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Guias e Dicas
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Reforma Política no Brasil, Manuais, Projetos, Pesquisas de Ciências Sociais

Livro sobre reforma política no Brasil. Da editora UFMG com apoio PNUD.

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

Antes de 2010

Compartilhado em 03/11/2009

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Baixe Reforma Política no Brasil e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Ciências Sociais, somente na Docsity! Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:271 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Reitor: Ronaldo Tadêu Pena Vice-Reitora: Heloisa Maria Murgel Starling Editora UFMG Diretor: Wander Melo Miranda Vice-Diretora: Silvana Cóser Conselho Editorial Wander Melo Miranda (presidente) Carlos Antônio Leite Brandão José Francisco Soares Juarez Rocha Guimarães Maria das Graças Santa Bárbara Maria Helena Damasceno e Silva Megale Paulo Sérgio Lacerda Beirão Silvana Cóser Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Representante Residente: Kim Bolduc Representante Residente Adjunto: Lucien Muñoz Unidade de Governo Coordenador: Francisco Gaetani Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:272 Apresentação O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) vem através desta publicação contribuir para a discussão sobre as possibilidades de aperfeiçoamento da democracia no Brasil. O país é hoje uma democracia consolidada e vibrante, exemplo para o continente latino-americano, e objeto de admiração e respeito em todo o mundo. Transcorridas mais de duas décadas do processo de redemocratização, não se verifica no país nenhum temor quanto à possibilidade de retrocessos autoritários. As crises políticas ocor- ridas nesses anos foram todas superadas dentro do marco consti- tucional, sem colocar em risco as instituições democráticas, cuja construção é uma conquista permanente de toda a nação brasileira. O Brasil tornou-se conhecido internacionalmente também pelas inovações no campo da democracia cidadã, isto é, na esfera da democracia que vai além dos processos eleitorais periódicos da chamada democracia representativa. A multiplicação das experi- ências de orçamento participativo no âmbito local, a criação de conselhos com participação social no âmbito de diversas políticas públicas, as experiências de descentralização das políticas sociais e a institucionalização de uma instância de diálogo com os movi- mentos sociais no âmbito do Executivo são exemplos de como o Brasil vem contribuindo para o enriquecimento da prática democrá- tica no continente e no mundo. O PNUD é a favor de um debate qualificado sobre os dilemas e opções do país no que se refere ao seu sistema político. Esta publi- cação é uma contribuição ao diálogo nacional sobre o tema e destina- se ao mundo político, a organizações da sociedade civil, às universidades, aos meios de comunicação e à sociedade brasileira, em geral. Dado seu caráter didático e informativo, trata-se, também, de uma contribuição que não é prisioneira de debates marcados pelo imediatismo, pois visa possibilitar escolhas conscientes, uma meta desejável para a consolidação de processos democráticos fundados essencialmente na disputa política. Trata-se de um esforço de contribuição do PNUD ao debate sobre a reforma política no Brasil. Este é um assunto recorrente desde a Constituição de 1988, sinalizando que algumas das escolhas do país em relação ao tema ainda não estão consolidadas ou, talvez, devam ser objeto de recon- sideração. A iniciativa constitui-se em um seguimento de duas outras impor- tantes contribuições do PNUD ao debate sobre democracia: o Rela- tório Internacional sobre Desenvolvimento Humano de 2002 “Aprofundar a Democracia num Mundo Fragmentado” e o Informe da Diretoria para América Latina e Caribe “Democracia na América Latina – Rumo a uma Democracia de Cidadãos e Cidadãs”, lançado dois anos atrás com o apoio da União Européia. Ambos os relatórios alcançaram grande repercussão em escala continental e mundial Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:275 ao abordarem o tema da relação dos siste- mas políticos nacionais e a qualidade do processo democrático. Muito se discute sobre a funcionalidade de sistemas políticos em abstrato. Mas, quando se trata de vincular este debate aos desafios de um país como o Brasil — que enfrenta simultâneamente os imperativos de combater a pobreza e crescer —, as coisas já não são tão simples. Os grandes desafi- os da democracia brasileira são o combate à desigualdade e a promoção do desenvol- vimento, simultâneamente. A construção de um sistema político que favoreça um proje- to de governabilidade comprometida com estes dois projetos é um desafio nacional. A forma que o PNUD encontrou de apoiar esta discussão foi optando por disseminar o debate e os dilemas nele envolvidos. A sociedade precisa apropriar-se das escolhas que conduzem ao sistema político que a governa. Optou-se por desagregar os diver- sos ingredientes da discussão sobre refor- ma política e mapear as posições existentes sobre cada um deles. A intenção foi escla- recer as divergências, não processá-las, por- que esta tarefa é da sociedade brasileira e de sua classe política. O produto deste traba- lho, contido no livro, é um conjunto de textos que elucidam dilemas e proporcionam