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Guias e Dicas
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História da Filosofia volume II , Notas de estudo de Filosofia

O segundo volume desdobra-se em dez partes, com a intenção de oferecer unidades didáticas no âmbito das quais se possa realizar as escolhas de estudo segundo o interesse e o nível de compreensão. Aqui se dá grande destaque à revolução científica do séc. XVI em diante.

Tipologia: Notas de estudo

Antes de 2010

Compartilhado em 20/11/2009

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Baixe História da Filosofia volume II e outras Notas de estudo em PDF para Filosofia, somente na Docsity! Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Reale, Giovanni. História da filosofia: Do Humanismo a Kant / Giovanni Reale, Dario Antiseri; - São Paulo: Paulus, 1990. - (Coleção filosofia) Conteúdo: v. 1. Antiguidade e Idade Média. — v. 2. Do Humanismo a Kant. -v. 3. Do Romantismo até nossos dias. ISBN 85-05-01076-0 (obra completa) 1. Filosofia 2. Filosofia - História |. Antiseri, Dario. It. Título. Ill. Série. CDD-109 90-0515 -100 Índices para catálogo sistemático: 1. Filosofia 100 2. Filosofia: História 109 Coleção FILOSOFIA * O homem. Quem é ele? Elementos de antropologia filosófica, B. Mondin * introdução à filosofia. Problemas, sistemas, autores, obras, idem * Curso de filosofia, 3 vols., idem * História da filosofia, 3 vols., G. Reale e D. Antiseri * Filosofia da religião, U. Zilles GIOVANNI REALE/DARIO ANTISERI . HISTÓRIA DA FILOSOFIA Do Humanismo a Kant VOLUME 2 2sedição PAULUS Título original o . N pensiero oceidentale dalle origini ad oggi & Editrice La Scuola, Bréscia, 8º ed., 1986 traçõ e a a Alina, Arborio Mella, Farabola, Fototeca Storica Nazionale, Giorcelli, Ricciar- ini, Spectra. Revisores L. Costa e H. Dalbosco O PAULUS - 1990 Rua Francisco Cruz, 229 04117-091 São Paulo (Brasil) Fax (011) 575-7403 Tel. (011) 572-2362 ISBN 88-350-7271-9 (ed. original) ISBN 85-05-01076-0 (Obra completa) ISBN 85-3490163-5 (vol. Il) PREFÁCIO “O último passo da razão é o de reconhecer que existem infinitas coisas que «a superam.” Pascal Como se justifica um tratado tão vasto da história do pensamento filosófico e científico? Observando o tamanho dos três volumes desta obra, talvez o professor se pergunte: como é possível, nas poucas horas semanais de aula à disposição, abordar e desen- volver um programa tão rico e conseguir levar o estudante a dominá-lo? Claro, se formos medir este livro pelo número de páginas, “devemos dizer que é um livro extenso. É o caso, porém, de recordar aqui a bela sentença do abade Terrasson citada por Kant no prefácio à Crítica da Razão Pura: “Se não formos medir o tamanho do livro pelo número de páginas, mas sim pelo tempo necessário para entendê-lo, poder-se-ia dizer de muitos livros que seriam muito mais breves se não fossem tão breves.” E, na verdade, em muitos casos, os manuais de filosofia dariam muito menos trabalho se contivessem algumas páginas a mais sobre uma série de temas. Com efeito, na exposição da problemática filosófica, a brevidade não simplifica as coisas, mas sim as complica — e, às vezes, as torna pouco compreensíveis, quando não até mesmo incompreensíveis. De todo modo, em um manual de filosofia, « brevidade leva fatalmente ao nocionismo, à listagem de opiniões, à mera visão panorâmica sobre “o que” disseram os vários filósofos ao longo do tempo, o que pode até ser instrutivo, mas é muito pouco formativo. Pois bem, esta história do pensamento científico e filosófico pretende alcançar pelo menos três outros níveis além do simples “o que” disseram os filósofos, ou seja, além daquele nível que os antigos chamavam de “doxográfico” (nível de confrontação de opiniões), procurando explicar o “por que” daquilo que os filósofos disseram, buscando transmitir um sentido adequado do “como” o disseram e, por fim, indicando alguns dos “efeitos” provocados por suas teorias filosóficas e científicas. O “por que” das afirmações dos filósofos nunca constitui algo simples, no sentido em que motivos sociais, econômicos e culturais freguentemente se ligam e, de vários modos, se entrelaçam com os 10 Prefácio nos impeliu não apenas a delinear os traços de fundo desse importante movimento de pensamento, mas também a penetrar mais profundamente na riqueza específica dos diversos luminis- mos: o francês, o inglês, o alemão e o italiano. Foi por isso que expusemos com certa meticulosidade: 1) as concepções dos deístas ingleses (J. Toland, S. Clarke, A. Collins, M. Tindal e J. Butler); as reflexões sobre a moral por parte de Shaftesbury, F. Hutcheson e D. Hortley, sobretudo as idéias ético-políticas de Bernard de Mande- ville; as idéias gnosiológicas da escola escocesa: Reid, Stewart e Brown;2)oprojeto da Enciclopédia francesa, a filosofia de d'Alembert e Diderot, a gnosiologia sensística de Condillac; as concepções dos materialistas iluministas: La Mettrie, Helvétius e d'Holbach; a grande batalha pela tolerância travada por Voltaire; o pensamento político de Montesquieu e o articulado conjunto das idéias éticas, políticas, sociais, pedagógicas e religiosas de Rousseau; 3) a in- fluente filosofia de Wolff; o nascimento da estética sistemática com A. Baumgarten; as concepções de Lessing; 4) igualmente, as idéias dosirmãos VerriedeP. Frisi, mas sobretudo de César Beccaria, sem esquecer a contribuição de Filangieri, Galiani e Genovesi. É precisamente ao examinar especificamente o iluminismo inglês, francês, alemão e italiano que se vê com clareza que, baseando-se em tradições culturais diversas, o iluminismo se configura, não tanto como um compacto sistema de doutrinas, mas muito mais como um movimento em cuja base está a confiança na razão humana, cujo desenvolvimento é condição de progresso para à humanidade e de libertação dos vínculos cegos e absurdos da tradição, das raízes da ignorância, da superstição, do mito e da opressão. Desse modo, veremos como se explicita a Razão dos iluministas como defesa do conhecimento científico e da técnica, como instrumento de transformação do mundo e de melhoria progressiva das condições espirituais e materiais da humanidade, como tolerância ética e religiosa, como defesa dos inalienáveis direitos naturais do homem e do cidadão, como rejeição dos dogmáticos sistemas metafísicos factualmente incontroláveis, como crítica das superstições representadas pelas religiões positivas e como defesa do deísmo (e, por vezes, também do materialismo), como combate aos privilégios e à tirania. São precisamente essas as “semelhanças de família” que, nas diferentes tradições, nos per- mitem falar do movimento iluminista como um movimento filosó- fico, pedagógico e político que, ademais, também influenciou forte- mente a historiografia e a arte. A Kant, por fim, reservamos uma exposição que constitui como que pequena monografia, a qual, ao lado de uma exposição sintética dos escritos pré-críticos, apresenta uma análise precisa da estrutura das três “Críticas”, procurando conjugar a clareza didá- tica com o rigor científico. Prefácio 1i O volume se conclui com um apêndice que, como um comple- mento indispensável, contém os quadros cronológicos sinóticos e o índice dos nomes, tudo a cargo do professor Claudio Mazzarelli (cf. pp. 933ss.), que, unindo sua dupla competência de professor de longa data e de pesquisador científico, procurou fornecer um instrumento ao mesmo tempo o mais rico e funcional. Dirigimos nosso agradecimento ao professor Dante Cesarini, de Perugia, pela ajuda que nos prestou no exame das relações entre o iluminismo e o neoclassicismo. Os autores também expressam uma grata recordação à memória do professor Francesco Brunelli, que idealizou e promo- veu a iniciativa desta obra. Pouco antes de seu imprevisto de- saparecimento, ele já estava preparando a execução tipográ- fica deste projeto. O nosso mais vivo agradecimento ao doutor Remo Bernac- chia, por ter favorecido e tornado realizável a concepção inteira- mente nova em que se inspira a presente obra. Em especial, cabe a ele o mérito de haver tornado possível a nova edição e de ter previsto uma estrutura técnica capaz de possibilitar também futuros melho- ramentos na obra. Expressamos uma gratidão especial à dow- tora Clara Fortina, que, na qualidade de redatora, dedicou-se apaixonadamente ao êxito da obra, para além dos seus deveres profissionais. Os autores assumem em comum a responsabilidade por toda esta obra, por terem trabalhado juntos (cada qual segundo a sua competência, sua sensibilidade e seus próprios interesses) para o bom êxito de cada um dos três volumes, em plena unidade de espírito e de intenções. Os Autores Primeira parte O HUMANISMO E O RENASCIMENTO “Magnum miraculum est homo.” Hermes Trismegisto, in Asclepius “Ó, suprema liberalidade de Deus Pai! Ó, suprema e admirável felicidade do homem! Homem ao qual foi concedido obter aquilo que deseja e ser aquilo que quer. Ão nasce- rem, os seres brutos levam consigo, do seio materno, tudo aquilo que terão. Já os espt- ritos superiores, desde o início ou pouco depois já são aquilo que serão nos séculos dos séculos. No homem nascente, o Pai depositou sementes de toda espécie e germes de toda vida. E, na medida que cada um os cultivar, eles crescerão e nele darão os seus frutos. E, se forem vegetais, será planta; se forem sensíveis, será ser bruto; se forem racionais, se tornará animal celeste; se fo- rem intelectuais, será anjo e filho de Deus. Mas se, não contente com a sorte de nenhu- ma criatura, se recolher no centro de sua unidade, fazendo-se um sóesptritocom Deus, na solitária névoa do Pai, aquele que foi colocado sobre todas as coisas estará sobre todas as coisas.” Pico de Mirândola | o e “mm mm mm Escola de Atenas, pintura de Rafael. Sob as figuras dos filósofos (cf. a ampliação da p. 60 e a respectiva legenda). O grupo da direita gregos e seus grupos, apresenta uma admirável síntese do pensa- representa os filosofos da natureza e os cientistas, capitaneados por mento renascentista, idealizado em todos os seus componentes. O Aristóteles (cf. a ampliação da p. 86 e a respectiva legenda). O con- erp e esquerda representa a corrente órfico-pitagórica (cf. a ceito geral que Rafael pretendeu expressar foi o seguinte: o supremo ampliação da p.42 e a respectiva legenda) e místico-transcenden- ideal filosófico está em uma síntese capaz de unificar a metafísica talista, culminando com Platão, que tem a mão apontada para océu da transcendência, a filosofia da natureza, a teologia e a magia. 20 Humanismo e Renascimento também contém muitos erros e confusões, que depois Tora repetidos por todos.” Assim, é necessário estudar a fundo as questões discutidas pelos aristotélicos italianos desse período: desse modo, cairiam por terra muitos lugares comuns que só se mantêm porque foram continuamente repetidos, mas que carecem de base sólida, emergindo consequentemente uma nova realida- de histórica. . Em conclusão, o humanismo representaria apenas uma metade do fenômeno renascentista e, mais ainda, a metade não filosófica. Assim, ele só seria plenamente compreensível se consi- derado junto com o aristotelismo que se desenvolveu paralela- mente, o qual expressaria as verdadeiras idéias filosóficas da época. Ademais, segundo Kristeller, os artistas do Renascimento não deveriam ser vistos na ótica do grande “gênio criativo (que constitui uma visão romântica e um mito do século XIX), mas sim como “ótimos artesãos”, cuja excelência não decorre deuma espécie de superior adivinhação dos destinos da ciência moderna, mas sim da bagagem de conhecimentos técnicos (anatomia, perspectiva, mecânica etc.) considerada indispensável para a prática ade- quada de sua arte. Por fim, se a astronomia ea fisica realiza- ram progressos notáveis, não foi por motivo de sua ligação com 0 pensamento filosófico, mas sim com a matemática. E aos filó- sofos custou-lhes se harmonizar com essas descobertas, porque, tradicionalmente, nãohavia uma conexão precisa entrema-temática e filosofia. . o b) Diametralmente oposta é a reconstrução de Eugênio Garin, que reivindicou energicamente uma precisa valência filosó- fica para o humanismo, notando que a negação de significado filosófico aos studia humanitatis renascentistas deriva do fato de que, “as mais das vezes, entende-se por filosofia a construção sistemática de grandes proporções, negando-se que a filosofia também pode ser outro tipo de especulação, não sistemática, aberta, problemática e pragmática”. Polemizando com as acusações de diletantismo filosófico que alguns estudiosos fizeram aos huma- nistas, escreve Garin: “A razão íntima daquela condenação do significado filosófico do humanismo... está no) amor sobrevivente por uma visão de filosofia constantemente combatida pelo pensa- mento do século XV. Aquilo cuja perda é lamentada por tantos é justamente o que os humanistas quiseram destruir, isto é a construção de grandes 'catedrais de idéias', das grandes sistema- tizações lógico-teológicas: a filosofia que submete todo problema e toda pesquisa à questão teológica, que organiza e encerra toda possibilidade na trama de uma ordem lógica preestabelecida. Essa filosofia, ignorada no período do humanismo como vãe inútil, é substituída por pesquisas concretas, definidas e precisas na dire- Interpretação historiográfica do humanismo 21 ção das ciências morais (ética, política, economia, estética, lógica e retórica) e das ciências da natureza (...) cultivadas iuxta propria principia, fora de qualquer vínculo e de qualquer auctoritas (...).” Aliás, diz Garin, a atenção “filológica” para com os problemas particulares “constitui precisamente a nova filosofia”, ou seja, o novo método de examinar os problemas, que, portanto, não deve ser considerado, ao lado da filosofia tradicional, como um aspecto secundário da cultura renascentista, como acreditam alguns (basta pensar, por exemplo, na posição de Kristeller que examinamos), mas sim como o próprio filosofar efetivo”. Uma das mais destacadas características desse novo modo de filosofar é o sentido da história e da dimensão histórica, com seu respectivo sentido de objetivação e de afastamento crítico do objeto historicizado, ou seja, historicamente considerado. Escreve Garin: “Foi então, graças àqueles poderosos pesquisadores de antigas histórias que conquistamos um igual distanciamento tanto da física de Aristóteles como do cosmos de Ptolomeu, libertando-nos imediatamente de sua opressora clausura. E isso porque físicos e lógicos de Oxford e Paris já haviam começado a corroer aquelas estruturas por dentro, estruturas que se encontravam bastante abaladas depois do terrível golpe desfechado por Ockham. Mas somente a conquista do antigo como sentido da história — própria do humanismo filológico — permitiu considerar aquelas teorias como aquilo que elas verdadeiramente eram: pensamentos huma- nos, produtos de certa cultura e resultado de experiências parciais e particulares; não oráculos da natureza ou de Deus, revelados por Aristóteles e Averróis, mas sim visões e cogitações humanas.” A essência do humanismo não deve ser vista naquilo que ele conheceu do passado, mas sim no modo em que o conheceu, na atitude peculiar que adotou diante dele: “É precisamente a atitude adotada diante da cultura do passado e diante do próprio passado que define claramente a essência do humanismo. Ea peculiaridade dessa atitude não se deve fixar em um singular movimento de admiração e afeto, nem em um conhecimento mais amplo, mas em uma consciência histórica bem definida. Os bárbaros! (= os medievais) não o foram por terem ignorado os clássicos, mas sim por não tê-los compreendido na veracidade de sua situação históri- ca. Os humanistas descobrem os clássicos porque os afastaram de si, procurando defini-los sem confundir o latim deles com o seu próprio. Por isso, os humanistas verdadeiramente descobriram os antigos, fossem eles Virgílio ou Aristóteles, apesar de conhecidís- simos na Idade Média. E isso porque restitufram Virgílio ao seu tempo e ao seu mundo e procuraram explicar Aristóteles no âmbito dos problemas e dos conhecimentos da Atenas do século IV antes de Cristo. Por isso, no humanismo, não se pode nem se deve O célebre Davi, de Michelangelo, na majestade e nobreza de seus traços, representa visivelmente, de modo paradigmático, o conceito do homem como “o maior milagre” do universo, que constitui uma das marcas espirituais mais típicas do Renascimento. Interpretação historiográfica do humanismo 23 distinguir a descoberta do mundo antigo e a descoberta do homem, porque setratou de uma só coisa, já que descobrir o antigo comotal significou comparar-se com ele e, distanciando-se, colocar-se em relação com ele. Significou tempo e memória, sentido da criação humana, da obra terrena e da responsabilidade. Não por acaso os maiores humanistas foram, em grande número, homens de Esta- do, pessoas ativas habituadas à livre atuação na vida pública de sua época.” Mas a tese de Garin não se reduz a isso: ele coloca a nova “filosofia” humanista na realidade concreta daquele momento da vida histórica italiana, fazendo-a uma expressão dessa realidade, a ponto de explicar com razões sociopolíticas a reviravolta sofrida pelo pensamento humanista na segunda metade do século XV. Inicialmente, o humanismo foi uma exaltação da vida civil e das problemáticas a ela ligadas, porque estava vinculado à liberdade política daquele momento. O advento das tutelas e o eclipsar-se das liberdades políticas republicanas transformou os literatos em cortesãos e impeliu a filosofia para evasões de caráter contempla- tivo metafísico: “Retirada sua liberdade no plano político, ohomem evadiu-se para um terreno diferente, voltando-se para si mesmo e procurando a liberdade do sábio (...). De um filosofar socrático, centrado no problema humano, passa-se para um plano platônico (...). Em Florença, enquanto Savonarola lança a última invectiva contra as tiranias que tudo corrompem e esterilizam, o “divino Marcílio procura no hiperurânio uma margem serena onde se abrigar das tempestades do mundo.” Na realidade, as teses contrapostas de Kristeller e de Garin revelam-se muito fecundas precisamente por sua antítese, porque uma destaca aquilo que a outra silencia, podendo portanto ser interpretadas entre si, se prescindirmos de alguns pressupostos dos dois autores. É verdade que, originalmente, o termo “huma- nista” indica o ofício do literato, mas essa profissão vai bem além do simples ensino universitário, entrando na vida ativa, ilumi- nando os problemas da vida cotidiana, fazendo-se verdadeira- mente uma “nova filosofia”. Ademais, o humanista distingue-se efetivamente pelonovo modo como lê os clássicos: houve um humanismo literário porque surgiram um novo espírito, uma nova sensibilidade e um novo gosto, com os quais as letras foram revisitadas. E o antigo alimen- tou o novo espírito, porque este, por seu turno, iluminou o antigo com uma nova luz. Kristeller tem razão quando lamenta que o aristotelismo renascentista seja um capítulo a ser reestudado ex novo e também tem razão ao insistir no paralelismo desse movimento com o movimento propriamenteliterário. Mas o próprio Kristeller admite 24 Humanismo e Renascimento que o Aristóteles desse período é um Aristóteles fregientemente procurado e lido no texto original, sem a mediação das traduções e das exegeses medievais, tanto que chega até a retornar aos co- mentadores gregos para ser iluminado. Assim, trata-se de um Aristóteles revisitado com um novo espírito, que só o “humanismo pode explicar. Portanto, Garin tem razão ao destacar o fato de que o humanismo olha o passado com novos olhos, com os olhos da “história”, e que só atentando para esse fato é que se pode compreender toda essa época. . . E a aquisição do sentido da história, ao mesmo tempo, significa aquisição do sentido de sua própria individualidade e originalidade. Só se pode compreender o passado do homem quando se compreende a sua “diversidade” em relação ao presente e, portanto, quando se compreende a “peculiaridade” e a “especi- ficidade” do presente. . . Por fim, no que se refere à excessiva vinculação do huma- nismo aos fatos políticos, que leva Garin a algumas afirmações que correm o risco de cair no historicismo sociologista, basta destacar que a grande mudança do pensamento humanista não está ligada somente a uma mudança política, mas também à descoberta eàs traduções de Hermes Trismegisto e dos profetas-magos, de Platão, de Piotino e de toda a tradição platônica, o que representou à abertura de novos e ilimitados horizontes, do que falaremos adiante. De resto, o próprio Garin não se deixou levar por excessos sociologistas, como, no entanto, fizeram outros intérpretes por ele influenciados. J. Concluindo, podemos dizer que a marca que distingue o humanismo consiste em um novo sentido do homem e de seus problemas. É um novo sentido que encontra expressões multifor- mes e, por vezes, até opostas, mas sempre ricas e fregiientemente muito originais. É um novo sentido que culmina nas celebrações teóricas da “dignidade do homem” como ser em certo sentido “extraordinário” em relação a toda a ordem do cosmos, como veremos adiante. Mas essas reflexões teóricas nada mais são do que expressões conceituais que têm nas representações da pintura, da escultura e de grande parte da poesia as suas correspondências visuais e fantástico-imaginativas, que, com a majestade, a har- monia e a beleza de sua figuração, expressam a mesma idéia, de vários modos em esplêndidas variações. 2. O significado historiográfico do termo “Renascimento” O termo “Renascimento”, como categoria historiográfica, consolidou-se no século XIX, em grande parte por mérito de uma obra de Jacob Burckhardt intitulada À cultura do Renascimento na Interpretação historiográfica do humanismo as Ttália (publicada em Basiléia, em 1860), que se tornou muito famosa, impondo-se longamente como modelo e como ponto de referência indispensável. Na obra de Burckhardt, o Renascimento emergia como fenômeno tipicamente italiano quanto às suas origens, caracterizado pelo individualismo prático e teórico, pela exaltação da vida mundana, pelo acentuado sensualismo, pela mundanização da religião, pela tendência paganizante, pela liber- tação em relação às autoridades constituídas que haviam domina- do a vida espiritual no passado, pelo forte sentido de história, pelo naturalismo filosófico e pelo extraordinário gosto artístico. Segundo Burckhardt, o Renascimento seria portanto uma época que viu surgir uma nova cultura, oposta à medieval. E a revivescência do mundo antigo teria desempenhado nisso um papel importante, mas não exclusivamente determinante. Escreve Burckhardt: “Aquilo que devemos estabelecer (...) como um ponto essencial é que não foi ressuscitada a Antigúidade por si só, mas sim ela e o novo espírito italiano, juntos e interpenetrados, que tiveram a força para arrastar consigo todo o mundo ocidental.” ÀÁssim, partindo do renascimento da Antiguidade, passou-se a chamar de “Renascimento” toda essa época, que, porém, é algo mais complexo do que isso: com efeito, é a síntese do novo espírito que se criou na Itália com a própria Antigiiidade — é o espírito que, rompendo definitivamente com o espírito da época medieval, inaugurou a época moderna. Essa interpretação foi muito contestada, por várias vezes, em nosso século. Alguns chegaram mesmo a duvidar que o “Renasci- mento” constitua uma efetiva “realidade histórica” e não seja muito mais (ou predominantemente) uma invenção construída pela historiografia do século XIX. Variados e de diversos tipos foram os reparos feitos sobre o Renascimento. Alguns observaram que, se atentamente estudadas, as vá- rias “características” consideradas típicas do Renascimento tam- bém podem ser encontradas na Idade Média. Outros insistiram muito no fato de que, a partir do século XI, mas sobretudo nos séculos XII e XIII, a Idade Média pode ser considerada plena de “renascimentos” de obras e autores antigos, que pouco a pouco emergiam e eram readquiridos. Consequentemente, esses autores negaram validade aos parâmetros tradicionais que durante longo tempo haviam baseado a distinção entre a Idade Média e o “Renascimento”. Mas logo se estabeleceu um novo equilíbrio, reconstituído em bases bem mais sólidas. Nesse meio tempo, porém, estabeleceu-se que o termo “Renascimento” não pode em absoluto ser considerado como mera invenção dos historiadores do século XIX, pelo simples Cola de Rienzo: por volta de meados do século XIV, verbalizou instâncias de renovação e renascimento moral, espiritual e político. Há tempos, alguns estudiosos vêem nele um dos precursores da época renascentista. Definição cronológica de humanismo e renascimento 31 particularmente na singular figura de Cola de Rienzo (cuja obra culmina por volta de meados do século XIV) e na personalidade e obra de Francisco Petrarca (1304-1374). E o seu epílogo alcança as primeiras décadas do século XVII: Campanella foi a última grande figura renascentista. Tradicionalmente, falava-se do século XV como época do humanismo e do século XVI como época do Renascimento pro- priamente dito. Como, porém, caiu por terra a possibilidade de distinção conceitual entre humanismo e renascentismo, necessa- riamente também cai por terra essa distinção cronológica. Se levarmos em conta os conteúdos filosóficos, eles mostram (e o veremos com mais amplitude um pouco adiante) que, o pensamento sobre o homem prevalece no século XV, ao passo que, no século XVI, o pensamento se amplia, abrangendo também a natureza. Nesse sentido, se, por razões de comodidade, se quiser indicar como humanista predominantemente o momento do pen- samento renascentista que teve por objeto sobretudo o homem e como renascentista este segundo momento do pensamento, que considera também toda a natureza, pode-se até fazê-lo, embora com muitas reservas e com grande circunspecção. De todo modo, o certo é que, hoje, entende-se por Renascimento a denominação historiográfica de todo o pensamento dos séculos XV e XVI. Porfim, deve-se recordar que os fenômenos de imitação extrínseca e de filologismo e gramatismo não são próprios do século XV, mas sim do século XVI, constituindo enquanto tais (como já acenamos) os sintomas da incipiente dissolução da época renascentista. Ademais, no que se refere às relações entre a Idade Média e o Renascimento italiano, devemos dizer que, no atual estado dos estudos, não se mantêm de pé nem 1) a tese da “ruptura” entre as duas épocas e tampouco 2) a tese da pura e simples “continuidade”. Atese correta é uma terceira. Ateoria da ruptura pressupõe a oposição e a contrariedade entre as duas épocas, ao passo que a teoria da continuidade postula uma homogeneidade substancial. Mas, entre a contrariedade e a homogeneidade, existe a “diversi- dade”. Ora, dizer que o Renascimento é uma época “diversa” da Idade Média não apenas permite distinguir as duas épocas sem contrapô-las, mas também identificar facilmente os seus nexos e as suas tangências, bem como as suas diferenças, com grande liber- dade crítica. E, consequentemente, outro problema também pode ser fa- cilmente resolvido. O Renascimento inaugura a época moderna? Os teóricos da “ruptura” entre Renascimento e Idade Média eram fervorosos defensores da resposta positiva a essa pergunta. Já os teóricos da “continuidade” davam-lheresposta negativa. Hoje, em geral, tende- 32 Humanismo e Renascimento se a identificar o começo da época moderna com a revolução científica, ou seja, com Galileu. Do ponto de vista da história do pensamento, essa parece a tese mais correta. A época moderna revela-se dominada por essa grandiosa revolução e pelos efeitos que ela provocou em todos os níveis. Nesse sentido, o primeiro filósofo “moderno” foi Descartes (e, em parte, também Bacon), como veremos adiante mais amplamente. Sendo assim, o Renascimento representa uma época diversa tanto da época medieval como da época moderna. Naturalmente, assim como as raízes do Renascimento devem ser buscadas na Idade Média, da mesma forma as raízes do mundo moderno, por seu turno, devem ser procuradas no Renascimento. Pode-se dizer, inclusive, que o epílogo do Renascimento é marcado pela própria revolução científica: mas essa revolução assinala precisamente o epílogo, não a “marca” do Renascimento, ou seja, indica o seu fim, mas não expressa em absoluto a sua têmpera espiritual em geral. Agora, falta-nos ainda examinar concretamente quais são as mais significativas “diferenças” que caracterizam o Renascimento, tanto em relação à Idade Média como em relação à época moderna, através do exame das várias correntes de pensamento e, indivi- dualmente, dos pensadores de destaque. Mas, antes disso, é necessário chamar a atenção do leitor para um dos aspectos mais típicos do pensamento renascentista, ou seja, a revivescência do componente helenístico-orientalizante, cheio de ressonância mágico-teúrgicas, difundido em alguns escritos que a tardia Anti- gúidade havia atribuído a deuses ou profetas antiquíssimos e que, na realidade, eram falsificações, mas que os renascentistas toma- ram por autênticas, com consequências de grande importância, como emergiu claramente sobretudo dos estudos e das pesquisas das últimas décadas. 4. Os “profetas” e “magos” orientais e pagãos tidos pelos renascentistas como fundadores do pensamento teológico e filosófico: Hermes Trismegisto, Zoroastro e Orfeu 4.1. A diferença de nível histórico-crítico do conhecimento que os humanistas tiveram da tradição latina em comparação com a tradição grega Preliminarmente, deve-se esclarecer uma grande questão: como foi possível que os humanistas, que descobriram a crítica filológica do texto e que chegaram a identificar importantes fal- Tradições religiosas pagãs e orientais 83 sificações (como, por exemplo, o ato de doação de Constantino) com base no exame da língua, tenham caído em erros tão flagrantes, tomando por autênticas as obras atribuídas aos profetas-magos Hermes Trismegisto, Zoroastro e Orfeu, que são falsificações tão evidentes para nós hoje? Como é que deixaram de aplicar a elas o mesmo método? Como se pôde observar tão grande falta de saga- cidade crítica e credulidade tão desconcertante em relação a esses documentos? À resposta a essas questões está bastante clara à luz dos estudos mais recentes:o trabalho de pesquisa dos textos latinos, que começou com Petrarca, consolidou-se antes que ocorresse o contato com os textos gregos. Assim, a sensibilidade e a capacidade técnica e crítica dos humanistas aguçaram-se muito antes em relação aos textos latinos do que em relação aos textos gregos. Ademais, os humanistas que se aproximaram dos textos latinos tinham interesses intelectuais mais concretos do que aqueles que se ocuparam predominantemente dos textos gregos, que tinham interesses mais abstratos e metafísicos. Os humanistas que se ocuparam predominantemente de textos latinos interessavam-se sobretudo pela literatura e a história, ao passo que os humanistas que se ocuparam de textos gregos interessavam-se sobretudo pela teologia e a filosofia. Além disso, as fontes e tradições usadas como referência pelos humanistas que se ocuparam de textos latinos eram bem mais límpidas do que as utilizadas pelos humanistas que se ocuparam de textos gregos, as quais se revelam extraordinaria- mente carregadas de incrustações multisseculares. Por fim, foram os próprios gregos doutos que saíram de Bizâncio para a Itália que, com sua autoridade, avalizaram uma série de convicções desti- tuídas de fundamentos históricos. Assim, tudo isso explica perfeitamente a situação contradi- tória que se criou: enquanto, por um lado, humanistas como Valla denunciavam como falsificações documentos latinos consagrados, por outro lado, ao contrário, humanistas como Ficino reafirmavam e reconsagravam a “autenticidade” de flagrantes falsificações gregas tardio-antigas, com resultados de grande alcance para a história do pensamento filosófico, como veremos agora. 