitrariedade. Ao contrário, ele insistiu em frisar o elemento de liga como uma ilusão produzida coletivamente, em condições de configurar seu próprio objeto e, por conseguinte, de derivar daí os princípios de compreensão e de explica- ção que lhe sejam ajustados. Trata-se, pois, de um microcosmo social cuja história faz as vezes de uma espécie de inconsciente epistêmico, a institucio- nalização de um ponto de vista nas coisas e nos habitus, um espaço legítimo de discussão, de consenso sobre o dissenso, tornando todos os agentes aí envolvidos em participantes enredados de corpo e alma, por inteiro, nas crenças que sustentam a adesão aos móveis de interesse suscitados pelo jogo, inscrito na ação cotidiana, nas rotinas, “das coisas que se faz e que se faz porque se fazem e na verdade sempre se fez assim” (Bourdieu, 1997, p. 123). Como microcosmos, os campos (filosófico, literário, artístico, jurídico, re- ligioso, científico etc.) constituem mundos sociais idênticos, dotados de con- centrações de poder e capital, monopólios, relações de força, conflitos e, ao mesmo tempo, universos de exceção, quase miraculosos, nos quais as másca- ras da razão se encontram entranhadas na realidade das estruturas e das dispo- sições. Cumpre, assim, focalizar as formas específicas de interesse, de energia, de pulsão, de investimento, que orientam os agentes em suas lutas pela con- quista das moedas correntes em cada um deles. Nessa acepção de um regime de racionalidade, soldado por constrições racionais, o campo equivale a uma estrutura de trocas sociais, dependente de disposições que fazem operar o sistema simbólico que lhe é inerente, ajusta- 2. Entre elas, sem dúvida, o trabalho mais impor- tante é a obra de Clark, The painting of modern life, Paris in the art of Manet and his followers [1984], com edição revista em 1999 e novo prefácio. 7 3abril 2003 Sergio Miceli do às regras que o definem e que se impõem aos agentes com a força de um constrangimento lógico e social, ou seja, da ordem de uma experiência vivi- da e reconhecida pelos agentes como prenhe de sentido e significação con- forme os princípios daquele universo de exceção regrada. O leitor atento já terá notado a adoção entusiasta de diversos termos proce- dentes da teoria psicanalítica freudiana – pulsões, sublimação, por exemplo –, decerto recepcionadas por força da necessidade de enganchar a idéia de cam- po nesse terreno de negociação entre, de um lado, um legado de lutas e enfrentamentos transmutados em instituições, formas de autoridade, lingua- gens, instâncias especializadas e, de outro, o torvelinho de práticas e investi- mentos pelos quais os agentes vão buscando encontrar razões capazes de jus- tificar sua existência. O campo pode ser, portanto, exemplificado como uma “forma de vida”, ou seja, um espaço social acoplado a um sistema simbólico. Antes de passarmos ao exame da análise do romance de Flaubert, vale a pena determo-nos um instante na imagem exemplar por meio da qual Bourdieu insinua as balizas estruturais do trabalho escolástico: “Artista, escri- tor, erudito, cada um deles, quando se dispõe a trabalhar, acaba atuando como um compositor diante de seu piano, que oferece à invenção na escrita – e na execução – possibilidades aparentemente ilimitadas, ao mesmo tempo im- pondo constrições e limites inscritos em sua estrutura (por exemplo, por conta da extensão do teclado que impõe uma certa tessitura), ela própria determinada por sua fatura; constrições e limites que também estão presentes nas disposições do artista, por sua vez tributárias das possibilidades do instru- mento, mesmo que os revelem e os façam existir mais ou menos completa- mente” (Bourdieu, 1997, pp. 138-139). Tencionava, nessa fórmula abrangente, desentranhar a parcela de engenho e arte, contida nas práticas sociais, em especial no trabalho de criação intelec- tual, resultante desse confronto entre habitus, como depósitos de disposições marcados a fundo pela história de que são procedentes, e campos no interior dos