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Guias e Dicas
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Educação Anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal 10639/03, Manuais, Projetos, Pesquisas de Matemática

Livro: Coleção Educação para todos

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2010

Compartilhado em 06/03/2010

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Equipe Técnica – Ana Flávia Magalhães Pinto Andréia Lisboa de Sousa Denise Botelho Edileuza Penha de Souza Iraneide Soares da Silva Irinéia Lina Cesário Maria Lúcia de Santana Braga Coordenação editorial: Ana Flávia Magalhães Pinto Andréia Lisboa de Sousa Maria Lúcia de Santana Braga Sales Augusto dos Santos Revisão: Lunde Braghini Diagramação: Roosevelt Silveira de Castro Capa: Thiago Gonçalves da Silva Tiragem: 10.000 exemplares SECAD – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade SGAS Quadra 607, Lote 50, Sala 205 Brasília – DF CEP:70.200-670 (61) 2104-6183 Os autores são responsáveis pela escolha e apresentação dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opiniões nele expressas, que não são necessariamente as da Secad, nem comprometem a Secretaria. As indicações de nomes e a apresentação do material ao longo deste livro não implicam a manifestação de qualquer opinião por parte da Secad a respeito da condição jurídica de qualquer país, território, cidade, região ou de suas autoridades, nem tampouco a delimitação de suas fronteiras ou limites. SUMÁRIO Apresentação Ricardo Henriques .......................................................................................................7 Introdução Eliane dos Santos Cavalleiro ...................................................................................11 Parte I – Contextualização da Lei no10.639/03 A Lei no 10.639/03 como fruto da luta anti-racista do Movimento Negro Sales Augusto dos Santos .........................................................................................21 Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão Nilma Lino Gomes ...................................................................................................39 Parte II – Por uma educação anti-racista Discriminação racial e pluralismo em escolas públicas da cidade de São Paulo Eliane dos Santos Cavalleiro ...................................................................................65 Linguagens escolares e reprodução do preconceito Francisca Maria do Nascimento Sousa .............................................................. 105 Africanidade e religiosidade: uma possibilidade de abordagem sobre as sagradas matrizes africanas na escola Nelson Fernando Inocêncio da Silva .................................................................. 121 Parte III – Dimensões do ensino da trajetória dos povos negros no Brasil Novas bases para o ensino da história da África no Brasil Carlos Moore Wedderburn ................................................................................... 133 A África, a educação brasileira e a geografia Rafael Sanzio Araújo dos Anjos .......................................................................... 167 A Representação da Personagem Feminina Negra na Literatura Infanto-Juvenil Brasileira Andréia Lisboa de Sousa ....................................................................................... 185 Ancestralidade e convivência no processo identitário: a dor do espinho e a arte da paixão entre Karabá e Kiriku Marcos Ferreira dos Santos ................................................................................... 205 Sobre os autores ...................................................................................................... 231 9 outros ministérios e órgãos federais, estaduais e municipais, em parcerias entre si e com os Movimentos Sociais Negros, entre outros movimentos sociais. Estamos certos de que essa publicação irá ajudar a consolidar o caminho para a construção de uma luta anti-racista sólida no interior do Estado e na sociedade brasileira. Será a primeira publicação de uma série, outras a sucederão, com as quais pretendemos eliminar o foco eurocêntrico da educação brasileira, diversificando cultural, racial, social e politicamente os currículos escolares brasileiros. Ricardo Henriques Secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade 11 INTRODUÇÃO A Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), do Ministério da Educação (MEC), entre seus objetivos, busca oferecer às professoras e aos professores informações e conhecimentos estratégicos para a compreensão e o combate do preconceito e da discriminação raciais nas relações pedagógicas e educacionais das escolas brasileiras. À luz do alcance da dinâmica das relações raciais no âmbito da educação, esse reconhecimento figura como um passo importante, uma condição necessária para enfrentarmos o racismo brasileiro. Da mesma sorte, o melhor entendimento do racismo no cotidiano da educação também é condição sine qua non para se arquitetar um novo projeto de educação que possibilite a inserção social igualitária e destravar o potencial intelectual, embotado pelo racismo, de todos(as) os(as) brasileiros(as), independentemente de cor/raça, gênero, renda, entre outras distinções. Tal fato contribuirá para o desenvolvimento de um pensamento comprometido com o anti-racismo, combatente da idéia de inferioridade/superioridade de indivíduos ou de grupos raciais e étnicos, que caminha para a compreensão integral do sujeito e no qual a diversidade humana seja formal e substantivamente respeitada e valorizada. Na educação brasileira, a ausência de uma reflexão sobre as relações raciais no planejamento escolar tem impedido a promoção de relações interpessoais respeitáveis e igualitárias entre os agentes sociais que integram o cotidiano da escola. O silêncio sobre o racismo, o preconceito e a discriminação raciais nas diversas instituições educacionais contribui para que as diferenças de fenótipo entre negros e brancos sejam entendidas como desigualdades naturais. Mais do que isso, reproduzem ou constroem os negros como sinônimos de seres inferiores. O silêncio escolar sobre o racismo cotidiano não só impede o florescimento do potencial intelectual de milhares de mentes brilhantes nas escolas brasileiras, 14 Uma educação anti-racista não só proporciona o bem-estar do ser humano, em geral, como também promove a construção saudável da cidadania e da democracia brasileiras. Portanto, nós, educadores(as) brasileiros(as), necessitamos urgentemente contemplar no interior das escolas a discussão acerca das relações raciais no Brasil, bem como de nossa diversidade racial. Nessa linha, é preciso não só boa vontade e sensibilidade dos profissionais da educação, mas também o fornecimento de material didático-pedagógico anti-racista e recursos auxiliares aos professores para que possam ministrar aulas combatendo o preconceito e a discriminação raciais. É com esse objetivo que a Secad publica este livro. Trata-se apenas de um dos instrumentos – não mais nem menos importante que outros – na luta anti-racista no cotidiano escolar. Esse esforço vai no sentido de contribuir para que se forje uma educação inclusiva, livre de preconceitos, democrática e não etnocêntrica. Assim, esse livro visou a reunir trabalhos de autores que trazem reflexões acerca da implementação da Lei no 10.639, de 9 de Janeiro de 2003, sancionada pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, por meio da qual se torna obrigatório o ensino sobre História e Cultura Africanas e Afro-brasileiras nos estabelecimentos de Educação Básica, oficiais e particulares. Parte dos textos presentes nesta obra mantém estreita relação com os Fóruns Estaduais de Educação e Diversidade Étnico-Racial, que foram organizados pela Secad, no ano de 2004, em parceira com as Secretarias Estaduais de Educação, com os Movimentos Sociais Negros e com Universidades Federais. O livro está dividido em três partes. A primeira parte refere-se à “Contextualização da Lei no 10.639”, na qual se abordam a luta histórica dos Movimentos Sociais Negros por uma educação anti-racista, bem como os conceitos necessários à iniciação do estudo das relações raciais no Brasil. Essa seção conta com apenas dois artigos. A segunda parte, intitulada “Por uma educação anti-racista”, conta com quatro artigos que tratam de aspectos do racismo em sala de aula. Essa parte do livro buscar situar o racismo no cotidiano escolar, encarando-o como um problema central a ser enfrentado no processo de promoção de uma educação anti-racista. A terceira parte do livro, “Ensino de História da África no Brasil”, almeja não apenas nos aproximar do mundo africano, por meio do conhecimento científico, para o compreendermos melhor, como também atacar a ausência de ensinamentos a esse respeito no Brasil. Dessa sorte, de forma mais detalhada, na seção “Contextualização da Lei no 10.639”, temos o artigo “A Lei no 10.639/2003 como fruto da luta anti-racista 15 do Movimento Negro”, de Sales Augusto dos Santos, pesquisador e organizador deste livro. O autor busca demonstrar que essa lei não surgiu do nada ou da boa vontade política, mas é sim resultado de anos de lutas e pressões do Movimento Social Negro por uma educação não eurocêntrica e anti-racista. Santos demonstra, por meio das agendas de reivindicações do Movimento Negro ao longo do século XX, que a reivindicação pela obrigatoriedade do ensino da história do continente africano em sua diversidade, dos africanos, da luta dos negros no Brasil, da cultura negra brasileira e dos negros na formação da sociedade brasileira sempre perpassou as demandas apontadas pelo Movimento Negro para o Estado brasileiro. Essa exigência constava, por exemplo, na declaração final do I Congresso do Negro Brasileiro, que foi promovido pelo Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1950. Portanto, para Santos, o Movimento Negro, bem como muitos intelectuais negros engajados na luta anti-racista, levaram mais de meio século para conseguir formalmente a obrigatoriedade do ensino supracitado. O segundo e último artigo desta parte do livro, “Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão”, da professora Nilma Lino Gomes, apresenta a discussão de alguns termos e conceitos-chave utilizados no debate sobre as relações raciais no Brasil, tais como: identidade, identidade negra, raça, raça social, etnia, diversidade cultural, racismo, preconceito racial, discriminação racial, etnocentrismo e democracia racial. A discussão é realizada a partir do diálogo entre a produção acadêmica e os movimentos sociais, na tentativa de articular a reflexão teórica, a discussão política e o campo educacional. Foram escolhidos como principais interlocutores teóricos de diversas áreas do conhecimento que problematizam o campo das relações raciais, assim como artigos já escritos pela própria autora. Trata-se de uma discussão de conceitos fundamentais para os educadores que desejam iniciar e aprofundar o conhecimento sobre as relações raciais brasileiras. O artigo “Discriminação racial e pluralismo em escolas públicas da cidade de São Paulo”, de minha autoria, dá início ao conjunto de textos que compõem a segunda parte desta obra, “Por uma educação anti-racista”. A fim de contribuir no processo de elucidação dos aspectos apresentados pelos autores que criticam o ensino pautado numa conceituação etnocêntrica, que privilegia os padrões estéticos, culturais e sociais branco-europeus, esse artigo é resultado de uma pesquisa etnográfica sobre as relações raciais em três escolas públicas de São Paulo, que realizei nos anos de 2003 e 2004. Por essa ocasião, identifico o quanto o racismo impregnado nas relações sociais prejudica o aprendizado dos 16 estudantes, bem como a participação desses, de seus pais e dos profissionais negros que transitam em escolas públicas. Na seqüência, figura o artigo de Francisca Maria do Nascimento Sousa, “Linguagens escolares e reprodução do preconceito”, o qual tem por objetivo discutir a influência da escola no processo de construção da auto-estima de alunos(as) negros(as), principalmente a partir da análise das diversas modalidades de linguagem utilizada para realizar o seu processo educativo. A autora procura demonstrar como as linguagens verbal e não-verbal têm dificultado o desenvolvimento de uma auto-estima positiva por parte dos(as) estudantes negros(as), e como essas têm ajudado a solidificar concepções preconceituosas e discriminatórias em relação a esse segmento da população brasileira. O terceiro artigo da segunda parte, “Africanidade e religiosidade: uma possibilidade de abordagem sobre as sagradas matrizes africanas na escola”, é de autoria do professor Nelson Fernando Inocêncio da Silva. O autor procura colocar no centro da discussão certos limites que emperram o desenvolvimento de atividades relacionadas aos estudos das tradições de matriz africana no ambiente escolar. Silva reconhece a necessidade de refletirmos sobre o significado de uma escola laica e sugere formas de tratamento das mitologias negras na escola que não equivalham à doutrinação religiosa. Propõe também algumas alternativas que possam permitir a superação de noções preconcebidas, as quais em muito têm contribuído para a manutenção da resistência entre os(as) estudantes(as) no que concerne aos conteúdos que tratam da cultura negra, em particular aqueles que aludem ao universo mítico e religioso. Nelson F. Inocêncio da Silva procura demonstrar que os posicionamentos contrários a essa abordagem são constantemente permeados pelo medo, constituindo-se em uma espécie de “negrofobia”. Abrindo a terceira e última parte do livro, “Ensino da História dos Povos Negros no Brasil”, temos o artigo “Novas bases para o ensino da História da África no Brasil – concepções preliminares”, do professor Carlos Moore Wedderburn. O objetivo central do artigo é o fornecimento informações e conhecimentos para a introdução do ensino de História da África no Brasil, atentando-se para o fato de essa área de conhecimento das ciências humanas ser “um campo fértil para a subjetividade” e necessitar, portanto, da produção de um “conhecimento orgânico”. Carlos Moore nos alerta que, em geral, as correntes históricas adotadas pelos historiadores banalizam os efeitos do racismo. Nessa linha, o autor acrescenta que, para se valorizar a participação da cultura africana perante a humanidade, como um todo, fazem-se necessárias a E. quE e, D VS “ego pas qNda'c, Opog-0" Parte CONTEXTUALIZAÇÃO DA LEI Nº 10.639/03 21 A LEI Nº 10.639/03 COMO FRUTO DA LUTA ANTI-RACISTA DO MOVIMENTO NEGRO Sales Augusto dos Santos A abolição da escravatura no Brasil não livrou os ex-escravos e/ou afro- brasileiros (que já eram livres antes mesmo da abolição em 13 de maio de 1888) da discriminação racial e das conseqüências nefastas desta, como a exclusão social e a miséria. A discriminação racial que estava subsumida na escravidão emerge, após a abolição, transpondo-se ao primeiro plano de opressão contra os negros. Mais do que isso, ela passou a ser um dos determinantes do destino social, econômico, político e cultural dos afro-brasileiros (HASENBALG, 1979; SANTOS, 1997). Deixados à própria sorte, conforme expressão de Florestan Fernandes (BASTIDE e FERNANDES, 1955; FERNANDES, 1978), e, além disso, sem capital social1, ou seja, sem o conjunto de relacionamentos sociais influentes que uma família ou um indivíduo tem para a sua manutenção e reprodução, logo os ex-escravos perceberam que a luta pela liberdade fôra apenas o primeiro passo para a obtenção da igualdade ou, se se quiser, para a igualdade racial, pois o racismo não só permanecia como inércia ideológica, como também orientava fortemente a sociedade brasileira no pós-abolição. Tornou-se necessário lutar pela “segunda abolição” (BASTIDE e FERNANDES, 1955; FERNANDES, 1978) e os negros perceberam rapidamente que tinham que criar técnicas sociais para melhorar a sua posição social e/ou obter mobilidade social vertical, visando superar a condição de excluídos ou miseráveis. A valorização da educação formal foi uma das várias técnicas sociais empregadas pelos negros para ascender de status. Houve uma propensão dos 1 O capital social é o conjunto de recursos atuais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de intercâmbio e de inter-reconhecimento ou, em outros termos, à vinculação de um grupo, como conjunto de agentes que não somente são dotados de propriedades comuns (passíveis de serem percebidas pelo observador, pelos outros ou por eles mesmos), mas também são unidos por ligações permanentes e úteis (BOURDIEU, 1998: 67). 