4.2, Hermes Trismegisto e o Corpus Hermeticum em sua realidade histórica e na interpretação do Renascimento Comecemos por Hermes Trismegisto e pelo Corpus Her- meticum, que tiveram a maior importância e celebridade no Renascimento. Hoje, sabemos com certeza o que vamos expor. 34 Humanismo e Renascimento Hermes Trismegisto é figura mítica, que nunca existiu. Essa figura mítica indica o deus Toth, dos antigos egípcios, considerado inventor das letras do alfabeto e da escrita, escrita dos deuses e, portanto, revelador, profeta e intérprete da sabedoria divina e do logos divino. Quando tomaram conhecimento desse deus egípcio, os gregos acharam que ele apresentava muitas analogias com o seu deus Hermes (= o deus Mercúrio dos romanos), intérprete e mensageiro dos deuses, qualificando-o então com o adjetivo “Tris- megisto”, que significa “três vezes grande” (trismégistos = terma- «imus), Na Antigúidade tardia, particularmente nos primeiros sé- culos da época imperial (sobretudo nos séculos Ile TH d.C.), alguns teólogos-filósofos pagãos, em contraposição ao cristianismo que se expandia, produziram uma série de escritos que apresentaram sob o nome desse deus, com a evidente intenção de contrapor às Escrituras divinamente inspiradas dos cristãos outras escrituras, apresentadas também como “revelações” divinas. As pesquisas modernas determinaram, sem qualquer som- bra de dúvida, que sob a máscara do deus egípcio ocultam-se diversos autores e que, nesses textos, são bastante escassos os elementos “egípcios”, Na realidade, trata-se de uma das últimas tentativas de ressurgimento do paganismo, amplamente baseada em doutrinas do platonismo daquela época (o medioplatonismo). Dentre os numerosos escritos atribuídos a Hermes Trisme- gisto, o grupo claramente mais interessante é constituído por dezessete tratados (o primeiro dos quais leva o título de Pimandro) mais um escrito que só chegou até nós em uma versão latina (que, no passado, era atribuída a Apuleio) de um tratado intitulado Aselépio (talvez elaborado no século IV d.€.). E precisamente esse grupo de escritos que é denominado Corpus Hermeticum (= corpo dos escritos que se colocam sob o nome de Hermes). A Antiguidade tardia aceitou todos esses escritos como au- tênticos. Os Padres cristãos, que neles encontraram acenos a doutrinas bíblicas (como veremos), ficaram muito impressionados e, conseguentemente, convencidos de que eles remontavam à época dos patriarcas bíblicos, pensando assim que fossem obra de uma espécie de profeta pagão. Foi assim que pensou Lactâncio, por exemplo, como também, em parte, santo Agostinho. Ficino consa- grou solenemente essa convicção e traduziu o Corpus Hermeticur, que se tornou um texto basilar do pensamento humanista-renas- centista. Assim, por volta de fins do século XV (1488), Hermes foi solenemente acolhido na catedral de Siena, com uma efígie no pavimento sobre a inscrição “Hermes Mercurius Trismegistus, Contemporaneus Moys?. Hermes Trismegisto 35 Esse sincretismo entre doutrinas greco-pagás, neoplatonis- mo e cristianismo, tão difundido no Renascimento, baseia-se em grande medida nesse colossal equívoco. Desse modo, muitos as- pectos doutrinários do Renascimento, considerados estranhamente paganizantes e estranhamente híbridos, se apresentam agora sob uma justa luz. Mas, para entendermos bem esse ponto, essencial para se estabelecer as “diferenças” do Renascimento tanto em relação à Idade Média como em relação à época moderna, é conveniente resumir as doutrinas de fundo do Corpus Hermeticum. Deus é concebido em função dos conceitos de incorpóreo, de transcendência e de infinitude; também é concebido como Mônada e Uno, “princípio e raiz de todas as coisas”; por fim, também é expresso em função da imagem da luz. Às teologias negativa e positiva se entrelaçam: por um lado, tende-se a conceber Deus como estando acima de tudo, como totalmente outro de tudo aquilo que existe, como sendo “sem forma e sem figura” e, portanto, como “privado de essência” e, por isso, inefável; por outro lado, reconhe- ce-se que Deus é Bem e Pai de todas as coisas e, portanto, causa de tudo e, enquanto tal, tende-se a representá-lo positivamente. Um dos tratados, por exemplo, diz que Deus é, ao mesmo tempo, aquilo que é invisível e aquilo que é mais visível. A hierarquia dos “intermediários” que vai de Deus ao mundo é concebida do seguinte modo: 1) No vértice, encontra-se o Deus supremo, que é Luz supre- ma e Intelecto supremo, capaz de gerar por si só. 2) Segue-se o Logos, que é “filho” primogênito do Deus supremo. 3) Do Deus supremo deriva também um Intelecto demiúrgico que, portanto, é um secundogênito, mas é expressamente conside- rado “consubstancial” em relação ao Logos. 4) Segue-se o Anthropos, ou seja, o Homem incorpóreo, também derivado de Deus e “imagem de Deus”. 5) Por fim, segue-se o Intelecto que é dado ao homem terreno (rigorosamente distinto da aima e claramente superior a ela), que é oque de divino existe no homem (e que, aliás, em certo sentido, é o próprio Deus no homem), desempenhando papel essencial na ética, na mística e na soteriologia hermética. Ademais, o Deus supremo é concebido como se explicitando “em número infinito de forças” e também como “forma arquetípica” e como “o princípio do princípio, que não tem fim”. O Logos e o Intelecto ">miúrgico são os criadores do cosmos. Eles agem de modo diverso sobre a escuridão ou treva, que originariamente se separam e dualisticamente se opõe ao Deus- Pormenorda parte direita da Escola de Atenas de Rafael (cf. pp- 14- 15), que mostra Zoroastro, ostentando na mão um globo represen- tando o céu (a figura que está diante dele tem na mão o globo terrestre; a posição peculiar indica a influência do céu sobre a terra). Zoroastro viveu sete séculos antes de Cristo. Os renascen- tistas consideravam-no autor dos Oráculos caldeus, cujas doutri- nas mágico-teúrgicas tiveram ampla influência (na realidade, os Oráculos são uma obra da época imperial). Juntamente com Hermes Trismegisto e com Orfeu, Zoroastro contribuiu para criar a peculiar têmpera espiritual que diferencia o Renascimento tanto da Idade Média como da época moderna. Oráculos caldeus e orfismo 41 finalidades místico-religiosas. E são precisamente essas finalida- des místico-religiosas que constituem o dado característico que distingue a teurgia da magia comum. Os estudiosos modernos observaram que enquanto a magia vulgar faz uso de nomes e fórmulas de origem religiosa com objetivos profanos, a teurgia, ao contrário, faz uso das mesmas coisas com fins religiosos. E esses fins, como sabemos, são a libertação da alma em relação ao corpóreo e à “fatalidade” a ele ligada e a conjunção com o divino. Isso é o que se conseguiu estabelecer até hoje. Mas os renascentistas não pensavam assim, induzidos que foram a grave erro por abalizado douto bizantino, Jorge Gemisto, nascido em Constantinopla por volta de 1355, que se fez denominar Pleton. Considerando ser Zoroastro o autor dos Oráculos caldeus (induzido em erro por um de seus mestres) e indo para a Itália por ocasião do Concílio de Florença, ministrou lições sobre Platão e sobre a dou- trina dos Oráculos, acreditando-os como expressão do pensamento de Zoroastro e suscitando notável interesse por eles. Assim, Zoroastro foi considerado como profeta (“priscus theologus”), sendo por vezes apresentado até como anterior a Hermes ou como primeiro por cronologia e dignidade junto a ele. Na realidade, Zoroastro (= Zaratustra) foi reformador religioso iraniano do século VII/VI a.C., que não tem nada a ver com os Oráculos caldeus. Esse novo equívoco, portanto, contribuiu grandement> para a difusão da mentalidade mágica no Renascimento. 4.4. O Orfeu renascentista Orfeu foi poeta místico da Trácia. A ele ligava-se o movimento religioso mistérico chamado “órfico” devido ao seu nome, do qual já falamosno primeiro volume. Já no século VI a.C. esse poeta-profeta era chamado “Orfeu famoso de nome”. Em relação ao Corpus Hermeticum e aos Oráculos Caldeus, o orfismo representa uma tradição muito mais antiga, que in- fluenciou Pitágoras e Platão, sobretudo no que se refere à doutrina da metempsicose. Mas muitos dos documentos que chegaram até nós como “órficos” são falsificações posteriores, nascidas na época helenís- tico-imperial. O Renascimento conheceu sobretudo os Hinos órfi- cos. Nas atuais edições, esses hinos são oitenta e sete, mais um proêmio. São dedicados a várias divindades, distribuindo-se se- gundo uma ordem conceitual precisa. Ao lado de doutrinas que remontam ao orfismo original, contêm ainda doutrinas estóicas e doutrinas provenientes do meio filosófico-teológico alexandrino, sendo portanto, seguramente, de composição tardia. Mas os re- Pormenor do lado esquerdo da Escola de Atenas de Rafael, re- presentando um rito “órfico”. A base da coluna pretende significar que a revelação órfica constitui a base sobre a qual foi construída a filosofia. E isso aconteceu efetivamente, em ampla medida, no mundo antigo. Mas, sob o nome de Orfeu, o Renascimento conheceu sobretudo fimifhcações da época imperial, como, por exemplo, os célebres Hinos cos, traduzidos por Ficino. Orfeu era considerado como profeta e mago antigiiíssimo, apenas pouco posteriora Moisés. Orfismo 43 nascentistas os consideravam autênticos. Ficino cantava esses hinos para obter a influência benéfica das estrelas. Segundo o próprio Ficino, na genealogia dos profetas, Orfeu foi sucessor de Hermes Trismegisto e muito próximo a ele. Pitá- goras ligava-se diretamente a Orfeu. Platão teria haurido a sua doutrina de Hermes e de Orfeu. Assim, Hermes, Orfeu e Platão eram ligados em uma conexão que constitui o alicerce de toda a construção do platonismo renascentista, que, consequentemente, mostra-se completamente diferente do platonismo medieval. Está claro, portanto, que se não se levar em conta todos os fatores que recordamos, se nos escapa toda possibilidade de captar o significado da proposição metafísico-teológico-mágica da dou- trina da Academia florentina e de grande parte do pensamento dos séculos XV e XVI. A tudo isso deve-se agregar ainda a enorme autoridade granjeada pelo pseudo-Dionísio Areopagita, que já era apreciado na Idade Média, mas agora passava a ser lido com outros interesses (Ficino também realizou uma tradução latina dos escritos de Dionísio). Esse autor, como sabemos, não é o santo convertido por são Paulo em Atenas, mas sim autor neoplatônico tardio (cf. vol. I, p. 308). E também essa “falsificação” contribuiu para criar aquele clima especial de que falamos. À luz do que foi dito até agora, podemos passar ao exame do pensamento dos vários humanistas e das diversas tendências e correntes filosóficas humanístico-renascentistas. Capítulo IL IDÉIAS E TENDÊNCIAS DO PENSAMENTO HUMANÍSTICO-RENASCENTISTA 1. Os debates sobre os problemas morais e o neo-epicurismo 1.1. Os primórdios do humanismo 1.1.1. Francisco Petrarca Como já dissemos, Francisco Petrarca (1304-1374) é consi- derado unanimemente como o primeiro humanista. Isso já estava muito claro para todos já nas primeiras décadas do século XV, quando Leonardo Bruni escrevia solenemente: “Francisco Petrar- ca foi o primeiro, tendo tanta graça e engenho que reconheceu e trouxe à luz a antiga graciosidade do estilo perdido e extinto.” E como foi que Petrarca chegou ao humanismo? Partindo do exame e da atenta análise da “corrupção” e da “impiedade” de seu tempo, ele procurou identificar suas causas, para tentar remediá- las, E, em sua opinião, as causas eram basicamente duas, estrei- tamente ligadas entre si: 1) a propagação do “naturalismo” difun- dido pelo pensamento árabe, especialmente por Averróis; 2) o predomínio indiscriminado da dialética e da lógica, com a respec- tiva mentalidade racionalista. E julgou fácil indicar os antídotos para esses dois males: 1) ao invés de nos desperdiçarmos no conhecimento puramente exterior da natureza, é preciso nos voltarmos para nós mesmos, objetivando o conhecimento de nossa própria alma; 2) ao invés de nos perdermos nos vazios exercícios dialéticos, precisamos redescobrir a elogiiência, ashumanae litterae ciceronianas. Francisco Petrarca 45 Com isso, ficam perfeitamente delineados o programa e o método do “filosofar” próprio de Petrarca: a verdadeira sabedoria está em conhecer-se a si mesmo e 0 caminho (o método) para alcançar essa sabedoria está nas artes liberais. Eis algumas exemplificações eloquentes dessas idéias. No escrito Sobre a própria ignorância e a de muitos outros, contra o naturalismo dos averroístas, Petrarca escreve: “Ele (= o averroís- ta) sabe muitas coisas sobre as feras, os pássaros e os peixes e conhece muito bem quantos pêlos o leão tem na juba, quantas penas tem o pavão na cauda, com quantos tentáculos o polvo envolve o náufrago (segue-se um longo e pitoresco elenco de curiosidades do mesmo gênero dessas). Em grande parte, essas coisas são falsas, o que aparece quando se pode fazer a sua experiência, ou são desconhecidas para aqueles mesmos que as afirmam; assim, elas são criadas com muita facilidade, porque distantes, e aceitas muito livremente; mas, mesmo que fossem verdadeiras, de nada serviriam para uma vida feliz. Eu, com efeito, me pergunto para que serve conhecer a natureza das feras, dos pássaros, dos peixes e das serpentes, mas ignorar ou não procurar conhecer a natureza do homem, por que nascemos, de onde viemos, para onde vamos” (tradução de M. Capelli). Mas a passagem mais famosa, indubitavelmente, é aquele trecho da Epístola que narra a subida ao monte Ventoso. Chegando ao cume do monte depois de uma longa caminhada, Petrarca abriu As confissões de santo Agostinho e as primeiras palavras que leu foram estas: “E os homens vão admirar os altos montes, as grandes ondas do mar, os largos leitos dos rios, a imensidade do oceano e o curso das estrelas, mas esquecem-se de si mesmos.” E eis o seu comentário: “Fiquei estupefato, confesso; disse ao meu irmão, que ainda desejava ouvir mais, que nãome perturbasse; e fechei olivro, enraivecido comigo mesmo por aquela minha admiração pelas coisas terrenas, embora há muito tempo já devesse ter aprendido, inclusive com os filósofos pagãos, que nada é digno de admira- ção além da alma, para a qual nada é grande demais” (tradução de E. Bianchi). Analogamente, no que se refere ao segundo ponto que apon- tamos, Petrarca insiste no fato de que a “dialética” leva à impie- dadee não à sabedoria. O sentido da vida não é revelado por montes de silogismos, mas sim pelas artes liberais, cultivadas oportuna- mente, isto é, não como fins em si mesmas, mas como instrumentos de formação espiritual. E eis como a antiga definição de filosofia dada por Platão no Fédon é apresentada como coincidente com a visão cristã no escri- to Invectiva contra um médico: “Meditar profundamente sobre a morte, armar-se contra ela, dispor-se a desprezá-la e suportá-la e, 50 Humanismo e Renascimento prudência (= sabedoria) é uma avaliação exata da utilidade —e uma verdadeira avaliação é incorrupta. Pois as coisas só podem aparecer como são para o homem bom. Os juízos dos maus são como o paladar dos doentes, que não provam o exato sabor de nada. Por isso, não há nada que os vícios mais prejudiquem do que a prudência, já que o celerado e o mau podem captar exatas de- monstrações matemáticas e conhecimentos físicos, mas ficam completamente cegos para as obras sábias, perdendo com isso o Jume da verdade (...). Assim, o caminho da felicidade abre-se reto e livre para o homem bom. Só ele não se engana nem erra. Só ele vive bem, o contrário do que faz o mau. Desse modo, se quisermos ser felizes, tratemos de ser bons e virtuosos.” E. Bruni conclui dizendo que, nesse ponto, os filósofos pa- gãos e os cristãos estão em perfeita harmonia: “Uns e outros sus- tentam as mesmas coisas sobre a justiça, a temperança, a fortaleza, aliberalidade e as outras virtudes, como os vícios a elas contrários.” 1.2.2. Poggio Bracciolini Poggio Bracciolini(1380-1459), secretárioda Cúria Romana e depois chanceler em Florença, também era muito ligado a Salutati. Ele foi um dos mais esforçados e fervorosos descobridores de antigos códices (cf. acima, pp. 17-18). Em suas obras, ele debate temáticas que se haviam tornado canônicas nas discussões dos humanistas, particularmente as seguintes: a) o elogio da vida ativa em comparação com a ascese da vida contemplativa vivida em solidão; b) o valor de formação humana e civil das “litterae”; c) a glória e a nobreza como fruto da virtude individual; d) a questão da “fortuna”, que torna instável e problemática a vida dos homens, mas contra a qual a virtude pode levar a melhor; e) a reavaliação das riquezas (já iniciada por L. Bruni na introdução aos Econômi- cos de Aristóteles), consideradas como o nervo do Estado e como aquilo que torna possível, nas cidades, os templos, os monumentos, a arte, os ornamentos e toda beleza. A propósito deste último tema, E. Garin escreveu que nos encontramos diante de uma “estranha e moderna valorização do dinheiro, quando não do capital...” Trata-se, portanto, de notável antecipação. o Mas queremos concluir com uma observação de Bracciolini sobre a virtude que, com belas variações sobre temas estóicos, sustenta ser a virtude autárquica, não necessitando de nada e sendo a única fonte de verdadeira nobreza: “Além de ser verda- deira, essa doutrina mostra trazer grande utilidade para a nossa Humanistas do século XV 51 vida. Pois se nos convencermos de que os homens só se tornam nobres na honestidade e no bem e que a verdadeira nobreza é aquela que cada um conquista agindo, não aquela que deriva da habilidade e do trabalho alheios, seremos mais impelidos (...) à virtude e não vencidos pelo ócio e sem fazer nada digno de louvor, nos deixaremos contentar com a glória alheia, mas sim tenderemos nós mesmos a nos apossar das insígnias da nobreza.” Esse texto apresenta um dos pensamentos básicos do humanismo: a verda- deira nobreza é aquela que cada um conquista agindo. Um pen- samento que nada mais é do que uma variante de outro conceito basilar, de gênese romana, não menos caro a essa época: cada qual é artífice da própria fortuna. 1.2.3, Leon Battista Alberti Uma figura de humanista de interesses poliédricos foi Leon Battista Alberti (1404-1472), que, além das questões filosóficas, também se ocupou de matemática e de arquitetura. São conhecidos especialmente os seus escritos Sobre a arquitetura, Da pintura, Da família, Do governo da casa, Momo e Intercenais (recentemente descobertas por Garin em sua integridade). Eis alguns temas (entre tantos outros) que se destacam em Alberti: a) Em primeiro lugar, deve-se destacar a crítica das inves- tigações teológico-metafísicas, consideradas vãs, contrapondo a elas as investigações morais. Para Alberti, é inútil procurar descobrir as causas supremas das coisas, porque isso não foi concedido aos homens, que só podem conhecer aquilo que está sob os seus olhos, ou seja, por meio da experiência. b) Ligada a essa crítica encontra-se a exaltação do homo faber e de sua atividade produtiva e construtora, ou seja, aquela atividade que não está voltada apenas para o benefício doindivíduo, mas também para o benefício de todos os outros homens e da cidade. Por isso, ele censura a sentença de Epicuro, “que, em Deus, reputa como a suma felicidade o nada fazer”, sustentando que a verdade é exatamente o contrário e que o supremo vício é “estar em vão”. Sem a ação, a contemplação não tem sentido. No entanto, elogia os estóicos, que consideravam “o homem ser pela natureza constituído no mundo especulador e operador das coisas” eachavam que “cada coisa nasceu para servir ao homem e o homem pa- ra conservar a companhia e a amizade entre os homens”, E lou- va Platão por ter escrito que “os homens nasceram por motivo dos homens”. c) Nas artes, Alberti destacou a grande importância do conceito de “ordem” e “proporção” entre as partes: a arte Leon Battista Alberti (1404-1472) humanista de interesses poliédricos: filósofo, matemático e arquiteto. Humanistas do século XV 53 reproduz e recria aquela ordem entre as partes que existe na realidade das coisas. d) Alguns chegaram até mesmo a identificar em Alberti a presença de uma espécie de filosofia urbanista ante litteram. L. Malusa escreve: “Entre as artes, a arquitetura é (...) para Alberti a mais elevada e a mais próxima da obra da natureza. Edificar é natural no homem, pois com isso se volta eminentemente para a criação de uma ordem na cidade, que é desenvolvimento de virtude eexigência da natureza. A concretização de uma cidade que seja ao mesmo tempo humana e natural ocupa uma ampla parte do De re aedificatoria, que pode ser considerada como um original estudo de “filosofia urbanista”: em Alberti, o papel dos prédios e da cida- de torna-se fundamental para a instauração da ordem moral e da felicidade.” e) Mas um dos temas mais característicos debatidos por Alberti é o da relação entre “virtude” e “sorte”. Para ele, a “virtude” não é tanto a virtus cristã, mas muito mais a areté grega, ou seja, aquela atividade peculiar dohomem que o aperfeiçoa e garante-lhe a supremacia sobre as coisas. Em especial, apesar de algumas observações pessimistas, Alberti mostra-se firmemente convencido de que, quando considerada e exercida de modo realista e não como veleidade, a virtude leva a melhor sobre a sorte. Duas afirmações suas, sobre o sentido da atividade humana e sobre a superioridade da virtude sobre a fortuna, tornaram-se particularmente célebres. Por isso, queremos transmiti-las com as suas próprias palavras. À primeira: “Portanto, parece-me crer que certamente o homem não nasceu para apodrecer jazendo, mas sim para estar de pé fazendo (...):o homem não nasce para entristecer- se no ócio, mas sim para agir em coisas magníficas e amplas, com as quais possa agradar e honrar a Deus em primeiro lugar, e para ter em si mesmo como uso de perfeita virtude e, desse modo, fruto de felicidade.” A segunda: “Como poderemos confessar não ser mais nosso do que da fortuna aquilo que nós, com solicitude e diligência, decidimos manter ou conservar? Não está em poder da fortuna e não é, como acreditam algunstolos, tão fácil vencer quem não quer ser vencido. A fortuna só subjuga a quem se lhe submete.” Essas afirmações são como que duas esplêndidas epígrafes que valem para todo o movimento humanista. 1.2.4. Outros humanistas do século XV Para concluir, recordemos alguns nomes de célebres huma- nistas do século XV. Giannozzo Manetti (1396-1459) traduziu Aristóteles e os Salmos, mas ficou conhecido sobretudo por seu escrito De dignitate et excellentia hominis, com o qual abriu a grande discussão “sobre s4 Humanismo e Renascimento a dignidade do homem” e sua superioridade em relação às outras criaturas. Mateus Palmieri (1406-1475) conciliou uma vida contem- plativa com a vida ativa. Embora reafirmando a fecundidade da obra humana e o papel central da cidade, revela inflexões platôni- cas que antecipam uma mudança de clima espiritual. Por fim, deve-se mencionar Ermolau Bárbaro (1453-1493), que se qualificou como tradutor de Aristóteles (chegou até nós a sua tradução da Retórica), empenhando-se em restituir ao texto do Estagirita o seu antigo espírito, libertando-o das incrustações medievais. Uma afirmação sua tornou-se famosíssima: “Reco- nheço dois senhores: Cristo e as letras.” Essa divinização das letras levava Ermolau Bárbaro a uma posição quase de ruptura: com efeito, ele chegava ao ponto de propor o celibato e o descompromisso civil para os doutos, a fim de que pudessem se dedicar inteiramente ao ofício das letras. 1.3. O neo-epicurismo de Lourenço Valla Uma das figuras mais ricas e significativas do século XV foi certamente Lourenço Valla (1407-1457). Asua posição filosófica, como se expressa sobretudo na obra Do verdadeiro e do faiso bem, é marcada por uma viva polêmica contra o ascetismo estóico e contra os excessos do ascetismo monástico, em oposição aos quais afirma as instâncias do “prazer”, entendido, porém, em seu sentido mais amplo e não somente como prazer da carne. O trabalho de Valla representa, portanto, uma curiosa tentativa de retomada do epicurismo, relançado e resga- tado em bases cristãs. O raciocínio de fundo de Valla é o seguinte: tudo aquilo que anatureza fez “não pode ser senão santo e louvável”: o prazer deve ser visto nessa ótica, isto é, também é considerado como santo e louvável; mas, como o homem é feito de corpo e alma, o prazer se explica em diferentes níveis; assim, há um prazer sensível, que é o mais inferior, mas também existem os prazeres do espírito, das leis, das intituições, das artes e da cultura, bem como, acima de todos, o prazer do amor cristão por Deus. Valla não tem dúvida de que se possa chamar de “prazer” a felicidade de que a alma desfruta no Paraíso, escrevendo: “Quem duvidaria em chamar essa bem-aventurança ou quem poderia chamá-la melhor do que de “prazer? E, mais adiante, precisa: “Entretanto, é preciso notar que, embora eu diga que o prazer ou deleite é o único bem, contudo eu não amo o prazer, mas a Deus. O próprio prazer é amor, já que Deus faz o prazer. Recebendo, ama; recebido, é amado. O próprio amar é deleite, prazer, bem-aventu- rança, felicidade ou caridade, que é o fim último, em relação ao qual Lourenço Valla 55 se colocam as outras coisas. Por isso, não concordo que se diga que Deus deve ser amado por si mesmo, como se o próprio amor e o deleite existisse tendo em vista um fim e não fossem fins eles mesmos. Melhor se diria se se dissesse que Deus é amado não como causa final, mas como causa eficiente” (tradução de G. Radetti). O sentido da doutrina do prazer de Valla foi interpretado com muita fineza por E. Garin: “A proclamada santidade da voluptas, de resto sentida de forma muito lucreciana, é uma defesa da divindade da natureza, admirável manifestação da ordenada e providencial bondade de Deus. Como toda posição antimani- queísta muito viva, também a posição exposta em certas páginas de Valla parece deslizar em direção ao pelagianismo (cf. Vol. 1, p 438), correndo o risco de deificar a natureza e, através da natureza, também 6 prazer, hominumque divumque Voluptas. Entretanto, nada se perde de sua validade, nem da justeza daquele chama- do à experiência cristã, entendida não como redenção da alma, mas como redenção do homem, de todo o homem, carne e alma, contra todo ascetismo pessimista e contra todo maniqueísmo evidente ou larvar” Tudo isso é exato. Mas deve-se acrescentar que o resultado último dessa amplificação da voluptas é uma superação da dou- trina do próprio Epicuro. Com efeito, a conjunção dessa doutrina com o cristianismo muda o seu caráter, como o próprio Valla diz expressamente: “E assim refutei ou condenei tanto a doutrina dos epicúreus como a dos estóicos, mostrando que o bem sumo ou desejável não se encontra nem em uns nem em outros e nem mesmo em algum dos filósofos, mas sim em nossa religião, não podendo ser alcançado na terra, mas sim nos céus.” Se levarmos em conta essas afirmações, não nos surpreen- deremos com as conclusões a que chega Valla em outra obra célebre que escreveu: Sobre o livre-arbítrio. Colocando-se contra a razão silogizante e contra o conhecimento do divino entendido aristote- licamente, Valla faz valer as instâncias da fé, entendida como a entende são Paulo, contrapõe as virtudes teologais às virtudes do intelecto e escreve textualmente: “Fujamos portanto da cupidez de conhecer as coisas superiores e nos aproximemos muito mais das coisas humildes. Nada importa mais para o cristão do que a humildade. Desse modo, sentimos muito mais a magnificência de Deus, pois está escrito: Deus resiste aos soberbos, mas concede a graça aos humildes.” ” Analogamente, só nessa ótica e nesse espírito pode-se en- tender corretamente o Discurso sobre a falsa e mentirosa doação de Constantino, na qual Valla demonstra com rigorosas bases filoló- gicas a falsidade daquele documento, sobre o qual a Igreja funda- menta a legitimidade do seu poder temporal, fonte de corrupção. A Era assim que Rafael e os renascentistas imaginavam Platão. Este particular da Escola de Atenas mostra muito bem o desejo de apresentar o fundador da Academia não apenas como o filósofo da transcendência por excelência, mas também como perfeitamente conciliável com Aristóteles. mostrando-o em uma atitude comple- mentar em relação a ele (Platão aponta para o céu, Aristóteles para a natureza, de modo que um completa o outro; cf. pp. 14-15). Ademais, através do livro que lhe põe sob o braço, ou seja, o Timeu (que contém a síntese cosmológica), Rafael pretende indicar a possibilidade concreta de passagem da metafísica platônica aos interesses “naturalistas” aristotélicos. Nicolau de Cusa: a douta ignorância 61 IV. Para ele, estabelecer a harmonia entre Platão e Aristóteles significava também criar uma base para unificar a Igreja grega com a romana. Por isso, Bessarion foi considerado o mais grego dos latinos e o mais latino dos gregos. Entre outras coisas, ficou famosa a sua tradução da Metafísica de Aristóteles. Entretanto, apesar de seus vastíssimos conhecimentos sobre as fontes, Bessarion tam- bém propôs e avalizou amplamente a interpretação neoplatônica de Platão (e não poderia ter sido diversamente, devido às razões que já explicamos). Mas o grande relançamento do platonismo, do ponto de vista filosófico, iria acontecer por outros caminhos: por um lado, graças à obra de Nicolau de Cusa; por outro lado, através da obra da Academia platônica florentina, tendo à frente Ficino e, depois, Pico de Mirândola. É desses filósofos que falaremos agora. 