quais dão curso regrado às suas potencialidades. Não se trata, bem enten- dido, de forçar uma saída, optando ora pelo “sujeito”, tal como procedem a etnometodologia ou o idealismo, ora pelo espaço social, renomeado como “campo”. Ao recusar esse falso dilema, Bourdieu passa a insistir na necessidade de buscar no campo as condições sociais de operação do sujeito e de sua atividade de elaboração do objeto, cravando lentes tanto nas conquistas como nos limites de seus atos e práticas de objetivação. Em sua voz, “as condições de possibilidade do conhecimento científico e a de seu objeto são a mesma coisa” (Bourdieu, 1997, p. 143). No meu entender, a análise do romance A educação sentimental, de Flaubert, constitui o experimento sociológico mais bem-sucedido de Bourdieu no Bourdieu e a renovação da sociologia contemporânea da cultura Tempo Social – USP7 4 campo da sociologia da cultura. Ainda que tenha projetado tal análise como abertura de um livro que, fosse outro o começo, poder-se-ia sem mais tachá-lo como reducionista nos antigos sentidos de uma sociologia “dura”, sem imagi- nação, tem-se a impressão, à medida que avança sua leitura do romance, o quanto o sociólogo foi se deixando empolgar pelos procedimentos e recur- sos criativos de Flaubert. Tamanha identidade projetiva e o palpável entusias- mo pelos resultados da criação literária decerto contribuíram para uma apreen- são bem mais burilada dos materiais expressivos da ficção e, por conseguinte, pelo registro cuidadoso dos expedientes literários mobilizados por Flaubert, os quais, no limite, forçaram-no a refletir acerca das semelhanças e das dife- renças entre a criação literária e a análise sociológica. A despeito do que se poderia temer, ou melhor, para decepção de seus detratores, a análise do romance escora-se quase por completo em materiais fornecidos pela obra. E mesmo no terceiro anexo desse texto, a projeção das trajetórias dos personagens no mapa urbano parisiense efetua, a rigor, uma representação espacial de histórias de vida romanescas, sem um naco interpretativo de Bourdieu3 . São pontuais as referências à revolução de 1848, invocação de praxe em monografias recentes, ou a quaisquer datas, eventos ou personagens históricos, como que abrindo mão de converter o romance em “documento sociológico ou histórico”. Portanto, não se percebe ne- nhum apreço especial por informações de contexto, ou por elementos anedóticos que pudessem servir ao deslindamento do enredo. Tudo se passa como se o romance tivesse o dom mágico, quase miraculoso, de haver produ- zido uma ilusão fervilhante de vida, tão ou mais aliciante do que o compacto histórico da sociedade francesa em meados do século XIX. O romance acaba impondo-se como prova contundente e persuasiva da força da literatura, esse invento que tomou alento e brilho próprio justamen- te em mãos de autores inovadores, como Flaubert ou Baudelaire, que tiveram meios e recursos para uma reinvenção da vida e do trabalho do escritor e do artista, assunto de que trata em detalhe a segunda parte do livro (cf. Bourdieu, 1992), consagrada às etapas decisivas de constituição do campo literário francês. Poder-se-ia talvez concentrar numa fórmula a receita literária empregada por Flaubert para dar notável verossimilhança à ilusão romanesca em meio a qual se enredam, primeiro, os personagens, em seguida, o próprio romancista como narrador e espectador, depois os leitores, dentre os quais até mesmo Bourdieu, o sociólogo que se sentiu chacoalhado por esse arrastão tão bem talhado de mundo social, empolgante e arrebatador. No intento de diferir ao máximo o desfecho dessas vidas cruzadas e, ao mesmo tempo, de dilatar a progressão de injunções sociais inelutáveis, Flaubert configurou um grupo de jovens, com disposições muitíssimo variáveis em termos de projetos e carrei- 3. Ver o Anexo 3, “Le Pa- ris de l’éducation senti- mentale”, Bourdieu (1992, pp. 68-71). 