24 A Lei nº 10.639/03 como fruto da luta anti-racista do Movimento Negro o ressurgimento dos movimentos sociais negros em 19785. Segundo Carlos Hasenbalg (1987), a agenda de reivindicações das entidades negras contemplava basicamente as seguintes áreas: racismo, cultura negra, educação, trabalho, mulher negra e política internacional. Na educação, a parte que nos interessa mais imediatamente aqui, as reivindicações eram, entre outras, as seguintes: • Contra a discriminação racial e a veiculação de idéias racistas nas escolas. • Por melhores condições de acesso ao ensino à comunidade negra. • Reformulação dos currículos escolares visando à valorização do papel do negro na História do Brasil e a introdução de matérias como História da África e línguas africanas. • Pela participação dos negros na elaboração dos currículos em todos os níveis e órgãos escolares (HASENBALG, 1987). O sociólogo Carlos Hasenbalg publicou os pontos desta agenda em 1987, mas a Convenção Nacional do Negro pela Constituinte, realizada em Brasília- DF, nos dias 26 e 27 de agosto de 1986, com representantes de sessenta e três Entidades do Movimento Negro, de dezesseis estados da federação brasileira, com um total de cento e oitenta e cinco inscritos, indicou “aos dirigentes do país, e, em especial deferência, a todos os membros da ‘Assembléia Nacional Constituinte-87’”, as seguintes reivindicações6: • O processo educacional respeitará todos os aspectos da cultura brasileira. É obrigatória a inclusão nos currículos escolares de I, II e III graus, do ensino da história da África e da História do Negro no Brasil; • Que seja alterada a redação do § 8ª do artigo 153 da Constituição Federal, ficando com a seguinte redação: “A publicação de livros, jornais e periódicos não dependem de licença da autoridade. Fica proibida a propaganda de 5 Não devemos esquecer que no período da recente ditadura militar brasileira, de 1964 a 1985, ocorreu um grande refluxo nos movimentos sociais, especialmente entre 1964 e 1977. As organizações sociais negras não desapareceram por completo (ANDREWS, 1998), de vez que ainda havia muitas entidades negras em atividade em São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Rio Grande do Sul, entre outros estados, mas esse período não foi dos mais propícios para a militância negra anti-racista, pelo menos para aquela de orientação explicitamente mais política, como a que emergirá em 1978. Na realidade, no auge da ditadura militar nem no campo acadêmico houve liberdade para se pesquisar e/ou discutir a questão racial no Brasil. Conforme Carlos Alfredo Hasenbalg, “o período que vai aproximadamente de 1965 até o final da década de 1970 não foi dos mais estimulados para pesquisar e escrever sobre as relações raciais no Brasil: o tema racial passou a ser definido como questão de ‘segurança nacional’. Em 1969, as aposentadorias compulsórias atingiram os mais destacados representantes da escola paulista de relações raciais. Além disso, houve falta de dados: por ‘motivos técnicos’ a pergunta sobre a cor foi eliminada do Censo Demográfico de 1970” (HASENBALG, 1995: 360). 6 Aqui indicaremos somente alguns itens das reivindicações que dizem respeito à educação. 25 Sales Augusto dos Santos guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de religião, de raça, de cor ou de classe, e as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes” (CONVENÇÃO, 1986). Reivindicações como estas na esfera educacional foram mais uma vez requeridas ao Estado brasileiro na primeira metade da década de noventa do século XX, quando foi realizado um dos eventos mais importante organizado pelas entidades negras brasileiras, a Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo, Pela Cidadania e a Vida. Esta foi realizada no dia 20 de novembro de 1995, em Brasília,7 quando os seus organizadores foram recebidos pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, no Palácio do Planalto. Mais uma vez as lideranças dos movimentos negros denunciaram a discriminação racial e condenaram o racismo contra os negros no Brasil. Mais do que isto, entregaram ao chefe de Estado brasileiro o Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade Racial 8, que continha várias propostas anti-racistas. No que diz respeito à educação podemos citar, entre outras: • Implementação da Convenção Sobre Eliminação da Discriminação Racial no Ensino. • Monitoramento dos livros didáticos, manuais escolares e programas educativos controlados pela União. • Desenvolvimento de programas permanentes de treinamento de professores e educadores que os habilite a tratar adequadamente com a diversidade racial, identificar as práticas discriminatórias presentes na escola e o impacto destas na evasão e repetência das crianças negras (EXECUTIVA, 1996). Alguns pontos desta histórica reivindicação dos movimentos sociais negros foram atendidos pelo governo brasileiro na segunda metade da década de 1990, como, por exemplo, a revisão de livros didáticos ou mesmo a eliminação de vários livros didáticos em que os negros apareciam de forma estereotipada, ou seja, eram representados como subservientes, racialmente inferiores, entre outras características negativas. Considerando as pressões anti-racistas e legítimas dos movimentos sociais negros, políticos de diversas tendências ideológicas, em vários estados e municípios brasileiros, reconheceram a necessidade de reformular as normas 7 Esta marcha foi organizada para reafirmar a resistência dos afro-brasileiros, simbolizada no Guerreiro Zumbi dos Palmares, contra o racismo e a desigualdades raciais. Ela contou com a presença de mais de trinta mil participantes (OLIVEIRA, LIMA e SANTOS, 1998). 8 Estas propostas estão em EXECUTIVA Nacional da Marcha Zumbi (1996). 26 A Lei nº 10.639/03 como fruto da luta anti-racista do Movimento Negro estaduais e municipais que regulam o sistema de ensino. Alguns municípios passaram a impedir a adoção de livros didáticos que disseminavam preconceito e discriminação raciais. As Leis Orgânicas dos Municípios de Salvador9 e Belo Horizonte, por exemplo, estabelecem no artigo 183, § 6ª e no artigo 163, § 4ª, respectivamente, que “é vedada a adoção de livro didático que dissemine qualquer forma de discriminação ou preconceito” (Leis Orgânicas dos Municípios de Salvador e Belo Horizonte apud Silva Junior, 1998: 115 e 173). Este mesmo objetivo é buscado na Lei Orgânica do Município de Teresina, promulgada em 26 de julho de 1999, artigo 223, inciso IX, que estabelece a “garantia de educação igualitária, com eliminação de estereótipos sexuais, racistas e sociais dos livros didáticos, em atividades curriculares e extracurriculares” (Lei Orgânica do Município de Teresina apud SOARES, 2001). Também percebemos esta preocupação na Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro, promulgada em 5 de abril de 1990, no artigo 321, inciso VIII, a qual estabelece que o ensino será ministrado com base no princípio de uma “educação igualitária, eliminando estereótipos sexistas, racistas e sociais das aulas, cursos, livros didáticos ou de leitura complementar e manuais escolares” (Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro apud SILVA JUNIOR, 1998: 212). Mais do que isso, as pressões dos movimentos negros e, conseqüentemente, suas articulações com políticos mais sensíveis à questão racial brasileira, tiveram como resultado a inclusão, por meio de leis, de disciplinas sobre a História dos Negros no Brasil e a História do Continente Africano nos ensinos fundamental e médio das redes estaduais e municipais de ensino, como veremos a seguir. Constituição do Estado da Bahia, promulgada em 05 de outubro de 1989: Art. 275. É dever do Estado preservar e garantir a integridade, a respeitabilidade e permanência dos valores da religião afro-brasileira e especialmente: ... IV- promover a adequação dos programas de ensino das disciplinas de geografia, história, comunicação e expressão, estudos sociais e educação artística à realidade histórica afro-brasileira, nos estabelecimentos estaduais de 1ª, 2ª e 3ª graus. ... 9 A Lei orgânica do Município de Belo Horizonte foi promulgada em 21 de março de 1990 e do Município de Salvador em 05/04/1990. 29 Sales Augusto dos Santos Art. 3ª O curso preparatório terá os seguintes conteúdos: a) migração e áreas de distribuição de grande alcance; povoamento indígena da América e do Brasil; b) diversidade étnica dos povos indígenas no Brasil; população, línguas e culturas. Sua geografia; c) culturas indígenas, aculturação e processo de articulação com a sociedade nacional brasileira; manutenção e reconstrução das identidades étnicas; d) sociedade nacional, identidade étnica e povos minoritários. Por uma construção da cidadania; e) migração forçada dos africanos para o Brasil, origem e concentração étnicas no Brasil; f) reagrupamento étnico e resistência dos escravos; g) persistência, emergência e reconstrução de identidades étnicas negras no Brasil; as revoltas dos escravos como fenômeno político; h) as atuais identidades étnicas dos negros no Brasil e suas manifestações. Art. 4ª O programa constante do art. 3ª é flexível e aberto às sugestões de setores da sociedade civil interessada na questão da educação do negro e do índio, e da educação dos membros da sociedade nacional, quanto aos problemas que enfrentam essas duas grandes categorias de cidadãos etnicamente identificados. Art. 5ª Cabe à Secretaria de Educação do Município, através de seus órgãos competentes, tomar as devidas providências para a implantação desta Lei. Art. 6ª Esta Lei entrará em vigor na data da sua publicação. Art. 7ª Revogam-se as disposições em contrário (Lei nª 2.221, de 30 de novembro de 1994, do município de Aracaju, estado de Sergipe apud SILVA JUNIOR, 1998: 293-294). Lei nª 2.251, de 31 de março de 1995, do município de Aracaju, estado de Sergipe: Art. 1ª Ficam incluídos, no currículo das escolas da rede municipal de ensino de 1ª e 2ª graus, conteúdos programáticos relativos ao estudo da 30 A Lei nº 10.639/03 como fruto da luta anti-racista do Movimento Negro raça negra, na formação sócio-cultural e política. Art. 2ª A rede municipal de ensino deverá adotar conteúdos programáticos que valorizem a cultura e a história do negro no Brasil. Art. 3ª Ao lado dos grandes eventos da história da captura e tráfico escravagista, da condição do cativeiro, das rebeliões e quilombos e da abolição, torna-se obrigatório o ensino sobre a condição social do negro, hoje, bem como sobre a produção cultural de origem afro-brasileira, com como dos movimentos organizados de resistência no decorrer da História Brasileira. Art. 4ª Para efeito de suprir a carência de bibliografia adequada, far-se-á levantamento da literatura a ser adquirida pelas bibliotecas escolares do Município. Art. 5ª A fim de qualificar o professor para a prática em sala de aula, no que diz respeito à matéria objeto da presente Lei, realizar-se-ão cursos, seminários e debates com o corpo docente das escolas municipais, com ampla participação da sociedade civil, em especial dos movimentos populares vinculados à defesa da cultura e da contribuição afro-brasileira. Art. 6ª A Secretaria Municipal de Educação promoverá a insterdisciplinariedade com o conjunto da área humana: Língua Portuguesa; Estudos Sociais; Geografia e Educação Religiosa e História, adequando o estudo da raça negra a cada caso. Art. 7ª É responsabilidade da Secretaria Municipal de Educação e da comunidade escolar, através dos Conselhos Escolares, propiciar o amplo debate da matéria constante no art. 3ª desta Lei, visando a superação do preconceito racista existente na sociedade. Art. 8ª Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação. Art. 9ª Revogam-se as disposições em contrário (Lei nª 2.251, de 31 de março de 1995 do município de Aracaju, estado de Sergipe apud SILVA JUNIOR, 1998: 295-296). Lei nª 11.973, de 4 de janeiro de 1996, do município de São Paulo, estado de São Paulo: Art. 1ª As escolas municipais de 1ª e 2ª graus deverão incluir em seus currículos “estudos contra a discriminação racial”. Parágrafo único. A inclusão referida no “caput” será realizada de acordo com os procedimentos estabelecidos pelas legislações federal e estadual e ficará condicionada à disponibilidade de carga horária. Art 2ª Regulamento definirá em qual disciplina os estudos contra a 31 Sales Augusto dos Santos discriminação racial serão realizados e a respectiva carga horária. Art.3ª O Poder Executivo disporá do prazo de 90 (noventa) dias para regulamentação da presente lei, a contar da data de publicação desta. Art. 4ª As despesas com a execução desta lei correrão por conta da dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário. Art. 5ª Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário (Lei nª 11.973, de 04 de janeiro de 1996, do município de São Paulo, estado de São Paulo apud SILVA JUNIOR, 1998: 276). Lei nª 2.639, 16 de março de 1998, do município de Teresina, estado do Piauí: Art. 1ª Fica inserido no Currículo da Escola Pública Municipal de Teresina a disciplina – VALORES TERESINENSES. Parágrafo Único. São considerados VALORES TERESINENSES para efeito desta Lei: I – a formação étnica da sociedade teresinense, especialmente, a história e as manifestações culturais da comunidade afro-piauiense; II – a literatura, a música, a dança, a pintura, o folclore e todas manifestações e produção artístico-culturais locais; III – os aspectos geográficos, históricos, paisagísticos e turísticos. Art. 