2.2. Nicolau de Cusa: a douta ignorância em relação ao infinito 2.2.1. A vida, as obras e a posição cultural de Nicolau de Cusa Uma das personalidades de maior destaque do século XV (talvez o gênio mais dotado especulativamente) foi Nicolau de Cusa, assim chamado por causa da cidade de Kues, onde nasceu em 1401 (o seu nome era Kryfts ou, na grafia modernizada, Krebs). Alemão de origem, mas italiano por formação, Nicolau estudou especialmente em Pádua. Foi ordenado sacerdote em 1426 e tornou-se cardeal em 1448. Morreu em 1464. Dentre suas obras, podemos recordar: A douta ignorância (1438-1440), As conjecturas (elaboradas entre 1440 e 1445), A busca de Deus (1445), A filiação de Deus (1445), A apologia da douta ignorância (1449), O idiota (1450), A visão de Deus (1453), A esmeralda (1458), O príncipe (1450), O poder ser (1460), O jogo da bola (1463), A caça da sabedoria (1463), O compêndio (1463) e O ápice da teoria (1464). (Todos esses escritos encontram-se nas Obras filosóficas de Nicolau de Cusa, traduzidas para o italiano por G. Federici Vescovini, UTET, Turim, das quais nos valemos). Entretanto, somente em parte Nicolau de Cusa interpreta as instâncias renascentistas. Inicialmente, ele se formou com base na problemática ligada às correntes ocamistas, sendo depois influenciado pelas correntes místicas ligadas a Eckhart. Mas a marca do seu pensamento é constituída sobretudo pelo predomínio do neoplatonismo, especialmente na formulação desenvolvida pelo Pseudo-Dionísio, quando não de Escoto Eriúgena (ainda que em menor medida), a serviço de fortes interesses teológicos e religiosos. Nicolau de Cusa (1401-1464): grande teólogo e filósofo neopla- tônico. Suas teorias foram uma como que grande ponte entre a época medieval e o período renascentista. (A foto reproduz o monumento a Nicolau de Cusa que se encontra na Igreja de San Pietro in Vincoli, em Roma). Nicolau de Cusa: a douta ignorância 63 Entretanto, seria errado pensar em Nicolau de Cusa como filósofo predominantemente ligado ao passado: com efeito, embora ele não se mostre alinhado com os humanistas, também não se encontra alinhado com os escolásticos. Na verdade, ele não segue o método “retórico” (ou seja, inspirado na elogiiência antiga) próprio dos primeiros, mas também não segue o método daquaestio e da disputatio característico dos segundos. Nicolau faz uso ori- ginal de métodos extraídos dos processos matemáticos, não, porém, em sua valência matemática propriamente dita, mas sim em sua valência analógico-alusiva. O tipo de conhecimento que deriva desse método é denominado por nosso filósofo como “docta igno- rantia”, onde o adjetivo corrige o substantivo de modo essencial. Vejamos então, concretamente, em que consiste essa “douta ignorância” de Nicolau de Cusa. 2.2.2. A douta ignorância Em geral, quando se busca a verdade acerca das várias coisas, pôem-se em relação e comparam-se o certo com o incerto, o desconhecido com o conhecido. Portanto, quando se indaga no âmbito das coisas finitas, o juízo cognoscitivo é fácil ou difícil (quando se trata de coisas complexas), mas, de qualquer modo, é possível. Entretanto, as coisas são bem diferentes quando se indaga do infinito, que, enquanto tal, escapa a toda proporção, restando-nos portanto desconhecido. É essa a causa do nosso não saber em relação ao infinito: precisamente o fato de ele não ter “proporção” alguma em relação às coisas finitas. À consciência dessa desproporção estrutural entre a mente humana (finita) e o infinito, ao qual porém, ela tende e pelo qual anseia, e a busca que se mantém rigorosamente no âmbito dessa consciência crítica constituem precisamente a douta ignorância. Eis as conclusões de Nicolau de Cusa: “O intelecto finito não pode entender de modo preciso a verdade das coisas por meio das semelhanças. A verdade não é um mais ou um menos, pois consiste em algo de indivisível e não pode ser medida com precisão por nada que exista como diferente do verdadeiro, assim como o círculo, cujo ser consiste em algo de indivisível, não pode medir o não-círculo. Assim, o intelecto, que não é a verdade, não pode compreender nunca a verdade de modo preciso, não podendo portanto compre- endê-la ainda mais precisamente ao infinito, porque está para a verdade como u polígono está para o círculo. Quanto mais ângulos tiver o polígono, tanto mais será semelhante ao círculo; entretanto, jamais será igual a ele, ainda que multipliquemos os seus ângulos ao infinito, já que nunca se chegará à identidade com o círculo.” Estabelecida essa premissa, Nicolau indica um caminho correto de busca por aproximação daquela verdade (em si mesma sa Humanismo e Renascimento inalcançável), centrado na concepção segundo a qual ocorre no infinito uma coincidentia oppositorum. Por esse caminho, as várias coisas finitas podem aparecer não tanto em antítese com o infinito, mas muito mais como tendo com ele uma relação simbólica, de certa forma significativa e alusiva. Desse modo, em Deus, enquanto infinito, coincidem todas as distinções, que nas criaturas se apresentam como opostas entre si. O que significa isso? Nicolau mostra bem o que entende quando fala de “coinci- dência dos opostos”, utilizando o conceito de “máximo”. Em Deus, que é o máximo “absoluto”, os opostos “máximo” e “mínimo” são a mesma coisa. Com efeito, pensemos em uma “quantidade” maximamente grande e em uma maximamente pequena. Agora, com a mente, subtraiamos a “quantidade”. Note-se que subtrair a quantidade significa prescindir do “grande” e do “pequeno”. O que resta então? Resta a coincidência do “máximo” e do “mínimo”, visto que “o máximo é superlativo, como o é o mínimo”. Por isso, Nicolau escreve: “A quantidade absoluta (...) não é mais máxima do que mínima, já que nela coincidem mínimo e máximo.” Generalizando esse resultado, acrescenta o nosso filósofo: “As oposições convêm às coisas que admitem um excedente e um excedido, fazendo-o diversamente. Entretanto, nunca convém ao máximo absoluto, que está acima de qualquer oposição. E, como o máximo absoluto é absolutamente em ato todas as coisas que podem ser e o é sem oposição, de forma que o mínimo coincide com o máximo, então também está acima de qualquer afirmação e negação. Tudo aquilo que se concebe que é não é mais do que aquilo que não é. E tudo aquilo que se concebe que não é não é menos do que aquilo que é. Mas aquilo que é tudo o é de tal modo a não ser nada. E é maximamente aquilo que também é minimamente. Dizer “Deus, que é o próprio máximo absoluto, é luz' é o mesmo que dizer “Deus é maximamente luz e é minimamente luz'. Com efeito, se assim não fosse, o máximo absoluto não seria em ato todos 08 FT SNS NO Nicolau de Cusa: Deus e mundo 65 possíveis, isto é, não seria infinito e não seria o limite de todas as coisas, não sendo limitado por nenhuma delas.” A geometria nos oferece esplêndidos exemplos “alusivos” de coincidência dos opostos no infinito. Tomemos um círculo, por exemplo, e aumentemos o seu raio, pouco a pouco, ao infinito, isto é, até fazê-lo tornar-se máximo. Pois bem, nesse caso, o círculo acabará por coincidir com a linha e a circunferência pouco a pouco se tornará minimamente curva e maximamente reta, como mostra o gráfico da p.64 Ademais, no círculo infinito cada ponto será centro e, ao mesmo tempo, também extremo. E, analogamente, coincidirão arco, corda, raio e diâmetro. E tudo coincidirá com tudo. O mesmo, por exemplo, vale também para o triângulo. Se, pouco a pouco, prolongarmos um lado ao infinito, o triângulo acabará por coincidir com a reta. E os exemplos poderiam se multiplicar. Portanto, ao infinito, os opostos coincidem. Desse modo, Deus é complicatio oppositorum et eorum coincidentia. Tudo isso implica uma superação do modo comum de racio- cinar, que se funda no princípio da não-contradição. E Nicolau tenta uma justificação das possibilidades dessa superação explo- rando a distinção (de gênese platônica) dos graus de conhecimento em: a) percepção sensorial; b) razão (ratio); c) intelecto (intellec- tus). Da seguinte forma: a) a percepção sensorial é sempre positiva ou afirmativa; b) a razão, que é discursiva, afirma e nega, man- tendo os opostos distintos (afirmando um nega o outro e vice-versa) segundo o princípio da não-contradição; c) já o intelecto, acima de toda afirmação e negação racionais, capta a coincidência dos opostos com um ato de intuição superior. Escreve Nicolau: “Assim, de modo incompreensível, acima de todo discurso racional, vemos queo máximo absoluto é oinfinito, ao qual nada seopõee como qual o mínimo coincide.” É nesse quadro que ele repropõe as principais temáticas do neoplatonismo cristão com originalidade e fineza. Três pontos merecem ser destacados de modo particular: a) o modo como ele apresenta a relação Deus-mundo; b) o destaque que dá ao antigo princípio segundo o qual “tudo está em tudo”; c) o conceito de homem como “microcosmos”. 2.2.8. A relação entre Deus e o universo Nicolau de Cusa apresenta a derivação das coisas de Deus em função de três conceitos básicos (já utilizados por alguns pensa- dores platônicos medievais): 1) o conceito de “complicação”. 2) o conceito de “explicação”; 3) o conceito de “contração”. 1) Deus contém em si todas as coisas (como máximo de todos 70 Humanismo e Renascimento A importância de Ficino está emergindo de modo sempre mais claro como verdadeiramente essencial não somente para se compreender o pensamento da segunda metade do século XV, mas também para se entender o pensamento do século XVI. Foram três as atividades fundamentais às quais Ficino se dedicou: 1) a de tradutor; 2) a de pensador e filósofo; 3) a de mago. Não acrescentaremos como quarta atividade a de sacerdote (fez-se ordenar padre em 1474, já na faixa dos quarenta anos de idade), pois, como veremos, para ele, “sacerdote” e “filósofo” são a mesma coisa. Suas três atividades revelam-se intimamente ligadas entre si e até indissolúveis. Ficino traduziu uma grande quantidade de textos (de que falaremos logo) não por erudição, mas para respon- der a necessidades espirituais precisas e seguindo um plano filosófico claro. O teórico, portanto, guiou as escolhas do tradutor. E a atividade do tradutor, assim como a do pensador, liga-se com a do mago, não de modo agregado, mas sim essencial, pelas razões que explicaremos. 2.8.2. Ficino como tradutor Sua atividade oficial como tradutor começou em 1462, preci- samente com as versões de Hermes Trismegisto, ou seja, com o Corpus Hermeticum, do qual já falamos amplamente e com os Hinos órficos, aos quais se seguiram, em 1463, os Commentaria in Zoroastrem. Em 1463, Ficino começou a tradução das obras de Platão, nas quais trabalhou até 1477. Entre 1484 e 1490, tradu- ziu as Enéadas de Plotino e, entre 1490 e 1492, traduziu Dioní- sio Areopagita. Entre uns e outros, traduziu também obras de medioplatôni- cos, de neopitagóricos e de neoplatônicos, como Porfírio, Jâmblico e Proclo, além do bizantino Miguel Pselo. Como se vê, o mapa da “tradição platônica” está completo. A tradução de Hermes Trismegisto, Orfeu e Zoroastro antes de Platão decorre do fato de que Ficino considerava como autên- ticos e antiguíssimos os documentos atribuídos àqueles pretensos profetas e magos, achando que Platão dependia deles, como já dissemos e como veremos melhor agora. 2.8.3. Os pontos fundamentais do pensamento filosófico de Ficino Como filósofo, Ficino se expressou sobretudo nas obras Sobre a religião cristã e Teologia platônica, além de vários comentários a Platão e a Plotino. O seu pensamento é uma forma de neopla- tonismo cristianizado, rico em observações interessantes, dentre Marcílio Ficino e o neoplatonismo 71 as quais emergem como peculiares as seguintes: a) o novo conceito de filosofia como “revelação”; b) o conceito de alma como “copula mundi”; c) um repensamento do “amor platônico” em sentido cristão. a) A filosofia nasce como “iluminação” da mente, como dizia Hermes Trismegisto. O ato de dispor e dobrar a alma, de modo a que se torne intelecto e acolha a luz da divina revelação em que consiste a atividade filosófica, coincide com a própria religião. Filosofia e religião são inspiração e iniciação aos sacros mistérios ão verdadeiro. Hermes Trismegisto, Orfeu e Zoroastro foram igualmente “iluminados” por essa luz, sendo portanto profetas. Assim, sua obra é uma mensagem sacerdotal, voltada para a divulgação do verdadeiro. O fato de que esses “prisci theologi” tenham podido captar uma mesma verdade (que também foi atingida, sucessivamente, por Pitágoras e Platão), segundo Ficino, se explica perfeitamente em função do Logos, ou seja, do Verbo divino (do qual, inclusive, Hermes Trismegisto fala expressamente), que é igual para todos. A vinda de Cristo, com o Verbo fazendo-se carne, assinala o completamento dessa revelação. Portanto, Hermes, Orfeu, Zoroas- tro, Pitágoras, Platão (e os platônicos) podiam perfeitamente se harmonizar com a doutrina cristã, posto que derivavam de uma única fonte (o Logos divino). A religião dos simples não basta para vencer a incredulidade e o ateísmo: é preciso fundar uma “docta religio” que sintetize.a filosofia platônica e a mensagem evangé- lica. É precisamente nessa ótica que deve ser vista a consagra- ção sacerdotal de Ficino, assim como a sua missão de sacer- dote-filósofo. b) No que se refere à estrutura metafísica da realidade, Ficino a concebe, segundo o esquema platônico, como uma sucessão de graus decrescentes de perfeição, que ele, porém, de modo original (em relação aos neoplatônicos pagãos), identifica nos cinco graus seguintes: Deus, anjo, alma, qualidade (= forma) e matéria. Ora, os primeiros dois graus e os últimos dois são claramente distintos entre si, como mundo inteligível e mundo físico, ao passo que a alma representa o “elemento de conjunção”, que tem as características do mundo superior) mas, ao mesmo tempo, é capaz de vivificar o mundo inferior. Numa ótica neoplatônica, Ficino admite uma alma do mundo, almas das esferas celestes e almas dos seres vivos, mas é sobretudo para a alma racional do homem que ele dirige o seu interesse. O lugar medial da alma é o terceiro, tanto percorrendo os cinco graus da hierarquia do real de baixo para cima como de cima para baixo, como mostra este esquema: Marcílio Ficino (1483-1499) foi a mente diretora da Academia platônica florentina. Traduziu para o latim todos os textos essen- ciais da tradição platônica (de Platão a Plotino e ao Pseudo- Dionísio) e divulgou as doutrinas herméticas, por ele consideradas a fonte da qual o próprio Platão havia extraído a sua filosofia. Marcílio Ficino e o neoplatonismo 783 1 Deus 5 2 anjo 4 3 ALMA 3 4 qualidade 2 5 matéria 1 Desse modo, escreve Ficino: “Semelhante natureza parece extremamente necessária na ordem do mundo, de modo que, depois de Deus e do anjo, que não são divisíveis nem segundo o tempo nem segundo a dimensão, e acima do corpo e da qualidade, que se dissipam no tempo e no espaço, cumpra o papel de meio termo adequado: um termo que seja de certo modo dividido pelo decurso do tempo, mas não seja dividido pelo espaço. É a alma que se insere entre as coisas mortais sem ser mortal, porque se insere íntegra e não dividida, assim como também íntegra e não dispersa se retrai. E, como ela rege os corpos, mas também adere ao divino, é senhora dos corpos, não companheira. Esse é o milagre máximo da natureza. As outras coisas que estão sob Deus, cada qual em si mesma, são entidades singulares: ela, porém, é simultaneamente todas as coisas. Ela tem em si a imagem das coisas divinas, das quais depende, mas também as razões e os exemplos das coisas inferiores, que, de certo modo, ela própria produz. Fazendo-se intermediária de todas as coisas, possui as faculdades de todas as coisas. E, sendo assim, ela perpassa todas. Mas, como é verdadeira conexão de todas, quando migra para uma não deixa a outra, mas migra de uma para outra sempre conservando todas, de modo que pode ser justamente chamada de centro da natureza, a intermediá- ria de todas as coisas, a corrente do mundo, a fisionomia do todo, o núcleo e a cópula do mundo” (tradução de N. Abagnano). e) Em Ficino, está estreitamente ligado a essa temática da alma o tema do “amor platônico” (ou “amor socrático”), pelo qual o Eros platônico (entendido por Platão como força que, à visão da beleza, eleva o homem ao Absoluto, dando à alma as asas de que necessita para retornar à sua pátria celeste; cf. vol. 1, pp. 152s) se conjuga com o amor cristão. Para Ficino, em sua mais alta mani- festação, o amor coincide com a reintegração do homem empírico à sua Idéia metempírica em Deus, o que se torna possível através de uma progressiva ascensão na escala do amor. Portanto, é uma espécie de “divinização”, é um fazer-se eterno no Eterno. Essa idéia fica clara em uma admirável passagem do Co- mentário do Banquete de Platão: “Ainda que gostem dos corpos, as almas e os anjos não amarão propriamente a eles, mas a Deus neles: nos corpos amaremos a sombra de Deus, nas almas a similitude de Deus, nos anjos a imagem de Deus. Assim, no tempo presente, amaremos Deus em todas as coisas, de modo que, em 74 Humanismo e Renascimento última análise, amamos todas as coisas nele. Sendo assim, vivendo desse modo, chegaremos àquele grau em que veremos Deus e todas as coisas nele. Nós o amaremos em si e todas as coisas nele: desse modo, dando-se tudo a Deus com caridade no tempo presente, recupera-se nele por fim. Porque volta-se à sua Idéia, pela qual se foi criado. E aí será de novo reformado, se alguma parte de si lhe faltasse;e, assim reformado, estará unido à sua idéia na eternidade. Quero que saibais que o verdadeiro homem e a Idéia do homem são um todo único. Entretanto, na terra, nenhum de nós é verdadeiro homem enquanto estamos separados de Deus, porque estamos afastados da nossa Idéia, que é a nossa forma, E a ela seremos reduzidos pelo divino amor, com uma vida pia. Certamente, aqui, nós estamos divididos e truncados, mas depois, ligados pelo Amor à nossa Idéia, retornaremos íntegros, de modo que ficará aparente que nós primeiro amamos Deus nas coisas para depois amar as coisas nele e que nós honramos as coisas em Deus sobretudo para nos recuperarmos — e, amando Deus, amamos a nós mesmos.” A teoria do “amor platônico” teve ampla difusão na Itália (Pico de Mirândola, Bembo, Castiglione), pois o terreno já ha- via sido preparado pela difusão do “doce estilo novo” e pelas temáticas a ele ligadas, mas também fora da Itália (especial- mente na França). Leão Hebreu (cujo verdadeiro nome era Jehudah Abarbanel, tendo nascido em 1460 e morrido por volta de 1521), em seus Diálogos de amor, distinguiu-se de todos pelo frescor e a origina- lidade, reelaborando essa doutrina de uma forma que faria sentir sua influência inclusive na concepção do amor Dei intellectualis de Spinoza, de que falaremos adiante (cf. pp. 434). Dentre os tantos documentos relativos ao “amor platônico”, para concluir, transcrevemos esta bela Altercação de Lourenço de Médici, que mostra a grande penetração dessa doutrina sobre o amor: Da divina infinitude, o abismo como que através da névoa contemplamos, embora a alma lhe tenha o olhar fixo, mas com um perfeito e verdadeiro amor o amamos. Aquele que conhece Deus, Deus a si atrai; amando, à sua altura nos erguemos. A ele a mente aspira como sumo bem, a contentá-la; mas não se contenta se a Deus somente olha e mira. Porque a visão, embora atenta, que a alma vidente em si recebe, no criada e finita se contenta. Marcílio Ficino e a magia 75 E, assim, ser nos seus graus ela deve se, por potência, a alma é finita, seu operar também é finito e breve. Mas a alma que desses laços saiu só se contenta inteiramente se pousa em coisas que sente serem de imensa vida; e só se compraz com aquele bem que de Deus é conhecido; e tal desejo e o gáudio dele parecem imensos, mas que, amando, se converte em Deus e sobre o Deus visto se dilata. 2.3.4. A doutrina mágica de Ficino e sua importância A doutrina mágica de Ficino pode ser vista sobretudo na obra De vita, de 1489, que é composta de três escritos. Ele não hesita em proclamar-se “mago”, seguidor da “magia natural”, não a magia perversa, que trafica com os espíritos, nem a magia vazia e profana, como mostra este texto exemplar: “Segue então adiante, Guicciardini: responde aos curiosos que Marcílio não aprova a magia e suas figuras, mas é Plotino que ele expõe. O que está claramente escrito para quem lê com honestidade. Não se fala em absoluto daquela magia profana, que se funda no culto aos demô- nios, mas sim daquela magia natural, que desfruta dos benefícios celestes com meios naturais, para a boa saúde dos corpos. Uma faculdade que se deve conceder a quem a usa de modo legítimo, assim como justamente se admite a medicina e a agricultura, aliás, até mais ainda quanto mais é perfeita uma atividade que liga as coisas celestes às terrenas. Dessa forja é que vieram aqueles magos que, antes de todos, adoraram Jesus recém-nascido. Por que então tens tanto medo do nome de 'mago”? É um nome caro ao Evangelho, que não significa um homem maléfico e venenoso, mas sábio e sacerdote. E o que professa aquele mago, o primeiro adorador de Cristo? Se queres saber, é como um agricultor, é certamente um cultor do mundo. Mas nem por isso adora o mundo, como o agricultor não adora a terra. Assim como o agricultor, para ali- mentar os homens, cuida do campo segundo o clima, da mesma forma aquele sábio, aquele sacerdote, para cuidar da saúde dos homens, liga as coisas inferiores às superiores e, oportunamente, faz germinar as coisas terrenas ao calor do céu, quase como os ovos sob a galinha. É o que sempre faz o próprio Deus e, fazendo-o ensina e induz a fazer com que as coisas ínfimas sejam geradas pelas superiores, sendo por elas movidas e dirigidas. Enfim, são João Pico de Mirândola (1463-1494) foi pensador platônico, fer- voroso defensor da cabala, além do pensamento hermético. Foi o teórico mais conhecido da doutrina da “dignidade do homem”. Pico de Mirândola: a dignidade do homem 81 número de hóspedes celestes, que ascendia a 301.655.172. A equação palavra-número, como todos esses métodos, não tem necessariamente um caráter mágico, podendo ser simplesmente mística. Entretanto, é um aspecto importante da cabala prática, graças à vinculação com os nomes dos anjos. Existem, por exemplo, setenta e dois anjos através dos quais pode-se chegar às próprias sefirot ou invocá-los, quando se conhecem os seus nomese números respectivos. Às invocações devem ser sempre formuladas em he- braico, mas também existem invocações tácitas, que se pode realizar simplesmente manipulando ou dispondo em certa ordem palavras, letras, sinais ou símbolos da língua hebraica.” Por esse motivo, Pico dedicou-se intensamente ao estudo da língua hebraica (além do árabe e do caldeu), porque sem o conhecimento direto do hebraico não se pode praticar a cabala com eficácia. Somente nessa ótica é que se pode entender as famosas Novecentas Teses inspiradas na filosofia, na cabala e na teologia apresentadas por Pico, nas quais deveriam se unificar aristotélicos e platônicos, filosofia e religião, magia e cabala. Algumas dessas teses foram julgadas heréticas, tendo sido condenadas. Em conse- quência disso, Pico sofreu uma série de contrariedades, sendo inclusive preso em Savóia, quando fugia da França. (Depois, foi libertado por Lourenço, o Magnífico, e perdoado por Alexandre VI em 1493). O Discurso sobre a dignidade do homem, que se tornou muito famoso, ficando como um dos textos mais conhecidos do humanismo, é que constituía a premissa geral de suas teses. 24.3. Pico e a doutrina da dignidade do homem A doutrina desse grandioso “manifesto” sobre a “dignidade do homem” é apresentada como uma derivação da sabedoria do Oriente, desenvolvendo-se particularmente de uma sentença do Asclépio, obra atribuída, como já dissemos, a Hermes Trismegisto: “Magnum miraculum est homo”. Eis as afirmações explícitas do nosso autor: “Li nos escritos dos árabes, venerandos Padres, que Abdalla Sarraceno, interrogado sobre quem lhe parecia admirável neste palco do mundo, respondeu que não percebia nada de mais esplêndido do que o homem. E com essa afirmação concorda o fa- moso dito de Hermes: Grande milagre, ó Asclépio, é o homem. ” Mas por que o homem é esse grande milagre? A explicação que Pico dá a essa questão tornou-se muito famosa, com toda a justiça. Todas as criaturas são ontologicamente determinadas a serem aquilo que são e não outra coisa, em virtude da essência precisa que lhe foi dada. Já o homem, único entre as criaturas, foi colocado no limite entre dois mundos, com uma natureza não predeterminada, mas constituída de tal modo que ele próprio se s2 Humanismo e Renascimento plasmasse e esculpisse segundo a forma pré-escolhida. Assim, o homem pode se elevar à vida da pura inteligência e ser como os anjos, podendo inclusive elevar-se ainda mais acima. Desse modo, a grandeza e o milagre do homem estão no fato de ele ser artífice de si mesmo, autoconstrutor. Eis o belíssimo discurso posto por Pico na boca de Deus, imaginado como sendo dirigido ao homem recém-criado, o qual encontrou um vastíssimo eco em todos os seus contemporâneos, de todas as tendências: “Eu não te dei, Adão, nem um lugar deter- minado, nem um aspecto próprio, nem qualquer prerrogativa só tua, para que obtenhase conserves o aspecto e as prerrogativas que desejares, segundo a tua vontade e os teus motivos. À natureza limitada dos astros está contida dentro das leis por mim prescritas. Mas tu determinarás a tua sem estar constrito a nenhuma bar- reira, segundo o teu arbítrio, a cujo poder eu te entreguei. Colo- quei-te no meio do mundo para que, daí, tu percebesses tudo o que existe no mundo. Não te fiz celeste nem terreno, mortal nem imortal, para que, como livre e soberano artífice, tu mesmo te esculpisses e te plasmasses na forma que tiveres escolhido. Tu poderás degenerar nas coisas inferiores, que são brutas, e poderás, segundo o teu querer, regenerar-te nas coisas superiores, que são divinas.” Assim, enquanto os seres brutos nada mais podem ser além de brutos e os anjos somente anjos, já no homem existe o germe de toda vida. Conforme o germe que cultivar, o homem se tornará planta, animal racional ou anjo e até mesmo, se não estiver contente com todas essas coisas e recolher-se em sua unidade mais íntima, então, “feito um espírito só com Deus, na solitária névoa do Pai, aquele que foi colocado acima de todas as coisas estará acima de todas as coisas”. Eeis um último trecho, em que a natureza “camaleônica” do homem é encontrada em Pitágoras (doutrina da metempsicose), assim como na Bíblia e na sabedoria oriental, com fineza e engenhosidade (e o próprio Pomponazzi, como veremos, se inspi- rará nessa idéia): “Quem não admirará este nosso camaleão? Ou, quem sabe, quem admirará alguma outra coisa? Asclépio, o ate- niense, não sem razão, disse dele que, por seu aspecto cambiante e sua natureza mutável, estava simbolizado nos mistérios por Proteu. Daí as metamorfoses celebradas pelos judeus e pelos pitagóricos. Com efeito, até a mais secreta teologia judaica transforma ora o Enoc santo no anjo da divindade, ora outros em outros espíritos divinos, enquanto os pitagóricos transformam os celerados em brutos ou, a se acreditar em Empédocles, até mesmo em plantas. Imitando isso, Maomé repetia frequentemente, com razão: Quem se afasta da lei divina transforma-se em fera” Com Pico de Mirândola: a dignidade do homem 83 efeito, não é o córtex que faz a planta, mas a natureza surda e insensível; não é o couro que faz a jumenta, mas a alma bruta e sensual; não é o corpo circular que faz o céu, mas a reta razão; não é a separação do corpo que faz o anjo, mas a inteligência espiritual. E, se vires alguém que se dedica ao ventre estendido ao chão, não é homem que estás vendo, mas sim uma planta; e se veres alguém cego, como Calipso, pelas vãs miragens da fantasia, tomado pelos torpes engodos e escravo dos sentidos, é um bruto o que estás vendo, não um homem. Se vês um filósofo que tudo discerne com areta razão, venera-o, pois é animal celeste, não terreno. Se vêsum contemplativo puro, ignaro do corpo, totalmente fechado nos recônditos da mente, esse não é animal terreno, nem celeste: é espírito mais augusto, apenas vestido de carne humana. Quem portanto deixará de admirar o homem? Não sem razão, no antigo e no novo Testamento, ele é ora chamado com. o nome de todo ser de carne, ora é chamado com o nome de toda criatura, pois forja, plasma e transforma a sua pessoa segundo o aspecto de cada ser e o seu gênio de acordo com o de cada criatura. É por isso que o persa Evante, explicando a teologia caldéia, diz que o homem não tem uma imagem nativa própria, mas muitas imagens, estranhas e adventícias. Daí o dito caldeu de que o homem é animal de natureza variada, multiforme e cambiante”. (As traduções usadas são de E. Garin). Em conclusão, como se pode ver, somente no contexto má- gico-hermético e cabalístico é que se pode entender a célebre mensagem de Pico de Mirândola. E somente considerando essa ótica é que se pode entender a especificidade e a peculiariedade do humanismo renascentista e, portanto, a sua diferença em relação ao humanismo medieval e a outras formas posteriores de humanismo. 2.5. Francisco Patrizi Francisco Patrizi viveu no século XVI (1592-1597), mas trilhou o mesmo caminho de Ficino e de Pico. Ele representa um exemplo paradigmático da tenaz manutenção da mentalidade hermética, como já ilustramos. Ele se ocupou a fundo do Corpus Hermeticum, bem como dos Oráculos caldeus. A sua obra teórica mais notável é a Nova filosofia universal. Seguindo Hermes Trismegisto (que ele considerava não apenas contemporâneo de Moisés, mas até mesmo paulo senior), Patrizi tinha a convicção de que, sem filosofia, não era possível ser religioso nem piedoso. Mas a deformação da filosofia de Aristóte- les, que negava a providência e a onipotência de Deus, mostrava- se gravemente prejudicial. Assim, era necessário opor a Aristóte- 84 Humanismo e Renascimento les a filosofia platônica (Platão, Plotino, Proclo e os Padres), mas especialmente a filosofia hermética (para ele, um tratado de Her- mes valia mais do que todos os livros de Aristóteles). Patrizi chegou ao ponto de conclamar o Papa a promover O ensino das doutrinas do Corpus Hermeticum, que, na sua opinião, seria de enorme importância, podendo ter o efeito de fazer os protestantes alemães retornarem à fé católica. E chegou até mesmo a recomendar ao pontífice a introdução do hermetismo no programa de estudos dos jesuítas. Em suma, para Patrizi,o Corpus Hermeticum teria podido ser ótimo instrumento a serviço da restauração do catolicismo. A Inquisição, como é óbvio, condenou como não-ortodoxas algumas das idéias de Patrizi, que aceitou submeter-se a juízo. A tentativa de fazer a Igreja acolher oficialmente Hermes Tris- megisto faliu. Mas, como observa justamente Yates, as peripécias de Patrizi mostram “a confusão mental difundida por volta de fins do século XVI e como era difícil, até mesmo para um piedoso platônico e católico, como Patrizi, perceber os limites de sua própria posição teológica”. 