7 7abril 2003 Sergio Miceli por completo. A formatação ficcional eufemiza e destitui de realidade por meio de uma alquimia expressiva. Assim, a expressão literária logra o feito de formatar a manifestação de uma verdade que, fosse ela vazada de outro modo, tornar-se-ia insuportável. “O ‘efeito de real’ é essa forma particular de crença que a ficção literária produz por meio de uma referência denegada ao real designado, o qual permite, ao mesmo tempo, saber e ignorar do que se trata verdadeiramente” (Bourdieu, 1992, p. 60). A leitura sociológica teria o condão de romper o charme dessa ficção emo- cionante do mundo social, contanto que se disponha a recuperar os lances criativos e desveladores do trabalho literário. Dito de outro modo, a objetivação literária ganha em emoção e arrebatamento ao fazer uma enunciação cifrada, apoiada nas estruturas mais recalcadas e profundas, enquanto a análise socio- lógica ganha em verdade e amplitude ao revelar por que se diz o que não se diz. Como dizia Flaubert, só se pode “viver todas as vidas” por meio da escrita ou da leitura, pois se tratam de maneiras de não vivê-las de fato. A essa altura do esforço de desvendamento do trabalho literário, agora revelado nos traços que partilha com outras modalidades de restituição da experiência social, emerge a illusio, o investimento no jogo, como o princípio de funcio- namento de todos os campos sociais. As formas mais radicais da ilusão romanesca tendem a abolir a fronteira entre a realidade e a ficção, e encontram seu princípio na experiência da reali- dade como ilusão, à maneira exaltada e quase perfeita com que procede Frédéric como um analista formidável de nossa relação mais profunda com o mundo social. Por sua vez, a sociologia busca objetivar a ilusão romanesca, em espe- cial a relação com o chamado mundo real aí implicada, ao lembrar apenas “que a realidade perante a qual mensuramos todas as ficções não é senão o referente reconhecido de uma ilusão (quase) universalmente partilhada” (Bourdieu, 1992, p. 62). Os achados analíticos desse texto (Bourdieu, 1992) sobre Flaubert confir- mam os aperfeiçoamentos logrados por Bourdieu em seu emprego dos con- ceitos de habitus e de campo. Embora possa parecer trivial, não poderia haver nenhuma sociologia da cultura caso Bourdieu não dispusesse de uma teoria regional dos fatos culturais, ou seja, se não estivesse em condições de fornecer os instrumentos de prospecção e análise dos processos de fabricação tanto dos produtores culturais como das próprias condições que presidem à elaboração das diferentes modalidades de obras culturais. Não pode haver sequer a admis- são de uma atividade cultural sem um vocabulário crítico e expressivo em condições de dar-lhe existência e foros de identidade. O campo constitui o instrumento por excelência, por meio do qual se procede ao progressivo reconhecimento histórico dos processos que estão na Bourdieu e a renovação da sociologia contemporânea da cultura Tempo Social – USP7 8 raiz da gênese e desenvolvimento das atividades culturais nas modernas so- ciedades capitalistas. Não se trata apenas de evocar um conceito-ônibus em substituição às noções inclusivas e totalizantes de sistema ou estrutura; cumpre de imediato lembrar o lado oco e esvaziado dessa forma de nomeação, pronta a adquirir os contornos e feições particulares da atividade cultural a cuja resti- tuição se presta o conceito. Embora a noção de campo possa requerer uma apreensão meditada das relações competitivas de força envolvendo os grupos de agentes aí posicionados, o maior desafio posto ao conceito e, por conse- guinte, às análises inspiradas em tal modelo, consistiria em lograr uma re- construção circunstanciada, atenta e colada aos idiomatismos e esquisitices da cultura interna sob exame, da história social de um dado domínio da ativida- de cultural. Essa história sociologicamente norteada mapeia os processos de invenção e institucionalização da atividade cultural, realçando o estofo de experiências sociais conducentes à formação de categorias especializadas de produtores e consumidores, à emergência de mercados