2ª A Secretaria Municipal de Educação e Cultura ditará normas regulamentares para o cumprimento desta Lei. Art. 3ª Esta Lei entrará em vigor na data sua publicação. Art. 4ª Revogadas as disposições em contrário. Em Brasília, capital da república brasileira, também houve mudanças neste sentido. Em 13 de setembro de 1996, o então governador Cristovam Buarque10 sancionou a Lei nª 1.187 que dispõe sobre a introdução do “estudo da raça negra” como conteúdo programático dos currículos do sistema de ensino do Distrito Federal. Assim a Lei supracitada passou a vigorar com os seguintes artigos: Art. 1ª - O Estudo da raça negra é conteúdo programático dos currículos das escolas de 1ª e 2ª graus do Distrito Federal. § 1ª - No Estudo da raça negra, serão valorizados os aspectos sociais, culturais e políticos da participação do negro na formação do país. 10 Cristovam Buarque atualmente é senador da República e foi o primeiro ministro da educação do governo Lula. 34 A Lei nº 10.639/03 como fruto da luta anti-racista do Movimento Negro que há um erro grave nessa lei, dado que as principais críticas às nossas relações raciais têm sido elaboradas principalmente no campo das ciências sociais e mais recentemente na área de educação. A não consideração de que os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira deveriam ser ministrados especialmente nas áreas de ciências sociais e de educação, parece-nos um grande equívoco, pois, ao que tudo indica, são estas áreas que estão à frente da discussão das relações raciais brasileiras. Pensamos que tais limitações da lei podem inviabilizá-la, tornando-a inócua. Mais ainda, se em nível distrital, ou seja, em Brasília, onde os legisladores se preocuparam também com a qualificação dos professores ao aprovarem a Lei nª 1.187/1996, ao que parece, ainda não foram tomadas as providências necessárias para a implementação substantiva da mesma, o que podemos pensar quanto à implementação adequada da Lei nª 10.639, de 9 de janeiro de 2003, em nível nacional? Mesmo que a partir desse ano de 2005 se possa qualificar de forma ampla os professores de ensino fundamental e médio para ministrarem disciplinas sobre História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, não podemos ficar dependendo somente desse processo de qualificação. É fundamental que as universidades já formem professores qualificados para uma educação anti-racista e não eurocêntrica. Portanto, faz-se necessário pensar uma mudança profunda nos programas e/ou currículos das licenciaturas universitárias, uma vez que atualmente elas não são capazes de cumprir os objetivos da Lei nª 10.639/03. Os movimentos sociais negros, bem como muitos intelectuais negros engajados na luta anti-racismo, levaram mais de meio século para conseguir a obrigatoriedade do estudo da história do continente africano e dos africanos, da luta dos negros no Brasil, da cultura negra brasileira e do negro na formação da sociedade nacional brasileira. Contudo, torná-los obrigatórios, embora seja condição necessária, não é condição suficiente para a sua implementação de fato. Segundo o nosso entendimento, a Lei nª 10.639, de 9 de janeiro de 2003, apresenta falhas que podem inviabilizar o seu real objetivo, qual seja, a valorização dos negros e o fim do embranquecimento cultural do sistema de ensino brasileiro. A lei federal, simultaneamente, indica uma certa sensibilidade às reivindicações e pressões históricas dos movimentos negro e anti-racista brasileiros, como também indica uma certa falta de compromisso vigoroso com a sua execução e, principalmente, com sua a eficácia, de vez que não estendeu aquela obrigatoriedade aos programas de ensino e/ou cursos de graduação, especialmente os de licenciatura, das 35 Sales Augusto dos Santos universidades públicas e privadas, conforme uma das reivindicações da Convenção Nacional do Negro pela Constituinte, realizada em Brasília-DF, em agosto de 1986, citada anteriormente. Pensamos que é preciso não somente melhorar esta lei, considerando as falhas que apontamos acima, mas, principalmente, que é preciso uma pressão constante dos movimentos sociais negros e dos intelectuais engajados na luta anti-racismo junto ao Estado Brasileiro para que esta Lei não se transforme em letra morta do nosso sistema jurídico. Ou seja, é preciso mais do que nunca pressão sobre os governos municipais, estaduais e federal para que esta Lei seja executável. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDREWS, George Reid. Negros e Brancos em São Paulo (1888-1988). Bauru/ São Paulo: Edusc, 1998. BASTIDE, Roger e FERNANDES, Florestan (Orgs.). Relações Raciais entre Negros e Brancos em São Paulo. São Paulo: Anhembi, 1955. BOURDIEU, Pierre (1998). O capital social. In: NOGUEIRA, Maria A. e CATANI, Afrânio (Orgs.). Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes. BOURDIEU, Pierre (1998). Os três estados do capital cultural. In: NOGUEIRA, Maria A. e CATANI, Afrânio (Orgs.). Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes. BRASIL. Lei nª 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Diário Oficial da União de 10 de janeiro de 2003. BRASÍLIA. Lei nª 1.187, de 13 de setembro de 1996. Diário Oficial do Distrito Federal de 14 de setembro de 1996. CONVENÇÃO Nacional do Negro Pela Constituinte. Brasília: mimeo, agosto de 1986. EXECUTIVA Nacional da Marcha Zumbi. Por uma política nacional de combate ao racismo e à desigualdade racial: Marcha Zumbi contra o racismo, pela cidadania e vida. Brasília: Cultura Gráfica e Editora, 1996. 36 A Lei nº 10.639/03 como fruto da luta anti-racista do Movimento Negro FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. São Paulo: Ática, 3º Ed., 2 Vols., 1978 [1965]. HASENBALG, Carlos A. Entre o mito e os fatos: racismo e relações raciais no Brasil. Dados: Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, Vol. 38, n. 2, 1995. HASENBALG, Carlos A. O Negro nas Vésperas do Centenário. Estudos Afro- Asiáticos. (13): 79-86, 1987. . 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O uso destes, muitas vezes, causa discordâncias entre autores, intelectuais e militantes com perspectivas teóricas e ideológicas diferentes e, dependendo da área do conhecimento e do posicionamento político dos mesmos, pode até gerar desentendimentos. Os termos e conceitos revelam não só a teorização sobre a temática racial, mas também as diferentes interpretações que a sociedade brasileira e os atores sociais realizam a respeito das relações raciais. Nesse contexto, é importante destacar o papel dos movimentos sociais, em particular, do Movimento Negro, os quais redefinem e redimensionam a questão social e racial na sociedade brasileira, dando-lhe uma dimensão e interpretação políticas. Nesse processo, os movimentos sociais cumprem uma importante tarefa não só de denúncia e reinterpretação da realidade social e racial brasileira como, também, de reeducação da população, dos meios políticos e acadêmicos. É esse diálogo entre a produção acadêmica e os movimentos sociais que o presente texto privilegiará. Optou-se pela discussão dos termos e conceitos-chave mais utilizados quando nos referimos aos(às) negros(as) brasileiros(as) e não pela sua definição. Essa alternativa poderá nos aproximar da articulação entre a reflexão teórica, a prática social e o campo educacional. Como interlocutores dessa discussão foram escolhidos alguns(mas) teóricos(as) de diversas áreas do conhecimento que discutem as relações raciais, assim como produções da própria autora. Por último cabe um esclarecimento inicial. Negras são denominadas aqui as pessoas classificadas como pretas e pardas nos censos demográficos realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Conforme Sales 40 Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão Augusto dos Santos (2002), os dados estatísticos produzidos por instituições públicas brasileiras, como o IBGE e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA): Indicam que se justifica agregarmos pretos e pardos para formarmos, tecnicamente, o grupo racial negro, visto que a situação destes dois últimos grupos raciais é, de um lado, bem semelhante, e, de outro lado, bem distante ou desigual quando comparada com a situação do grupo racial branco. Assim sendo, ante a semelhança estatística entre pretos e pardos em termos de obtenção de direitos legais e legítimos, pensamos ser plausível agregarmos esses dois grupos raciais numa mesma categoria, a de negros. (...) a diferença entre pretos e pardos no que diz respeito à obtenção de vantagens sociais e outros importantes bens e benefícios (ou mesmo em termos de exclusão dos seus direitos legais e legítimos) é tão insignificante estatisticamente que podemos agregá-los numa única categoria, a de negros, uma vez que o racismo no Brasil não faz distinção significativa entre pretos e pardos, como se imagina no senso comum (SANTOS, 2002: 13). IDENTIDADE Segundo Philip Gleason (1980), apesar das inúmeras produções existentes e apesar de todos os esforços empenhados, ainda não conseguimos ter uma resposta satisfatória à pergunta: o que é a identidade? O referido autor afirma que o uso responsável do termo necessita de uma sensibilidade às complexidades intrínsecas ao assunto e maior atenção à demanda de precisão e consistência na sua aplicação. Porém, a enorme popularização do termo tem resultado em um efeito oposto, tornando o termo identidade cada vez mais difuso e próximo de um clichê, encorajando, assim, um crescente uso mais relaxado e irresponsável do mesmo. Se a discussão sobre a identidade já é permeada de tanta complexidade e usos diversos, o que não dizer quando a ela somamos os adjetivos pessoal, social, étnica, negra, de gênero, juvenil, profissional, entre outros? De acordo com o antropólogo Kabengele Munanga: A identidade é uma realidade sempre presente em todas as sociedades humanas. Qualquer grupo humano, através do seu sistema axiológico sempre selecionou alguns aspectos pertinentes de sua cultura para definir-se em contraposição ao alheio. A definição de si (autodefinição) e a definição dos outros ( identidade atribuída) têm funções conhecidas: a defesa da unidade do grupo, a proteção do território contra inimigos externos, as manipulações ideológicas por interesses econômicos, políticos, psicológicos, etc. (MUNANGA, 1994: 177-178). 41 Nilma Lino Gomes A antropóloga Silvia Novaes (1993), ao analisar a identidade nos diz que a mesma só pode ser usada no plano do discurso e aparece como um recurso para a criação de um nós coletivo — nós índios, nós mulheres, nós homossexuais, nós homens, nós negros, nós professores. De acordo com essa autora, esse nós se refere a uma identidade, no sentido de uma igualdade, que, na realidade, não pode ser verificada de maneira muito efetiva, mas torna-se um recurso indispensável ao sistema de representações que um grupo social qualquer terá condições de reivindicar para si um espaço social e político de atuação em uma situação de confronto: É importante perceber que o conceito de identidade deve ser investigado e analisado não porque os antropólogos decretaram sua importância (diferentemente do conceito de classe social, por exemplo), mas porque ele é um conceito vital para os grupos sociais contemporâneos que o reivindicam (NOVAES,1993: 24). A identidade não é algo inato. Ela se refere a um modo de ser no mundo e com os outros. É um fator importante na criação das redes de relações e de referências culturais dos grupos sociais. Indica traços culturais que se expressam através de práticas lingüísticas, festivas, rituais, comportamentos alimentares e tradições populares referências civilizatórias que marcam a condição humana. Portanto, a identidade não se prende apenas ao nível da cultura. Ela envolve, também, os níveis sócio-político e histórico em cada sociedade. Assim, a identidade vista de uma forma mais ampla e genérica é invocada quando “um grupo reivindica uma maior visibilidade social face ao apagamento a que foi, historicamente, submetido” (NOVAES,1993: 25). Ainda de acordo com Novaes (1993), esse processo pode ser notado quando nos referimos aos negros, aos índios, às mulheres, entre outros socialmente segregados. No Brasil, tal movimentação se fez mais visível a partir da metade da década de 80 do século XX, no início do processo de abertura política. Nos Estados Unidos e em outros países da Europa esse movimento teve início no final da década de 60. Dessa forma, a ênfase na identidade resulta, também, na ênfase da diferença. Ao mesmo tempo em que a busca da identidade por parte de um grupo social evoca a diferença deste em relação à sociedade ou ao governo ou a outro grupo e instituição, ela possui um processo de elaboração e diminuição das diferenças internas do próprio grupo e dos vários grupos que formam, naquele momento de reivindicação, um único sujeito político. E esse trabalho envolvendo semelhanças e diferenças propicia a articulação entre poder e cultura, pois “é exatamente 44 Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão formas de militância, ora é uma categoria social de exclusão social e, por que não dizer, de homicídio (MUNANGA,1994). Segundo Kabengele Munanga, esse entendimento poderá nos ajudar a desvendar a especificidade do racismo em nosso país e compreender melhor os próprios discursos anti-racistas que reúnem tanto os pensadores da chamada direita, quanto os da esquerda. Os de direita acusam os negros em busca da afirmação da sua identidade de criar falsos problemas ao falar de identidade negra numa sociedade culturalmente mestiça; os de esquerda muitas vezes os acusam de dividir a luta de todos os oprimidos, cuja identidade numa sociedade capitalista deveria ser a mesma de todo e qualquer oprimido (MUNANGA,1994). De acordo com esse autor, não é possível conciliar esses dois discursos. Para analisá-los faz-se necessário ter coragem de encarar e de analisar o Brasil tal como ele é, de fato, sociologicamente e culturalmente, e não nos atermos a uma projeção ideológica do país, presa nas malhas do mito da democracia racial. Sendo entendida como um processo contínuo, construído pelos negros e negras nos vários espaços − institucionais ou não − nos quais circulam, podemos concluir que a identidade negra também é construída durante a trajetória escolar desses sujeitos e, nesse caso, a escola tem a responsabilidade social e educativa de compreendê-la na sua complexidade, respeitá-la, assim como às outras identidades construídas pelos sujeitos que atuam no processo educativo escolar, e lidar positivamente com a mesma. RAÇA O uso do termo “raça” para se referir ao segmento negro sempre produziu uma longa discussão no campo das Ciências Sociais de um modo geral e na vida cotidiana do povo brasileiro, em específico. Na realidade, quando alguém pergunta: qual é a sua raça? nem sempre recebe como resposta uma reação positiva da outra pessoa. Alguns ficam desconcertados, outros não sabem o que responder, alguns acham que é uma piada e outros reagem com agressividade. Nem sempre a reação é positiva e a pessoa questionada