3. O aristotelismo renascentista 3.1. Os problemas da tradição aristotélica no período do humanismo Como já destacamos nas páginas anteriores, era grande a importância atribuída pelos estudiosos ao aristotelismo na Itália, nos séculos XV e XVI. Mas ficou claro que o quadro do pensamento renascentista fica incompleto e falso se não levarmos em conta as contribuições a eles feitas. Assim, procuraremos agora completar o que já havíamos antecipado. . Deve-se recordar que as interpretações básicas do aristote- lismo eram três. a) A primeira é a alexandrina, que remontava ao antigo comentador de Aristóteles Alexandre de Afrodísia. Alexan- dre sustentava que o homem possui o intelecto potencial, mas que ointelecto agente é a própria Causa suprema (Deus), que, iluminan- do o intelecto potencial, torna possível o conhecimento. Assim sen- do, não há lugar para uma alma imortal, pois ela deveria coincidir com o intelecto agente (as interpretações recentes levaram ao reco- nhecimento da presença da idéia de certa forma de imortalidade em Alexandre, mas uma imortalidade impessoal e inteiramente a- típica; de qualquer modo, uma imortalidade impessoal não podia interessar os cristãos. b) No século XI, Averróis submeteu as obras aristotélicas a poderosos comentários, quetiveram ampla repercus- O aristotelismo renascentista 85 são. A característica de sua interpretação era a tese segundo a qual haveria um intelecto único e separado para todos os homens. Caía assim por terra qualquer possibilidade de se falar de imortalidade do homem, visto que só era imortal o Intelecto único. Também era típica dessa corrente a chamada doutrina da “dupla verdade”, que distinguia as verdades acessíveis à força da razão das verdades acessíveis unicamente à fé (mais adiante, voltaremos a falar do sentido dessa doutrina). c) Por fim, havia a interpretação tomista, que tentara uma grandiosa conciliação entre o verbo aristotélico e a doutrina cristã, como vimos no volume anterior. Ora, na época do Renascimento todas essas interpretações foram repropostas. Entretanto, hoje, tende-se a contestar a vali- dade desse esquema cômodo de distinção, destacando que a reali- dade era bastante complexa, não havendo nenhum aristotélico que se possa considerar seguidor de uma dessas tendências em todos os pontos, e que, a propósito de cada problema em particular, o alinhamento dos vários pensadores muda muito, apresentando grande variedade de combinações. Trata-se, portanto, de divisão a ser usada com cautela. No que se refere às temáticas, devemos recordar que, em virtude da estrutura do ensino universitário, os aristotélicos da época renascentista ocuparam-se sobretudo dos problemas lógico- gnosiológicos e dos problemas físicos (a política, a ética e a poética ficavam a cargo dos humanistas filólogos). Já no que diz respeito às fontes do conhecimento, os aristo- télicos distinguiam: a) a autoridade de Aristóteles; b) o raciocínio aplicado aos fatos; c) a experiência direta. Mas, pouco a pouco, começaram a privilegiar esta última, tanto que os estudiosos consideravam que (pelo menos tendencialmente) eles podem ser definidos como “empiristas”. Ademais, também aprofundaram os problemas lógicos e metodológicos com discussões de alto nível. A escola de Pádua chegou até mesmo a cunhar a expressão “método científico”. Todos os conceitos da física aristotélica foram discutidos analiticamente. Mas, nesse terreno, aestrutura geral da cosmologia do Estagirita que distinguia o mundo celeste, feito de éter incorruptivel, do terrestre constituído de elementos corruptíveis, não permitia progressos notáveis, impondo uma rigorosa separação entre a astronomia e a física. Ademais, a teoria dos quatro elementos qualitativamente determinados e a teoria das “formas” tornavam impossível a quantificação da física e a aplicação da matemática. . Era muito comentado e difundido, em particular, o tratado De anima, com sua doutrina sobre a alma (que, no esquema aristotélico, entrava no âmbito da problemática da “física”, pelo menos em sua parte fundamental). Pedro Pomponazzi, chamado Peretto Mantovano (1462-1 525), foi o mais insigne dos aristotélicos renascentistas, conhecido sobretudo por sua problemática da alma. Pedro Pomponazzi 91 ser mais animal do que homem e mais insensato do que sensato e consciente.” Também foi muito apreciado o De incantationibus (O livro dos encantamentos), no qual Pomponazzi responde à questão de se existem causas sobrenaturais na produção dos fenômenos natu- rais, mostrando que todos os acontecimentos, sem exceção, podem ser explicados com o princípio da naturalidade, inclusive tudo o que ocorre na história dos homens. No passado, exagerou-se muito o valor da formulação desse “princípio da naturalidade” e sua respectiva aplicação, afirmando-se que Pomponazzi “pressentia o novo e era muito superior aos seus tempos”. Mas a crítica histori- camente mais consciente chamou a atenção para o fato de que Pomponazzi, no caso, realiza uma operação que expressamente declara circunscrita ao ponto de vista aristotélico, além de afirmar ter consciência da existência de uma verdade diferente, que é precisamente a verdade da fé. O que redimensiona notavelmente o sentido do seu discurso. Análoga é a posição do De fato, de libero arbitrio et de praedestinatione, no qual sustenta que, do ponto de vista natural, não há soluções certas para a questão do destino, mas que também se mostram contraditórias a propósito as soluções dos teólo- gos. Também nesse caso, para se ter uma resposta segura, é pre- ciso confiar na fé e na revelação. Entretanto, como filósofo natu- ral, ele prefere a solução dos estóicos, que admitiam o destino como soberano. É nessa obra que se encontra a bela imagem de Pomponazzi, que identifica o esforço do filósofo ao de Prometeu: “Prometeu é verdadeiramente o filósofo que, querendo conhecer os mistérios de Deus, é roído por perpétuas preocupações e mistérios: não tem sede, não tem fome, não dorme, não come, não evacua, é ironizado por todos, é considerado tolo e sacrílego, é perseguido pelos inqui- sidores, é um curioso espetáculo para o vulgo. Esse é o ganho dos filósofos, essa é a sua recompensa” (tradução de T. Gregory). Mas a modernidade de Pomponazzi, como aristotélico, está precisamente no fato de começar a preferir a experiência à auto- ridade dos escritos de Aristóteles, quando estes são contrários àquela. Em uma lição de 1523 (apontada de modo especial por B. Nardi), comentando uma passagem dos Meteorológicos de Aristó- teles sobre a habitabilidade da terra na zona tórrida (entre o trópico de Câncer e o trópico de Capricórnio), depois de expor a opinião do próprio Aristóteles e a contida no respectivo comentário de Averróis, bem como depois de expor de forma silogística as demonstrações sobre a inabitabilidade, de repente ele afirma poder desmentir os silogismos apodíticos de Aristóteles e Averróis 92 Humanismo e Renascimento com a carta de um amigo do Vêneto, que havia atravessado a zona tórrida, encontrando-a habitada. E agora? A conclusão de Pomponazzi é a seguinte: “Oportet stare sensui.”? E a experiência, e não Aristóteles, que tem sempre razão. Depois de Pomponazzi, destacaram-se ainda entre os aris- totélicos os nomes de César Cesalpino, Jacopo Zabarella, César Cremonini e Júlio César Vanini. Já dissemos que têm razão todos os que consideram que o aristotelismo renascentista merece atenção maior do que a que desfrutou no passado, pois constitui um componente indispensável para se compreender a época. Por si mesmo, isso é certamente exato. Entretanto, no momento, ainda estamos longe do conheci- mento preciso das relações existentes entre os dois ramos do aristotelismo: o ramo revivido pelos humanistas literatos, que é o Aristóteles ético-político, e o ramo constituído pelo Aristóteles lógico-naturalista das universidades. De qualquer modo, está claro que o tom geral da época foi dado predominantemente pelo platonismo, ao passo que, na dia- lética geral do pensamento renascentista, o aristotelismo exerce predominantemente a função de antítese. Os próprios filósofos do século XVI, que estudaremos adiante e que se voltaram para a natureza em primeira instância, não apenas não encontravam qualquer conforto nas páginas de Aristóteles, como até encontra- vam enfado: Telésio considerava Aristóteles ao mesmo tempo muito pouco físico e muito pouco metafísico; Bruno o achava “um miserando velho”, “abaixado, curvo, corcunda, ferido, inclinado como Atlante, oprimido pelo peso do céu a ponto de não poder vê- lo”; já os habitantes da Cidade do Sol, de Campanella, que expressam as idéias do filósofo, “são inimigos de Aristóteles, chamando-o de pedante”. 4. Renascença do ceticismo 4.1. Revivescência das filosofias helenísticas no Renascimento | As tradições predominantes no século XV eram as do plato- nismo e do aristotelismo, como vimos, ao passo que o epicurismo e o estoicismo constituíam apenas instâncias marginais, que trans- parecem em alguns autores, sem, no entanto, imporem-se de modo relevante. Muito maior, porém, foi a difusão que estes últimos tiveram no século XVI, juntamente com o renascido ceticismo, na formulação que lhe foi dada por Sexto Empírico (cf. Vol. I, pp. 3185). Michel de Montaigne 93 O ceticismo conseguiu até criar uma verdadeira e peculiar têmpera cultural, especialmente na França, encontrando a sua expressão mais elevada em Montaigne. Como ocorreu esse renascimento? O primeiro a utilizar Sexto Empírico de modo sistemático foi João Francisco Pico de Mirândola (1469-1533), neto do grande Pico, em sua obra Exame das fatuidades das teorias dos pagãos e da verdade da doutrina cristã (1520), na qual ele utiliza elementos céticos para demonstrar a insuficiência das teorias filosóficas e, portanto, da razão pura, concluindo que, para alcançar a verdade, é preciso a fé. A João Francisco Pico liga-se Heinrich Cornelius (que se fazia chamar Agrippa de Nettesheim, 1486-1535, conhecido sobretudo como mago), na obra Incerteza e fatuidade das ciências edas artes (escrita em 1526 e publicada em 1530), na qual sustenta que não são as ciências e as artes humanas (que são refutadas com argumentos extraídos de Sexto Empírico) que salvam o homem, mas somente a fé. Na França, foram publicadas sucessivamente nove versões latinas de Sexto Empírico. Em 1562, Stephanus (Henri Estienne, 1522-1598) traduziu os Esboços pirronianos e, em 1569, Gentian Hervet (1499-1584) publicou todas as obras de Sexto Empírito em versão latina. Nesse meio tempo, Justo Lipsio (Joost Lips, 1547-1606) repropunha na Alemanha e na Bélgica o estoicismo, toman- do por modelo sobretudo Sêneca e procurando conciliá-lo com o cristianismo. 4.2. Michel de Montaigne e o ceticismo como fundamento de sabedoria No quadro que traçamos brevemente, insere-se também o pensamento de Michel de Montaigne (1533-1592), autor dos En- saios (1580 e 1588), que são obras-primas ainda hoje muito consideradas. Também em Montaigne o ceticismo convive com uma fé sincera. Isso surpreendeu muitos historiadores. Na reali- dade, porém, sendo o ceticismo desconfiança na razão, ele não coloca a fé em causa, pois esta situa-se num plano diferente, sendo portanto estruturalmente inatacável pela Scepse. Montaigne chega inclusive a escrever: “O ateísmo é(...) uma proposição quase contra a natureza e monstruosa, difícil também e inapta para fixar-se no espírito humano, por mais insolente e desregulado que ele possa ser” (utilizamos aqui a tradução de F. Garavini, Adelphi, Milão). Entretanto, a “naturalidade” do conhecimento de Deus depende inteira e exclusivamente da fé. O cético, portanto, não pode ser senão fideísta. Michel de Montaigne (1533-1592) repropôs nos seus Ensaios um pensamento de fundo ceticizante, rico em temáticas discutidas pelas antigas filosofias helenistas, mas traduzidos em uma lin- guagem muito moderna, fixada em páginas até hoje muito consi- deradas. Michel de Montaigne 95 Eis algumas significativas afirmações do nosso filósofo: “Assim, julgo que, em uma coisa tão divina e elevada, que tanto ultrapassa a inteligência humana, como é o caso da verdade com a qual aprouve à bondade de Deus nos iluminar, é bastante necessário que ele ainda nos dê a sua ajuda, com favor extraor- dinário e privilegiado, para que possamos concebê-la e acolhê-laem nós. E não creio que os meios puramente humanos sejam de algum modo capazes disso, pois, se o fossem, tantas almas raras e excelentes, tão abundantemente dotadas de forças naturais nos séculos antigos, não teriam deixado de chegar a esse conhecimento com a sua razão. Somente a fé abraça estreita e seguramente os elevados mistérios de nossa religião.” Mas o fideísmo de Montaigne não é o de místico. E o interesse dos Ensaios volta-se predominantemente para o homem e não para Deus. A antiga exortação contida na sentença inscrita no templo de Delfos, “homem, conhece-te a ti mesmo”, apropriada por Só- crates e por grande parte do pensamento antigo, torna-se para Montaigne o programa do autêntico filosofar. Mas não só isso: os filósofos antigos visavam o conhecimento do homem com o objetivo de alcançar a felicidade — e esse objetivo também está no cen- tro dos Ensaios de Montaigne. A dimensão mais autêntica da filosofia é a da “sabedoria”, que ensina como devemos viver para sermos felizes. Mas como é que a razão cética, abraçada por Montaigne, pode alcançar esses objetivos, aquela mesma razão cética que propõe acima de todas as coisas a pergunta de advertência “o que sou eu?” (que sais-je?). E Sexto Empírico escrevia que os céticos conseguiram resolver o problema da felicidade precisamente através da renúncia ao conhecimento da verdade. A propósito disso, ele citava o conhecido apólogo do pintor Apeles, que, não conseguindo pintar satisfato- riamente a espuma sobre a boca de um cavalo, tomado de raiva, lançou contra a pintura a esponja embebida em tintas. Então, a esponja deixou na tela uma mancha que parecia espuma. E, da mesma maneira que, com a renúncia, Apeles alcançou o seu ob- jetivo, os céticos, com a renúncia a encontrar o verdadeiro (ou seja, suspendendo o juízo), acabaram encontrando a trangiilidade. A solução adotada por Montaigne inspira-se nessa colocação, mas é muito mais articulada, rica em nuanças e sofisticada, com a inclusão, também, de sugestões epicuréias e estóicas. O homem é mísero? Pois bem, captemos o sentido dessa miséria. É limitado? Captemos o sentido dessa limitação. É me- díocre? Captemos o sentido dessa mediocridade. Mas, se com- preendermos isso, compreenderemos também que a grandeza do homem está precisamente na sua mediocridade. 100 O Renascimento e q religião não tem necessidade de complicados silogismos, podendo ser al- cançada em poucos livros, os Evangelhos e as Epístolas de são Paulo. Escreve Erasmo: “Que outra coisa é a doutrina de Cristo, que ele próprio denomina renascença, senão um retorno à natureza bem criada?” Essa filosofia de Cristo, portanto, é uma “renascen- ça”, que representa um “retorno à natureza bem criada”. E os melhores livros dos pagãos contêm “um grande número de coisas que concordam com a doutrina de Cristo”. Para Erasmo, a grande reforma religiosa se resume a sacudir dos ombros tudo aquilo que o poder eclesiástico e as disputas dos escolásticos acrescentaram à simplicidade das verdades evangéli- cas, confundindo-as e complicando-as. O caminho que Cristo indicou para a salvação é o mais simples: fé sincera, caridade não hipócrita e esperança que não se envergonha. Se tomarmos os grandes santos como exemplo, veremos que eles não fizeram outra coisa senão viver com liberdade de espírito a genuína doutrina evangélica. E a mesma coisa pode ser encontrada nas origens no monaquismo e na primitiva vida cristã. Assim, é preciso retornar às origens. É nessa ótica de reto- mada das fontes que se inserem a edição crítica e a tradução do Novo Testamento (que Erasmo gostaria de ter visto nas mãos de todos), além da edição dos antigos Padres: Cipriano, Amóbio, Ireneu, Ambrósio, Agostinho e outros (nesse sentido, Erasmo pode ser considerado o iniciador da patrologia). A reconstrução filológica do texto e sua correta edição têm portanto um significado bem preciso em Erasmo, um sentido que vai além da mera operação técnica e erudita. 1.1.3. O conceito erasmiano de “loucura” É no Elogio da loucura que encontramos o espírito filosófico erasmiano em sua manifestação mais peculiar. Trata-se de uma obra que se tornou muito famosa, estando entre as poucas obras suas que ainda hoje se pode ler de bom grado. O que é essa “loucura”? Não é fácil identificá-la e defini-la, dado que Erasmo a apresenta em uma extensa gama, que vai do extremo (negativo) em que se manifesta a pior parte do homem ao extremo oposto, que consiste na fé em Cristo, que é a loucura da Cruz (como o próprio são Paulo a define). E, entre os dois extremos, Erasmo apresenta toda uma gama de graus de “loucura”, num jogo muito hábil, por vezes usando a ironia socrátrica, outras vezes gostosos paradoxos e outras ainda uma crítica dilacerante e um indisfarçado desapon- tamento (como quando denuncia a corrupção dos costumes da Igreja da época). Às vezes, Erasmo denuncia a loucura com a evidente intenção da condenação; outras vezes, como no caso da fé, Erasmo: o pensador cristão 101 com a intenção evidente de exaltar o seu valor transcendental; outras, ainda, simplesmente para mostrar a ilusão humana, aliás, apresentando-a como elemento indispensável do viver. A “loucura”? é como uma vassoura mágica, que varre tudo o que se antepõe à compreensão das verdades mais profundas e severas da vida ou que nos faz ver que às vezes, sob as vestes de um rei, nada mais há do que um pobre mendigo ou o contrário, e que às vezes, sob a máscara do poderoso, nada mais há do que um vil. A “loucura” erasmiana arranca os véus, fazendo-nos ver a comédia da vida e a verdadeira face daqueles que se escondem sob máscaras, mas, ao mesmo tempo, mostra o sentido do palco, das máscaras e dos atores, procurando de certa forma fazer com que se aceitem todas as coisas assim como elas são. Assim, a “loucura” erasmiana é reveladora de “verdade”. Eis uma passagem estupenda de Erasmo: “Suponhamos o caso de que alguém quisesse arrancar as máscaras dos atores que desempenham o seu papel num palco, revelando aos espectadores as suas verdadeiras e reais faces. Não estará essa pessoa estra- gando toda a ficção cênica, merecendo ser preso como louco furioso e expulso do teatro a pedradas? De repente, o espetáculo assumirá uma nova fisionomia: antes havia uma mulher, agora há um homem; antes, um velho, agora um jovem; quem era rei, torna-se de repente um canalha; quem era um deus, na mesma hora revela- se um homúnculo. Cortar a ilusão significa mandar pelos ares todo o drama, pois precisamente o engano da ficção cênica é que encanta os olhos do espectador. Pois bem, o que é a vida do homem senão uma comédia, na qual cada qual está coberto por sua máscara particular e cada qual recita o seu papel, até que o diretor o afaste de cena? O diretor sempre confia ao mesmo ator ora a função de vestir a púrpura real, ora os farrapos de um miserável escravo. Assim, sobre o palco, tudo é postiço, mas a comédia da vida não se desenvolve de outro modo.” O ponto culminante da “loucura” erasmiana, como dizíamos, está na fé: “Por fim, está claro que os loucos mais frenéticos são precisamente aqueles que são finalmente aferrados por inteiro pelo ardor da piedade cristã: sinal manifesto disso é a dissipação que fazem de seus bens, o desconhecimento das ofensas, a resig- nação aos enganos, a não distinção entre amigos e inimigos (...). Ora, o que é isso senão loucura?” Ademais, o cume dos cumes da “loucura” é a felicidade celeste, que é própria da outra vida, mas da qual, às vezes, é dado aos piedosos perceberem, já aqui nesta terra, o sabor e o perfume, pelo menos por um breve momento. E, ao readquirirem consciência, essas pessoas se convencem de um fato, ou seja, que tocaram “o ponto culminante da felicidade durante todo o tempo que durou a sua loucura. Por isso, lamentam terem Erasmo de Roterdão (1466-1536) foi um dos humanistas mais cultos e refinados. O seu pensamento gira sobretudo em torno de temáticas cristãs. A sua obra mais conhecida é o Elogio da loucura, considerada (em vários níveis e com várias acepções) como uma dimensão essencial do viver humano. Lutero: rejeição da filosofia 103 sido curados, não querendo outra coisa senão serem loucos desse modo por toda a eternidade”. A rigidez com que Erasmo criticou papas, prelados, ecle- siásticos e monges do seu tempo e certos costumes dominantes na Igreja, bem como certas afirmações doutrinárias que fez, valeram- lhe a aversão dos católicos, que, mais tarde, colocaram no Index algumas de suas obras e recomendaram cautela crítica em relação a outras. Já Lutero enfureceu-se com a polêmica sobre o livre- arbítrio, definindo Erasmo, com insólita violência, como ridículo, tolo, sacrílego, tagarela, sofista e ignorante, qualificando sua doutrina como um misto de “cola e lama”, “lixo e excrementos”. Mas Lutero, como veremoslogo, não admitia oposições. Com efeito, para alcançar objetivos em parte idênticos, esses dois homenstrilhavam caminhos de direções opostas. 1.2. Martinho Lutero 1.2.1. Lutero e suas relações com a filosofia e com o pensamento humanista-renascentista Já se disse muito bem que “ubi Erasmus innuit ibi Luterus irruit”. Com efeito, Lutero (1483-1546) irrompeu na vida espiritual e política da época como autêntico furacão, que envolveu toda a Europa e cujo resultado foi a dolorosa ruptura da unidade do mundo cristão. Do ponto de vista da unidade da fé, a Idade Média termina com Lutero, iniciando-se com ele uma importante fase do mundo moderno. Dentre os numerosos escritos de Lutero, podemos recordar: o Comentário à epístola aos Romanos (515-1516), as noventa e cinco Teses sobre as indulgências (1517), as vinte e oito teses relativas à Disputa de Heidelberg (1518) e os grandes escritos de 1520, que constituem verdadeiros manifestos da Reforma, Apelo à nobreza cristã de nacionalidade alemã pela reforma do culto cristão, O cativeiro babilônio da Igreja e A liberdade do cristão, além de o Servo arbítrio, contra Erasmo, em 1525. Do ponto de vista histórico, o papel de Lutero é da maior importância, pois com sua Reforma religiosa logo se entrelaçaram elementos sociais e políticos que mudaram a fisionomia da Europa, sendo também de importância primordial em termos de história das religiões e do pensamento teológico. Entretanto, Lutero tam- bém merece um lugar em termos de história do pensamento filosófico, seja porque verbalizou a instância de renovação que os filósofos da época fizeram valer, seja por algumas valências teó- ricas (sobretudo de caráter antropológico e teológico) intrínsecas ao seu pensamento religioso, seja pelas consequências que o novo tipo de religiosidade por ele suscitado exerceu sobre os pensadores da 104 O Renascimento e a religião época (por exemplo, sobre Hegel e Kierkegaard) e da época con- temporânea (por exemplo, certas correntes do existencialismo e a nova teologia). A posição de Lutero em relação aos filósofos é totalmente negativa: a desconfiança nas possibilidades de a natureza humana salvar-se por si só, sem a graça divina (como logo veremos), iria levar Lutero a não dar qualquer valor a uma investigação racional autônoma, a qualquer tentativa de examinar os problemas de fundo do homem com base no logos, na pura razão. Para ele, a filosofiaera vá sofisticação e, pior ainda, fruto daquela absurda e abominável soberba própria do homem que quer basear-se em suas próprias forças e não na única coisa que salva, isto é, a fé. Nessa ótica, Aristóteles parece-lhe como que a expressão de certa forma para- digmática dessa soberba humana. (O único filósofo que não é inteiramente envolvido nessa condenação parece ser Ockham; mas, precisamente ao separar e contrapor fé e religião, fôra Ockham que, sob certos aspectos, abrira um dos caminhos que iriam levar à posição de Lutero). O texto seguinte, contra Aristóteles (e contra as univer- sidades que, como sabemos, baseavam-se sobretudo na leitura e nos comentários a Aristóteles), é bastante paradigmático: “As universidades também precisam de uma boa e radical reforma. Tenho que dizê-lo — amargure-se quem quiser. Tudo aquilo que o Papa ordenou e instituiu dirige-se verdadeiramente para aumen- tar o pecado e o erro. O que são as universidades? Pelo menos até agora, foram instituídas para ser apenas, como diz o livro dos Macabeus, 'ginásios de efebos e da glória grega”, nos quais se leva uma vida libertina, pouco se estuda a Sagrada Escritura e a fé cristã e reina apenas o cego e idólatra mestre Aristóteles, até mesmo acima de Cristo. O meu conselho seria o de que os livros de Aristóteles Physica, Metaphysica, De anima e Ethica, que até agora são reputados como os melhores, fossem abolidos jun- tamente com todos os outros que falam de coisas naturais, já que não é possível aprender nada das coisas naturais, nem das espi- rituais, nesses livros: ademais, até agora, ninguém conseguiu compreender a sua opinião; muitas gerações e nobres almas têm sido inutilmente oprimidas com vão trabalho, estudo e despesas. Posso até dizer que um paneleiro tem maior conhecimento das coisas naturais do que aquilo que está escrito em livros de tal feitura. Dói-me o coração saber que aquele maldito, presunçoso e astuto idólatra tenha desencaminhado e enganado com suas falsas palavras tantos entre os melhores cristãos: nele, Deus nos enviou uma praga para nos punir de nossos pecados. Com efeito, aquele desgraçado ensina em seu melhor livro, De anima, que a alma morre com o corpo, embora muitos tenham querido salvá-lo, com Lutero: crítica da filosofia 105 inúteis palavras, como se não possuíssemos a Sagrada Escritura, que nos ensina abundantemente todas as coisas das quais Áris- tóteles nunca sequer ouviu falar. E, no entanto, aquele falecido idólatra venceu, expulsou e quase espezinhou o livro do Deus vivo, detal modo que, pensando em semelhantes desventuras, não posso acreditar em outra coisa senão em que o espírito do mal tenha cogitado do estudo com esse propósito. O mesmo vale também para o livro da Ethica, mais torpe do que qualquer outro, que se opõe inteiramente à graça divina e às virtudes cristãs e, no entanto, é tão considerado. O, longe, mas bem longe dos cristãos tais livros! Que ninguém me conteste que falo demais ou me censure por nada saber. Caro amigo, sei muito bem o que estou dizendo! Conheço Aristóteles tão bem quanto tu e teus semelhantes, pois o li e ouvi com maior atenção do que a santo Tomás ou Escoto, do que posso muito bem me vangloriar, sem presunção, e até, se necessário, demonstrá-lo. Não me importa que, durante tantas centenas de anos, tantos intelectos sublimes se tenham debruçado sobre ele. Tais argumentos não me preocupam, porque está claro que, em- bora eles tenham feito alguma coisa, no entanto, tantos erros permaneceram por tantos anos no mundo e nas universidades” (trecho citado de Martinho Lutero, Scritti politici, org. por G. Panzieri Saija, introdução de L. Firpo, UTET, Turim). Mas vejamos brevemente a posição de Lutero no âmbito da época renascentista para depois examinar os núcleos centrais do seu pensamento religioso-teológico. As relações de Lutero com o movimento humanista já estão bastante claras (e, em parte, já as antecipamos com algumas observações): a) Porumlado, ele verbaliza com voz potente e até prepotente aquele desejo de renovação religiosa, aquele anseio de renasci- mento para uma nova vida e aquela necessidade de regeneração que constituem as próprias raízes do Renascimento. E, desse ponto de vista, a Reforma protestante pode ser vista como um dos resultados desse grande e multiforme movimento espiritual: b) Ademais, Lutero retoma e leva às últimas consequências o grande princípio do “retorno às origens”, ou seja, do retorno às fontes e aos princípios, que os humanistas haviam procurado realizar através do retorno aos clássicos, que Ficino e Pico preten- diam através do retorno aos prisci theologi (às origens da revelação sapiencial: Hermes, Orfeu, Zoroastro, a cabala) e que Erasmo já havia claramente apontado no Evangelho e no pensamento das origens cristãs e dos Padres da Igreja. Mas o retorno ao Evangelho, que Erasmo havia procurado fazer mantendo equilíbrio e medida, em Lutero torna-se revolução e subversão: tudo aquilo que a tradição cristã havia contruído ao longo dos séculos parece para no O Renascimento e religião crepúsculo da Idade Média, são particularmente significati nesse sentido. Falando sobre esses precedentes, escreve J. De. lumeau: Rejeitando os sacramentos, Wyclif rejeita, ao mesmo tempo, a Igreja hierárquica. Os padres (que devem ser todos iguais) não passam para ele de dispenseiros da Palavra, mas é somente Deus que opera tudo em nós, fazendo-nos descobrir a doutrina na Bíblia. Alguns anos mais tarde, Huss ensina que um padre em estado de pecado mortal não é mais um padre autêntico, o que jaml em oaso Para osbispose parao Papa” (in Le Riforma, Mursia, Assim, não era preciso muito para extrair daí as conclusões extremas, como fez justamente Lutero, isto é, a idéia de que um cristão isolado pode ter razão contra um concílio inteiro, se estiver iluminado e inspirado diretamente por Deus, não sendo portanto necessária uma casta sacerdotal, visto que cada cristão é sacerdote em relação à comunidade em que vive. Todo homem pode pregar a palavra de Deus. Assim, é eliminada a distinção entre “clero” e laicato”, embora não seja eliminado o ministério pastoral en- quanto tal, indispensável em uma sociedade organizada. Mas, nesse aspecto, as coisas logo assumiram uma conotação francamente negativa, A liberdade de interpretação abriu cami- nho para uma série de perspectivas não desejadas por Lutero, que. pouco a pouco, foi se tornando dogmático e intransigente, pre- tendendo, em certo sentido, ser dotado daquela “infalibilidade” que havia contestado ao Papa (não por acaso ele foi chamado de “o Papa de Wittenberg”). E pior ainda aconteceu quando, tendo perdido toda confiança no povo cristão organizado em bases religiosas, em virtude dos infinitos abusos, Lutero entregou aos príncipes a Igreja por ele reformada: nasceu assim a “Igreja de Estado”, que é a antítese daquela Igreja à qual a Reforma deveria levar. - Portanto, aconteceuque, emboratenha afirmad: q liberadade da fé, Lutero depois se contradisse do demente flagrante tanto nas afirmações como nos fatos. Em 1523, ele havia escrito (extraímos os textos do livro de Delumeau já citado): Quando se trata da fé, trata-se de uma coisa livre, à qual não se pode “obrigar ninguém. Trata-se de uma operação de Deus no espírito, excluindo-se portanto que um poder externo ao espírito possa obtê-la pela força.” Em janeiro de 1525, reafirmava: “Quanto pos heréticos, aos falsos profetas edoutores, não devemos erradicá- j nem exterminá-los. Cristo diz claramente que devemos deixá- os viver. Mas já no fim desse mesmo ano Lutero escrevia: “Os príncipes devem reprimir os delitos públicos, os perjúrios e as blasfêmias manifestadas em nome de Deus”, embora acrescentas- se que “não devem, nisso, exercer nenhuma constrição sobre as pessoas, deixando-as livres (...) para maldizer Deus em segredo ou Lutero: pessimismo e irracionalismo 11 não maldizê-lo”. E, pouco depois, escrevia ao Eleitor da Saxônia: “Em uma determinada localidade, não deve haver senão um só tipo de pregação.” Assim, pouco a pouco, Lutero induziu os príncipes a controlarem a vida religiosa, chegando mesmo a exortá-los a ameaçar e punir todos aqueles que desleixavam as práticas reli- giosas. Desse modo, o destino espiritual do indivíduo tornava-se patrimônio da autoridade política, nascendo assim o princípio cuius regio, huius religio. 