aná- lises do cenário brasileiro no que se refere aos desafios afetos ao funcionamento do sis- tema político. A iniciativa foi desenvolvida com o apoio de diversos integrantes da comunidade de cientistas políticos, economistas e sociólo- gos da academia brasileira, que se dispu- seram a participar do projeto. A edição deste trabalho se deu em parceria com a Universi- dade Federal de Minas Gerais, instituição à qual pertencem os organizadores desta publi- cação, que organizaram a estrutura do livro e a articulação das contribuições. A publicação não é um documento oficial do PNUD, embo- ra a iniciativa seja de sua responsabilidade, e os textos sejam de responsabilidade dos respectivos autores. A publicação é constituída por dois tipos de contribuições: artigos e verbetes. Os arti- gos que abrem e fecham o livro tratam de questões sobre a democracia cidadã e so- bre a funcionalidade — ou não — do sistema político brasileiro, além de uma contribuição ao debate a partir de um outro país latino- americano — o México — que traz um olhar comparativo. Os verbetes referem-se a diver- sos temas, mais ou menos relacionados com o debate sobre a reforma política no país. O conjunto das contribuições proporciona uma visão do mosaico que é a discussão da re- forma política do país e das posições em disputa. PNUD Brasil julho 2006 Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:276 Sumário Introdução 11 Parte I Reforma Política no Brasil e na América Latina 15 A Reforma da Representação 17 Fátima Anastasia Felipe Nunes Reforma Política e Participação no Brasil 35 Leonardo Avritzer Reforma Política em Perspectiva Comparada na América do Sul 45 Carlos Ranulfo Melo Transição e Governabilidade nas Democracias Mexicana e Brasileira 63 Alberto J. Olvera Tradução: Áurea Cristina Mota Parte II Entendendo as Mudanças Necessárias no Sistema Político 71 1. Republicanismo 73 Republicanismo 73 Heloisa Maria Murgel Starling Financiamento de Campanha (público versus privado) 77 Renato Janine Ribeiro Corrupção e Estado de Direito 82 Newton Bignotto Voto Obrigatório 86 Cícero Araújo CPIs e Investigação Política 90 Fábio Wanderley Reis Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:277 —] | Reforma Política no Brasil 01 272.p65 01/08/06, 17:27 Introdução Leonardo Avritzer Fátima Anastasia A reforma política pode ser entendida, de forma mais restrita, como reorganização de regras para competições eleitorais periódi- cas, tal como tem sido o caso no Brasil pós-democratização, ou pode ser entendida, também, como uma reorganização mais am- pla do sistema político brasileiro. Neste caso, vale a pena distinguir entre a reforma das instituições políticas, a reforma do comporta- mento político e a reforma dos padrões de interação política. No Brasil pós-democratização, a agenda da reforma política foi mu- dando: no começo dos anos 90 ainda eram discutidos amplos traços da organização das instituições políticas, como foi o caso do plebiscito sobre o parlamentarismo. A partir do final da década de 90, a idéia de reforma política foi se consolidando em torno de diferentes pontos: a reorganização ampla das regras do sistema político e da forma de financiamento de campanha, a criação de novas instituições capazes de aumentar a participação e os dife- rentes padrões de interação entre instituições representativas e participativas. Não existe, até o momento, um consenso sobre quais são as causas das crises periódicas que atravessam o sistema político brasileiro. Esta publicação tenta responder a essa indagação, proble- matizando três conjuntos de questões: o primeiro deles refere-se à maneira como o sistema representativo e as formas de participação estão estruturados no Brasil. A Parte I deste livro busca estabelecer algumas bases para uma compreensão mais ampla do sistema de representação e de participação vigente no país e apresenta su- gestões para o seu aprimoramento. O segundo conjunto de ques- tões, abordado em 31 verbetes apresentados na Parte II, refere-se à origem e ao funcionamento das instituições republicanas e demo- cráticas no Brasil e aos temas que freqüentam, ou deveriam fre- qüentar, a agenda da reforma política no país. Esses verbetes estão agrupados segundo as diferentes abordagens que os informam. O republicanismo, como interpretação do sistema político, ofe- rece instrumentos para uma investigação analítica capaz de trazer à tona elementos conceituais próprios às sociedades democráticas, tais como o voto obrigatório ou facultativo, ou a questão da corrupção. Ele permite, também, devolver densidade à idéia de interesses compartilhados, de ação pública dos cidadãos, de definição dos modos de agregação e uso do bem público. A análise institucional, por sua vez, busca identificar os efeitos produzidos pelos procedimentos democráticos, sob certas condições, Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2711 12 e os impactos prováveis das alterações nas regras do jogo presentes na agenda da re- forma, seja sobre o comportamento dos ato- res políticos e seus padrões de interação, seja sobre os resultados do jogo político. O terceiro elemento central para o debate sobre reforma política diz respeito ao arranjo institucional brasileiro, denominado por Sérgio Abranches de presidencialismo de coalizão, e aos seus problemas. Nesse arranjo, o pre- sidente se elege por maioria absoluta, mas o seu partido