nem sempre responde imediatamente. Além disso, no campo complexo das relações entre negros e brancos estabelecidas em nosso país, dependeremos do contexto em que tal pergunta é feita. Ela poderá ser realizada por um recenseador do IBGE; como forma de “piadinha racista”; com um sentido político, dentre tantas outras maneiras. A forma como recebemos e reagimos a essa pergunta dependerá, sobretudo, da maneira, da 45 Nilma Lino Gomes compreensão, da leitura e da construção da identidade étnico/racial do sujeito que é questionado. Essa reação tão diversa em relação ao uso do termo “raça” para nomear, identificar ou falar sobre pessoas negras deve-se, também, ao fato de que a “raça” nos remete ao racismo, aos ranços da escravidão e às imagens que construímos sobre “ser negro” e “ser branco” em nosso país. Por mais que os questionamentos feitos pela antropologia ou outras ciências quanto ao uso do termo raça possam ser considerados como contribuições e avanços no estudo sobre relações entre negros e brancos no Brasil, quando se discute a situação do negro, a raça ainda é o termo mais usado nas conversas cotidianas, na mídia, nas conversas familiares. Por que será? Na realidade, é porque raça ainda é o termo que consegue dar a dimensão mais próxima da verdadeira discriminação contra os negros, ou melhor, do que é o racismo que afeta as pessoas negras da nossa sociedade. Mas, é preciso compreender o que se quer dizer quando se fala em raça, quem fala e quando fala. Ao usarmos o termo raça para falar sobre a complexidade existente nas relações entre negros e brancos no Brasil, não estamos nos referindo, de forma alguma, ao conceito biológico de raças humanas usado em contextos de dominação, como foi o caso do nazismo de Hitler, na Alemanha. Ao ouvirmos alguém se referir ao termo raça para falar sobre a realidade dos negros, dos brancos, dos amarelos e dos indígenas no Brasil ou em outros lugares do mundo, devemos ficar atentos para perceber o sentido em que esse termo está sendo usado, qual o significado a ele atribuído e em que contexto ele surge. O Movimento Negro e alguns sociólogos, quando usam o termo raça, não o fazem alicerçados na idéia de raças superiores e inferiores, como originalmente era usada no século XIX. Pelo contrário, usam-no com uma nova interpretação, que se baseia na dimensão social e política do referido termo. E, ainda, usam-no porque a discriminação racial e o racismo existentes na sociedade brasileira se dão não apenas devido aos aspectos culturais dos representantes de diversos grupos étnico-raciais, mas também devido à relação que se faz na nossa sociedade entre esses e os aspectos físicos observáveis na estética corporal dos pertencentes às mesmas. No Brasil, quando discutimos a respeito dos negros, vemos que diversas opiniões e posturas racistas têm como base a aparência física para determiná- los como “bons” ou “ruins”, “competentes” ou “incompetentes”, “racionais” 46 Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão ou “emotivos”. Isso de fato é lamentável, mas infelizmente existe! Quem já não ouviu na sua experiência de vida frases, piadinhas, apelidos voltados para as pessoas negras, que associam a sua aparência física, ou seja, cor da pele, tipo de cabelo, tipo de corpo, a um lugar de inferioridade? Ou à sexualidade fora do normal? Aprendemos tudo isso na sociedade: família, escola, círculo de amizades, relacionamentos afetivos, trabalho, entre outros. A questão mais séria é: por que aprendemos a ver o outro e, nesse caso, o negro, como inferior devido a sua aparência e/ou atributos físicos da sua origem africana? A resposta é: porque vivemos em um país com uma estrutura racista onde a cor da pele de uma pessoa infelizmente é mais determinante para o seu destino social do que o seu caráter, a sua história, a sua trajetória. Além disso, porque o histórico da escravidão ainda afeta negativamente a vida, a trajetória e inserção social dos descendentes de africanos em nosso país. Some a isso o fato de que, após a abolição, a sociedade, nos seus mais diversos setores, bem como o Estado brasileiro não se posicionaram política e ideologicamente de forma enfática contra o racismo. Pelo contrário, optaram por construir práticas sociais e políticas públicas que desconsideravam a discriminação contra os negros e a desigualdade racial entre negros e brancos como resultante desse processo de negação da cidadania aos negros brasileiros. Essa posição de “suposta neutralidade” só contribuiu ainda mais para aumentar as desigualdades e o racismo. Lamentavelmente, o racismo em nossa sociedade se dá de um modo muito especial: ele se afirma através da sua própria negação. Por isso dizemos que vivemos no Brasil um racismo ambíguo, o qual se apresenta, muito diferente de outros contextos onde esse fenômeno também acontece. O racismo no Brasil é alicerçado em uma constante contradição. A sociedade brasileira sempre negou insistentemente a existência do racismo e do preconceito racial mas no entanto as pesquisas atestam que, no cotidiano, nas relações de gênero, no mercado de trabalho, na educação básica e na universidade os negros ainda são discriminados e vivem uma situação de profunda desigualdade racial quando comparados com outros segmentos étnico-raciais do páis. A campanha intitulada “Onde você guarda o seu racismo?” realizada pela iniciativa Diálogos Contra o Racismo apresenta uma reflexão que poderá nos ajudar a entender melhor como se dá a contradição inerente ao racismo brasileiro. Segundo ela: “as pesquisas de opinião pública revelam que 87% da população reconhecem que há racismo no Brasil. Mas 96% dizem que não 49 Nilma Lino Gomes militantes do Movimento Negro no Brasil, acreditam ser politicamente mais conveniente tentar manter o termo “raça”, sem negar, evidentemente, a necessidade de utilização do termo “etnia”, mas diferenciando-o do termo “raça”. Nesse contexto, podemos compreender que as raças são, na realidade, construções sociais, políticas e culturais produzidas nas relações sociais e de poder ao longo do processo histórico. Não significam, de forma alguma, um dado da natureza. É no contexto da cultura que nós aprendemos a enxergar as raças. Isso significa que, aprendemos a ver negros e brancos como diferentes na forma como somos educados e socializados a ponto de essas ditas diferenças serem introjetadas em nossa forma de ser e ver o outro, na nossa subjetividade, nas relações sociais mais amplas. Aprendemos, na cultura e na sociedade, a perceber as diferenças, a comparar, a classificar. Se as coisas ficassem só nesse plano, não teríamos tantos complicadores. O problema é que, nesse mesmo contexto não deixamos de cair na tentação de hierarquizar as classificações sociais, raciais, de gênero, entre outras. Ou seja, também vamos aprendendo a tratar as diferenças de forma desigual. E isso, sim, é muito complicado! Quando não refletimos seriamente sobre essa situação e, quando a sociedade não constrói formas, ações e políticas na tentativa de criar oportunidades iguais para negros e brancos, entre outros grupos raciais, nos mais diversos setores, estamos contribuindo para a reprodução do racismo. É preciso ensinar para os(as) nossos(as) filhos(as), nossos alunos(as) e para as novas gerações que algumas diferenças construídas na cultura e nas relações de poder foram, aos poucos, recebendo uma interpretação social e política que as enxerga como inferioridade. A conseqüência disso é a hierarquização e a naturalização das diferenças, bem como a transformação destas em desigualdades supostamente naturais. Dessa forma, se queremos lutar contra o racismo, precisamos re-educar a nós mesmos, às nossas famílias, às escolas, às(aos) profissionais da educação, e à sociedade como um todo. Para isso, precisamos estudar, realizar pesquisas e compreender mais sobre a história da África e da cultura afro-brasileira e aprender a nos orgulhar da marcante, significante e respeitável ancestralidade africana no Brasil, compreendendo como esta se faz presente na vida e na história de negros, índios, brancos e amarelos brasileiros. ETNIA No campo intelectual, muitos profissionais preferem usar o termo etnia para se referir aos negros e negras, entre outros grupos sociais, discordando 50 Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão do uso do termo raça. Ao usarem o termo etnia, estes intelectuais o fazem por acharem que, se falarmos em raça ficamos presos ao determinismo biológico, à idéia de que a humanidade se divide em raças superiores e inferiores, a qual já foi abolida pela biologia e pela genética. É fato que, durante muitos anos, o uso do termo raça na área das ciências, da biologia, nos meios acadêmicos, pelo poder político e na sociedade, de um modo geral, esteve ligado à dominação político-cultural de um povo em detrimento de outro, de nações em detrimento de outras e possibilitou tragédias mundiais como foi o caso do nazismo. A Alemanha nazista utilizou-se da idéia de raças humanas para reforçar a sua tentativa de dominação política e cultural e penalizou vários grupos sociais e étnicos que viviam na Alemanha e nos países aliados ao ditador Hitler, no contexto da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Os nazistas consideravam os povos que deles se diferenciavam radicalmente em cultura, caracterísiticas físicas e religião como raças inferiores, como povos biologicamente inferiores aos alemães e à raça branca e ariana. A partir dessa ideologia nazista e racista muitas injustiças foram cometidas e grande parte do mundo se posicionou contra Hitler e seus aliados. O reconhecimento dos horrores causados durante a II Guerra Mundial levou à reorganização das nações no mundo a fim de se evitar que novas atrocidades fossem cometidas. O racismo e a idéia de raça, no sentido biológico, também foram considerados inaceitáveis e, nesse momento, o uso do termo etnia, ganhou força para se referir aos ditos povos diferentes: judeus, índios, negros, entre outros. A intenção era enfatizar que os grupos humanos não eram marcados por características biológicas herdadas dos seus pais, mães e ancestrais mas, sim, por processos históricos e culturais. Dessa forma, etnia é o outro termo ou conceito usado para se referir ao pertencimento ancestral e étnico/racial dos negros e outros grupos em nossa sociedade. Os que partilham dessa visão, entendem por etnia: Um grupo possuidor de algum grau de coerência e solidariedade, composto por pessoas conscientes, pelo menos em forma latente, de terem origens e interesses comuns. Um grupo étnico não é mero agrupamento de pessoas ou de um setor da população, mas uma agregação consciente de pessoas unidas ou proximamente relacionadas por experiências compartilhadas (CASHMORE, 2000: 196). Ou, ainda: um grupo social cuja identidade se define pela comunidade de língua, cultura, tradições, monumentos históricos e territórios (BOBBIO, 1992: 449). 51 Nilma Lino Gomes É por isso que dizemos que as diferenças, mais do que dados da natureza são construções sociais, culturais e políticas. Aprendemos, desde crianças, a olhar a diversidade humana – ou seja, as nossas semelhanças e dessemelhanças – a partir das particularidades: diferentes formas de corpo, diferentes cores da pele, tipos de cabelo, formatos dos olhos, diferentes formas linguísticas, etc. Contudo, como estamos imersos em relações de poder e de dominação política e cultural, nem sempre percebemos que aprendemos a ver as diferenças e as semelhanças de forma hierarquizada: perfeições e imperfeições, beleza e feiúra, inferioridade e superioridade. Quando aplicamos esse tipo de pensamento ao povo negro, estamos, na realidade reproduzindo o racismo e trabalhando com o conceito biológico de raça que a antropologia e a sociologia rejeitam. E, se o termo raça for usado para justificar esse tipo de pensamento e de postura política de dominação, discriminação e/ou opressão é preciso rejeitá-lo sim, uma vez que, nesse caso, ele estará sendo usado para discriminar povos e grupos sociais. Já vimos que no decorrer do processo histórico, no contexto das diversas culturas, as diferenças e semelhanças foram ganhando sentidos e significados diversificados. Pois bem, ao falarmos sobre a questão racial no Brasil, em específico, tocamos em um campo mais amplo. Falamos sobre a construção social, histórica, política e cultural das diferenças. É o que chamamos de diversidade cultural. A diversidade cultural está presente em todas as sociedades e a questão racial brasileira localiza-se dentro do amplo e complexo campo da diversidade cultural. Por isso, refletir sobre a questão racial brasileira não é algo particular que deve interessar somente às pessoas que pertencem ao grupo étnico/racial negro. Ela é uma questão social, política e cultural de todos(as) os(as) brasileiros(as). Ou seja, é uma questão da sociedade brasileira e também mundial quando ampliamos a nossa reflexão sobre as relações entre negros e brancos, entre outros grupos étnico-raciais, nos diferentes contextos internacionais. Enfim, ela é uma questão da humanidade. Por isso é preciso falar sobre a questão racial, desmistificar o racismo, superar a discriminação racial. Diferentemente do que alguns pensam, quando discutimos publicamente o racismo não estamos acirrando o conflito entre os diferentes grupos étnico/raciais. Na realidade é o silenciamento4 sobre 4 Especialmente nas escolas e universidades, que são os ambientes propícios à discussão deste tema, dentre outros tão caros à sociedade brasileira. 