1.2.3. Conotações pessimistas e irracionalistas do pensamento de Lutero Os componentes pessimistas e irracionalistas do pensa- mento de Lutero estão evidentes em todas as suas obras, mas de modo especial em O servo arbítrio, escrito contra Erasmo. Nesse escrito, aquela “dignidade do homem” tão cara aos humanistas italianos e da qual Erasmo havia sido defensor em ampla medida é inteiramente subvertida, apresentando-se com o sinal oposto. O homem só pode se salvar se compreender que não pode em absoluto ser o artífice de seu próprio destino: com efeito, sua salvação não depende dele, mas de Deus; enquanto estivertolamente convencido de que pode fazê-lo por si próprio, estará se iludindo, nada mais fazendo do que pecar. O homem precisa aprender a “desesperançar-se desimesmo” para abrir caminho para asalvação, já que, desesperançando-se de si mesmo, entrega-se a Deus e tudo espera da vontade de Deus —e, desse modo, aproxima-se da graça e da salvação. Considerado em si mesmo, ou seja, sem o Espírito de Deus, “o reino do Diabo”, é “um caos confuso de o gênero humano é trevas”, O arbítrio humano é sempre e somente “escravo”: de Deus ou do Demônio. Lutero compara a vontade humana a um cavalo que ge encontra entre dois cavaleiros, Deus e o Demônio: tendo Deus sobre o dorso, quer andar e vai aonde Deus quiser; tendo no dorso o Demônio, anda e vai aonde quer o Demônio. Ela não possui sequer a faculdade de escolher entre os dois cavaleiros: são eles que disputam entre si o direito de cavalgá-la. E, a quem acha “injusta” essa sorte do homem, que desse modo fica predestinado, Lutero responde com uma doutrina extraída do voluntarismo ocamista: Deus é Deus precisamente porque não precisa prestar contas daquilo que quer e faz, estando bem acima daquilo que parece justo ou injusto para o direito humano. Desse modo, natureza e graça ficam radicalmente separadas, assim como razão e fé. Quando age de acordo com a sua natureza, o homem outra coisa não pode fazer senão pecar; e, quando pensa de acordo com o seu intelecto, outra coisa não pode fazer senão errar. As virtudes e o pensamento dos antigos são vícios e erros. n2 O Renascimento e religião Nenhum esforço humano pode salvar o homem, mas somente a graça e a misericórdia de Deus. Essa é a única certeza que, segundo Lutero, nos dá a paz. 1.3. Ulrich Zuínglio, o reformador de Zurique Ulrich Zuínglio (1484-1531) foi inicialmente discípulo de Erasmo. E, apesar de um rompimento formal que teve com ele, permaneceu profundamente ligado à mentalidade humanista. Aprendeu o grego e o hebraico e estudou não somente a Escritura, mas também os pensadores antigos, como Platão e Aristóteles, Cícero e Sêneca, Pelo menos no início de sua evolução espiritual, compartilhou a convicção de Ficino e Pico sobre a revelação estendida universalmente, mesmo fora da Bíblia. Em 1519, começou a sua atividade de pregador luterano na Suíça. Zuínglio era ativo defensor das teses fundamentais de Lutero, particularmente das seguintes: a) a Escritura é a única fonte de verdade; b) o Papa e os concílios não possuem uma autoridade que vá além da autoridade das Escrituras; c) a salvação ocorre pela fé e não pelas obras; d) o homem é predestinado. Separavam Zuínglio de Lutero, além de algumas idéias teológicas (em particular sobre os sacramentos, aos quais ele dava um valor quase que simbólico), também a cultura humanista, com fortes elementos de racionalismo, e um marcado nacionalismo helvético (que, inconscientemente, o levou a privilegiar os habitan- tes de Zurique, como se eles fossem os eleitos por excelência). Para dar uma idéia concreta da derivação da doutrina zuingliana em sentido humanista-filosófico, escolhemos dois pon- tos muito importantes: a questão do pecado e da conversão e a retomada de temáticas ontológicas de caráter panteísta. No que se refere ao pecado, Zuínglio reafirma que ele tem a sua raiz noamor por si próprio (egoísmo). Tudo aquilo que o homem faz enquanto homem é determinado por esse amor por si próprio, sendo, portanto, pecado. A conversão é uma “iluminação da men- te”. Eis as palavras precisas de Zuínglio: “Os que têm confiança em Cristo tornaram-se homens novos. De que modo? Talvez deixando o antigo corpo para assumir um novo? Certamente que não: o velho corpo permanece. Assim, permanece também a doença? Permanece. O que é então renovado no homem? A mente. E de que modo? Deste modo: antes, ela era ignara de Deus e, onde há ignorância de Deus, nada mais existe que carne, pecado, estima por si próprio; depois de-reconhecer a Deus, o homem compreende-se verdadeiramente asi mesmo, interna e exatamente. E, depois de se ter conhecido, se despreza. Então, ocorre que passa a reputar como não tendo nenhum valortodas as suas obras, inclusive aquelas que costumava Zuínglio e Calvino 113 considerar boas até aquele momento. Assim, portanto, quando a mente humana reconhece a Deus através da iluminação da graça celeste, o homem torna-se novo” (tradução de C. Gallicet Calvetti). A ênfase na iluminação da mente mostra com bastante evidência atentativa de recuperação das faculdades racionais do homem (nos precisos limites que indicamos). No que se refere ao segundo ponto, é interessante destacar que Deus volta a ser concebido em sentido ontológico como Aquele- que-é por sua própria natureza e, portanto, como fonte daquilo que existe. Mas, para Zuínglio, o ser das coisas nada mais é do que o ser de Deus, dado que Deus tirou o ser das coisas (quando as criou) de sua própria essência. Por isso, diz Zuínglio: (...)pois o ser das coisas não deriva de Deus como se o seu existir e a sua essência fossem diferentes dos de Deus, daí decorre que, no que se refere à essência eâ existência, não há nada que não seja divindade: esta, com efeito, é o ser de todas as coisas.” Para Zuínglio, a predestinação se insere em um contexto determinista, sendo considerada um dos aspectos da providência. Há um sinal seguro para reconhecer os eleitos, sinal que, precisa- mente, consiste em ter fé. Enquanto eleitos, os fiéis são todos iguais. A comunidade dos fiéis se constitui também como comuni- dade política. Assim, a Reforma religiosa desembocava em uma concepção teocrática, sobre a qual pesavam ambigtiidades de diversos tipos. Zuínglio morreu em 1531, combatendo contra as tropas dos cantões católicos. A ira de Lutero contra ele, que começou tão logo Zuínglio deu sinais de autonomia, não cessou nem mesmo com a sua morte, que ele assim comentou: “Zuínglio teve o fim de assassino (...); ameaçou com a espada e teve a sorte que merecia.” Lutero havia afirmado solenemente (com as palavras do Evangelho) que “quem usar a espada, perecerá com a espada”, pois a espada não deveria ser usada em defesa da religião. Mas já em 1525 ele havia exortado Filipe de Hessen a reprimir com sangue os campo- neses revoltados sob a liderança de Thomas Miúntzer, que fôra convertido por ele e nomeado pastor de uma localidade da Saxônia. Aespiral da violência já se tornara incontível: o germe das guerras religiosas estava se difundindo fatalmente e iria se tornar uma das maiores calamidades da Europa moderna. 1.4. Calvino e a reforma de Genebra Jean Cauvin nasceu em Noyon, na França, em 1509, for- mando-se sobretudo em Paris, onde sofreu especialmente as in- fluências humanistas do cfreulo de Jacques Lefevre d'Etaples n4 O Renascimento e religião ulensis, 1455-1536). O seu destino, porém, esteve Ed à dado de "Genebra, onde atuou sobretudo entre 1541 e 1564, ano de sua morte, e onde soube realizar um governo teo. crático inspirado na Reforma, muito rígido tanto em re ação à vida religiosa e moral dos cidadãos como, sobretudo, em relação es. o cos isso já foi definido como o mais dinâmico dentre todos os tipos de protestantismo. Mais pessimista que Lutero à respeito do homem, Calvino foi mais otimista que elea respeito « e Deus. Enquanto, para Lutero,o texto básico erao de Mateus 9,2 (Cos teus pecados te são perdoados”), já para Calvino, ao contrário, era o da Epístola aos Romanos 8,81: “Se Deus está conosco, quem ra nós?” estará E Calvino se convenceu de que Deus estava com ele ao construir a “Cidade dos eleitos” na terra, que foi Genebra, o novo Israel de Deus. Escreve R. H. Bainton (in La Riforma protestante, Einaudi, Turim): “Para Calvino, a doutrina da eleição era um indizível conforto”, porque liberta o homem de todas as angústias e preocupações, “de modo que possa consagrar toda a sua energia ao serviço indefectível de Deus soberano. Assim, o calvinismo educou uma raça de heróis.” E eis como Bainton resume o fim dos calvinistas: “A sua tarefa era a de instaurar uma teocracia, isto é, uma república dos santos, uma coletividade em que cada membro não tivesse outro pensamento além da glória de Deus. Não era uma coletividade governada pela Igreja ou pelo clero, nem uma goma nidade de tipo bíblico em sentido estrito, porque Deus é maior do que qualquer livro, mesmo tratando-se do livro que contém a sua palavra. À coletividade dos santos deveria se distinguir por aquele paralelismo entre Igreja e Estado que havia sido o ideal da Idade Média e de Lutero, mas que nunca se concretizara e não podia se concretizar senão em uma coletividade seletíssima (como ele havia tentado formar em Genebra), na qual o clero e o laicato, o conselho comunitário e os ministros de Deus fossem todos, igualmente, inspirados pelo espírito divino. Calvino aproximou-se da concre- tização desse ideal mais do que qualquer outro expoente religioso do século XVI” o A doutrina de Calvino encontra-se sobretudo nalnstituição da religião cristã, da qual publicou numerosas edições a partir de 1536, em latim e em francês. o . Como Lutero, Calvino tinha a convicção de que à salvação está somente na Palavra de Deus, revelada na Sagrada Escritura. Qualquer representação de Deus que não derive da Bíblia, mas sim da sabedoria humana, é um vão produto de fantasia, um mero ídolo. A inteligência e a vontade humana foram irreparavelmente comprometidas pelo pecado de Adão, de modo que a inteligência Zuínglio e Calvino 15 deforma o verdadeiro e a vontade tende para o mal. Mais precisa- mente, explica Calvino, o pecado original reduziu e enfraque- ceu (ainda que não tenha retirado inteiramente) os dons na- turais do homem, enquanto eliminava completamente os dons sobrenaturais. Também como Lutero, Calvino insiste no “servo arbítrio”, apresentando a obra da salvação, que ocorre unicamente pela fé, como obra do poder de Deus. Se nós pudéssemos realizar atémesmo a menor ação por nós mesmos, por meio do nosso livre-arbítrio, então Deus não seria plenamente o nosso Criador. Mas, bem mais que Lutero, Calvino insiste na predestinação e amplia o sentido da onipotência do querer divino a ponto de subordinar quase inteiramente a ele os quereres e as decisões do homem. Ele substitui o determinismo de tipo estóico, que é de caráter naturalista e panteísta, por uma forma de determinismo teísta e transcendentalista tão extrema quanto aquela. Assim, “providência” e “predestinação” constituem os dois conceitos cardeais do calvinismo. Em certo sentido, a Providência é o prosseguimento do ato de criação e sua ação se estende a todos, não só no geral, mas também no particular, sem qualquer limite: “Deus €...), pelo seu conselho secreto, governa totalmente todo o real, a tal ponto que nada acontece sem que ele próprio o tenha determinado, em con- formidade com a sua sabedoria e o seu querer.” Desse modo, Calvino leva o seu determinismo teológico às consequências mais extremas: “Todas as criaturas, inferiores e superiores, estão de tal modo postas a seu serviço que ele as utiliza para o uso que quiser.” E, ademais, ainda explicita: “Ele não tem em seu poder apenas os acontecimentos naturais, mas também governa o coração dos homens, volta arbitrariamente suas vontades para cá e para lá e guia de tal modo as suas ações que eles só podem realizar aquilo que ele decretou” (tradução de C. Gallicet Calvetti). Jáa predestinação é “o eterno conselho de Deus, pelo qual ele determinou aquilo que queria fazer de cada homem. Com efeito, Deus nãoos criou a todos em iguais condições, mas ordena uns para a vida eterna e outros para a eterna danação. Assim, conforme fim para o qual o homem foi criado, nós dizemos que ele foi predesti- nado para a morte ou para a vida”. É simplesmente absurdo procurar a causa de tal decisão de Deus: ou melhor, a causa é a livre vontade do próprio Deus, “não podendo ser pensada nenhuma lei e nenhuma norma melhor e mais justa do que a sua vontade”. O próprio pecado original de Adão não apenas foi permitido por Deus como também ele o quis e o determinou. Isso só pode parecer absurdo para aqueles que não temem a Deus e não 120 O Renascimento e a religião veram na Igreja em virtude dessa reação e de sua concretização é que se dá o nome de Contra-reforma.” A Contra-reforma apresenta um aspecto doutrinário que se expressa na condenação aos erros do protestantismo e na formu- lação positiva do dogma católico. Mas também se manifesta numa forma peculiar de viva militância, sobretudo a propugnada por Inácio de Loyola e da Companhia de Jesus por ele fundada (e reconhecida oficialmente pela Igreja em 1540). A Contra-reforma manifestou-se também sob a forma de medidas restritivas e constritivas, como, por exemplo, a instituição da Inquisição ro- mana em 1542 e a compilação do Index dos livros proibidos. (Sobre este último ponto, deve-se recordar que a imprensa havia se tornado o mais formidável instrumento de difusão das idéias dos protestantes, daí a contra-medida do Index.) Segundo Jedin, a conexão entre a “Reforma católica” e a “Contra-reforma” está na função central do papado: “Renovado in- ternamente, o papado torna-se promotor da Contra-reforma e im- pele as forças religiosas a reagirem contra a inovação com os meios políticos existentes. Para os papas, os decretos do Concílio de Trento são um meio para atingir o objetivo e a ordem dos jesuítas, um instrumento verdadeiramente poderoso em suas mãos.” Alguns historiadores parecem propensos a deixar de lado a distinção entre os conceitos de “Reforma católica” e “Contra- reforma”. Mas Jedin tem bons motivos para sustentar a sua manutenção, visto que eles expressam as duas faces diversas do fenômeno. Está claro que numa série de acontecimentos, os dois movimentos são inseparáveis e procedem paralelamente, mas nem por isso eles se confundem. Eis um texto no qual Jedin resume com exemplar clareza a diferença entre os conceitos historiográficos de “Reforma” e “Contra-reforma” e sua complementaridade: “Parece- me (...) necessário manter a dualidade de conceitos. A história da Igreja necessita dela para manter separadas duas linhas de desenvolvimento que são dessemelhantes em sua origem e em sua essência: a espontânea, baseada na continuidade da vida interna, e a dialética, provocada pela reação contra o protestantismo. Na Reforma católica, a ruptura religiosa tem somente uma função desagregadora; já na Contra-reforma, ela age como impulso. No conceito de 'restauração católica”, a primeira das duas funções não é suficientemente valorizada, porque falta o paralelismo com a Reforma protestante; a segunda é valorizada ainda menos, justa- mente porque a ação recíproca que existe entre a ruptura religiosa eo desenvolvimento da Igreja católica é completamente ignorada. O conceito de 'Contra-reforma' a coloca em evidência, mas subes- tima o elemento de continuidade. Se quisermos compreender o desenvolvimento da história da Igreja no século XVI, devemos O Concílio de Trento 121 levar sempre em conta esses elementos fundamentais: o elemento da continuidade, expresso no conceito de “Reforma católica”, e o elemento da reação, expresso no conceito de 'Contra-reforma'.” Por isso, diante da pergunta de se devemos falar de “Reforma católica” ou de “Contra-reforma”, Jedin responde: “Não se deve dizer Re- forma católica ou Contra-reforma', mas sim Reforma católica e Contra-Reforms”. A Reforma católica é a reflexão sobre si mesma realizada pela Igreja tendo em vista o ideal de vida católica que pode ser alcançado através de uma renovação interna; a Contra- Reforma é a auto-afirmação da Igreja na luta contra o pro- testantismo. A reforma católica baseia-se na auto-reforma dos seus membros na tardia Idade Média, cresceu sob o estímulo da apos- tasia e chegou à vitória através da conquista do papado, a organi- zação e a concretização do Concílio de Trento: é a alma da Igreja retomada em seu vigor, ao passo que a Contra-reforma é o seu corpo. À Reforma católica armazenou as forças que depois foram descarregadas na Contra-reforma. E o ponto em que ambas se interligam é o papado. A ruptura religiosa subtraiu à Igreja forças preciosas, aniquilando-as, mas também despertou aquelas forças que ainda existiam, aumentando-as e fazendo com que lutassem até o fim. Ela foi um mal, mas um mal do qual também nasceu algo de positivo. Nos dois conceitos de “Reforma católica” e de Contra- reforma' estão incluídos também os efeitos que a elas se seguiram.” 2.2. O Concílio de Trento A Igreja católica conta hoje com vinte e um concílios, do Concílio de Nicéia, em 325, ao Vaticano II, de 1962 a 1965. Entre todos esses concílios, o de Trento (que foi o décimo-nono), realizado de 1545 a 15683, é certamente um dos mais importantes, sendo talvez aquele que goza de maior notoriedade, embora não tenha sido o mais numeroso nem o mais faustoso e embora a sua própria duração tenha que ser redimensionada drasticamente, conside- rando-se o número dos anos de interrupção (de 1548 a 1551 e, depois, de 1552 a 1561). Com efeito, a sua importância na história da Igreja foi muito grande e a sua eficácia bastante notável. A importância desse concílio está no fato de que ele a) tomou. uma clara posição doutrinária acerca das teses dos protestantes e b) promoveu a renovação da disciplina da Igreja, tão invocada pelos cristãos há muito tempo, dando precisas indicações sobre a for- mação e o comportamento do clero. Sobre este último ponto, para dar uma idéia do espírito reformador que animava o concílio, podemos citar o cânon 1 do “Decreto de Reforma” (sessão XXII, 17 de setembro de 1562): “Não há outra coisa que estimule mais assiduamente e com maior força 122 O Renascimento e a religião os outros à piedade e ao culto a Deus do que a vida e o exemplo daqueles que se dedicaram ao divino ministério. Com efeito, vendo- os desapegados das coisas do mundo e em um mundo mais elevado, og outros olham para eles como para um espelho, deles extraindo o exemplo a ser imitado. Por isso, é absolutamente necessário que os clérigos, chamados a terem Deus como destino, dêem às suas vidas, aos seus costumes, aos seus hábitos, aos seus modos de comportamento, de caminhar, de falar e a todas as outras suas ações um tom tal que não apresentem nada que não seja grave, moderado e pleno de religiosidade. Evitem inclusive as faltas leves, que neles pareceriam gravíssimas, para que suas ações possam inspirar veneração a todos.” As instâncias contidas nas queixas, verdadeiramente maciças, que eram feitas contra os maus costu- mes do clero medieval tardio e renascentista encontram aqui uma perfeita acolhida e se concretizam de modo bastante preciso em outros cânones do decreto. Deve-se destacar também que, no Concílio de Trento, a Igreja readquire a plena consciência de ser Igreja, de “cuidado com as almas” e de missão, propondo-se a si mesma como objetivo preci- so o seguinte: “Salus animarum suprema lex esto.” Essa é uma reviravolta histórica basilar, que Jedin analisa do seguinte modo: “Estamos diante de uma reviravolta que, na história da Igreja, tem o mesmo significado que as descobertas de Copérnico e Galileu têm para a imagem do mundo elaborada pelas ciências naturais.” No que se refere ao primeiro ponto que mencionamos, que aqui é o que interessa mais, deve-se notar o que segue. Os documentos do concílio fazem uso de termos e concei- tos tomistas e escolásticos com parcimônia e cautela: como foi bem notado por diversos atentos intérpretes, o metro com que se medem as coisas é o da fé da Igreja e não o de escolas teológicas em particular. Eles respondem sobretudo às questões de fundo suscitadas pelos protestantes, ou seja, a justificação pela fé, a questão das obras, a predestinação e, com grande amplitude, a questão dos sacramentos, que os protestantes tendiam a reduzir somente ao batismo e à Eucaristia (em especial, reafirmam a doutrina da transubstanciação eucarística, segundo a qual, a substância do pão e do vinho se transforma em carne e sangue de Cristo; já Lutero falava de consubstanciação, o que implicava a permanência do pão e do vinho, mesmo realizando-se.a presença de Cristo, ao passo que Zuínglio e Calvino tendiam a uma interpretação simbólica da Eucaristia), bem como reafirmam o valor da tradição. Nustrando alguns desses pontos, citaremos trechos de al- guns dos mais significativos documentos do concílio. Sobre a justificação da fé, diz o concílio: “As causas dessa justificação são: O Concílio de Trento 123 acausa final é constituída pela glória de Deus e de Cristoe pela vida eterna; a causa eficiente é a misericórdia de Deus, que gratuitamente lava e santifica, marcandó e ungindo com o Espírito da promessa, o santo que é penhor de nossa herança; a causa meritória é o seu dileto unigênito e nosso Senhor Jesus Cristo, que, embora sendo nós seus inimigos, pelo infinito amor com que nos amou, fez com que merecêssemos a justificação com a sua santíssima paixão sobre o madeiro dacruze, pornós, satisfez o Deus Pai. A causainstrumental é o sacramento do batismo, que é o sacramento da fé, sem a qual nunca é concedida a ninguém a justificação. Finalmente, a única causa formal é a justiça de Deus, não certamente aquela pela qual ele é justo, mas aquela pela qual nos torna justos. Com ela, isto é, por seu dom, somos renovados interiormente no espírito e não apenas somos considerados justos como também somos chamados tais e o somos de fato, recebendo em nós, cada qual, a própria justiça, à medida que o Espírito Santo a distribuiu aos indivíduos como quer e segundo a disposição e a cooperação próprias de cada um. Com efeito, embora ninguém possa ser justo, a não ser aquele ao qual são transmitidos os méritos da paixão de nosso Senhor Jesus Cristo, isso, no entanto, nessa justificação do pecador, se realiza quando, por. mérito da própria santíssima paixão, o amor de Deus é difundido pelo Espírito Santo no coração daqueles que são justificados e os inclui, Por essa razão, na própria justificação, juntamente com a remissão dos pecados, o homem recebe todos esses dons por meio de Jesus Cristo, no qual se inseriu: a fé, a esperança e a caridade. Com efeito, se à fé não se agregar também a esperança e a caridade, ela não une perfeitamente a Cristo nem nos torna membros vivos do seu corpo. Por esse motivo, é absolutamente verdadeiro afirmar que, sem as obras, a fé é morta e inútil e que, em Cristo, não valem nem a circuncisão nem a ineircuncisão, mas sim a fé operante por meio da caridade.” A propósito da “gratuidade” da justificação pela fé, o concílio precisa: “Quando, ademais, o Apóstolo diz que o homem é justifi- cado pela fé e gratuitamente, essas palavras devem ser entendidas segundo a interpretação aceita e manifestada pelo concorde e permanente juízo da Igreja católica, isto é, que somos justificados mediante a fé, porque a fé é o princípio da salvação humana, o fundamento e a raiz de toda justificação, sem a qual é impossível agradar a Deus e alcançar a comunhão que seus filhos têm com ele. Diz-se ainda que nós somos justificados gratuitamente porque nada daquilo que precede a justificação — tanto a fé como as obras — merece a graça da justificação, pois, com efeito, ela é pelagraça, não é pelas obras, caso contrário (como diz o próprio Apóstolo) a graça não seria mais graça.” Tiziano Vecellio, O Concílio de Trento (1545-1563). Esse concílio assinala a mais significativa reviravolta da Igreja nos tempos modernos. A escolástica renascentista 125 Sobre a observância dos mandamentos e sobre as “obras” afirma o concílio: “Ademais, ninguém, por mais justificado que esteja, deve se considerar livre da observância dos mandamentos, ninguém deve fazer sua aquela expressão temerária e proibida pelos Padres sob pena de excomunhão, isto é, a de que é impossível para o homem justificado observar os mandamentos de Deus. Com efeito, Deus não ordena o impossível. Mas, quando ordena, adverte que se faça aquilo que se pode e pedir aquilo que não se pode — e nos ajuda para que possamos. Os seus mandamentos não são gravosos, o seu jugo é suave e o seu peso é leve. Com efeito, aqueles que são filhos de Deus amam a Cristo e aqueles que o amam (como ele próprio diz) observam as suas palavras, coisas que, com a ajuda de Deus, certamente podem fazer. Com efeito, nesta vida mortal, por mais santos e justos que sejam, algumas vezes eles caem em faltas leves e cotidianas, que também são ditas veniais, nem por isso deixam de ser justos. E é própria dos justos a expressão, humilde e verdadeira: “Perdoa as nosssas dívidas.” ” E ainda: “Agora, para os homens justificados desse modo, tanto os que conservaram a graça recebida como os que, depois de tê-la perdido, a recuperaram, devem-se propor as palavras do Apóstolo: 'Abundai nas obras boas, sabendo que vosso trabalho no Senhor não é em vão. Com efeito, ele não é injusto e não esquece aquilo que fizestes, nem o amor que demonstrastes por seu nome.” E: “Não abandoneis portanto a vossa confiança, para a qual está reservada uma grande recompensa.” Por isso, àqueles que agem bem até o fim e têm esperança em Deus deve-se propor a vida eterna, seja como graça prometida misericordiosamente aos filhos de Deus pelos méritos de Jesus Cristo, seja como recompensa a ser dada fielmente, pela promessa do próprio Deus, por suas boas obras e seus méritos. Com efeito, essa é aquela coroa da justiça que, depois de sua luta e de sua corrida, o Apóstolo dizia ter sido reservada para ele e que lhe seria dada pelo justo juiz, não somente a ele, mas também a todos aqueles que amam a sua vinda.” Por fim, a propósito da Eucaristia, diz o concílio: “Como Cristo, nosso redentor, disse que era verdadeiramente o seu corpo que ele dava sob a espécie do pão, por isso sempre foi convicção da Igreja de Deus — e agora este santo concílio o declara novamente — que, com a consagração do pão e do vinho, se opera a transfor- mação de toda a substância do pão na substância do corpo de Cristo, nosso Senhor, e de toda a substância do vinho na substância do seu sangue, Essa transformação, portanto, de modo adequado e pró- prio, é chamada pela santa Igreja católica de transubstanciação.” 2.3. O novo ímpeto da escolástica Lutero foi um duro adversário, não apenas de Aristóteles, mas também do pensamento tomista e escolástico em geral. As 130 O Renascimento e a política coisas são muito difíceis de ser conciliadas e, assim, o príncipe deve fazer a escolha mais funcional para o governo eficaz do Estado. 8.1.3. A “virtude” do príncipe Os dotes do príncipe, que emergem muito bem desse quadro, são chamados por Maquiavel de “virtudes”. Obviamente, a “vir- tude” política de Maquiavel nada tem a ver com a “virtude” em sentido cristão. Ele usa o termo retomado da antiga acepção grega de areté, ou seja, a virtude como habilidade entendida natural- mente. Aliás, trata-se da areté grega como era concebida antes da espiritualização que Sócrates, Platão e Aristóteles nela realiza- ram, transformando-a em “razão”. Em particular, ela recorda o conceito de areté cultivado especialmente por alguns sofistas. Nos humanistas, esse conceito aparece várias vezes, mas Maquiavel leva-o às suas extremas consequências. L. Firpo a descreveu muito bem: “Virtude é vigor e saúde, astúcia e energia, capacidade de prever, planejar e constranger. É, sobretudo, vontade que barra as águas transbordantes dos acon- tecimentos, que impõe regra — sempre parcial e, infelizmente, caduca — ao caos, que constrói com invencível tenacidade a ordem em um mundo que desaba e se desagrega perpetuamente. O homem comum é vil, indigno de confiança, ávido e insensato; não persevera nos propósitos; não sabe resistir, empenhar-se e sofrer para alcançar uma meta; tão logo o aguilhão ou o chicote caem das mãos do dominador, as fracas turbas livram-se da carga, escapo- lem e traem. Também na grande tradição medieval da política cristã o homem decaído e pecaminoso, na terra, era confiado ao poder civil, portador da espada, para que os prevaricadores ficas- sem sob o controle de uma força material inexorável: mas aquela força se justificava tendo em vista a salvação dos bons e graças à divina investidura dos soberanos, feitos instrumentos de uma severidade moralizadora. Aqui, no entanto, é a massa inteira dos homens que mergulha na maldade obtusa, ao passo que a virtude — que dá e justifica o poder — não tem nada de sagrado, pois constringe e edifica, mas não educa e não redime ” 8.14. Liberdade e “destino” E essa virtude sabe se contrapor ao “destino”. Assim, com Maquiavel, retorna o tema do contraste entre “liberdade” e “des- tino”, tão caro aos humanistas. Muitos consideram que o destino seja a razão dos acontecimentos e que, portanto, é inútil se esforçar para impor-lhe uma barreira, sendo melhor deixar-se guiar por ele. Maquiavel confessa ter sentido a tentação de acomodar-se a essa opinião. Mas a sua solução é a seguinte: metade das coisas humanas dependem da sorte, a outra metade da virtude e da Guicciardini e Botero 131 kiberdade. Ele escreve: “Não por acaso, mas para que o nosso livre- arbítrio não desapareça, julgo poder ser verdade que a sorte seja árbitra de metade de nossas ações, mas que, etiam, ela nos deixe governar a outra metade, ou quase, a nós.” E, com uma imagem que se tornou muito famosa (um típico reflexo da mentalidade da época), depois de mencionar poderosos exemplos de força e virtude que barraram o curso dos acontecimentos, Maquiavel escreve: “Porque a sorte é mulher. E, querendo mantê-la sob domínio, é necessário bater-lhe e espancá-la. O que se vê é que ela deixa-se mais vencer por estes (= os temperamentos impetuosos) do que por aqueles que procedem friamente. E sempre, como mulher, é amiga dosjovens, porque são menosrespeitosos, mais ferozes ea dominam com mais audácia.” 3.1.5. A “virtude” da antiga República romana O ideal político de Maquiavel, porém, não é o príncipe por ele descrito, que é muito mais uma necessidade do momento histórico, mas sim o da República romana, baseada na liberdade e nos bons costumes. Descrevendo essa República, ele parece flexionar em novo sentido o seu próprio conceito de “virtude”, particularmente quando discute a antiga questão de se o povo romano foi mais favorecido pela sorte do que pela virtude na conquista do seu Império: então, responde, sem sombra de dúvida, pela demonstra- ção de que “mais pôde a virtude do que a sorte para que eles conquistassem aquele Império”. 