internos de circulação de obras, auto- res e linguagens, e à explicitação dos encadeamentos do trabalho cultural com os demais espaços de sociabilidade, em especial com a economia e a política. O conceito de campo deveria ainda permitir um resgate dos fundamen- tos capazes de esclarecer a illusio como forma espraiada de crença num dado espaço de sociabilidade, ao recuperar os sentidos do envolvimento de todos nós com o jogo no qual nos lançamos por inteiro, rendidos, incondicional- mente. E nesse passo de compreensão dos aspectos mais extravagantes que configuram o rosto peculiar de um domínio de atividade social dotado de certa margem de autonomia, a idéia de campo propicia a junção entre aspec- tos morfológicos derivados do contexto e dimensões de sentido enunciadas em meio às lutas classificatórias envolvendo os diversos grupos de agentes. O campo é o conceito do entendimento circunstanciado da atividade cultural ou simbólica, o marcador teórico de um grau elevado de ambição sociológica, a garantia de um tratamento aprofundado da atividade cultural nos registros-chave de seu adensamento, a exigência de uma apreensão con- trastiva e relacional de autores, obras e linguagens, em suma a prova mais acabada e conseqüente do que deveria ser a teoria e a prática analítica de uma sociologia contemporânea da cultura. Referências Bibliográficas BOURDIEU, P. & PASSERON, J. C. (1967), “Sociology and philosophy in France since 1945: death and resurrection of a philosophy without subject”. Social Research, XXXIV: 162- 212, Nova York. 7 9abril 2003 Sergio Miceli BOURDIEU, Pierre. (1967), “Posfácio”. In: PANOFSKY, Erwin. Architecture gothique et pensée scolastique, Paris, Éditions de Minuit, pp. 133-167. Tradução de Pierre Bourdieu. _____. (1971a), “Champ du pouvoir, champ intellectuel et habitus de classe”. Scolies, Cahiers de Recherche de l’École Normale Supérieure, 1: 7-26, Paris. _____. (1971b), “Genèse et structure du champ religieux”. Revue Française de Sociologie, XII (3): 295-334, Paris. _____. (1972), Esquisse d’une théorie de la pratique, précédé de trois études d’ethnologie kabyle. Genève, Droz. _____. (1992), Les règles de l’art, genèse et structure du champ littéraire. Paris, Éditions du Seuil. _____. (1997), Méditations pascaliennes. Paris, Seuil. CLARK, T. J. (1999), The painting of modern life, Paris in the art of Manet and his followers. 1 ed. 1984, New Jersey, Princeton University Press. SARTRE, Jean-Paul. (1971), L’Idiot de la famille, Gustave Flaubert. Paris, Gallimard. Resumo O artigo examina a sociologia da cultura de Pierre Bourdieu à luz de três conceitos chaves – as noções de prática, habitus e campo –, buscando, de um lado, apreender os significados cambiantes desses termos em diferentes momentos da trajetória intelectual do autor e, de outro, ressaltando as conexões entre os objetos empíricos abordados e os respectivos modelos de interpretação sociológica da vida intelectual e cultural ancorados nesse paradigma. Palavras-chave: Bourdieu; Estruturalismo; Estrutura; Prática; Habitus; Campo; Sociologia da cultura. Abstract The article examines Pierre Bourdieu’s sociology of culture and three key concepts – the notions of practice, habitus and field –, with the aim of, on the one hand, studying the changing meanings of these terms at different periods of the author’s intellectual development and, on the other, highlighting the links between the empirical objects analyzed and the respective models of sociological interpretation of intellectual and cultural life anchored on this paradigm. Key words: Bourdieu; Structuralism; Structure; Practice; Habitus; Field; Sociology of culture. Sergio Miceli é profes- sor titular de Sociologia na Universidade de São Paulo e autor, entre ou- tras obras, de Intelectuais à brasileira (São Paulo, Cia. das Letras, 2001) e Na- cional estrangeiro: história social e cultural do moder- nismo artístico em São Pau- lo (São Paulo, Cia. das Le- tras, 2003).
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