54 Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão se exacerba, produzindo uma idéia de que o outro, visto como o diferente, apresenta além das diferenças consideradas objetivas, uma inferioridade biológica, o etnocentrismo pode se transformar em racismo. PRECONCEITO RACIAL O preconceito é um julgamento negativo e prévio dos membros de um grupo racial de pertença, de uma etnia ou de uma religião ou de pessoas que ocupam outro papel social significativo. Esse julgamento prévio apresenta como característica principal a inflexibilidade pois tende a ser mantido sem levar em conta os fatos que o contestem . Trata-se do conceito ou opinião formados antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos. O preconceito inclui a relação entre pessoas e grupos humanos. Ele inclui a concepção que o indivíduo tem de si mesmo e também do outro. Zilá Bernd (1994: 9-10) afirma que o indivíduo preconceituoso é aquele que se fecha em uma determinada opinião, deixando de aceitar o outro lado dos fatos. É, pois, uma posição dogmática e sectária que impede aos indivíduos a necessária e permanente abertura ao conhecimento mais aprofundado da questão, o que poderia levá-los à reavaliação de suas posições. É por isso que ninguém gosta de se assumir preconceituoso. É comum ouvirmos afirmações do tipo “não sou preconceituoso!”; “no Brasil não existe preconceito racial, pois é somos fruto de uma grande mistura racial e étnica!” Mas, muitas vezes, quando essas pessoas são interrogadas se permitiriam o casamento da filha ou do filho com uma pessoa negra, a primeira resposta é a negação; quando vêem um homem negro casado com uma mulher branca ou vice-versa logo se apressam em dizer que é um casamento por interesse; quando encontram um homem negro dirigindo um carro de luxo tendem a pensar que se trata do motorista. Quantas vezes essas situações já não fizeram parte da nossa vida cotidiana! E as piadinhas? Observem que toda piada sobre o negro emitida em nossa sociedade carrega, no fundo, a idéia de inferioridade racial contra qual os negros lutam. Essa contradição na forma como o brasileiro e a brasileira expressam o seu sentimento e o julgamento das pessoas negras confirma a lamentável existência do preconceito racial entre nós. O preconceito como atitude não é inato. Ele é aprendido socialmente. Nenhuma criança nasce preconceituosa. Ela aprende a sê-lo. Todos nós cumprimos uma longa trajetória de socialização que se inicia na família, vizinhança, escola, igreja, círculo de amizades e se prolonga até a inserção em 55 Nilma Lino Gomes instituições enquanto profissionais ou atuando em comunidades e movimentos sociais e políticos. Sendo assim, podemos considerar que os primeiros julgamentos raciais apresentados pelas crianças são frutos do seu contato com o mundo adulto. As atitudes raciais de caráter negativo podem, ainda, ganhar mais força na medida em que a criança vai convivendo em um mundo que a coloca constantemente diante do trato negativo dos negros, dos índios, das mulheres, dos homossexuais, dos idosos e das pessoas de baixa renda. A perpetuação do preconceito racial em nosso país revela a existência de um sistema social racista que possui mecanismos para operar as desigualdades raciais dentro da sociedade. Por isso, faz-se necessário discutirmos a superação do preconceito, juntamente com as formas de superação do racismo e da discriminação racial, pois estes três processos: “se realimentam mutuamente, mas diferem um pouco entre si. O racismo, como doutrina da supremacia racial, se apresenta como a fonte principal do preconceito racial” (BENTES, 1993: 21). DISCRIMINAÇÃO RACIAL A palavra discriminar significa “distinguir”, “diferençar”, “discernir”. A discriminação racial pode ser considerada como a prática do racismo e a efetivação do preconceito. Enquanto o racismo e o preconceito encontram-se no âmbito das doutrinas e dos julgamentos, das concepções de mundo e das crenças, a discriminação é a adoção de práticas que os efetivam. Devemos tomar cuidado, entretanto, para não considerar a discriminação como produto direto do preconceito. Esse tipo de pensamento possui enorme aceitação no Brasil. Segundo Maria Aparecida Silva Bento Teixeira (1992: 21), ele é fruto do mito da democracia racial onde se afirma: “como não temos preconceito racial no Brasil, aqui não temos discriminação racial”. Conforme essa autora, neste modelo de preconceito causa discriminação observamos a ênfase que recai sobre o indivíduo como portador de preconceito, como a fonte que gera a discriminação. A autora nos alerta para um outro foco de análise, mostrando que a discriminação racial pode ser originada de outros processos sociais, políticos e psicológicos que vão além do preconceito desenvolvido pelo indivíduo. Estamos, então, diante da distinção entre a discriminação provocada por interesse. Essa última tem a noção de privilégio como foco principal, ou seja, a continuidade e a conquista de privilégios de determinado grupo sobre o outro seriam as responsáveis pela sua perpetuação, “independentemente do fato de ser intencional ou apoiada em preconceito” (TEIXEIRA, 1992: 22). 56 Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão Segundo Luciana Jaccoud e Nathalie Begin (2002), a literatura especializada ainda nos apresenta mais algumas distinções entre diferentes tipos de discriminação racial. A mais freqüente é a que diferencia entre discriminação direta e indireta. A discriminação racial direta seria aquela derivada de atos concretos de discriminação, em que a pessoa discriminada é excluída expressamente em razão de sua cor. A discriminação indireta é “aquela que redunda em uma desigualdade não oriunda de atos concretos ou de manifestação expressa de discriminação por parte de quem quer que seja, mas de práticas administrativas, empresariais ou de políticas públicas aparentemente neutras, porém dotadas de grande potencial discriminatório” (JACCOUD e BEGIN, 2002). Segundo as autoras, a discriminação indireta tem sido compreendida como a forma mais perversa de discriminação. Ela geralmente alimenta estereótipos sobre o negro e é exercida sob o manto de práticas administrativas ou institucionais. A melhor forma de tornar esse tipo de discriminação visível e de superá-la é através da análise de indicadores de desigualdade entre os grupos. A discriminação indireta é identificada quando os resultados de determinados indicadores socioeconômicos são sistematicamente desfavoráveis para um subgrupo racialmente definido em face dos resultados médios da população. Um exemplo dessa forma de discriminação poderia ser dado pelo pouco sucesso dos negros no ensino fundamental, em que pese o alto grau de universalização atingido por esse nível de ensino. DEMOCRACIA RACIAL Ninguém nega o fato de que todos nós gostaríamos que o Brasil fosse uma verdadeira democracia racial, ou seja, que fôssemos uma sociedade em que os diferentes grupos étnico-raciais vivessem em situação real de igualdade social, racial e de direitos. No entanto, os dados estatísticos sobre as desigualdades raciais na educação, no mercado de trabalho e na saúde e sobre as condições de vida da população negra, revelam que tal situação não existe de fato. Todavia, a sociedade brasileira, ao longo do seu processo histórico, político, social e cultural, apesar de toda a violência do racismo e da desigualdade racial, construiu ideologicamente um discurso que narra a existência de uma harmonia racial entre negros e brancos. Tal discurso consegue desviar o olhar da população e do próprio Estado brasileiro das atrocidades cometidas contra os africanos escravizados no Brasil e seus descendentes, impedindo-os de agirem de maneira contundente e eficaz na superação do racismo. Outras vezes, mesmo que as 59 Nilma Lino Gomes Analisando, hoje, o teor do livro Casa-Grande e Senzala, não há como admitir que uma sociedade em que as relações entre os diferentes grupos étnico- raciais foram construídas/pautadas no trabalho escravo, na dominação e na exploração possa se sentir orgulhosa da forma como, historicamente, se deu o seu processo de mestiçagem. O Brasil, enquanto uma nação “mestiça”, resultante, entre outras coisas, dos contatos e intercursos sexuais entre o português e as mulheres negras e indígenas, construiu-se alicerçado na violência sexual contra essas mulheres e não somente em relacionamentos amistosos entre as raças. Sendo assim, podemos dizer que o livro Casa-Grande e Senzala apresenta a humanidade e as relações sociais e raciais sob a ótica do senhor patriarcal. A interpretação de Gilberto Freyre (1933) do Brasil, infelizmente, ainda é muito forte na sociedade brasileira, na esfera política, na escola, entre outros espaços sociais importantes, e tem colocado limites e empecilhos no posicionamento da sociedade brasileira na luta contra o racismo. O Movimento Negro tem sido um importante ator social na desmistificação do mito da democracia racial no Brasil, juntamente com pesquisadores(as) negros(as) e brancos(as) que se posicionam contra o racismo. As pesquisas, as estatísticas oficiais, as denúncias e reivindicações do Movimento Negro têm revelado que assim como a nossa sociedade ainda “não se democratizou nas suas relações sociais fundamentais, também não se democratizou nas suas relações raciais” (MOURA, 1988: 72). A expectativa do Movimento Negro e de todos aqueles que se posicionam contra o racismo e a favor da luta anti-racista é de construir um país que, de fato, apresente e crie condições dignas de vida e oportunidades iguais para toda a sociedade, principalmente para os grupos sociais e étnico-raciais que vivem um histórico comprovado de discriminação e exclusão. Aí, sim, estaremos construindo uma sociedade realmente democrática que respeite e valorize a diversidade. CONSIDERAÇÕES FINAIS Essa imagem de “paraíso racial”, forjada ideologicamente, foi reforçada das formas mais variadas e tornou-se muito aceita pela população brasileira. Através de vários mecanismos ideológicos, políticos e simbólicos, ela foi introjetada (e ainda é) pelos negros, índios, brancos e outros grupos étnico-raciais brasileiros. Porém, a atuação do Movimento Negro e, conseqüentemente, a construção de um debate político sobre a situação dos negros no Brasil, bem como a realização de pesquisas por acadêmicos e instituições governamentais, têm comprovado 60 Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão a existência do racismo e, conseqüentemente, a desigualdade racial entre os negros e os brancos, assim como têm ajudado a superar o mito da democracia racial no Brasil. A escola tem um papel importante a cumprir nesse debate. Os (as) professores(as) não devem silenciar diante dos preconceitos e discriminações raciais. Antes, devem cumprir o seu papel de educadores(as), construindo práticas pedagógicas e estratégias de promoção da igualdade racial no cotidiano da sala de aula. Para tal é importante saber mais sobre a história e a cultura africana e afro-brasileira, superar opiniões preconceituosas sobre os negros, denunciar o racismo e a discriminação racial e implementar ações afirmativas voltadas para o povo negro, ou seja, é preciso superar e romper com o mito da democracia racial. Mas a escola não precisa fazer isso sozinha! Atualmente, além da lei 10.639/03 e das diretrizes curriculares para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, existe uma produção mais consistente sobre a temática racial que deve ser incorporada como fonte de estudo individual e coletivo dos(as) educadores(as). Além disso, existe uma quantidade significativa de grupos culturais, grupos juvenis, entidades do Movimento Negro, ONG´s e Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros que podem ser chamados para dialogar e trabalhar conjuntamente com as escolas e com as secretarias de educação na construção e implementação de práticas pedagógicas voltadas para a diversidade étnico-racial. Pensamos que o diálogo, a discussão, a convivência respeitosa e digna entre os segmentos sociais supracitados, entre outros, são, de um lado, formas de superação do racismo e, de outro lado, formas de construção de uma verdadeira democracia racial. Esta é a meta que desejamos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENTES, Raimunda Nilma de Melo. Negritando. Belém: Graphitte,1993. BERND, Zilá. Racismo e anti-racismo. São Paulo: Editora Moderna, 1997. BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de política. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1992. BORGES, Edson, MEDEIROS, Carlos Alberto e d´ADESKY, Jacques. 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Anais de seminários regionais 65 DISCRIMINAÇÃO RACIAL E PLURALISMO NAS ESCOLAS PÚBLICAS DA CIDADE DE SÃO PAULO* Eliane Cavalleiro INTRODUÇÃO Em linhas gerais, esse trabalho tem como metas a caracterização e a análise das principais formas de racismo, discriminação racial e pluralismo cultural presentes nas práticas educativas e na vida cotidiana de algumas escolas da região urbana do município de São Paulo, que têm como público beneficiário crianças negras1 e brancas. Para tanto, busca-se: • Observar, descrever e analisar as formas de interação, formais e informais, estabelecidas entre os atores escolares – adultos e crianças; negros e brancos. • Identificar nas práticas pedagógicas padrões de conduta que favoreçam ou dificultem o pluralismo racial, social, cultural, bem como a valorização da diversidade racial. • Exercitar um modelo metodológico de etnografia escolar, a “micro-etnografia”, que permite a observação simultânea em diferentes unidades escolares em um tempo reduzido e que pode ser reaplicada em outros contextos. Os três vetores orientadores da caracterização das principais formas de racismo, discriminação racial e pluralismo no cotidiano escolar são a pertinência, a convivência e a inclusão. À luz desses objetivos, constituíram foco de análise desse estudo turmas de 3º e 4º séries do Ciclo I2 de três escolas públicas de ensino fundamental localizadas * Este texto foi produzido a partir de uma base de dados construída por meio do trabalho de quatro pesquisadoras, a saber, Eliane Cavalleiro (coord.), Anair Aparecida Novaes, Elizabeth Fernandes de Sousa e Gissela Queiroz. 1 Negros aqui são considerados os indivíduos autodeclarados pretos ou pardos. 2 Na rede de ensino do Estado São Paulo o Ciclo I é formado pelas quatro primeiras séries do ensino fundamental. 66 Discriminação Racial e Pluralismo nas Escolas Públicas da Cidade de São Paulo no município de São Paulo. Essas escolas foram selecionadas de acordo com sua localização geográfica na cidade, a saber: escola A localiza-se na Região Leste; escola B, na Região Sul; e escola C, na Região Centro-Oeste. Para balizar o debate conceitual a respeito da temática em tela, apresentamos uma pequena síntese que subsidia a compreensão das relações raciais em nosso país e, em particular, no cotidiano escolar. ASPECTOS GERAIS SOBRE O RACISMO NO BRASIL Potencializado, sobretudo, pelos movimentos sociais negros, o debate em torno da dinâmica das relações raciais na sociedade brasileira vem ganhando mais espaço na esfera pública. O momento atual, portanto, mostra-se profícuo para o redimensionamento de ações voltadas à superação das desigualdades entre negros e brancos na sociedade, mesmo porque, conta-se com o comprometimento manifesto do Estado brasileiro, por esse ser signatário, desde 1968, de vários tratados e convenções internacionais que objetivam a eliminação da discriminação racial da qual a população negra tem sido alvo.3 Em 2001, o Estado brasileiro participou da III Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, fórum em que a escravidão e o tráfico de escravos foram reconhecidos como crimes contra a humanidade – o que, por sua vez, reforça a luta por reparação humanitária ao povo negro. A Declaração e o Programa de Ação, resultantes dessa Conferência, impelem os Estados envolvidos à restauração e à promoção da dignidade das pessoas racialmente discriminadas.4 3 Os Tratados de Direitos Humanos garantem direitos aos indivíduos; estabelecem as obrigações do Estado em relação aos direitos; criam mecanismos para monitorar a observância dos Estados em relação às suas obrigações; e permitem que os indivíduos busquem compensações pela violação dos seus direitos. O Brasil é signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Convenção da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (l969), do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, da Convenção III da OIT sobre Discriminação no Emprego e na Profissão (1968) e, mais recentemente, da Carta da III Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas (2001). 