3.1.6. Guicciardini e Botero Uma ordem de idéias análoga à de Maquiavel sobre a natureza do homem, a virtude, a sorte e a vida política pode ser encontrada em Francisco Guicciardini (1482-1540), particular- mente nas suas Recordações políticas e civis (concluídas em 1530). Mas, mais que à dimensão histórica, Guicciardini parece sensível à dimensão do “particular”. Dois de seus pensamentos ficaram muito conhecidos. O primeiro é o de que gostaria de ver realizados três desejos antes de morrer: 1) viver em uma república bem ordenada; 2) ver a Itália libertada dos bárbaros; 3) ver o mundo libertado da tirania dos padres. No outro, com poucas pinceladas, traça um esplêndido auto- retrato espiritual: “Eu não sei a quem desgostem mais que a mim a ambição, a avareza e a moleza dos padres: porque cada um desses vícios, em si, já é odioso; porque cada um e todos juntos pouco convêm a quem faz profissão de vida ligada a Deus; porque, ainda, são vícios tão contrários que não podem estar juntos senão em um sujeito muito estranho. Não obstante, o contato que tive com muitos pontífices levou-me, por minha conta particular, a amar a sua 132 O Renascimento e a política grandeza. Se não fosse esse respeito, teria amado Martinho Lutero como a mim mesmo, não para libertar-me das leis impostas pela religião cristã, no modo como é interpretada e comumente enten- dida, mas para ver essa caterva de celerados reduzida aos devidos termos, isto é, para que ficasse sem vícios ou sem autoridade.” A doutrina de Maquiavel foi resumida por ele na fórmula “os fins justificam os meios”, fórmula que, se não faz justiça à efetiva estatura do pensamento do autor de O Príncipe, no entanto explicita uma das lições que a época moderna extraiu de sua obra. Também de Maquiavel deriva a noção de “razão de Estado”. Uma rica literatura, constituída de obras de vários gêneros e variada consistência, floresceu em torno desses aspectos do pensamento de Maquiavel, destacando-se entre elas a obra de João Botero (1544-1617) intitulada Sobre a razão de Estado, que visa temperar o crurealismo maquiavélico através de efetiva referência à incidência dos valores morais e religiosos. 3.2. Tomás More e a Utopia Tomás More nasceu em Londres em 1478. Foi amigo e discípulo de Erasmo e humanista de estilo elegante. Participou ativamente da vida política, exercendo altos cargos. Firme em sua fé católica, recusou-se a reconhecer Henrique VIII como chefe da Igreja, sendo por isso condenado à morte em 1535. Somente em nosso século é que foi proclamado santo (por Pio XI). Aobra que deu fama imortal a More foi a Utopia, um título elevado a denominação de um gênero literário antiquíssimo, muito usado antes e depois de More, representando uma dimensão do espírito humano que, através da representação mais ou menos imaginária daquilo que não existe, apresenta aquilo que deveria ser ou como o homem gostaria que a realidade fosse. Otermo “utopia” (do grego ou = não etopos = lugar) indica um “lugar que não existe” ou, ainda, “aquilo que não existe em nenhum lugar”. Platão já se havia aproximado muito dessa indicação, escrevendo que a cidade perfeita por ele descrita na República não existe “em nenhuma parte sobre a terra”. Mas foi necessária a criação semântica de More para preencher essa lacuna lingúística. O enorme sucesso do termo mostra o quanto dele necessitava o espírito humano. Deve-se notar como More reafirma essa di- mensão do “não existir em nenhum lugar”: a capital de Utopia chama-se Amauroto (do grego amaurós = evanescente), que quer dizer “cidade que se esvanesce como uma miragem”, o rio de Utopia chama-se Anidro (do grego anydros = privado de água), ou seja, um rio que não é rio de água, mas rio sem água; já o príncipe chama- se Ademo (formado por um alfa privativo e demos, que significa More: a utopia política 133 “povo”), que significa o chefe que não tem povo. Trata-se, eviden- temente, de jogos linguísticos que visam a reforçar a tensão entre o real e o irreal e, portanto, o ideal, do qual a Utopia é expressão. A fonte em que More se embebeu foi, naturalmente, Platão, com amplas infiltrações de doutrinas estóicas, tomistas e erasmia- nas. Na contraluz está a Inglaterra, com sua história, suas tra- dições e seus dramas sociais de então (a reestruturação do sistema agrícola, que privava de terra e trabalho uma grande quantidade de camponeses; as lutas religiosas e a intolerância; a insaciável sede de riquezas). . . Os princípios basilares que regem o relato (que é imaginado como narrado por Rafael Itlodeo, que, tendo participado de uma das viagens de Américo Vespúcio, teria visto a ilha de Utopia) são muito simples. More estava profundamente convencido (in- fluenciado nisso pelo otimismo humanista) de que bastaria seguir a sã razão e as mais elementares leis da natureza, que estão em perfeita harmonia com a razão, para acabar com os males que afligem a sociedade. . º A Utopia não apresenta um programa social a ser realizado, mas sim princípios destinados a terem uma função normativa: com hábeis jogos de alusões, apresentava os males da época e indicava os critérios com os quais deveriam ser curados. . O ponto-chave da questão está na ausência de propriedade privada. Platão, na República, já dizia que a propriedade divide os homens pela barreira do “meu” e do “teu” e que a “comunhão” dos bens refaz a unidade. Onde não existe a propriedade, nada é “meu” ou “teu”, mas tudo é “nosso”. E é em Platão que More se inspira, propondo a comunhão dos bens. no . Ademais, em Utopia, todos os cidadãos são iguais entre si. Desaparecem as diferenças de renda, desaparecendo então as diferenças de status social. E mais: os habitantes de Utopia se substituem de modo equilibrado nos trabalhos da agricultura edo artesanato, de modo a que não renasçam, em virtude da divisão do trabalho, também as divisões sociais. º O trabalho não é massacrante e não dura toda a jornada (como durava naquela época), mas sim seis horas diárias, para deixar espaço ao lazer e a outras atividades. . Em Utopia também existem sacerdotes dedicados ao culto e um lugar especial é garantido aos “literatos”, ou seja, aqueles que, nascendo com dotes e inclinações especiais, pretendem dedicar-se ao estudo, Os habitantes de Utopia são pacifistas, seguem prazeres sadios, admitem cultos diferentes, honram a Deus de diferentes modos e sabem se compreender e se aceitar reciprocamente nessas diversidades. Tomás More (1478-1535) foi o autor de “Utopia”, um dos mais conhecidos escritos da época renascentista, que se tornou muito célebre e cujo título foi assumido inclusive como denominação do gênero literário que representa e da dimensão fundamental do espírito que está em sua base. Bodin: o Estado soberano 135 Eis um texto conclusivo contra os ricos de todos os tempos e contra as riquezas (imagine-se o belíssimo paradoxo: seria tão mais fácil conseguir do que viver se isso não fosse impedido precisa- mente pela procura daquele dinheiro que, na intenção de quem o inventou, deveria servir justamente para nos facilitar naquele objetivo): “E, no entanto, esses funestos indivíduos, depois de, com avidez insaciável, dividirem entre si toda a massa de bens que dariam para todos, como estão distantes da felicidade de que se goza em Utopia! Lá, uma vez que foi sufocada inteiramente toda avidez por dinheiro, graças à abolição do seu uso, que caterva de incômodos foi jogada fora e que grande número de delitos foi cortado pela raiz! Quem pode ignorar que todos aqueles furtos, fraudes, assaltos, rixas, desordens, disputas, tumultos, assassínios, traições e envenenamentos, que as cotidianas execuções capitais conseguem punir, mas não refrear, logo desaparecem quando se retira da cena o dinheiro? E que, no mesmo instante, somem o medo, a ansiedade, as preocupações, os tormentos e as insônias? E que a própria pobreza, que parece sofrer penúria unicamente do dinheiro, tão logo este fosse inteiramente suprimido, também ela imediatamente se atenuaria? Para esclarecer melhor a questão, medita um pouco em teu coração sobre uma safra avara e de escassa colheita, durante a qual muitos milhares de pessoas morreram de fome: eu sustento decididamente que, ao fim dessa carestia, se os celeiros dos ricos fossem inspecionados, se encon- traria tal abundância de cereais que, distribuindo-os entre todos aqueles que deveriam sucumbir à fome e à doença, ninguém sofreria nem um pouco pela esterilidade do terreno e do clima. Como seria fácil nos garantirmos o sustento se não o impedisse pre- cisamente aquele bendito dinheiro, a refinadíssima invenção que deveria aplainar o caminho para que o obtivéssemos!” L.Firpo, com razão, disse que Utopia é um daqueles poucos livros dos quais se pode dizer que influenciaram o curso da história: “Com ele, o homem angustiado pelas violências e pelas dissipações de uma sociedade injusta erguia um protesto que nunca mais foi sufocado. Como o primeiro dos reformadores impotentes, fechados em um mundo muito surdo e muito hostil para ouvi-los, More ensinava a lutar no único modo concedido aos inermes homens de cultura, lançando aos séculos vindouros um apelo e delineando um programa destinado não a inspirar uma ação imediata, mas a fecundar as consciências. Desde então, aqueles lúcidos realistas que o mundo chama com o termo moreano “utópicos' fazem precisa- mente a única coisa que lhes é dada: como náufragos nas praias de remotas ilhas inóspitas, lançam aos pósteros uma mensagem dentro de uma garrafa.” Tomás More ( 1478-1535) foi o autor de conhecidos escritos da época renascentisti célebre e cujo título foi assumido inclusive gênero literário que representa e da di; ã en mensão fundam espírito que está em sua base. - na “Utopia”, um dos mais , que se tornou muito como denominação do Bodin: o Estado soberano 135 Eis um texto conclusivo contra os ricos de todos os tempos e contra as riquezas (imagine-se o belíssimo paradoxo: seria tão mais fácil conseguir do que viver se isso não fosse impedido precisa- mente pela procura daquele dinheiro que, na intenção de quem o inventou, deveria servir justamente para nos facilitar naquele objetivo): “E, no entanto, esses funestos indivíduos, depois de, com avidez insaciável, dividirem entre si toda a massa de bens que dariam para todos, como estão distantes da felicidade de que se goza em Utopia! Lá, uma vez que foi sufocada inteiramente toda avidez por dinheiro, graças à abolição do seu uso, que caterva de incômodos foi jogada fora e que grande número de delitos foi cortado pela raiz! Quem pode ignorar que todos aqueles furtos, fraudes, assaltos, rixas, desordens, disputas, tumultos, assassínios, traições e envenenamentos, que as cotidianas execuções capitais conseguem punir, mas não refrear, logo desaparecem quando se retira da cena o dinheiro? E que, no mesmo instante, somem o medo, a ansiedade, as preocupações, os tormentos e as insônias? E que a própria pobreza, que parece sofrer penúria unicamente do dinheiro, tão logo este fosse inteiramente suprimido, também ela imediatamente se atenuaria? Para esclarecer melhor a questão, medita um pouco em teu coração sobre uma safra avara e de escassa colheita, durante a qual muitos milhares de pessoas morreram de fome: eu sustento decididamente que, ao fim dessa carestia, se os celeiros dos ricos fossem inspecionados, se encon- traria tal abundância de cereais que, distribuindo-os entre todos aqueles que deveriam sucumbir à fome e à doença, ninguém sofreria nem um pouco pela esterilidade do terreno e do clima. Como seria fácil nos garantirmos o sustento se não o impedisse pre- cisamente aquele bendito dinheiro, a refinadíssima invenção que deveria aplainar o caminho para que o obtivéssemos!” L. Firpo, com razão, disse que Utopia é um daqueles poucos livros dos quais se pode dizer que influenciaram o curso da história: “Com ele, o homem angustiado pelas violências e pelas dissipações de uma sociedade injusta erguia um protesto que nunca mais foi sufocado. Como o primeiro dos reformadores impotentes, fechados em um mundo muito surdo e muito hostil para ouvi-los, More ensinava a lutar no único modo concedido aos inermes homens de cultura, lançando aos séculos vindouros um apelo e delineando um programa destinado não a inspirar uma ação imediata, mas a fecundar as consciências. Desde então, aqueles lúcidos realistas que o mundo chama com o termo moreano “utópicos' fazem precisa- mente a única coisa que lhes é dada: como náufragos nas praias de remotas ilhas inóspitas, lançam aos pósteros uma mensagem dentro de uma garrafa.” 136 O Renascimento e a política 8.8. João Bodin e a soberania absoluta do Estado Distante tanto dos excessos de realismo de Maquiavel como do utopismo de More, surgiu também João Bodin (1529/1530- 1596), com seus Seis livros sobre a república. Para existir o Estado, é preciso uma forte soberania, que mantenha unidos os vários membros sociais, ligando-os como em um só corpo. Mas essa forte soberania não se obtém com os métodos recomendados por Maquiavel, que pecam por imoralismo e por ateísmo, mas sim instaurando a justiça e recorrendo à razão e às leis naturais. Eis a célebre definição de Estado dada por Bodin: “Por Estado se entende o governo justo, que se exerce com poder soberano sobre diversas famílias e em tudo aquilo que elas têm em comum entre si? (Chamamos a atenção sobretudo para os termos que grifamos.) E eis a bela ilustração que ele nos apresenta: “Assim como o navio não passará de um madeiro se lhe forem retirados a lombada que lhe sustenta os flancos, a proa, a popa e o timão, da mesma forma o Estado já não será tal sem aquele poder soberano que mantém unidos todos os membros e partes dele, fazendo de todas as famílias e de todos os círculos um só corpo. E, para dar continuidade à semelhança, assim como um navio pode ser mutilado em diversas partes ou completamente queimado, da mesma forma um povo pode ser disperso por vários lugares e até totalmente destruído, mesmo permanecendo intacta a sua sede territorial. Com efeito, não é esta, nem a população, que forma o Estado, mas sim a união de um povo sob uma só senhoria soberana (..). Em suma, q soberania é o verdadeiro fundamento, o ponto cardeal sobre o qual se apóia toda a estrutura do Estado e do qual dependem to- das as magistraturas, leis e normas. Ela é o único laço e o único vínculo que faz de famílias, círculos, colegiados.e indivíduos um único corpo perfeito, que é precisamente o Estado” (tradução de M. Isnardi Parente). Por “soberania” Bodin entende poder absoluto e perpétuo, próprio de todo tipo de Estado. Tal soberania se exerce sobretudo no dar leis aos súditos sem o seu consentimento. Comojá dissemos, o absolutismo de Bodintem limites objetivos precisos nas normas éticas (a justiça), nas leis da natureza e nas leis divinas — e esses limites constituem também a sua força. A soberania que não respeitasse essas leis não seria soberania, mas sim tirania. Também se destaca o escrito de Bodin intitulado Colloquium heptaplomeres (Cológio entre sete pessoas), que tem por tema a tolerância religiosa e é imaginado desenvolver-se em Veneza entre sete seguidores de religião diferente: 1) um católico, 2) um seguidor Grotius: o jusnaturalismo 137 de Lutero, 3)um seguidor de Calvino, 4)umjudeu, 5) ummaometano, 6) um pagão e 7) um defensor da religião natural. A tese da obra é a de que (como havia sustentado o humanismo florentino) existe um fundamento natural que é comum a todas as religiões. Com essa base comum, seria possível um acordo religioso geral, sem sacrificar as diferenças (ou seja, aquele plus) próprias das religiões positivas. Assim, estando esse fundamento natural implícito nas diferentes religiões, aquilo que as une revela-se mais forte do que aquilo que as separa. 3.4. Hugo Grotius e a fundação do jusnaturalismo Entre os últimos lustros do século XVI e as primeiras décadas do século XVII, formou-se e se consolidou a teoria do direito natural, por obra do italiano Alberico Gentile (1552-1611) no escrito De iure belli (1558) e, sobretudo, do holandês Hugo Grotius (Huig de Groot, 1583-1645) no escrito De jure belli ac pacis (1625, reeditado com ampliações em 1646). Ainda se podem sentir as raízes humanistas de Grotius, mas ele já está encaminhado no rumo que iria levar ao moderno racionalismo, embora só o percorrendo parcialmente. Os fundamentos da convivência dos homens são a razão e a natureza, que coincidem entre si. O “direito natural”, que regula a convivência humana, possui esse fundamento racional-natural. Ele é “um ditame da reta razão, de modo que, segundo esteja em conformidade ou desconformidade com a própria natureza racio- nal, comporta necessariamente aprovação ou reprovação moral e que, consequentemente, é imposto ou vetado por Deus, autor da natureza”. Mas note-se a consciência ontológica que Grotius dá ao direito natural: ele se revela tão estável e alicerçado que o próprio Deus não poderia mudá-lo. Isso significa que o direito natural reflete a racionalidade, que é o próprio critério com que Deus criou o mundo e que, como tal, Deus não poderia alterar, a não ser se contradizendo, o que é impensável. Diferente do direito natural é o “direito civil”, que depende das decisões dos homens, e que é promulgado pelo poder civil. Ele tem como objetivo a utilidade e é sustentado pelo consentimento dos cidadãos. Avida, a dignidade da pessoa e a propriedade pertencem ao âmbito dos direitos naturais. O direito internacional baseia-se na identidade de nature- za entre os homens. Portanto, os tratados internacionais têm valor mesmo quando estipulados por homens de confissões dife- rentes, já que o fato de pertencer a fés diversas não modifica a natureza humana. 138 O Renascimento e a política O objetivo da punição às infrações aos direitos não deve ser punitivo, mas corretivo: não se pune quem errou porque errou, mas para que não erre mais (no futuro). E a punição deve ser, ao mesmo tempo, proporcional tanto à natureza do erro como à conveniência e à utilidade que se pretende tirar da própria punição. Retomando uma idéia do humanismo florentino, mas de forma mais racionalizada, Grotius sustenta haver uma religião natural comum a todas as épocas, a qual, portanto, encontra-se na base de todas as religiões positivas. Essa religião natural baseia- se em quatro pontos fundamentais: 1) Deus existe e é único; 2) Deus é superior em relação a todas as coisas visíveis e perceptíveis; 3) Deus é providência; 4) Deus é o criador de todas as coisas. Alguns intérpretes de Grotius viram na sua obra o triunfo de um novo tipo de mentalidade, de caráter racionalista-científico. Mas, com razão, L. Malusa sublinhou que “Grotius é muito mais ligado à concepção clássico-medieval e escolástica do direito na- tural do que à moderna”. Com efeito, a naturalização da lei divina que ele operou no De jure belli ac pacis “outra coisa não é do que a acentuação do aspecto jurídico (devido às preocupações acerca dos problemas da guerra) em relação ao aspecto teológico da lei natural, que, todavia como era para santo Tomás, continua sendo lei divina, critério objetivo e eterno”. Portanto, o racionalismo de Grotius é tal “como intelectualismo em contraposição ao voluntarismo (de tipo ocamista ou protestante) e não como afir- mação da estranheza (= autonomia) da razão humana em relação ao governo do mundo”, Segunda parte PONTOS CULMINANTES E RESULTADOS CONCLUSIVOS DO PENSAMENTO RENASCENTISTA Leonardo da Vinci, Telésio, Giordano Bruno e Campanella “É melhor a pequena certeza do que a grande mentira.” Leonardo da Vinci “Quem não é matemático, não me leia nem os meus princípios.” Leonardo da Vinci “Ainda que em nossa obra não houvesse nada de divino, nada digno de admiração e nem mesmo uma visão suficientemente aguda, não será no fato de que disséssemos algo que esteja em contraste consigo ou com as coisas, porque teremos seguido somente o senso e a natureza, a qual, sempre concorde consigo e sempre idêntica, age sempre do mesmo modo.” Bernardino Telésio “Não se exige do filósofo natural que apresente todas as causas e os princípios, mas somente as físicas — e, destas, as principais e próprias.” Giordano Bruno “Eu nasci para debelar três males extremos: tiranias, sofismas e hipocrisias.” Tomás Campanella 144 Renascimento italiano ainda estavam por vir. Tudo isso para dizer que, se é verdade que o conjunto das características da ciência moderna não pode ser encontrado em Leonardo, no entanto, algumas dessas caracterís- ticas fundamentais parecem se delinear em seu pensamento com bastante clareza. Esse parece ser o caso da idéia de experiência, bem como o caso da relação teoria-prática. , 1.3. “Cogitatione mentale” e “esperientia” Qual é, então, a idéia de experiência e de saber em Leonardo? Contrapondo-se à figura do “douto” de sua época, Leonardo gostava de se definir como “homem sem letras”. Mas ele havia fregiientado a bottega de Verrocchio, onde havia praticado muitas “artes mecá- nicas”. E exatamente a prática das “artes mecânicas” aprendidas em certas oficinas vinha fazendo emergir gradualmente um con- ceito de experiência que não era mais a empiria desarticulada dos praticantes das diversas artes nem o discurso puro e simples dos especialistas das artes liberais, privados de qualquer contato com operações, inspeções e aplicações no mundo da natureza. Aexperiên- cia que se realizava nas oficinas, como a de Verrocchioo, era precisamente um elemento para o qual vinham confluindo pro- gressivamente as artes mecânicas e liberais, como a geometria ou a perspectiva. Consegúentemente, Leonardo se revolta con- tra todos aqueles que consideram que o “senso” — ou seja, a sensação ou a observação — seja um obstáculo para a “física e sutil cogitação mental”. . Por outro lado, Leonardo tinha a convicção de que “nenhuma investigação humana pode-se considerar verdadeira ciência se não passar pelas demonstrações matemáticas”. Não basta a observa- ção nua e crua. E, na natureza, existem “infinitas razões” que nunca estiveram sob experiência”. Em suma, os fenômenos da natureza só podem ser compreendidos sob a condição de que lhes descubramos as razões. E essa descoberta é obra de discurso, de cogitatione mentale: é a razão que demonstra por que “tal expe- riência é forçada de tal modo a operar”. Em suma: “a natureza está cheia de infinitas razões que nunca estiveram sob experiência”; “todo o nosso conhecimento começa do sentido”, “os sentidos são terrenos, mas a razão está fora deles, quando contempla”. E aqueles que se enamoram da prática sem ciência são como o timoneiro que entra no navio sem timão e bússola, nunca tendo certeza para onde vai”. E prossegue Leonardo: “A ciência é o capitão, a prática os soldados.” E, quando se tem ciência das coisas, então, por um lado, essa ciência termina “em conhecida experiên- cia”, isto é, as teorias são confirmadas, e, por outro lado, permite todas aquelas realizações tecnológicas que Leonardo projeta com Leonardo: experiência e teoria 145 suas “máquinas”. Pois bem, observa Cassirer, “em toda essa cadeia de pensamentos, não constitui uma contradição, por um lado, insistir no fato de que tedo conhecimento começa com a sensação e, por outro lado, reconhecer à razão uma função própria, acima e fora da percepção. Essas duas posições são perfeitamente conciliá- veis, pelo menos para Leonardo (...). A especulação de Leonardo, evidentemente, tende a encontrar um conceito intermediário entre esses dois fatores fundamentais. Não devemos nos perder na consideração do particular, mas sim procurar compreender a lei geral que o supera e domina. No mar dos fatos particulares e dos dados práticos em particular, somente o conhecimento da lei nos possibilita a bússola, perdida a qual ficamos cegos e privados de timão. É a teoria que dá a direção à experiência” (E. Cassirer). E conclui Cassirer: desse modo, Leonardo teria “antecipado o “método resolutivo' de Galileu e da moderna ciência da natureza”. Essa também é a interpretação de Geymonat, que escreve: “De particularíssima importância é a sua (de Leonardo) concepção do saber científico e do método que se deve seguir para alcançá-lo. Do ponto de vista metodológico, ele pode ser considerado um precursor de Galileu, pela importância essencial atribuída tanto à experiência como à matemática; não se pode excluir, inclusive, que Galileu, na elaboração do seu método matemático-experimental, tenha sofrido a influência de Leonardo, ainda que indiretamente.” Entretanto, há uma interpretação contrária a essa: a de quem não pensa que experiência e matemática estejam tão facil- mente unidas no pensamento de Leonardo, que então não poderia em absoluto ser considerado “precursor” de Galileu. Enrico Bel- Ione, por exemplo, escreve: “Que Leonardo podemos reconstruir? Aquele que canta hinos às virtuosas capacidades da experiência ou aquele que as renega para celebrar os méritos da abstração matemática? Simplesmente devemos aceitar o primeiro e o segun- do: a oscilação entre os dois pontos cardeais metodológicos é a realidade de um Leonardo que procura compreender aquilo que observa, não a desagradável contradição que se deveria poder eliminar para nos restituir um Leonardo homogêneo, um Leonardo consciente da necessidade de estabelecer um núcleo metodológico como raiz ou causa de novas ciências (...). Na época de Leonardo, estavam em curso complexas mudanças no interior das formas de conhecimento, que ele tentava comentar por meio de rápidas anotações ou escarnecedores aforismos. As lacunas na consciência dessas mudanças constituem o sinal de que Leonardo é verdadei- ramente “filho do renascimento” e, enquanto tal, não é em absoluto alinhável entre as raízes de um Galileu.” E eis o que escrevia E. Garin, trinta anos atrás, sobre essa questão: “Certamente não foi ele (Leonardo) quem criou o método 146 Renascimento e teoria experimental e a síntese entre matemática e experiência ou a nova física, mas pode muito bem ser elevado a símbolo da passagem de uma profunda elaboração crítica, da qual por vezes ele compendia os resultados, à formulação de concepções renovadas.” Trata-se de interpretações que, saudavelmente preocupadas em não transplantar Leonardo para fora de seu ambiente e em não cair no erro sistemático da historiografia de antecipação, talvez corram o risco de desviar a atenção daquelas novidades — que existem — que, por mais de um aspecto, fazem de Leonardo um pensador excepcional para o seu próprio tempo. Entretanto, em oposição à autoridade e à tradição, Leo- nardo considera que a experiência é a grande mestra e que é na escola da experiência que nós podemos compreender a natureza, não através da transmissão e repetição das cópias esmaecidas que nos dão os livros (“a sabedoria é filha da experiência”), nem das grandes construções teóricas incontroláveis, que amiúde falam de magnos problemas (“é melhor a pequena certeza do que a grande mentira”). Diz Leonardo: “A mentira tem tanto vilipêndio que, se ela dissesse bem das coisas de Deus, estaria tolhendo graça à sua deidade; já a verdade é de tanta excelência que, se ela louvasse coisas mínimas, as estaria fazendo nobres. E a verdade é, em si, de tanta excelência que, mesmo se estendendo sobre humildes e baixas matérias, ela excede incomparavelmente as incertezas e mentiras estendidas sobre magnos e elevadíssimos discursos (...). Mastu, que vives de sonhos, gostas mais das razões sofísticas e das baleias nas coisas grandes e incertas do que das coisas naturais, mas não de tanta cultura.” Assim, para compreender a natureza, é preciso voltar à experiência. Em suma, não estaremos muito distantes da verdade se considerarmos que, para Leonardo, parte-se da experiência * problemática; com o discurso, descobre-se-lhe a razão; então, volta- se à experiência para comprovar os nossos discursos. Por isso, se a natureza produz efeitos com base em causas, o homem deve remontar dos efeitos às causas. E para esse “remontar às causas” precisa da “matemática”, a ciência que descobre relações de necessidade entre os vários fenômenos, isto é, aquelas razões “que nunca estiveram sob experiência”. Repete ainda Leonardo: “A necessidade é tema e inventora da natureza, é freio e norma eterna.” Consequentemente, afirma ele, “quem não é matemático, não me leia, nem aos meus princípios”. E ainda: “Quem censura a suma certeza da matemática enche-se de confusão e nunca imporá silêncio às contradições das ciências sofísticas, com as quais se aprende um eterno gritar.” A natureza é regulada por uma ordem mensurável que se encontra na relação causal entre os fenômenos: “E precisamente essa necessidade ecxclui toda força metafísica ou Telésio: vida e obras 147 mágica, toda interpretação que prescinda da experiência e queira submeter a natureza a princípios que lhe são estranhos. Essa necessidade, por fim, se identifica com a necessidade própria do raciocínio matemático, que expressa as relações de medida que constituem as leis. Entender a 'razão' da natureza significa en- tender aquela “proporção' que não se encontra só nos números enas medidas, mas também nos sons, nos pesos, nos tempos, nos espaços e em qualquer força natural” (N. Abbagnano). . Em mecânica, Leonardo se aproximou do princípio da inér- cia, “chegou a intuir o princípio de composição das forças e o princípio do plano inclinado, que ele assumiu como base para a explicação do vôo dos pássaros. O fato verdadeiramente maravi- lhoso é que, nele, essas intuições não permanecem em um plano exclusivamente teórico, mas se traduzem em tentativas de reali- zação ou, pelo menos, de projetos técnicos” (L. Geymonat). Compe- tente em hidráulica aplicada, Leonardo tinha claro o princípio dos vasos comunicantes. São numerosos os seus projetos de hidráulica, mas também na arte das fortificações, na construção de armas, na indústria têxtil e na arte tipográfica. Ele também obteve resultados em geologia (explicando, por exemplo, a origem dos fósseis), em anatomia e em fisiologia. O seu interesse pela anatomia era motivado pela vontade de conhecer melhor a natureza, de modo a melhorar o seu desempenho artís- tico. Com efeito, em Leonardo não se pode separar o cientista do artista. Não por acaso, para ele, a pintura é uma ciência; aliás, está no cume das ciências. A pintura possui um valor cognoscitivo e o pintor deve conhecer muitas ciências (anatomia, geometria etc.) para poder penetrar na natureza: “Ó, especulador das coisas, não te vanglories de conhecer as coisas que ordinariamente, por si mesma, a natureza conduz, mas alegra-te por conhecer o fim daquelas coisas que estão esboçadas na tua mente.” 2. Bernardino Telésio: a investigação da natureza segundo os seus próprios princípios 2.1. A vida e as obras Bernardino Telésio nasceu em 1509 em Cosenza. Num pri- meiro momento, recebeu uma sólida educação humanista de seu tio Antonio Telésio, que era homem de letras. Seguiu o tio a Milão e depois a Roma, onde, em 1527, foi aprisionado pela soldadesca, por ocasião do conhecido “saque de Roma”, sendo libertado pela intervenção de um conterrâneo depois de dois meses de prisão. 148 Renascimento italiano Foi então para Pádua, onde ainda estavam bem vivos os debates sobre Aristóteles e onde estudou filosofia e ciências na- turais (talvez, em especial, a medicina), formando-se em 1535. Depois de formado, irrequieto, Telésio andou por várias cidades da Itália. Parece inclusive que, durante alguns anos, retirou-se, para meditar em solidão, em um mosteiro de mon- ges beneditinos (alguns pensam que esse mosteiro pode ter sido o de Seminara). Posteriormente, de 1544 a 1553, Telésio foi hóspede dos Carafa, duques de Nocera. Nesse período, ele lançou os fundamen- tos e delineou a estrutura do seu sistema, redigindo um primeiro esboço da sua obra-prima De rerum natura iuxta propria principia. A partir de 1553, Telésio se estabeleceu em Cosenza, onde permaneceu até 1563. Passou então por Roma e Nápoles, mas re- tornou várias vezes a Cosenza, onde morreu em 1588. Os primeiros dois livros do De rerum natura foram publica- dos em 1565, depois de muitas incertezas e não sem antes ter consultado em Bréscia o maior expoente do aristotelismo na época, Vincenzo Maggi. O resultado pesitivo do confronto com Maggi, que por muitos aspectos devia ser considerado como o adversário ideal, convenceu Telésio da oportunidade da publicação. Mas a obra inteira, em nove livros, só viu a luz em 1586, em virtude das dificuldades financeiras do nosso filósofo. As outras obras de Telésio são marginais, limitando-se à explicação de alguns fenô- menos naturais (Sobre os terremotos, Sobre os cometas, Sobre os vapores, Sobre o raio ete.). Foi notável a fama alcançada pelo nosso filósofo, tendo início antes mesmo da publicação de suas obras. À Academia Cosentina, da qual ele foi membro, tornou-se o mais ativo centro de difusão do telesianismo. Amigos poderosos e influentes protegeram-no dós ataques dos aristotélicos, embora não tenham faltado os debates e as polêmicas. Entre os entusiastas da obra de Telésio conta-se também Campanella, que não o conheceu pessoalmente, mas visitou seu esquife mortuário, exposto na catedral de Cozenza, logo depois de sua morte. Campanella chegou a dedicar alguns versos ao “sumo Telésio”. Em um soneto que chegou até nós, entre outras coisas, diz dele: Telésio, a flecha da tua aljava, em meio ao campo dos gênios, sem salvação, mata dos sofistas o tirano; e à Verdade dá uma doce Liberdade. E, apesar das aparências, o continuador ideal de Telésio, em muitos aspectos, seria precisamente Campanella. Telésio: os princípios da natureza 149 2.2. A novidade da física telesiana O sentido eo valor do pensamentotelesiano mudam comple- tamente, conforme a perspectiva com base na qual ele é visto e interpretado. Consegientemente, também varia o tipo de exposi- ção que se pode fazer desse pensamento. Se o olharmos assumindo como parâmetro a revolução cien- tífica que Galileu operaria, então as conclusões não podem ser outras que as extraídas por Patrizi (embora baseando-se em ou- tros elementos), isto é, que o telesianismo “parece ser mais uma metafísica do que uma física”, contrariamente às suas inten- ções declaradas. No entanto, se o olharmos pela ótica do seu tempo, o pensa- mento de Telésio revela-se efetivamente uma das tentativas mais radicais e avançadas de encaminhar a física pela senda de uma rigorosa pesquisa autônoma, desligando-se de dois tipos de pres- supostos metafísicos: a) dos pressupostos dos magos renascentis- tas ligados à tradição hermético-platônica; b) dos pressupostos da metafísica aristotélica. a) Sobre o primeiro ponto, deve-se sublinhar não apenas o fato de que estão ausentes do De rerum natura os interesses e pressupostos mágico-herméticos, mas também o fato de que Te- lésio diz com todas as letras, numa evidente alusão, que em sua obraninguémencontraránihil divinum enihiladmiratione dignum. Entretanto, como veremos, Telésio continua a ter em comum com as doutrinas mágicas a convicção de que, na natureza, tudo está vivo. b) Sobre o segundo ponto, devemos relevar o que se segue. Aristóteles (com os peripatéticos) considerava a física como conhe- cimento teorético de um particular gênero de ser, ou seja, daquele gênero de ser ou substância que está sujeito a movimento. Para o Estagirita, o quadro da metafísica (ciência do ser ou da substância em geral) e os seus princípios constituíam os pressupostos neces- sários para fundamentar a física. A consideração da substância sensível, portanto, desembocava necessariamente na considera- ção da substância supra-sensível e o estudo da substância móvel terminava com a demonstração metafísica da substância imóvel. Pois Telésio realizou um corte claro em relação a essa posição. Ele não nega um Deus transcendente nem uma alma supra-sensível (como veremos melhor mais adiante), mas temati- camente, coloca ambos fora da pesquisa física, estabelecendo assim aautonomia danatureza e dos seus príncipios e, consequentemente, a autonomia da pesquisa desses princípios. Desse modo, Telésio realiza aquilo que foi chamado “redução naturalista”, precisamente proclamando a substancialidade autônoma da natureza. Renascimento italiano 154 experiência passada e da semelhança daquilo que já percebemos com aquilo que percebemos agora, ou seja, por analogia, Telésio declara expressamente que não despreza em abso luto a razão; ao contrário, diz que se deve depositar confiança nela “quase como nos sentidos”. Mas o sentido é mais crível do que a razão, pelo motivo de que aquilo que é apreendido pelos sem idos não tem mais necessidade de ser ulteriormente investigado. Para Telésio, a própria matemática é fundada no sentido, nas similitudes e nas analogias, do modo já explicado. 2.5. A moral natural A vida moral do homem, pelo menos no primeiro nível, também pode ser explicada com base nos princípios naturais. Para o homem, como para todo ser, o bem é a sua própriaquio- conservação, assim como o mal é o seu dano ou a sua destruição. o prazer e a dor entram nesse jogo de conservação e destruição. S agradável aquilo que é dileto ao “espírito” e é dileto ao capíri % aquilo que o vivifica, constituindo portanto uma força favor: vel. É doloroso aquilo que abate e prostra o“ espírito e abate o “espíril aquilo que lhe é nocivo. Assim, o prazer é “a sensação da conser- vação”, ao passo que a dor é “a sensação da destruição”. Ovprazer e a dor, portanto, têm um preciso objetivo funcional. Desse modo, o prazer não pode ser o fim último que perseguimos, mas sim o meio que nos facilita alcançar esse fim, o qual, como já dissemos, é a auto-conservação. Em geral, tudo aquilo que o homem deseja está em função dessa conservação. Entendidas do pento de vista naturalista, as próprias virtudes são praticadas e exercidas em função desse mesmo objetivo, ou seja, para que facilitem a conservação e o apertei- coamento do “espírito”. 2.6. A transcendência divina e a alma como ente supra-sensível Como já observamos, Telésio operou a “redução naturaliste? na sua pesquisa física e na reconstrução da realidade natura! , mas ficou bem distante de dar a tal “redução uma valência metafísica geral: ele admite um Deus criador e acima da natureza; o que ele nega, simplesmente, é que se deva recorrer a ele na investigação física. Telésio: moral e religião 155 Aliás, a esse propósito, é interessante notar o fato de que Telésio, que normalmente censura Aristóteles por ser excessiva- mente metafísico em física, objeta-lhe precisamente o oposto no que se refere ao Motor Imóvel. É completamente inadequada uma concepção de Deus reduzido à função motriz, ao modo aristotélico. Telésio chega a escrever que, a esse respeito, Aristóteles “parece digno não apenas de críticas, mas também de abominação”. A moção do céu podia muito bem ser atribuída à própria natureza do céu, sem chamar Deus em causa daquele modo. De qualquer forma, teria sido melhor pôr Deus como inativo. Ademais, é inconcebível ofato de Aristóteles negar ao seu Deus a providência em relação aos homens. Em suma: o Deus de Telésio é o Deus bíblico, criador e regente do mundo. E é precisamente de sua atividade criadora que depende aquela “natureza” estruturada do modo como vimos, bem como o destino superior dos homens em relação a todos os outros seres, como agora veremos. A “mens superaddita”, isto é, a alma intelectiva, que é imortal, é infundida no homem por Deus. A alma está unida ao corpo e, especialmente, ao “espírito” natural como forma deles. Através do espírito, o homem conhece e prova as coisas que se referem à sua conservação natural; já com a mens superaddita, ele conhece as coisas divinas e tende para elas, que não dizem respeito à sua saúde natural, mas sim à eterna. Assim, existem no homem dois apetites e dois intelectos. Por isso, ele está em condições de entender não somente o bem sensível, mas também o bem eterno, bem como de querê-lo (e isto é o livre-arbítrio). Consegientemente, o homem deve procurar não sucumbir com sua “mente” às forças do “espírito” material, mas sim mantêla pura e torná-la semelhante ao seu criador. Em suma, essa “mente” concerne à atividade religiosa do homem e assinala a sua especi- ficidade em toda a ordem do real. Os intérpretes viram frequentemente, nessas doutrinas de Telésio, algumas concessões indébitas (talvez feitas pro bono pacis), algumas cessões ou, de todo modo, teses em contraste com o seu “naturalismo”. Na realidade, porém, não é assim. Quando muito, seria verdade precisamente o oposto. A sua originalidade está exatamente na tentativa de estabelecer uma distinção clara de âmbitos de investigação, sem que a distinção implique exclusão. Embora com todos os seus limites, também nesse sentido Telésio apresenta analogias com Galileu, que, precisamente, distinguiria de modo paradigmático a ciência e a religião, atribuindo à primeira a função de mostrar como vai o céu (com as suas leis específicas) eà segunda a tarefa de mostrar como se vai ao céu (crendo e agindo em conformidade). 156 Renascimento italiano 3. Giordano Bruno: a religião como metafísica do infinito e o “heróico furor” 8.1. A vida e as obras Giordano Bruno nasceu em Nola, em 1548. O seu nome de batismo era Filipe: o nome de Giordano lhe foi dado quando, ainda muito jovem, ingressou no convento de São Domingos, em Nápoles, onde foi ordenado sacerdote em 1572. O seu espírito de insubordinação e revolta já se manifestava quando ainda era estudante: em 1567, foi instaurado um processo contra ele, o qual ficou depois suspenso. . Mais grave foi o processo de 1576, instaurado, mais do que pelas suspeitas de heresia que havia suscitado, pela suspeita de que lhe coubesse a responsabilidade pelo assassínio de um con- frade que o havia denunciado. Na realidade, a suspeita era infun- dada. Mas a situação complicou-se a tal ponto que Bruno, que nesse meio tempo havia fugido para Roma, chegou a pensar em largar o hábito e refugiou-se no norte do país (Gênova, Noli, Savona, Turim e Veneza)e finalmente na Suíça, em Genebra, onde frequentou ambientes calvinistas. Mas logo ele se rebelaria tam- bém contra os teólogos calvinistas. na A partir de 1579, Bruno viveu na França, primeiro em Tolosa, por dois anos, e a partir de 1581 em Paris, onde conseguiu atrair a atenção de Henrique III, do qual teve proteção e apoio. Em 1583, foi paraa Inglaterra, acompanhando o embaixador francês, vivendo sobretudo em Londres. Esteve durante um perío- do também em Oxford, onde, porém, logo entrou em choque com os docentes da universidade (que ele considerava “pedantes”). Docu- mentos vindos recentemente à luz demonstram, entre outras coisas, que os doutos locais o contestaram por ter plagiado Ficino em suas lições (as doutrinas mágico-herméticas). Em 1585, retornou a Paris, mas logo percebeu que não gozava mais da proteção do rei e teve que fugir, depois de um tempestuoso conflito com os aristotélicos. Desta vez, escolheu a Alemanha luterana. Em 1586, estabe- leceu-se em Vitemberga, onde elogiou publicamente o luteranis- mo. Mas também aí não permaneceu por muito tempo. Em 1588, tentou obter os favores do imperador Rodolfo II de Habsburgo, na Áustria, mas sem sucesso. Retornou então à Alemanha, onde, em 1589, em Helmstãdt, inscreveu-se na comunidade luterana, da qual foi expulso depois de apenas um ano. Em 1590, foi para Francoforte, onde publicou a trilogia dos seus grandes poemas latinos. Quando aí estava, recebeu um convite, por parte de livreiros, do nobre veneziano João Mocenigo, Bruno: magia e hermetismo 157 que desejava aprender a mnemotécnica, da qual Bruno era mestre. Imprevidentemente, ele aceitou o convite e voltou à Itália em 1591. No mesmo ano, Mocenigo denunciava Bruno ao Santo Ofi- cio. Em 1592, começou em Veneza o processo contra Bruno, que se concluiu com a sua retratação. Em 1598, o filósofo foi transferido para Roma, sendo sub- metido a um novo processo. Depois de extenuantes tentativas de convencê-lo a retratar-se de algumas de suas teses, chegou-se a uma ruptura final, com a sua condenação à morte na fogueira, sentença que foi executada no Campo dei Fiori, em 17 de feve- reiro de 1600. Giordano Bruno não renegou o seu credo filosófico-religi- oso, morrendo para testemunhá-lo. Escreve A. Guzzo: “Assim, morto, ele se apresenta pedindo que sua filosofia viva. E, desse modo, teve atendido o seu apelo: o seu julgamento se reabriu, a consciência italiana recorreu do processo e, antes de mais nada, incriminou aqueles que o haviam matado.” São muito numerosas as obras de Giordano Bruno. Dentre elas, merecem particular atenção: a comédia o Candeeiro (1582), o De umbris idearum (1582), a Ceia das Cinzas (1584), Sobre a causa, princípio e uno (1584), Sobre o infinito, universoe mundos (1584), o Despacho da fera triunfante (1584), Sobre os heróicos furores (1585), De minimo (1591), De monade (1591) e De immenso et innumerabilibus (1591). 8.2. A característica de fundo do pensamento de Bruno Para entender a mensagem de um filósofo, é preciso captar o fulcro do seu pensamento, a fonte dos seus conceitos e o espírito que lhe dá vida. No caso de Giordano Bruno, onde estão esse fulcro, essa fonte e essa alma? Os estudos mais recentes conseguiram lançar luz sobre a questão: a marca que distingue o pensamento bruniano é de caráter mágico-hermético. Bruno se coloca na trilha dos magos- filósofos renascentistas, levando muito adiante o discurso que Ficino havia cautelosamente iniciado, procurando manter-se dentro dos limites da ortodoxia cristã, mas que ele tratou de levar às últimas consegiúências. E mais: o pensamento bruniano po- de ser entendido como uma espécie de gnose renascentista, uma mensagem de salvação moldada no tipo de religiosidade “egípcia”, como precisamente pretendia ser a mensagem dos escritos herméticos. O seu neopiatonismo serve de base e de moldura conceitual para essa visão religiosa, dobrando-se continuamente às suas exigências. 158 Renascimento italiano Essa é a documentadíssima tese apresentada recentemente por F. A. Yates (na obra já citada Giordano Bruno e la tradizione ermetica, Laterza, Bari), que desejamos enfocar brevemente, porque resolve muitos problemas de interpretação da obra de Bruno. Escreve Yates: a filosofia de Bruno “é fundamentalmente hermé- tica(... pois) ele era mago hermético do tipo mais radical, com uma espécie de missão mágico-religiosa”. . Qual foi, então, a operação que Bruno procurou realizar? E Yates quem precisa: “É muito simples: ele reconduz a magia renascentista às suas fontes pagãs, abandonando as fracas tenta- tivas de Ficino de elaborar uma magia inócua, dissimulando asua fonte principal, o Asclepius (que ensinava a construir ídolos e amuletos e que havia sido condenado por santo Agostinho), escar- necendo violentamente dos herméticos religiosos (que, como ob- servamos, eram numerosos no período renascentista) que acredi- tavam fundar um hermetismo cristão deixando de lado o Asclepius e proclamando-se egípcio convicto, que (...) deplora a destruição, realizada pelos cristãos, do culto dos deuses naturais da Grécia e da religião através da qual os egípcios haviam alcançado as idéias divinas, o Sol inteligível, o Uno do neoplatonismo.” Eis como Bruno cita o lamento de Asclépio, com sua profecia final, e que tons comovidos ele lhe inspira: “Não sabes, ó Asclépio, como o Egito é a imagem do céu(...), nossa terra o templo do mundo. Mas, oxalá, tempo virá em que o Egito aparecerá em vão como o religioso cultor da divindade (...). Ó Egito, Egito, de tuas religiões só permanecerão as fábulas (...). As trevas suplantarão a luz, a morte será julgada mais útil do que a vida, ninguém erguerá os olhos para o céu, o religioso será considerado insano, o ímpio será julgado prudente, o furioso forte e o péssimo bom. E acreditem que ainda será definida a pena capital para aquele que se dedicar à religião da mente, porque haverá novas justiças e novas leis e nada se encontrará de santo nem de religioso: não se ouvirá coisa digna do céu ou coisas celestes. Só permanecerão anjos perniciosos, que misturados com os homens, forçarão os miseráveis à audácia de todo o mal, como se fosse justiça, materializando guerras, roubos, fraudes e todas as outras coisas contrárias à alma e à justiça natural — e isso será a velhice, a desordem e a irreligião do mundo. Mas não duvides, Asclépio, que, depois dessas coisas terem acon- tecido, então o senhor e pai Deus, governante do mundo e provedor onipotente (...), sem dúvida porá fim a tal mancha, chamando de novo o mundo para a sua antiga fisionomia.” O “egipcianismo” de Bruno é uma religião, a “boa religião” destruída pelo cristianismo, para a qual é necessário retornar e da qual ele se sente o profeta, investido precisamente da missão de Bruno: magia e hermetismo 159 fazê-la reviver. Outra passagem de Yates completa o quadro dessa nova exegese: “Assim, toda a tentativa ficiniana de construir uma theologia platonica cristã, com os seus prisci theologi etmagi e com o seu platonismo cristão, furtivamente permeado com alguns elementos mágicos, era menos do que nada aos olhos de Giordano Bruno, que, aceitando plena e despreconceituosamente a religião mágica egípcia do Asclepius (e desprezando os presumidos pre- núncios do cristianismo contidos no Corpus Hermeticum), consi- derou a religião mágica egípcia como uma experiência teúrgica e extática genuinamente neoplatônica, como uma elevação em dire- ção ao Uno. E assim era de fato, já que o egipcianismo hermético nada mais era do que o egipcianismo interpretado por neoplatô- nicos da tardia Antiguidade. Entretanto, o problema da interpre- tação de Bruno não se resolve reduzindo-o a mero continuador desse tipo de neoplatonismo e considerando-o um simples seguidor de um culto mistériosófico egípcio, porque ele certamente foi influenciado pelas idéias produzidas por Ficino e por Pico, com toda a sua força psicológica, as suas associações cabalísticas e cristãs, o seu sincretismo de diversas posições filosóficas e reli- giosas, antigas ou medievais, e com a sua magia. Também é preciso destacar — o que, em minha opinião, é um dos aspectos mais significativos de Giordano Bruno — que ele surge em cena por volta de fins do século XVI, aquele século que viu terríveis mani- festações de intolerância religiosa e no qual se procurou no her- metismo religioso um refúgio de tolerância, um caminho que levasse à união das várias seitas em luta entre si. Como vimos, havia diversas variedades de hermetismo cristão, católico e pro- testante, cuja maior parte se refugiava na magia. E nesse momen- to aparece Giordano Bruno, que assume incondicionalmente como base o hermetismo mágico egípcio, prega uma espécie de contra- reforma egípcia, profetiza um retorno à tradição egípcia, graças à qual as dificuldades religiosas se comporão em uma nova solução, e, por fim, propugna também uma reforma moral, acentuando a importância de boas obras sociais e de uma ética que correspon- desse a critérios de utilidade social.” Consegientemente, está claro que Bruno não podia estar de acordo com os católicos nem com os protestantes (em última instância, não pode ser considerado sequer cristão, pois acabou pondo em dúvida a divindade de Cristo e os dogmas fundamentais do cristianismo) e que os apoios que buscava, ora de uma parte ora de outra, eram apenas apoios táticos para realizar a sua própria reforma. E precisamente por isso é que ele provocou violentas reações em todos os meios nos quais ensinou. Bruno não podia seguir nenhuma seita, porque o seu objetivo era o de fundar ele próprio uma nova religião. 164 Renascimento italiano nossa faculdade discursiva, da divina substância nada podemos conhecer, a não ser por meio de vestígios, como dizem os platônicos, de efeito remoto, como dizem os peripatéticos, de indumentária, como dizem os cabalistas, de costas ou posteriores, como dizem os talmudistas, ou de espelho, sombra e enigma, como dizem os apo- calípticos.” Aliás, acrescenta Bruno, a comparação da estátua é em grande parte inadequada, porque a estátua, que é finita, pode ser conhecida plenamente; já o universo é infinito e, assim, “ocorre que com bastante menor razão nós conhecemos o primeiro princípio e causa pelo o seu efeito”. Mas estaria errado quem desse a essas afirmações da transcendência do princípio primeiro significados que elas só poderiam ter em contextos metafísicos criacionistas. Com efeito, nos encontramos aqui em um contexto de metafísica processionista plotiniana e, assim, essas afirmações só adquirem sentido em função das afirmações que apresentamos a seguir. Assim como em Plotino o Intelecto deriva do supremo prin- cípio, analogamente, Bruno também fala de um intelecto univer- sal, mas o entende, de modo mais marcadamente imanentista, como mente nas coisas e precisamente como faculdade da Alma universal, da qual brotam todas as formas que são imanentes à matéria, constituindo com ela um todo indissolúvel: “Isso quer o Nolano, que é um Intelecto que dá ser a toda coisa, chamado pelos pitagóricos e pelo Timeu de dador das formas; uma Alma e princípio formal, que faz e enforma toda coisa, também por eles chamada de fonte das formas; uma matéria, da qual é feita e formada toda coisa, chamada por todos de refúgio das formas.” A estrutura hilemórfica da realidade é assim concebida de modo muito diferente dos aristotélicos: as formas são a estrutura dinâmica da matéria, “que vão e vêm, cessam e se renovam”, precisamente porque tudo é animado, tudo está vivo. À alma do mundo está em cada coisa. E na alma está presente o intelecto universal, fonte perene de formas que continuamente se renovam. Em Bruno, tudo está vivo, mas num sentido bem diferente do de Telésio. Em Bruno, trata-se da vida da alma e da mente universal, que, aliás, é Deus, ou seja, o divino que se expande no universo, ao passo que, em Telésio, trata-se de uma visão panvita- lista reduzida, no âmbito bem mais estreito de um sensismo que, como vimos, tem raízes nos pré-socráticos. Em Telésio, Deus é verdadeiramente transcendente e a vida do mundo é a vitalidade que Deus deu à matéria e aos seus princípios no ato da criação e que nada tem a ver com a vida divina. Já em Bruno Deus torna-se imanente e a vida do cosmos torna-se vida divina, ou seja, a expansão infinita da própria vida de Deus. Por isso, é compreensível que, nesse contexto, Deus e natu- reza, forma e matéria, ato e potência acabem por coincidir, a ponto Bruno: o infinito 165 de Bruno escrever: “Daí, não é dificilou grave, em última instância, aceitar que, segundo a substância, tudo é uno, como talvez tenha entendido Parmênides, tratado ignobilmente por Aristóteles.” O trecho seguinte, extraído do Sobre a causa, princípio e uno, nos apresenta muito bem a nova imagem bruniana do universo uno, infinito e (inclusive) eleaticamente imóvel: “Por- tanto, o universo é uno, infinito e imóvel. Digo que una é a possibilidade absoluta, uno é o ato, una é a forma ou alma, una a matéria ou o corpo, una a coisa, uno o ente, uno o máximo ou o ótimo. Ele não deve poder ser abrangido por nada, sendo assim infindável e interminável e, portanto, infinito e interminado — e, consegiientemente, imóvel. Ele não se move localmente, porque não há nada fora de si para o qual se transporte, entendendo-se que ele é tudo. Ele não se gera, porque não há outro ser que ele possa desejar ou esperar, entendendo-se que tem todo o ser. Ele não se corrompe, porque não há outra coisa na qual se torne, entendendo- se que ele é toda coisa. Ele não pode diminuir ou crescer, enten- dendo-se que é infinito, de modo que, como nada se pode acres- centar a ele, também nada se pode subtrair, dado que o infinito não tem proporcionalidade. Ele não é alterável em outra disposição, porque não há nada de externo cuja ação sofra e pela qual tenha alguma sensação. Além disso, por abranger todas as contrarieda- des em seu ser, em unidade e conveniência, e não poder ter nenhuma inclinação a outro e novo ser ou então a outro modo de ser, não pode estar sujeito a mutações de qualquer qualidade nem pode ter contrário ou diferente que o altere, porque nele todas as coisas são concordes. Ele não é matéria, porque não é figurado nem figurável, não é terminado nem terminável. E também não é forma, porque não enforma nem figura outra coisa, no sentido que é tudo, é uno, é universo. Ele não é mensurável nem medida. Não se abrange, porque não é maior do que si mesmo. Nem é abrangido, porque não é menor do que si mesmo. Não se iguala, porque não é outra coisa, mas uno e o mesmo. Sendo o mesmo e uno, não tem seres diversos; não tendo seres diversos, não tem partes; e, não tendo partes, não é composto. Ele é termo não sendo termo, é tão forma que não é forma, é tão matéria que não é matéria, é tão alma que não é alma, porque é tudo indiferentemente e, no entanto, é uno — o universo é uno.” 3.5. A infinitude do Todo e o significado impresso por Bruno à revolução copernicana Comojá dissemos, o infinito tornou-se a marca emblemática da concepção bruniana. Se a Causa ou o Princípio Primeiro é infinito, também o efeito deve ser infinito. Porisso, no De immenso et innumerabilibus, 166 Renascimento italiano escreve Bruno: “A Divindade não se explica completamente no plano físico, mas sim no infinito (com efeito, todo corpo é tão distinto em partes que onde está uma parte não está nenhuma outra, nem pode estar) e somente nele se manifesta em sua própria universalidade, segundo as suas próprias ordens inumeráveis e segundo a disposição do infinito: em toda parte coloca um princípio que concorre com o fim ou, de outra forma, o centro que é referido de toda parte ao infinito e ao qual de toda parte é referido o infinito. Isso é o que ocorre ab aeterno, da Divindade segundo todo o ser, como difusão da infinita bondade, ato e efeito exteriores da divina onipotência”. Com base nisso, Bruno sustenta não apenas a infinitude do mundo em geral, mas também (retomando a idéia de Epicuro e de Lucrécio) a infinitude no sentido da existência de mundos infinitos semelhantes ao nosso, com outros planetas e outras estrelas: “e isso se chama universo infinito, no qual há inumeráveis mundos”. Infinita também é a vida, porque infinitos indivíduos vivem em nós, assim como em todas as coisas compostas. O morrer não é morrer, porque “nada se aniquila”. Assim, o morrer é apenas uma mudança acidental, ao passo que aquilo que muda permanece eterno. Mas por que, então, existe essa mutação? Por que a matéria particular procura sempre outra forma? Será que procura outro ser? De modo bastante engenhoso, Bruno responde que a mutação não procura “outro ser” (que tudo já existe desde sempre), mas sim “outro modo de ser”. E nisso reside precisamente a diferença entre o universo e as coisas singulares do universo: “aquele abrange todo o ser e todos os modos de ser; destas, cada qual tem todo o ser, mas não todos os modos de ser”. Assim, Bruno pode dizer que o universo é “esferiforme” e, ao mesmo tempo, infinito. E pode escrever com ousadia: “Parmênides disse que o uno é igual por toda parte em si mesmo e Melissos afirma que ele é infinito. Não existe contradição entre eles, mas sim, muito mais, um esclarece o outro.” O conceito de Deus como “esfera que tem o centro em toda parte e a circunferência em nenhum lugar”, que apareceu pela Primeira vez em tratado hermético e que foi tornado célebre por Nicolau de Cusa, serve admiravelmente a Bruno, sendo precisa- mente com essa base que ele opera a conciliação já referida. Em conclusão, citemos ainda um trecho, dentre as muitas e belíssimas considerações de Bruno sobre o infinito. Deus é todo infinito e totalmente infinito, porque é tudo em tudo e, totalmente, também em toda parte do todo. Como efeito derivado de Deus, o universo é todo infinito, mas não totalmente infinito, porque é tudo em tudo, mas não totalmente em todas as suas partes (ou, de todo Bruno: 0 Enfínito 167 modo, não pode ser infinito no modo como Deus é, sendo causa de tudo em todas as partes): “Eu digo que o universo é todo infinito porque ele não tem limite, nem fim, nem superfície; mas digo que o universo não é totalmente infinito porque cada uma das partes que dele podemos tomar é finita, embora, dos mundos inumeráveis que contém, cada um seja infinito. Eu digo que Deus é todo infinito porque ele exclui de si todo fim e todo atributo seu é uno e infinito; e digo que Deus é totalmente infinito porque todo ele está em todo o mundo e em cada uma de suas partes, infinita e totalmente, ao contrário da infinitude do universo, que está totalmente em tudo, mas não nestas partes (se é que, referindo-se ao infinito, podem ser chamadas de “partes”), que podemos abranger nele (...).” Agora, estamos em condições de entender as razões da en- tusiástica aceitação da revolução copernicana por Giordano Bru- no. Com efeito, o heliocentrismo a) harmonizava-se perfeitamente com a sua gnose hermética, que atribuía ao Sol (símbolo do in- telecto) um significado inteiramente particular, e b) permitia-lhe romper a visão estreita dos aristotélicos, que sustentavam a fini- tude do universo, e assim fazia desmoronar todas as “fantásticas muralhas” dos céus, tornando-os sem limite em direção ao infinito. 