4 A III Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas (realizada em Durban, África do Sul, de 31 de agosto a 7 de setembro de 2001) deflagrou, no Brasil, um acalorado debate público em âmbito nacional, envolvendo tanto órgãos governamentais quanto não governamentais interessados em radiografar e elaborar propostas de superação dos problemas pautados pela referida conferência. O então presidente da República Fernando Henrique Cardoso estabeleceu um Comitê Nacional, composto paritariamente por representantes de órgãos do governo e da sociedade civil organizada. Também entidades dos Movimentos Negro, Indígena, de Mulheres, de Homossexuais, de Defesa da Liberdade Religiosa mobilizaram-se intensamente nesse diálogo com o governo. Com o término da Conferência, diante da Declaração e do Programa de Ação estabelecidos em Durban, exige-se da sociedade civil o monitoramento para que os resultados sejam respeitados e as medidas reparatórias sejam implementadas. 69 Eliane Cavalleiro Por conseguinte, não é de estranhar que os índices de escolaridade desagregados por raça evidenciem a participação desigual da população negra no sistema educacional brasileiro. A dificuldade de progressão apresentada por esse segmento não responde apenas por desvantagens originadas da pobreza. Os dados apresentados pelo IBGE (1994; 1997; e outros mais recentes) indicam que crianças negras deixam a escola mais cedo que crianças brancas pertencentes à mesma condição social, o que dialoga mais uma vez com a baixa qualidade das oportunidades educacionais oferecidas às crianças e adolescentes negros (CAVALLEIRO, 2003). Aspectos do cotidiano escolar como currículo, material didático e relações interpessoais são hostis e limitadores de aprendizagem para os(as) alunos(as) negros(as). Nesses espaços, as ocorrências de tratamentos diferenciados podem conduzir, direta ou indiretamente, à exclusão deles(as) da escola, ou ainda, para os(as) que lá permanecem, à construção de um sentimento de inadequadação ao sistema escolar e inferioridade racial.8 Como conseqüência, a população negra apresenta os piores indicadores educacionais nas taxas de analfabetismo, como demonstra o gráfico a seguir: Fonte: Henriques, 2002. 8 A pesquisadora Fúlvia Rosemberg evidencia, em seus estudos (1981, 1986, entre outros), que, na rede pública, a população negra vivencia as piores condições educacionais. Desse processo, resultam para essa população: atraso escolar, exclusão do sistema de ensino, repetência, analfabetismo e níveis de escolaridades inferiores. Inúmeros outros estudos e pesquisas acadêmicas confirmam a existência de problemas decorrentes do racismo, do preconceito e da discriminação raciais na estrutura escolar, da educação infantil (OLIVEIRA, 1994; CAVALLEIRO, 1998) até níveis de ensino mais elevados (CUNHA,1987; HASENBALG e SILVA, 1990; FIGUEIRA, 1990; VALENTE, 1993; OLIVEIRA, 1994; SILVA, 1995; BOTELHO, 2000; entre outros). 70 Discriminação Racial e Pluralismo nas Escolas Públicas da Cidade de São Paulo Os níveis das taxas de analfabetismo para essa faixa etária [crianças de 7 a 14 anos de idade] são significativamente menores em 1999 do que em 1987, contudo, os valores observados em 1999 ainda são elevados. Os níveis de taxas de analfabetismo das crianças brancas se mantêm, de modo recorrente, abaixo das crianças negras e, mesmo assim, a intensidade da queda, ao longo dos anos 90, é maior entre as crianças brancas. Destaca-se ainda, que, apesar da melhora generalizada desse indicador entre brancos e negros, as taxas de analfabetismo dos negros, em 1999, equivalem às taxas dos brancos, em 1987, em todas as idades dessa faixa etária (HENRIQUES, 2002: 47). Nessa mesma linha, muitos estudos confirmam que, diuturnamente, o alcance do racismo tem sido tratado, nas escolas, de maneira displicente, com a propagação de aspectos legitimadores da dominação branca. O cotidiano escolar apresenta-se, desse modo, marcado por práticas discriminatórias que condicionam a percepção negativa das possibilidades intelectuais de negros(as) e propicia, ao longo dos anos, a formação de indivíduos – brancos e negros – com fortes idéias e comportamentos hierarquicamente racializados (CAVALLEIRO, 1998; BOTELHO, 2000). Como revela o estudo do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), o sistema educacional tem conservado, ao longo dos anos, um diferencial sempre em prejuízo da população negra (IPEA, 2000). Para Munanga: ...o preconceito incutido na cabeça do professor e sua incapacidade em lidar profissionalmente com a diversidade, somando-se ao conteúdo preconceituoso dos livros e materiais didáticos e às relações preconceituosas entre os alunos de diferentes ascendências étnico-raciais, sociais e outras, desestimulam o aluno negro e prejudicam seu aprendizado (MUNANGA, 2001: 8). Em decorrência dessa educação discriminatória e, conseqüentemente, desigual, o baixo nível de escolaridade da população negra contribui para manter a sua exclusão do mercado de trabalho, agravada pelas constantes e intensas reatualizações do mundo contemporâneo. Acrescente-se a isso o fato de que os processos de seleção operam, por vezes, com intervenção da mentalidade racista. Valores negativos, como a inadequação, são atribuídos a pessoas negras, desqualificando-as para obter os postos de trabalhos mais elevados. Essa seleção pautada pela orientação fenotípica tem preponderado sobre quaisquer outros critérios para a escolha de candidatos para uma vaga ou uma promoção profissional (Inspir,1999). Conclui-se que as desigualdades estampadas nesse conjunto de estudos e pesquisas assinalam a ineficácia das medidas adotadas pelo Estado brasileiro no tocante à educação. A política educacional não pode levar a cabo apenas 71 Eliane Cavalleiro aspectos pontuais para a eliminação das práticas discriminatórias. Como um grande desafio, impõe-se a elaboração e a implementação de instrumentos que visem à efetiva erradicação das desigualdades entre os grupos raciais na sociedade brasileira como um todo e no sistema de ensino em particular. TRÊS ESCOLAS PÚBLICAS DE ENSINO FUNDAMENTAL DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO A análise e a avaliação aqui apresentadas resultam da observação do cotidiano escolar no que se refere às relações interpessoais (a) entre os profissionais que trabalham nas três escolas pesquisadas e (b) as estabelecidas entre esses e as crianças e (c) as das crianças entre si, tendo em vista os aspectos relacionais do pertencimento racial. Referem-se também à avaliação de dados coletados durante a observação da utilização espacial e dos materiais didáticos e paradidáticos – como fotos, cartazes, anúncios presentes na escola. Some-se a isso, a leitura das entrevistas realizadas com os profissionais da educação das escolas pesquisadas – professores, coordenadores pedagógicos, diretores e operacionais; alunos e alunas; e seus familiares – pai e mãe. O trato em conjunto dos elementos obtidos pelo processo de observação do cotidiano escolar, mais daqueles oriundos do processo de entrevistas, engendrou dados objetivos e subjetivos. Assim, configurou-se a possibilidade de que fossem interpretados/analisados os discursos, o grau de consonância desses com a prática pedagógica dos profissionais participantes da pesquisa e ainda conhecidas as idéias de pais e outros familiares próximos às crianças, a respeito de tal trabalho. Afora isso, a confrontação dos dados provenientes do processo de observação e das entrevistas permitiu o exame da “qualidade” das relações estabelecidas no cotidiano escolar por parte dos alunos e das alunas, sobretudo por parte dos profissionais da educação, no que se refere ao alunado branco e negro, bem como às questões pedagógicas concernentes à realização de uma educação pluricultural, anti-discriminatória e anti-racista. No caso específico da atuação profissional nas escolas, nota-se que as pessoas entrevistadas trabalham em instituições públicas de ensino há vários anos, sendo que a que possui menor tempo trabalha em escolas há nove anos e a que trabalha há mais tempo possui 25 anos de experiência. Do diálogo com esses profissionais, acabou por sobressair a insistente negação do racismo e de seus derivados na sociedade brasileira: 74 Discriminação Racial e Pluralismo nas Escolas Públicas da Cidade de São Paulo ficam chamando de cabelo de ‘Bombril’: Professora, me chamou de não sei o quê...” (Celina, professora, branca, escola B). Depreende-se também que não há o reconhecimento dos prejuízos que tais acontecimentos podem provocar na criança que é vítima de discriminação: [Já houve casos de xingamento com base na cor da pele da criança?] Sim, mas são leves, coisinhas bobas de criança. Aí eles passam a se entrosar. Mas é difícil, porque normalmente eles moram perto. [Tem algum caso que você lembre? Que tenha marcado?] Entre as crianças não. Entre eles, não. Sinceramente, não (Laís, professora, negra, escola A). Logo, a compreensão dos profissionais da educação indica que as opiniões sobre os alunos do ensino fundamental, no que tange às relações raciais, variam consideravelmente. Essa discrepância vai desde o não reconhecimento da presença de racismo e de seus derivados no cotidiano escolar, passando pela sua desvalorização, e chegando ao reconhecimento da discriminação racial entre as crianças: “Claro que sim (existe racismo na escola). Eles percebem sim. Eles discriminam” (Lúcia, professora, branca, escola A). Observa-se que, mesmo não sendo reconhecidos pelos professores e trabalhadores da educação, atos discriminatórios e preconceituosos são indicados como um acontecimento sistemático no dia-a-dia da escola, uma vez que a percepção negativa sobre a diferença se faz presente nas relações entre as crianças, indicando que as características raciais, como cor da pele e textura capilar, servem de arma para ofender crianças negras. Por esse caminho, o discurso que se cria é o de que, embora esteja presente no cotidiano e seja percebido nas relações entre as crianças, o racismo seria algo forjado fora do espaço escolar, e a responsabilidade pelos conflitos nas relações entre as crianças estaria vinculada às relações familiares: Olha, eu, pessoalmente, no fundo no fundo, não vejo esses conflitos no dia-a-dia. Nós observamos mais os conflitos nessa questão de etnia quando eles brigam. Isso acontece porque ficou definido pela sociedade. Então, não é porque ele acredita que isso faça alguma diferença, é porque ele escuta lá fora na rua que ser negro é desvantagem, que chamar uma pessoa dessa forma é pejorativo. Mas eu não acho que entre as crianças tenha muito disso. Aparece em situações de atrito entre eles; em situações que ocorrem brigas, mas no dia que está tudo bem, não tem (Valquíria, diretora escolar, branca, escola C). Esse tipo de entendimento dificulta aos profissionais a identificação, nas relações estabelecidas no espaço escolar, de momentos que facilitam a propagação 75 Eliane Cavalleiro do desrespeito, da discriminação, bem como a percepção da manutenção de hierarquias entre os grupos presentes – dado que não se estabelece um olhar crítico a respeito das relações que lá acontecem e que contribuem para sinalizar às crianças uma leitura hierarquizada dos grupos raciais e de outras diferenças. Assim é que a família passa a ser vista pela escola como a transmissora de crenças racistas e idéias preconceituosas: Não, isso vem diretamente da família, porque convive com a família. Às vezes, o próprio negro já tem aquele preconceito por ele ser negro. Porque alguma coisa já deve ter ocorrido, ouvido, às vezes, dentro de casa. (...) Acho que é coisa que vem de casa, problemas familiares: os pais não dão muita atenção, tem muito disso (Suzana, inspetora de alunos, negra, escola C). Dessa citação, depreende-se a tentativa de sobrevalorizar a vigência de preconceito entre as pessoas negras. Verifica-se, ainda, que os profissionais da educação identificam com mais facilidade a discriminação racial em um contexto escolar distinto do seu: [Você acha que os profissionais não estão preparados para trabalhar com classes multirraciais?] Olha, sinceramente eu acho que não. Porque aqui eu nunca tive problema nem nada, mas no antigo colégio em que trabalhava, tinha uma professora que falava: “Eu não suporto aqueles negrinhos”. Eles eram irmãos, os meninos eram levados, mas ela se referia aos negrinhos. Agora, como eu era funcionária, eu era muito bem tratada por ela (Suzana, inspetora de alunos, negra, escola C). Todavia, houve um caso em que uma professora negra sinaliza a existência de discriminação racial na escola em que trabalhava no momento: Pela convivência diária com o grupo de professores que atuam na escola, em poucos, percebo esta preocupação (de estar atento à diversidade presente na escola), em outros, não, muito pelo contrário, pois percebo atitudes e comportamentos de alguns colegas em relação a determinados alunos que os classificariam como extremamente preconceituosos tanto em relação à condição social como à étnica [racial] (Helena, professora, negra, escola A). Nesse caminhar, havendo dificuldade para se perceber e qualificar o conflito racial no cotidiano escolar, aumentam os problemas para se estabelecerem as atividades e os procedimentos adequados para se trabalhar com a temática da diversidade racial e o combate ao racismo: De alguns anos para cá, nós temos trabalhado muito a inclusão, não só nesse sentido [racial], mas das crianças especiais (portadoras de deficiência). Então, eu acho que a mentalidade, pelo menos do professorado, está mudando bastante (Valquíria, diretora, branca, escola C). 