3.6. Os “heróicos furores” Na visão bruniana, a “contemplação” plotiniana e o tornar- se uno com o Todo tornam-se “heróico furor”. Também para Bruno trata-se de percorrer novamente, em elevação cognoscitiva, ou seja, voltando sobre os próprios passos, aquela descida que, do princípio, levou ao principiado. Mas, em Bruno, a contemplação se transforma em uma forma de “divinização”, que é furor de amor, anseio de ser uma só coisa com o objeto anelado, transformando desse modo o êxtase plotiniano em experiência mágica. (Ficino já havia chamado de firor divino o amor que leva o homem a se “endeusar”.) Escreve Yates: “Acho que aquilo a que as experiências religiosas descritas em Sobre os heróicos furores visam é a gnose hermética, vale dizer, a mística poesia amorosa do homem-mago, que foi criado divino, com poderes divinos, e agora se encaminha para readquirir esse atributo de divindade, com os respectivos poderes(...). Consequentemente, embora só seja possível encontrar explicitamente alguns elementos mágicos em Sobre os heróicos furores, na verdade, por assim dizer, essa obra é o diário espiritual de um homem que aspirou a ser mago religioso.” O ponto central do escrito e o sentido dos “heróicos furores” estão no mito do caçador Actéon, que viu Diana no banho e, de caçador, foi transformado em veado, isto é, em uma caça selvagem, sendo devorado por seus cães. Diana é o símbolo da divindade 168 Renascimento italiano imanente da natureza e Actéon simboliza o intelecto, voltado para a caça à verdade e à beleza divina; já os mastins e gaigos de Actéon simbolizam as volições (os primeiros, que são mais fortes) e os pensamentos (os segundos, que são mais velozes). Actéon, portanto, foi convertido naquilo que procurava (caça) e seus próprios cães (pensamentos e volições) o devoram. Por quê? Porque a verdade procurada está em nós mesmos e, quando descobrimos isso, tornamo-nos anseios de nossos próprios pensa- mentos e compreendemos que “tendo contraída em si a divindade, não era preciso procurá-la fora de si”. Por isso, Bruno conclui: “Desse modo, os cães, pensamentos de coisas divinas, desejaram Actéon, fazendo-o morto para o vulgo, para a multidão, liberto das amarras dos sentidos perturbados, livre do cárcere carnal da matéria, não vendo mais sua Diana como que através de cortinas e janelas, mas, tendo posto por terra as muralhas, sendo agora todo olhos para o aspecto de todo o hori- zonte.” No ponto culminante do “heróico furor”, o homem vê tudo inteiramente todo, porque se encontra assimilado a esse todo. 3.7. Conclusões Bruno é certamente um dos filósofos mais difíceis de enten- der. E, no âmbito da filosofia renascentista, certamente é o mais complexo. Daí as exegeses tão diversas que foram pro- postas sobre ele. No estado atual dos estudos, porém, muitas conclusões a que se chegara no passado já foram revistas. Não parece possível fazer dele um precursor da revolução do pensamento moderno, no sentido em queiria operar a revolução científica, porque os seus interesses eram de natureza completa- mente diferente: mágico-religiosos e metafísicos. + A defesa que ele fez da revolução copernicana fundamentou- se em bases totalmente diferentes daquelas em que se baseara Co- pérnico, tanto que alguns chegaram até a levantar dúvidas de que Bruno realmente tenha entendido o sentido científico daquela doutrina. Não é possível destacar o aspecto matematizante de muitos escritos brunianos, pois a matemática bruniana é aritmologia pitagorizante, sendo portanto metafísica. Em suma, com sua visão vitalista e mágica, Bruno não é pensador “moderno”, no sentido de que não antecipa as descober- tas do século seguinte, que nascem em bases totalmente diferen- Ss. Entretanto, Bruno antecipa de modo surpreendente certas posições de Spinoza e, sobretudo, dos românticos. A embriaguez de Campanella: a vida e obras 169 Deus e do infinito própria desses filósofos já está presente em muitas páginas de Bruno. Schelling seria o pensador a mos- trar (pelo menos em uma fase do seu pensamento) as mais fortes afinidades de opção com o nosso filósofo. E uma das obras schellinguianas mais belas e sugestivas intitular-se-ja precisa- mente Bruno. Em seu conjunto, a obra de Bruno marca um dos pontos culminantes do Renascimento e, ao mesmo tempo, um dos resul- tados conclusivos mais significativos desse período irrepetível do pensamento ocidental. 4. Tomás Campanella: naturalismo, magia e anseio de reforma universal 4.1. A vida e as obras O pensamento renascentista se conclui com Tomás Campa- nella. Nascido em Stilo, na Calábira, em 1568, Campanella ingres- sou na ordem dos dominicanos aos quinze anos (seu nome de batismo era Giandomenico, mudado para Tomás em homenagem a santo Tomás de Aquino quando ingressou no mosteiro). Ele se assemelha a Bruno em muitos aspectos. Mago e astrólogo, dominado por um grande anseio de reforma universal, convicto de que tinha uma missão a cumprir, infatigável em sua 0- bra, extraordinariamente culto e capaz de escrever e reescrever as suas obras com uma força irrefreável, como um vulcão em erupção. Submetido a torturas e muitas vezes preso, escapou da condenação à morte fingindo perfeitamente estar louco. Foi por isso que não acabou na fogueira, como Bruno, e, depois de ter passado quase a metade de sua vida na prisão, conseguiu lenta- mente readquirir credibilidade, que reconstitutu com uma incan- sável fadiga cotidiana. Por fim, inesperados triunfos na França coroaram a sua movimentadíssima existência. São quatro os períodos que podem ser distinguidos nessa vida verdadeiramente romanesca: 1) o da juventude, que se con- cluiu com a falência de uma revolta política organizada por ele contra a Espanha; 2) o do longuíssimo encarceramento em Ná- poles; 3) o da reabilitação romana; 4) o das grandes homena- ens francesas. . é Percorreremos brevemente essas etapas, bastante signifi- -cativas. no 1)0 período da juventude foi muito aventuroso. Insatisfeito com o aristotelismo e o tomismo, leu vários filósofos (tanto antigos Tomás Campanella (1568-1639) foi a última das grandes figuras do pensamento renascentista, tentando fundir metafísica, ongs CARRO e Err Depois de longos anos de prisão, foi reabilitado nsamento europeu já se havia minhado para sendas completamente diferentes das dio e Campanella: a autoconsciência 175 4.3. A autoconsciência Em suas reflexões sobre o conhecimento, que se encontram no primeiro livro da Metafísica, Campanella apresenta uma refu- tação do ceticismo, baseando-se na autoconsciência, muito consi- derada postumamente pelos intérpretes, que nela encontraram surpreendentes analogias com a teoria tornada célebre por Des- cartes no Discurso sobre o método, que é de 1637, ao passo que a Metafísica, como já dissemos, foi publicada em Paris um ano depois, mas já havia sido elaborada alguns anos antes. A descoberta cartesiana (de que falaremos com mais ampli- tude adiante, pp. 366 ss) teria sido então antecipada por Campa- nella? Antes de responder, leiamos alguns documentos (extraídos sobretudo da Metafísica, na tradução de G. di Napoli). Contra os céticos, escreve o nosso filósofo: “Aqueles que proclamam não saber se sabem ou se não sabem alguma coisa não falam certo. Efetiva- mente, sabem necessariamente que não sabem. E, embora isso não seja saber, já que é uma negação, como a visão das trevas não é visão, mas privação de visão, entretanto a alma humana tem isso de próprio: sabe não saber, ao passo que percebe não ver nastrevas e não ouvir no silêncio. Com efeito, se não percebesse isso, seria uma pedra, para a qual é indiferente ser ou não seriluminada(...)” Mas preste-se atenção sobretudo a esta segunda passagem: “A alma conhece a si mesma com um conhecimento de presenciali- dade (enquanto é presença de si para si mesma) e não com um conhecimento objetivo (ou seja, como representação de um objeto que é diferente de si), exceto no plano reflexo. É certíssimo o princípio primeiro de que nós somos e podemos, sabemos e que- remos; depois, em segundo lugar, é certo que nós somos algo e não tudo e que podemos conhecer alguma coisa e não tudo e não totalmente. Ademais, quando se passa do conhecimento de presen- cialidade para os particulares através de um conhecimento objeti- vo, começa então a incerteza, pelo fato de que a alma torna-se alienada (logo veremos em que sentido) por causa dos objetos, pelo conhecimento de si mesma, de modo que os objetos não se revelam total e distintamente, mas só parcial e confusamente. E, na verdade, nós podemos, sabemos e queremos o outro porque pode- mos, sabemos e queremos a nós mesmos.”? Há analogias com Descartes, mas mostram-se movidas por exigências diferentes e, sobretudo, se inserem em uma visão metafísica panpsiquista geral da realidade, que chega, inclusive, a ser oposta à de Descartes. Para Campanella, o conhecimento de si não é uma prerroga- tiva do homem enquanto pensamento, mas de todas as coisas, que 176 Renascimento italiano são (todas elas, sem exceção) vivas e animadas. Com efeito, para ele, todas as coisas são dotadas de uma “sapientia indita” ou inata, através da qual sabem que existem e são ligadas ao seu próprio ser (“amam” o seu próprio ser). Esse autoconhecimento é um “sensus sui”, um auto-sentir-se. Já o conhecimento que toda coisa tem do que é diferente de si é “sapientia illata”, isto é, aquela que se adquire ao contato com as outras coisas. Cada coisa é modificada pela outra e de certa forma se transforma, “alienando-se” na outra. Quem sente não sente o calor, mas a si mesmo modificado pelo calor; não percebe a cor, mas, por assim dizer, a si mesmo colorido. A consciência “inata” que toda coisa tem de si é ofuscada pelo conhecimento que se acrescenta (superaddita), de modo que a autoconsciência (consequentemente) se transforma quase em um sensus adbitus, ou seja, “oculto” dos conhecimentos que sobrevêm. Nas coisas, o sensus sui permanece predominantemente oculto; no homem, pode alcançar níveis notáveis de consciência; em Deus, se desdobra em toda a sua perfeição. Além da alma-espírito, devemos destacar que Campanella também reconhece no homem a mente incorpórea e divina. Telésio já o havia feito. Mas Campanella confere à mente um papel de importância muito maior, tanto que chega até mesmo, segundo as doutrinas neoplatônicas, a atribuir-lhe a capacidade de conhecer, assimilando-se ao inteligível que há nas coisas, os modos e as formas (as idéias eternas) segundo os quais Deus as criou. Nessa doutrina, há um ponto que, por sua originalidade, merece um particular relevo. O conhecimento é, ao mesmo tempo, perda e aquisição: é aquisição precisamente através da perda. Ser é saber. Sabe-se aquilo que se é (e aquilo que se faz): “Quem é tudo sabe tudo; quem é pouco, sabe pouco.” Conhecendo, nós nos “alie- namos”, mas, nessa “alienação”, adquirimos o diferente de nós: “Como tornar-se muitas outras coisas através da passividade da experiência vale o mesmo que ampliar o próprio ser, isto é, de um tornar-se muitos, o saber é coisa divina, mesmo na passivida- de da experiência” E eis um dos textos mais significativos: “Todos os cognos- centes são alienados do seu próprio ser, como se acabassem na loucura e na morte; nós estamos no reino da morte.” Mais uma vez Garin acertou no alvo ao explicar da seguinte maneira essa doutrina campaneliana: “Assim, conhecer é morrer, “porque toda morte é transformar-se em algo e toda mutação é alguma morte'. E, sendo a mutação tornar-se o objeto, ela também é morte, ainda que parcial; e esse nosso internar-se no objeto acompanha-se sempre da consciência de nós (...), do senso íntimo pelo qual não nos dispersamos na coisa, mas permanecemos firmes Campanella: panpsiquismo e magia 177 em nós mesmos. Mas exatamente aqui intervém aquela revira- volta do sentido para a sapiência, na qual Campanella insiste. Se o sentir enquanto fazer-se objeto e, portanto, sofrer, significa acolher um novo limite e, portanto, morrer, então o contemplar Deusno interior de todas as coisas, isto é, o Ser que constitui todas, significa romper a negatividade da realidade e tornar-se verda- deiramente real. “Então, o aprender e o conhecer, sendo transfor- mar-se na natureza do cognoscível, são também uma espécie de morte; só o transformar-se em Deus é vida eterna, porque não se perde o ser no infinito mar do ser, mas sim se magnifica ” Esta última passagem citada por Garin pode ser comentada e esclarecida por este outro trecho da Teologia: “Nós estamos verdadeiramente em uma terra estrangeira, alienados de nós mesmos; aspiramos a uma pátria — e a nossa sede é junto de Deus.” 44. A metafísica campaneliana: as três “primalidades” do ser Entendido como o entende Campanella, o conhecimento é revelador da estrutura das coisas, de sua “essenciação”, como diz o nosso filósofo. Toda coisa é constituída “pela potência de ser, pelo saber de ser e pelo amor de ser”. Essas são as “primalidades do ser”, que, de certo modo, correspondem àquilo que eram os transcendentais na onto- logia medieval, À medida que pode ser, todo ente 1) é “potência” de ser; 2) ademais, tudo aquilo que pode ser “sabe” também que é;3)e, se sabe que é, “ama” o seu próprio ser. Isso é provado pelo fato de que, se não soubesse que é, não fugiria daquilo que o prejudica e destrói. As três “primalidades” são iguais em dignidade, ordem e origem: uma “imane”, ou seja, está presente na outra e vice-versa. Obviamente, pode-se falar também de “primalidades do não- ser”, que são a “impotência”, a “insipiência” e o “ódio”. Elas constituem as coisas finitas, enquanto toda coisa finita é potência, mas não de tudo aquilo que é possível; conhece, mas não conhece tudo aquilo que é cognoscível; ama e, ao mesmo tempo, odeia. Deus, por seu turno, é Potência suprema, Sapiência suprema e Amor supremo. Assim, em diferentes níveis, a criação repete o esquema trinitário. Trata-se de uma doutrina de gênese agostiniana, que Campanella amplia em sentido panpsiquista. 4.5. O panpsiquismo e a magia Ainda uma vez partindo de Telésio e de sua doutrina da animação universal das coisas, Campanella vai muito mais além, 178 Renascimento italiano não apenas se movendo na direção conceitual dos neoplatônicos, mas a ela mesclando visões nascidas de sua vida e consciente fantasia, formulando desse modo uma doutrina animístico-mágica levada ao extremo. Segundo Campanella, as coisas falam e se comunicam entre si diretamente. Enviando os seus raios, as estrelas comunicam “os seus conhecimentos”. Ademais, os metais e as pedras “se nutrem e crescem, mudando o solo onde inicialmente nascem com a ajuda do Sol, bem como as ervas, em líquor, que puxam para si pelas suas veias, onde os diamantes crescem em pirâmides e os cristais em figura cúbica (...)”. Para ele, há plantas cujos frutos tornam-se pássaros. Há uma “geração espontânea” de todos os viventes, inclu- sive dos superiores, porque tudo está em tudo e, portanto, tudo pode derivar de tudo. Neste trecho do Sobre o sentido das coisas e da magia, eis como Campanella esboça a sua visão geral: “Todos os animais dentro do mundo estão como os vermes dentro do animal, não pensando que ele sente, como os vermes do nosso ventre não pensam que nós sentimos e que nós temos alma maior do que a deles, nem são animados pela comum alma bem- aventurada do mundo, mas cada qual pela sua própria, como os vermes em nós, que não têm a nossa mente por alma, mas sim o seu próprio espírito. O homem é epílogo de todo o mundo e admirador dele, se quiser conhecer a Deus, mas, no entanto, ele é feito. O mundo é estátua, imagem, templo vivo de Deus, onde ele pintou os seus gestos e escreveu os seus conceitos, ornando-o de vivas estátuas, simples no céu, mistas e fracas na terra — mas a partir de todas caminha-se para ele. Bem-aventurado quem lê nesse livro e dele aprende,aquilo que as coisas são — e não do seu próprio capricho —, aprende a arte e o governo divino e, consequentemente, faz-se semelhante e unânime a Deus, e com ele vê que toda coisa é boa e que o mal é reflexo e máscara das partes que representam alegre comédia para o Criador, e que puramente desfruta, admira, lê e canta o infinito e imortal Deus, Primeira Potência, Primeira Sapiência e Primuiro Amor, de onde derivam e existem todo poder, saber e amor, conservando-se e transformando-se segundo os fins entendidos pela alma comum, que aprende do Criador, que sente a arte do Criador nas coisas inserida e que mediante aquela grande coisa guia emove para o grande fim, até que cada coisa setornetoda coisa e mostre a toda outra coisa as belezas da eterna idéia.” No que se refere propriamente à arte mágica, Campanella nela distinguetrês formas: 1) a divina; 2) anatural;3) a demoníaca. Campanella: a utopia política 179 À primeira é aquela que Deus concede aos profetas e santos. Aúltima é a que se vale da arte dos espíritos malignos, sendo condenada por Campanella. Já a segunda, a natural, “é uma arte prática que se serve das propriedades ativas e passivas das coisas naturais para produzir efeitos maravilhosos e insólitos, dos quais, as mais das vezes, se ignora a causa e o modo de provocá-los (...)”. Nessa linha, Campa- nella amplia em sentido panmagístico a magia natural, a ponto de nela inserir todas as artes, invenções e descobertas, como a invenção da imprensa e da pólvora, entre outras. Os próprios oradores e poetas entram na relação dos magos: “são magos segundos”. Mas, conclui Campanella, “a maior ação mágica do homem é dar leis aos homens”. 4.6. A “Cidade do Sol” Desse modo, estamos agora em condições de compreender a “Cidade do Sol” e o seu significado: ela representa a soma das aspirações de Campanella e verbaliza os seus anseios de reforma do mundo e de libertação dos males que o afligem, fazendo uso dos poderosos instrumentos da magia e da astrologia. Assim, é como que um cadinho de motivos no qual estão contidas todas as aspirações do Renascimento. Eis, então, uma breve descrição da Cidade do Sol. A cidade ergue-se sobre um vale que domina uma vasta planície, sendo dividida em “sete grandes círculos, denominados com o nome dos sete planetas, entrando-se de um para o outro através de quatro estradas e quatro portas, situadas nos quatro respectivos ângulos do mundo”. Acima do vale, surge um templo redondo, sem muralhas em torno, mas “situado sobre colunas grossas e bastante belas”. À cúpula apresenta uma cúpula menor, com uma espiral que “pende sobre o altar”, que está no centro. Sobre o altar, “nada mais há do que um mapa mundi bem grande, onde está pintado todo o céu, além de outro, onde está a terra. No céu da cúpula, estão todas as maiores estrelas do céu, tendo inscritos os seus nomes e as virtudes que têm sobre as coisas terrenas, com três versos para cada uma(...), havendo sempre sete lâmpadas acesas, com os nomes dos sete planetas”. A cidade é dirigida por um príncipe-sacerdote chamado Sol, que Campanella indica nos manuscritos com o sinal astrológico, especificando que “em nossa língua dizemos Metafísico”. Ele é o “chefe de todos no espiritual e no temporal”. Os príncipes que o assistem chamam-se Pon, Sin e Mor, que significam “Potência, Sapiência e Amor” (ou seja, representam as “primalidades” do ser), cada qual desenvolvendo funções adequadas ao seu nome. Jerônimo Cardan (1501-1576): um dos mais renomados magos do Renas- cimento. Capítulo V A REVOLUÇÃO CIENTÍFICA 1, A revolução científica: traços gerais 1.1. A revolução científica: o que muda com ela? O período de tempo que vai mais ou menos da data de publicação do De revolutionibus de Nicolau Copérnico, isto é, de 1543, à obra de Isaac Newton, Philosophiae naturalis principia mathematicaque foi publicada pela primeira vez em 1687, hoje é comumente apontado como o período da “revolução científica”. Trata-se de um poderoso movimento de idéias que adquire no século XVII as suas características determinantes na obra de Galileu, que encontra os seus filósofos — em aspectos diferentes — nas idéias de Bacon e Descartes e que depois iria encontrar a sua expressão agora clássica na imagem newtoniana do universo concebido como uma máquina, ou seja, como um relógio. O elemento detonador desse processo de idéias foi certamen- te a “revolução astronômica”, que teve seus representantes mais prestigiosos em Copérnico, Tycho Brahe, Keplere Galileue queiria confluir para a “física clássica” de Newton. Nesse período, portan- to, muda a imagem do mundo. Peça por peça, trabalhosa, mas progressivamente, caem por terra os pilares da cosmologia aristo- télico-ptolemaica: assim, por exemplo, Copérnico coloca o Sol no centro do mundo, ao invés da Terra; Tycho Brahe, mesmo sendo anticopernicano, elimina as esferas materiais que, na velha cos- mologia, arrastavam os planetas com seu movimento e substitui a idéia de orbe (ou esfera) material pela moderna idéia de órbita; Kepler apresenta uma sistematização matemática do sistema copernicano e realiza a revolucionária passagem do movimento 186 A revolução científica circular (Cnatural” e “perfeito”, na velha cosmologia) para o movi- mento elíptico dos planetas; Galileu mostra a falsidade da distin- ção entre física terrestre e física celeste, fazendo ver que a Lua é da mesma natureza da Terra e, entre outras coisas, cria novos fundamentos com a formulação do princípio da inércia; Newton, com sua teoria gravitacional, unificaria a física de Galileu com a de Kepler; com efeito, do ponto de vista da mecânica de Newton, pode- se dizer que as teorias de Galileu e de Kepler constituem boas aproximações a certos resultados particulares obtidos por Newton. Entretanto, durante os cento e cinquenta anos que decorrem entre Copérnico e Newton, não é apenas a imagem do mundo que se transforma. Vinculada a essa transformação, dá-se também a mudança — que também foi lenta e tortuosa, mas decisiva — das idéias sobre o homem, sobre a ciência, sobre o homem de ciência, sobre o trabalho científico e as instituições científicas, sobre as relações entre ciência e sociedade, entre ciência e filosofia e entre saber científico e fé religiosa. 1) Copérnico tira a Terra do centro do universo e, com ela, o homem. A terra não é mais o centro do universo, mas um corpo celeste como os outros: ela, precisamente, não é mais aquele centro do universo criado por Deus em função de um homem concebido como o ponto mais alto da criação, em função do qual estaria todo o universo. E, como a Terra não é mais o lugar privilegiado da criação e se ela não é diferente dos outros corpos celestes, então não poderia haver outros homens também em outros planetas? E, ocorrendo isso, como poderia resistir a verdade da narração bíblica sobre a descendência de todos os homens de Adão e Eva? E como é que Deus, que desceu nesta Terra para redimir os homens, poderia ter redimido outros eventuais homens? Essas interroga- ções já se haviam proposto com a descoberta dos “selvagens” da América, descoberta que, além de levar a mudanças políticas e econômicas, também proporia inevitáveis questões religiosas e antropológicas à cultura ocidental, colocando-a diante da “expe- riência da diversidade”. E quando Bruno rompe os limites do mundo, fazendo o universo infinito, o pensamento ocidental encon- trou-se na premência de buscar uma nova morada para Deus. 2) Mudando a imagem do mundo, muda a imagem do homem. Mas também, progressivamente, muda a imagem da ciência. A revolução científica não consiste somente em adquirir teorias novas e diferentes das anteriores sobre o universo astronômico, sobre a dinâmica, sobre o corpo humano ou, talvez, sobre a composição da Terra. Ao mesmo tempo, a revolução científica é uma revolução da idéia de saber e de ciência. A ciência — e esse é o resultado da revolução científica, resultado que Galileu iria explicitar com clareza absoluta — não é mais a intuição privile- A novidade da ciência moderna 187 giada do mago ou astrólogo iluminado, individualmente, nem o comentário a um filósofo (Aristóteles) que disse “a” verdade e toda averdade, isto é, não é mais um discurso sobre “o mundo de papel”, mas sim investigação e discurso sobre o mundo da natureza. Essa imagem de ciência não surge toda pronta, de uma vez, mas emerge progressivamente de um tumultuado cadinho de concepções e idéias, em que se entrelaçam e entrecruzam misticismo, herme- tismo, astrologia, magia e, sobretudo, temáticas da filosofia neoplatônica. Trata-se de um processo verdadeiramente complexo, que, como dizíamos, encontra seu resultado mais claro na funda- mentação galileana do método científico e, portanto, na autonomia da ciência em relação às proposições de fé e às concepções filosó- ficas. O discurso qualifica-se enquanto tal porque — como disse Galileu — procede com base nas “experiências sensatas” e nas “demonstrações necessárias”. E a “experiência” de Galileu é o “experimento”. A ciência é ciência experimental. E através do experimento que os cientistas tendem a obter proposições verda- deiras sobre o mundo. E essa nova imagem da ciência — feita de teorias sistematicamente controladas através dos experimentos — “era o registro de nascimento de um tipo de saber entendido como uma construção perfectível, que nasce da colaboração dos gênios, que necessita de uma linguagem específica e rigorosa e que, para sobreviver e crescer sobre si mesma, necessita de instituições específicas próprias (...). Um tipo de saber (...) que crê na capaci- dade de crescimento do conhecimento, que não se baseia na pura e simples rejeição das teorias anteriores, mas sim em sua substi- tuição por teorias mais “amplas”, que sejam logicamente mais “for- tes” e tenham maior conteúdo de controlabilidade” (Paulo Rossi). 3) Com a revolução científica, “abriu-se caminho para as categorias, os métodos, as instituições, os modos de pensar e os valores relacionados com aquele fenômeno que, depois da revolu- ção científica, costumamos chamar de ciência moderna” (Paulo Rossi). E o traço mais característico desse fenômeno que é a ciência moderna resume-se precisamente no método, que, por um lado, exige imaginação e criatividade de hipóteses e, por outro lado, o controle público dessas imaginações. Em sua essência, a ciência é pública — e o é por questões de método. É a idéia de ciência metodologicamente regulada e publicamente controlável que exi- ge as novas instituições científicas, como as academias, os labo- ratórios, os contatos internacionais (basta pensar em todos os epistolários importantes). E é com base no método experimental que se funda a autonomia da ciência, que encontra as suas verdades independentemente da filosofia e da fé. Mas tal inde- pendência não tarda a se transformar em confronto, que, no “caso Galileu”, torna-se tragédia. 188 A revolução científica Quando Copérnico tornou público o seu De revolutionibus, o teólogo luterano André Osiander apressou-se em escrever um Prefácio sustentando que a teoria copernicana — contrária à cosmologia contida na Bíblia — não deve ser considerada como uma descrição verdadeira do mundo, mas muito mais como um instrumento para fazer previsões. E essa seria também a idéia sustentada pelo cardeal Bellarmino em relação à defesa do coper- nicanismo realizada por Galileu. Lutero, Melanchton e Calvino iriam se opor duramente à concepção copernicana. E a Igreja católica processou por duas vezes Galileu, que seria condenado e forçado à abjuração. Entre outras coisas, estamos diante de um confronto entre dois mundos, entre dois modos de ver a realidade, entre duas maneiras de conceber a ciência e a verdade. Para Copérnico, Kepler e Galileu, a nova teoria astronômica não é mera suposição matemática nem um simples instrumento de cálculo, embora útil para melhorar a feitura do calendário, mas sim uma descrição verdadeira da realidade, obtida através de um método que não esmola garantias fora de si mesmo. O saber de Aristóteles é “pseudofilosofia” e a Escritura não tem a função de nos informar sobre o mundo, mas é palavra de salvação que apresenta um sentido para a vida dos homens. 4) Juntamente com a cosmologia aristotélica, a revolução científica leva à rejeição das categorias, dos princípios e das pretensões essencialistas da filosofia aristotélica. O antigo saber pretendia ser saber de essências, ciência feita de teorias e conceitos definitivos. Mas o processo da revolução científica conflui para a idéia de Galileu, que escreve: “Considero o tentar a essência como uma empresa não menos impossível e, pelo esforço, não menos vã nas substâncias elementares próximas do que nas remotíssimas e celestes: parece-me ser igualmente ignaro sobre a substância da Terra quanto da Lua, das nuvens elementares quanto dás man- chas do Sol (...). (Mas,) embora inutilmente, se se tentasse a investigação da substância das manchas solares, só nos restariam algumas de suas impressões, como o lugar, o movimento, a figura, a grandeza, a opacidade, a mutabilidade, a produção e a dissolução que poderiam ser captadas por nós.” Ou seja: a ciência como ela se configura ao fim do longo processo da revolução científica, não está mais voltada para a essência ou substância das coisas e dos fenômenos, mas sim para a qualidade das coisas e dos aconteci- mentos de modo objetivo e, portanto, sendo comprováveis e quan- tificáveis publicamente. Não é mais o que, mas o como; não é mais a substância, mas sim a função, que a ciência galileana e pós- galileana passariam a indagar. 5) Seo processo da revolução científica é também um processo de rejeição da filosofia aristotélica, não devemos em absoluto L A novidade da ciência moderna 189 pensar que ele careça de pressupostos filosóficos. Os artífices da revolução cientítifica, de vários modos, também estiveram ligados ao passado, referindo-se, por exemplo, a Arquimedes e Galeno. A mística do Sol, tanto hermética como neoplatônica, por exemplo, domina a obra de Copérnico e a de Kepler, podendo ser encontrada na de Harvey. E o grande tema neoplatônico do Deus que geome- triza e que, criando o mundo, cria-o imprimindo nele uma ordem matemática e geométrica que o pesquisador deve procurar, é um tema que atravessa grande parte da revolução científica, como a pesquisa de Copérnico, de Kepler ou de Galileu. 6) Assim, podemos dizer com certa cautela que o neoplato- nismo constitui a “filosofia” da revolução científica. De todo modo, ela representa certamente o pressuposto metafísico do eixo da revolução científica, vale dizer, da revolução astronômica. En- tretanto, as coisas são ainda mais complexas do que aquilo que expusemos até agora. Com efeito, a historiografia recente, mais atualizada (com E. Garin e Frances A. Yates, por exemplo), destacou com abundância de dados a relevante presença da tra- dição mágica e herméticano interior do processo que levou à ciência moderna. Naturalmente, havia aqueles que, como Bacon ou Boyle, criticavam a magia e a alquimia com toda a dureza possível, ou aqueles que, como Pierre Bayle, investiam contra as superstições da astrologia. Mas, em todos os casos, a magia, a alquimia e a astrologia são ingredientes ativos do processo que foi a revolução científica. Como também o foi a tradição hermética, isto é, aquela tradição que, referindo-se a Hermes Trismegisto (recordamos que o Corpus Hermeticum havia sido traduzido por Marcílio Ficino), tinha como princípios fundamentais o paralelismo entre o macro- cosmos e o microcosmos, a simpatia cósmica e a concepção do universo como um ser vivo. No curso da revolução científica, alguns temas e idéias mágicos e herméticos, devido ao contexto cultural diferente em que vivem ou revivem, se tornariam funcionais para a gênese e o desenvolvimento da ciência moderna. Mas isso nem sempre era possível ou nem sempre ocorreu. Em suma, a revolução científica avançou por um mar de idéias que nem sempre ou nem sempre completamente mostravam-se funcionais ao desen- volvimento da ciência moderna. Assim, por exemplo, enquanto Copérnico se referia à autoridade de Hermes Trismegisto (além da filosofia neoplatônica) para legitimar o seu heliocentrismo, já Bacon censura Paracelso (que, no entanto, como veremos, tinha seus méritos) não tanto por desertar a experiência, mas muito mais por tê-la traído, corrompendo as fontes da ciência e despojando a mente dos homens. E, da mesma forma, os astrólogos reagiram violentamente ao “novo sistema do mundo”. Com as descobertas de Galileu, o mundo tornou-se maior e a quantidade de corpos celestes
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