76 Discriminação Racial e Pluralismo nas Escolas Públicas da Cidade de São Paulo Surgem afirmações de que, geralmente, os profissionais estariam preparados para lidar com a diversidade no cotidiano escolar, mas muitos explicitam o próprio despreparo, bem como a incerteza do caminho a seguir: [Os profissionais que trabalham na escola estão preparados para trabalhar com uma população multirracial?] Acho que estão. Acho que sim. [Você já recebeu alguma instrução a esse respeito?] Não. [Você participou de algum curso que te preparasse para isso?] Não (Miriam, merendeira, branca, escola B). Ou ainda: [Você já participou de algum curso...] Esses cursos que é dado [sic] pelo governo de aperfeiçoamento? Contra preconceito, racismo? Eu acho que não. Não me lembro. (...) [Você normalmente faz esses cursos de aperfeiçoamento?] Faço. Faço sim, mas eu... Olha, às vezes, eles conversam, sim, mas um curso específico, assim, não. (...) Não me lembro (Celina, professora, branca, escola B). Mesmo diante de tantos fatores que identificam as diferenças e os conflitos no espaço escolar, o debate sobre as relações raciais não se mostra presente nos cursos de formação: “[Você viu alguma coisa sobre a questão racial?] Não. Tem também muitos cursos sobre sexualidade que trabalham um pouco mais a questão do gênero. Se o seu trabalho está voltado realmente para o racial, nós não temos muito” (Valquíria, diretora, branca, escola C). Depreende-se, portanto, que a fala dos adultos, inicialmente, procura evidenciar o quanto o alunado interage em harmonia, não constituindo as diferenças raciais elemento importante para as relações estabelecidas no cotidiano escolar. Mas os acontecimentos pontuados no dia-a-dia desmentem essa inexistência de conflitos pautados nas diferenças físicas e, por extensão, nas raciais. Essa tendência a forçar o entendimento do cotidiano como algo harmônico torna o trato dos conflitos simples e corriqueiro, sendo os momentos de agressões físicas ou verbais displicentemente contornados com orientações que cobram respeito: [Tem alguma situação de preconceito ou discriminação, xingamentos...] Entre eles, não. Não porque eles sabem que é uma agressão. Porque quando a gente fala para eles, quando eles estão brigando a gente fala: “Você tem que parar com isso! Agredir não é só bater. Agredir é falar uma coisa que o colega não gosta!” (Suzana, inspetora de alunos, negra, escola B). Na fala dos profissionais da educação a respeito do processo educacional, nota-se que a reflexão permitida às crianças é a da igualdade entre as pessoas 79 Eliane Cavalleiro detalhes para evidenciar o quanto são preguiçosos, carentes, emotivos e possuem dificuldade no relacionamento. Nota-se, portanto, a dificuldade da professora em trabalhar com a diversidade racial, bem como se percebe que o pertencimento racial constitui parâmetro importante para a avaliação do desempenho escolar, pois o aproveitamento e o desempenho das crianças se mostram vinculados às características fenotípicas dessas. Quando brancas, são consideradas naturalmente bonitas, inteligentes e participativas; em contrapartida, se negras, são pouco esforçadas, com dificuldade de relacionamento e carentes. A exceção, para Celina, é Mariano que é reconhecidamente muito inteligente e participativo, porém de todo modo o adjetivo bonito não lhe é atribuído. Nem a Cássio, cuja mãe tem sua beleza explicitada e valorizada. Vale lembrar que a professora se espanta diante do fato de a mãe do Rafael, considerada linda por ela, ser mãe de uma criança negra. Ainda no que diz respeito às relações com alunos brancos e negros no cotidiano escolar, identifica-se um aspecto importante da dinâmica da sala de aula, no que se refere ao aspecto físico- espacial. Percebe-se a existência de um distanciamento físico entre alunos(as) negros(as) em relação às professoras e aos professores, e, diametralmente, uma proximidade destes(as) em relação às crianças brancas. As crianças sentam-se na sala de aula segundo determinação das professoras. Observa-se que as negras, em sua maioria, sentam-se no fundo da sala de aula, como evidenciam os mapas a seguir: ESCOLA A Professora (branca) GB GB MN GB GB GB MB MB MB GN GB GN MB GN MN GN GB MN MN GB GN MN MN MN GB GB MN MB Pesquisadora Garota Negra (GN); Garota Branca (GB); Menino Negro (MN); Menino Branco (MB). 80 Discriminação Racial e Pluralismo nas Escolas Públicas da Cidade de São Paulo ESCOLA B Professora (branca) GN GB MB MB GN / GB* GB GB MN MB MB MB MB MN MN MB MB GB GN GN GN MN GN GN GN Pesquisadora Garota Negra (GN); Garota Branca (GB); Menino Negro (MN); Menino Branco (MB). * Duas crianças sentam-se juntas. ESCOLA C Professora (branca) MB GN GN GB GB MN GB MB MB GB MN MN MN GN MB GN MN GN GN MN MN MN MN Lugar vago MN GN MN GN MN GN MN GN GN GN MN MN Lugar vago MN Pesquisadora GN Garota Negra (GN); Garota Branca (GB); Menino Negro (MN); Menino Branco (MB). À luz desse contexto de racismo inconsciente, podemos analisar a maneira como a professora responsável pela sala de aula distingue seus alunos por suas características fenotípicas/raciais. O aluno negro que se senta no fundo da sala está com os cabelos bem curtos, como é moda entre os jovens negros. Na aula de Educação Artística, foi chamado de “carequildo”11 pela professora. Diante dessa observação, o garoto sorriu... Outra situação: na aula de Educação Artística, a professora orienta seus alunos para que façam bonecos de caixa de papelão (sucata) e atenta para o fato de que os bonecos devem ser adequados ao projeto de história dos alunos. 11 Referência irônica pelo fato de a criança estar de cabelos bem curtos. 81 Eliane Cavalleiro Algumas crianças começam a fazer suas atividades, e aos poucos os bonecos vão sendo construídos. Muitas crianças trocam entre si material para fazer o boneco. Duas crianças, “Bruna” e “Jéssica”, meninas negras, chamam a atenção por estarem separadas das demais garotas de seu grupo. Elas passam bastante tempo sozinhas. As crianças mudam de lugar com freqüência e, sem dificuldades, ocupam outros lugares (cadeiras) quando o colega não está. A professora pega o boneco de “Bruna” e cutuca carinhosamente os rolinhos de seu cabelo. Bruna pergunta para “Fernanda”, menina branca, se ela pode entrar no grupo. “Fernanda” não responde. “Bruna” repete a pergunta três vezes. “Fernanda” então responde que em seu grupo já tem cinco alunos. “Bruna” fica sozinha, sem ação. “Jéssica”, sua companheira, também permanece sem grupo. As demais crianças conversam com ela apenas sobre a atividade que estão desenvolvendo. “Bruna” se aproxima de Jéssica, que está com seu boneco pronto, mas permanece sem grupo. A professora caminha pela sala e não percebe esse acontecimento. “Jéssica” e “Bruna” estão sempre em busca da professora. Outras crianças na sala de aula se encontram sempre bem entrosadas, como “Pedro”, um menino branco, e “Fernanda”, menina branca. “Bruna” fica perto da colega “Fernanda”, de cujo grupo gostaria de fazer parte, e senta-se. Porém, no grupo ninguém conversa com ela. Com o tempo, percebe-se que “Bruna” está visivelmente chateada e, ambas, “Jéssica” e “Bruna”, permanecem sem grupo. A dinâmica presente nesse cotidiano parece enfraquecer a possibilidade de as crianças perceberem tanto as discriminações e os preconceitos que praticam quanto a identificação das discriminações sofridas. Na maioria das situações, o discriminado sente. Tal fato é perceptível, como evidenciou o processo de observação, nas expressões das crianças e nas agressões que precedem as discriminações. Nesse cotidiano, quem discrimina não percebe, ou não deseja perceber, as conseqüências nefastas dessas práticas. Ao passo que o discriminado, sem rede de proteção, ou melhor, sem apoio da professora, sente; porém, silencia-se. Alguns indícios surgem como resposta: o fato de a discriminação ser tão violenta que paralisa o discriminado; e a ausência de percepção de uma ação positiva por parte dos profissionais presentes na escola, pois muitos desses, como evidenciam as entrevistas, não consideram importante o sofrimento do discriminado e acreditam que não haja discriminação. Nota-se também, por meio das entrevistas, que a discriminação racial fica ainda mais difícil de ser identificada quando inserida num rol maior de discriminações, 84 Discriminação Racial e Pluralismo nas Escolas Públicas da Cidade de São Paulo Diante disso, nota-se que, para alunos e alunas do ensino fundamental, negros e negras são apresentados na condição de escravos e/ou seres humanos negativos ou inferiorizados. As crianças, ao estudarem a história da população negra brasileira, não deparam com referências positivas de um passado histórico do qual seja possível que negros tenham orgulho ao se identificar com a história de seus ancestrais/antepassados; e no qual, paralelamente, brancos percebam o grupo negro como participante do desenvolvimento do país. Conclui-se que esse cotidiano escolar não oferece oportunidades para que crianças brancas e negras construam sua identidade e percebam seu grupo racial como positivamente integrante da sociedade brasileira. Essa realidade confirma o desconhecimento, o despreparo e, em algumas situações, o desinteresse por parte dos profissionais da educação em propiciar um cotidiano que respeite a diversidade ali presente e que proporcione igual desenvolvimento para as crianças que nele sistematicamente se apresentam. COMO FICAM ESSAS QUESTÕES PARA AS CRIANÇAS? Muitos fatos mostram-se significativos no que diz respeito à análise das relações interpessoais entre meninos e meninas no cotidiano escolar, bem como sobre a percepção desses(as) em relação à diversidade racial lá presente, e o trato a seu respeito. O primeiro deles refere-se à constatação de que muitas crianças, diante da necessidade de caracterizar a cor da pele e/ou o pertencimento racial próprio ou de outra criança, optam pela classificação “moreno”: “Eu sou moreno” (Ignácio, branco, 10 anos, escola B); “Eu sou morena do cabelo escuro” (Solange, 10 anos, negra, escola C). Temos, então, crianças brancas e negras autocaracterizando-se como morenas. É importante relembrar que muitos profissionais da educação participantes desse estudo tendem a classificar alunos brancos como morenos, do mesmo modo que tendem a classificar os alunos negros como morenos claros ou escuros. Há uma criança negra que evidencia dificuldade em aceitar seu pertencimento racial: “Tenho a pele clara, sou branco. (...) Eu sou marrom claro” (Josias, 10 anos, negro, escola A). Além disso, é possível encontrar crianças negras que se definem dentro de um amplo espectro de cor, como evidenciam os exemplos: “Eu sou morena clara. (...). A Isis é morena escura” (Jéssica, 10 anos, negra, escola B). Porém, foi mais freqüente serem encontradas crianças brancas se autocaracterizando 85 Eliane Cavalleiro com maior coerência, considerado-se seu pertencimento racial: “Ela é uma do cabelo liso bem curtinho, branquinha, baixinha” (Andréia, branca, 10 anos, escola C). “Tenho a pele clara, sou branco” (Joel, branco, 10 anos, escola A). Esse dado sinaliza que, com maiores facilidades, crianças brancas se reconhecem e não têm dúvidas quanto ao seu pertencimento ao grupo branco. No caminho contrário, há poucas crianças negras se autoclassificando como tais: “Eu tenho a pele escura. Sou negra” (Jurema, 10 anos, negra, escola A). Diante desse complexo quadro de auto e heteroclassificação racial, no diálogo com as crianças brancas e negras, identificam-se situações de conflitos e tensões. As falas das crianças evidenciam tais momentos, que podem ser identificados por meio de apelidos pejorativos pautados em características físicas e raciais: “Uma amiga minha fala que tem a cor muito feia, mas eu digo para ela que ela é bonita: negro é bonito” (Solange, 10 anos, negra, escola C). Os exemplos informam que a experiência da discriminação racial presente no cotidiano escolar representa uma situação que proporciona descontentamento. No entanto, apesar de tal sentimento, nota-se um processo de silenciamento. A criança omite o fato ocorrido tanto dos profissionais da escola quanto dos familiares. Na pesquisa, foi possível também encontrar algumas crianças que levam o fato ao conhecimento de seus(suas) professores(as), mas não foi identificada qualquer demonstração da existência de uma prática efetiva de enfrentamento/combate a tais acontecimentos: [Alguma criança da escola já xingou você?] Sim, a Dalila me chamou de cabelo duro, daí eu falei para a professora. A Dalila falou que era mentira. Outro dia ela falou que eu era bruxa. Eu falei de novo para a professora, e a professora disse que da próxima vez chamava o pai dela. (...) Ela [Dalila] é branquinha, mais baixa do que eu, o cabelo é meio liso e cacheado (Márcia, 10 anos, negra, escola C). Percebe-se, portanto, que, após as reclamações, a professora apenas informa para sua aluna que tomará alguma atitude se o fato voltar a acontecer, ao passo que a aluna confirma o sentimento de desgosto provocado por tal situação. É importante também perceber que, embora seja Márcia uma menina negra, há a negação de seu pertencimento ao grupo negro. Nota-se ainda, por parte das crianças, uma postura de não dar atenção e valorizar esse tipo de acontecimento: [Você falou para a sua professora ou para a sua mãe quando a Dalila te ofendeu?] Não. Uma vez eu falei para a diretora, porque os meninos estavam tentando me jogar no banheiro masculino. Não falei da Dalila, porque eu não achei muito grave. [Qual situação te deixou mais triste?] A da Dalila. 86 Discriminação Racial e Pluralismo nas Escolas Públicas da Cidade de São Paulo [Você contou para a sua mãe?] Não, não gosto de contar tudo para a minha mãe. Eu acho que a minha mãe me protegeria, mas eu não vou ficar falando tudo para a minha mãe (Márcia, 10 anos, negra, escola C). A menina declara que a ofensa racial foi por ela mais sentida do que a situação de conflito com os meninos. Porém, contraditoriamente, ela afirma que a discriminação não é importante o bastante para ser levada ao conhecimento dos profissionais da escola ou dos familiares, mesmo reconhecendo que esses últimos poderiam protegê-la diante de tais acontecimentos. Percebe-se que é possível para a criança do ciclo I do ensino fundamental, com bastante propriedade, relacionar as situações vividas no cotidiano escolar como advindas do racismo: Várias crianças já me xingaram. Teve um menino da 3º série que, eu estava na fila, cortou a fila na minha frente, então eu disse: “Aí, seu corta-fila”. Ele me xingou de Chita Pereira. (...) Eu disse para ele que racismo é agora é a nova lei. (...) Nenhum adulto viu. E eu não falei. (...) Falei com a minha mãe. Ela disse isso mesmo que racismo é lei. Ela falou isso (Bruna, negra, 10 anos, escola B). É importante notar que a criança negra demonstra ter conhecimento da existência de uma lei que pune o racismo. Embora ela não se expresse corretamente, sua fala deixa explícita sua ação de autodefesa e reconhecimento do racismo por parte da outra criança. Faz-se necessário destacar que, para os profissionais da escola, a criança nada contou, porém narrou o acontecimento para a sua mãe em casa. Percebe-se que a criança branca também identifica situações motivadas por conflitos raciais pelas quais passam seus colegas: Olha, chamaram já o Cássio, que é negro, de macaca chita. (...) Porque ele é negro, chamaram ele de macaco. Mas é que ele, sabe (...) aqueles meninos que saem do sério, que tira a gente e eles mesmos saem do sério (Fabiana, 10 anos, branca, escola B). Contudo, essa criança que identifica a discriminação sofrida pelo amigo tenta justificá-la evidenciando o quanto tal situação é provocada pelo comportamento inapropriado da parte do menino negro. A análise anteriormente estabelecida pela criança é similar à que é feita pelos profissionais. Eles também entendem esses conflitos como uma coisa de criança, pertinentes e naturais para os momentos do fato, sobretudo entre os meninos. Concomitantemente, a criança demonstra possuir discernimento para refletir sobre a situação vivida de discriminação e reconhece que isso provoca 89 Eliane Cavalleiro racial ou sobre pertencimento racial. Porém, ao mesmo tempo, reconhecem que, diante de conflitos raciais, as professoras têm como postura criticar e corrigir tais comportamentos: [A professora fala em sala de aula sobre ser negro, branco?] Não. (...) Ela diz alguma coisa quando alguém xinga uma pessoa (...) Ela fala que ninguém é diferente de ninguém, que todo mundo deve ser amigo não pela cor, mas pela amizade mesmo. Ah, ela fala essas coisas (Bruna, negra, 10 anos, escola B). A explanação de Bruna comprova a atitude da professora mediante a situação de conflito entre as crianças, porém, ao mesmo tempo, confirma a não-existência de um diálogo que busque impedir os conflitos raciais presentes no cotidiano escolar: Não, ela nunca falou. Mas eu tenho certeza que ela não acha assim que a cor branca é melhor, ou a cor preta é melhor. Ela acha que é a mesma coisa. Por exemplo, a Cátia é de outra cor, e a professora acha que é a mesma coisa da Cátia e de mim. Elas [a professora e a coordenadora pedagógica] dizem que a cor não importa, o que importa é o coração; que racismo era só antigamente (Milton, 10 anos, branco, escola C). A tônica do trabalho desenvolvido em sala de aula pelos(as) professores(as) pauta-se na crença de que as discriminações não podem existir porque se considera que todos sejam iguais. Todavia, as crianças indicam que é mais desejável apresentar aparência de pessoa branca. As garotas, por exemplo, gostariam de modificar sua aparência, tendo olhos claros, cabelos lisos e/ou claros: Gostaria de ser branquinha do cabelo escuro, por causa da minha pele eu suo muito. Porque também queria ser da cor da minha irmã. (...) [Você gostaria que seus pais fossem diferentes?] Gostaria, que o meu pai fosse branco como a minha irmã e com o cabelo escuro, a minha mãe, branca com o cabelo vermelho (Regina, 9 anos, negra, escola B). E o mesmo pode ser identificado na fala de meninos: “Eu sou marrom claro. [Você gosta de ser assim?] Gosto, eu sou assim não pode mudar. [E se pudesse?] Seria branco claro de olhos pretos. [Por que?] Porque eu gosto” (Josias, 10 anos, negro, escola A). Nota-se, porém, um caso em que Rogério, menino negro, evidencia sua satisfação em ser negro: “[Qual é a cor da sua pele?] Negra. [Você é bonito?] Eu acho eu sou bonito. Eu me acho bonito. [Você gosta de ser assim?] Gosto” (Rogério, negro, 10 anos, escola A). 90 Discriminação Racial e Pluralismo nas Escolas Públicas da Cidade de São Paulo O mesmo é percebido em meninos brancos: Eu sou... nem baixo nem alto. Sou branco, sou gordo também e uso topete, que mais? (...) Meu cabelo é um pouco marrom, marrom escuro. Meus olhos são castanhos escuros também, se eu não me engano. [Você gosta de ser assim?] Gosto. Adoro o jeito que eu sou (Josias, 10 anos, negro, escola A). Logo, diante da tendência de as crianças negras e brancas desejarem para si características físicas que evidenciem o pertencimento ao grupo branco, as falas das crianças revelam que as negras representam aquelas que são mais rejeitadas para comporem pares e realizarem atividades: [Diga o nome de uma criança que você não gosta de se sentar ao lado dela?] Eduarda [negra], Davi [negro], Maurício [negro], Ignácio [branco] e Alex [branco]. O Ignácio porque ele fica brincando, conversa demais. O Alex também é a mesma coisa. Fica fazendo gracinha, piadinha. O Davi é outro caso, porque ele é muito bagunceiro, chato, sem companheiro, e todo mundo fala que ele não toma banho, que ele tem um cheiro insuportável. A Eduarda, ela é legal, só que também ela tem um cheiro, todo mundo comenta dela (Bruna, negra, 10 anos, escola B). O grupo de crianças rejeitadas e recusadas é formado por crianças negras e pobres, estigmatizadas pelo baixo rendimento escolar e pelas precárias condições de higiene. É com elas que, assumidamente, ninguém gosta de se sentar. Por sua vez, as crianças brancas presentes nessa categoria são as que possuem grandes dificuldades de aprendizagem. Em contrapartida, as crianças brancas, consideradas “inteligentes” e “comportadas”, são as mais queridas: [Você tem muitos amigos na escola? De qual você mais gosta?] Sim, Solange, Cátia, Vitória e Carmem. (...) Ela [a Natália] é morena escurinha. A Solange é morena escura. A Vitória é alta e branca. A Carmem é gorduchinha e branquinha. [E amigo?] O Marcelo loirinho, ele é branquinho, eu gosto dele porque ele me dá adesivos, conversa comigo. E o Felipe, que é do mesmo jeito do Marcelo (Márcia, negra, 10 anos, escola C). Meu primeiro melhor amigo é o Lucas [branco], ele é da minha classe. Ele é pequenininho, tem um topetinho bem espetadinho, ele é muito legal. O Eduardo [branco], que também é meu amigo. [E quem mais?] O Jordão [branco] (Plínio, branco, 10 anos, escola A). Simultaneamente, é importante atentar para o fato de que Bruna, uma menina negra que afirma seu pertencimento racial, diz ter também amigas negras e assim as classifica: [Você tem muitos amigos na escola?] Tenho. (...) Jéssica. Ela é legal, ela é inteligente, ela é negra. É quase da minha cor, um pouco mais clara. Ela 91 Eliane Cavalleiro é legal e não é bagunceira. Ela é brincalhona, faz piadas com a gente. (...) Agora deixa eu ver: A Denise. A Denise é negra mesmo, da minha cor, ela é legal também; inteligente, e é um pouquinho bagunceira e brincalhona. Às vezes eu brigo com ela, mas... nós somos amigas (Bruna, negra, 10 anos, escola B). Marcos, o menino que se diz mulato, afirma ter dois grandes amigos na escola: um branco e outro negro: [Você tem muitos amigos na escola?] Tenho. O Cássio é meu amigão, quando ele leva lanche a gente divide. E o Ignácio, tem um dia que ele dá alguma coisa para mim e para os amigos. (...) O Rafael é alto, magro, e da cor do meu irmão. (...) [Seu irmão é negro?] É. [E o Ignácio?] O Ignácio é do meu tamanho, e branco (Josias, negro, 10 anos, escola A). Assim, aparentemente as relações entre as crianças, na compreensão delas e dos adultos que as educam, não se pautam pelo pertencimento racial, mas se justificam em função do pertencimento social associado ao desempenho escolar. Porém, a observação revela que os critérios para o estabelecimento das relações de ofensa ou de amizade são freqüentemente subsidiados pelos referenciais de pertencimento racial. Para as crianças, é apreciável estar próxima ao referencial de mundo das pessoas brancas. Se são negras reconhecem isso como uma desvantagem; e, por vezes, sem a ajuda dos adultos, se submetem a sessões cotidianas de discriminação racial. Essa relação discriminatória é atenuada apenas se a criança negra tiver condições de competir e preferencialmente superar o nível de cognição de seus colegas brancos. COMO OS PAIS PERCEBEM AS RELAÇÕES RACIAIS? Quanto às relações no espaço familiar, de acordo com as entrevistas realizadas, depreende-se que as famílias, sobretudo as brancas, procuram evidenciar a não- existência de racismo no espaço familiar: Na minha família não tem disso, porque eu tive uma irmã que era casada com um negro. Então, não tem racismo. Não tem mesmo. (...) A gente não comenta isso não, porque têm os meus vizinhos que são pretos. O racismo acho que é o pessoal mais antigo do que esses meninos mais novos. Esses meninos novos não ligam muito para essas coisas. (...) Os antepassados dela (a mãe de Ignácio) são tudo negro mesmo. Então, ela não liga muito para essas coisas não. Inclusive, ela trabalha na creche, e trabalha com pretos também, e se dão muito bem. Não tem esse negócio de racismo (Irineu, pai, branco, escola B). 94 Discriminação Racial e Pluralismo nas Escolas Públicas da Cidade de São Paulo besteira. Isso é um preconceito, mas é coisa do ser humano falar, mas não que existe (sic). Pode existir racismo em firmas, essas multinacionais, aí eu acredito que exista mesmo, aí são firmas multinacionais, esses americanos aí, que não gostam mesmo... Mas da parte do brasileiro, acho que não é racismo, não (Irineu, pai, branco, escola B). Uma mãe negra explicita o racismo presente na sociedade demonstrando conhecimento a respeito de políticas públicas específicas para essa questão: “Toda a sociedade, porque agora a faculdade está começando a dar cotas para negros, mas ainda está desigual. Acredito que todos, em todas as áreas, têm que ser tratados iguais” (Josefa, mãe, negra, escola C). Outros, porém, ratificam não acreditar na existência de racismo e discriminação contra o negro, tampouco percebem seus efeitos prejudiciais: “Acho que todos têm a mesma oportunidade. Se não for atrás, nem branco consegue nada na vida” (Jacira, mãe, negra, escola C). Há quem reconheça que a escola deve ter papel relevante nesse processo: “Acho que a mãe tem que falar mais, mas a escola não pode deixar isso passar em branco” (Gislene, mãe, negra, escola A). Por sua vez, Antonia afirma que seu filho nunca brigou na escola, porém é interessante perceber que todo o tempo ela reconhece a presença do racismo e parece estar sob a responsabilidade de seu filho evitar os conflitos: Não é prejudicial que os professores falem sobre racismo. Eles têm que ter paciência, porque o racismo existe. Têm que tentar falar, porque existe, existe. Não pode falar que não existe, porque existe. Mas ele [o filho] nunca caçou rolo [briga], porque eu converso muito com ele em casa (Antonia, mãe, negra, escola B). E assim, ela revela um caso de conflito experienciado por seu filho: Ele nunca brigou na escola. Nunca. (...) Só uma vez que ele estava brincando na quadra, um outro chamou ele de “seu negro”, “cabelo de bombril”, aí ele falou: “Sou mesmo, e daí? Sou gente igual a você. A única diferença é que eu tenho cabelo duro e você tem esse cabelo liso. A sua pele é branca e a minha é morena, e daí?”. Então, que ele não ficou assim ofendido com aquilo. Sabe, assim, como eu te falei, eu converso com ele em casa, então ele já tem a consciência de que ele é negro (Antonia, mãe, negra, escola B). Em semelhança ao que foi observado na análise das entrevistas com as crianças e com os profissionais da escola, nota-se que os familiares, pais e mães negros e brancos, diante da necessidade de se autoclassificar racialmente apresentam uma variedade: 95 Eliane Cavalleiro Eu acho que eu sou morena, não gosto que me chamem de branca. (Célia, mãe, branca, escola C). Eu sou morena. Meu pai era moreno bem escuro, a minha mãe é clara que nem eu. Na família da minha mãe têm cigano, um irmão era loiro dos olhos azuis, um outro irmão era índio, ainda tinha um negro. A minha família é bem mestiça. [E seu marido] Ele é moreno do cabelo cacheado, mas tem loiros na família dele (Josefa, mãe, negra, escola C). Tal variação indica que, no que diz respeito à cor da pele, não é considerado positivo nem tê-la extremamente branca nem negra, porém os traços fenotípicos das pessoas brancas, como a textura do cabelo e a cor dos olhos, tendem a ser considerados mais positivos em relação aos das pessoas negras. Logo, autoclassificar-se “moreno” guarda uma correlação com ser bonito, tanto para negros quanto para brancos. Nota-se também que alguns, brancos e negros, se autoclassificam dentro de uma definição condizente com a cor de sua pele: “Eu sou escura. Sou negra” (Nélida, mãe, negra, escola B). “Eu sou clara, então sou branca” (Mariana, mãe, branca, escola C). No que diz respeito à relação com a escola, é comum entre pais e mães, ao iniciarem uma reflexão sobre isso, a demonstração de sentimento de satisfação para com essa instituição. Vale ressaltar aqui que eles comparecem à escola apenas em eventos, reuniões de pais e/ou na entrada e saída do período escolar: “[O que o senhor acha da escola de seu filho?] Eu acho muito boa. (...) Eu sou muito bem recebido [na escola]” (Irineu, pai, branco, escola B). Para os pais entrevistados, há uma unanimidade em reconhecer o tratamento igualitário no cotidiano escolar: [Há distinção se é menino, menina; branco ou negro; rico, pobre...] Não. Faz quatro anos que meus filhos estudam aqui e a gente não tem notícia que tenha havido discriminação de qualquer tipo (Pascoal, pai, branco, escola A). Na escola não tem esse negócio de filho de negro, lá na sala de aula também os colegas respeita (sic). Ele estuda aqui desde a 1ª série, não teve problema nenhum. (...) Eu nunca percebi isso. (...) Eu acho que eles [professores(as)] não diferenciam. Eles têm que tratar todos iguais. Pelo que eu vejo, eles tratam todos iguais (Antonia, mãe, negra, escola B). Contudo, no que diz respeito às relações entre as crianças, Jacira, uma mãe negra, afirma ter percebido um tratamento diferenciado em relação à sua filha: 96 Discriminação Racial e Pluralismo nas Escolas Públicas da Cidade de São Paulo Só no começo eu vi ela ser um pouco desprezada, mas não por ser morena. Eu vi umas meninas empurrando ela, mas não fiz nada, porque acho que é a decisão dela, ela que tem que decidir se vai ou não chamar a professora, ou se vai conversar com os colegas (Jacira, mãe negra, escola C). Intriga, contudo, o fato de ter deixado que sua filha resolvesse a situação. Por outro lado, verifica-se que os pais também percebem a existência de uma educação que estimule relações respeitosas no ambiente escolar: “Sim. A professora conversa com os alunos dizendo que não devemos desfazer de ninguém. Nem pela cor da pele, nem por religião ou qualquer outra coisa” (Suzana, mãe, branca, escola A). Outros sinalizam pouca atenção a tal característica da educação dos filhos: Olha, eu não posso dizer porque a gente não acompanha bem esse assunto. Mas pelo que eu percebo na professora... Eu vejo que, uma vez que eu fui numa reunião, ela não comentou muito sobre esse negócio de racismo, de negros com brancos; de estudar na mesma classe; ou de ficar servindo mais um e desprezando o outro (Irineu, pai, branco, escola B). Apesar de a maioria dos pais apresentarem discurso e prática, no que diz respeito a questões de pertencimento racial, baseados em afirmações sustentadas pelo mito da democracia racial,14 existem famílias negras e brancas que reconhecem que a discriminação racial tem um caráter de retrocesso em nossa sociedade e, assim, buscam educar seus filhos para uma convivência social mais respeitosa, chegando até mesmo ao reconhecimento da necessidade de políticas públicas adequadas para tal questão. Não obstante, tais intervenções e análises são ainda esparsas e pontuais. Evidencia-se uma análise incipiente sobre a educação escolar possibilitada aos seus filhos no tocante à diversidade racial presente na sociedade. O mesmo se percebe quanto à educação realizada no espaço familiar. Em todo caso, é comum a todas as famílias o desejo, ainda que no plano do discurso, de não verem suas crianças praticando discriminação em suas relações sociais. As pessoas negras, além disso, expressam não desejar ter suas crianças vivendo situações constrangedoras nas relações com crianças e adultos. 14 O conceito de mito que adotamos é o mesmo utilizado por Calos A. Hasenbalg: “A noção de mito para qualificar a ‘democracia racial’ é aqui usada no sentido de ilusão ou engano e destina-se a apontar para a distância entre representação e realidade, a existência de preconceito, discriminação e desigualdades raciais e a sua negação no plano discursivo. Essa noção não corresponde, portanto, ao conceito de mito usado na Antropologia” (HASENBALG, 1996: 237).
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