dificilmente consegue uma bancada com mais de 20% das cadeiras na Câmara dos Deputados. Apesar de boa parte da intelectualidade na área de ciência política no Brasil considerar o presidencia- lismo de coalizão como um sistema exitoso (Figueiredo; Limongi, 1999), há, também, um grupo significativo de críticos do sistema, especialmente na ciência política norte-ame- ricana, que questionam o sucesso do presi- dencialismo de coalizão no Brasil (Mainwaring, 1999; Ames, 2003). A crise política atual recoloca a discussão sobre o êxito do presidencialismo de coali- zão por dois motivos: em primeiro lugar por- que ela põe em questão o método de formação de coalizões. Coalizões podem ser construídas no processo eleitoral, tendo por principal “cimento” o voto, que é o recurso mais legítimo sob a democracia. Porém, sob o presidencialismo com multipartidarismo e representação proporcional, dificilmente sairá das urnas uma coalizão governativa majori- tária. Portanto, a transformação da coalizão eleitoral vitoriosa em coalizão governativa majoritária exigirá a mobilização de outros recursos. Embora se saiba que a persuasão e a produção do consenso, resultante do processo deliberativo, são recursos funda- mentais da política democrática, sabe-se, também, que no Brasil esses recursos têm sido usados de forma parcimoniosa, espe- cialmente dada a natureza das coalizões políticas que têm sido organizadas com vistas ao exercício do governo: a grande maioria, para não dizer a totalidade, das coalizões construídas no pós-88, no Brasil, caracterizou-se por ser composta por par- ceiros com pouca afinidade ideológica e programática, situação que veio a tornar-se mais aguda sob o atual governo. A questão do presidencialismo de coali- zão remete ao fato de o Brasil ser, entre os países da América Latina, um dos que con- solidou o seu sistema político mais tardia- mente. O sistema político pós-autoritarismo na Argentina, no Chile e no Uruguai implicou a volta ao sistema de partidos existente no período democrático anterior. No caso do México não houve ruptura entre o sistema de partidos que já operava no período auto- ritário e o sistema pós-democratização. No caso brasileiro, as identidades partidárias pre- gressas não foram recuperadas e um novo sistema partidário emergiu no contexto da redemocratização da ordem política. Nesta publicação, apresentamos diferentes artigos comparando a situação política brasileira com a latino-americana dando destaque ao problema da reforma política em perspec- tiva comparada. Finalmente, vale perguntar, reformar para quê? É importante sublinhar que a reforma das instituições políticas no Brasil será bem sucedida se contribuir para o aperfeiçoamento e o aprofundamento da ordem democrática, incidindo positivamente sobre o comporta- mento político dos atores em interação e sobre os resultados produzidos. Estrutura Este livro sobre reforma política no Brasil está dividido em três partes: uma primeira parte compreende considerações gerais sobre o funcionamento do sistema político no Brasil e na América Latina; a última parte procura apresentar a controvérsia que atra- vessa a ciência política brasileira no que se refere ao presidencialismo de coalizão. Entre as duas partes, o conjunto de 31 verbetes tem como objetivo oferecer ao leitor inte- ressado na reforma do sistema político uma introdução didática ao amplo cardápio de questões envolvidas nesse tema. Os ver- betes estão organizados em quatro seções: republicanismo, participação, constituição das instâncias decisórias e regras decisórias. Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2712 Reforma Política no Brasil e na América Latina Parte I Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2715 —] | Reforma Política no Brasil 01 272.p65 01/08/06, 17:27 A Reforma da Representação Fátima Anastasia Felipe Nunes Introdução Neste artigo se discutirá a reforma da representação política. Por representação política se entende o conjunto de relações esta- belecidas entre os cidadãos e os governantes eleitos. Os primeiros são, nas democracias, os sujeitos detentores de soberania política e a utilizam para autorizar outros, os governantes, a agirem em seu nome e no nome de seus melhores 1 interesses. Os cidadãos são os mandantes, os governantes são os mandatários, estejam eles no Poder Executivo — presidente, governador, prefeito — ou no Po- der Legislativo — senadores, deputados federais, deputados esta- duais ou vereadores. Segundo Robert Dahl (1991), foi a invenção da representação que permitiu a vigência da democracia nas sociedades contempo- râneas, que são complexas e heterogêneas, compostas por mi- lhões de pessoas e atravessadas por múltiplas clivagens e fontes plurais de formação de identidades coletivas. Em sociedades como estas o exercício exclusivo da democra- cia direta, como se fazia na polis grega, seria inviável. Ainda que fosse factível — considerando-se os recursos tecnológicos hoje dis- poníveis —, a utilização exclusiva de tal procedimento seria indese- jável, já que não permitiria que as decisões tomadas pelas coletividades fossem resultados de processos de discussão e de deliberação política, essenciais para a formação e a transformação das preferências políticas. A democracia exclusivamente direta se restringiria à agregação de preferências dadas e se revestiria de um caráter plebiscitário. A invenção da representação foi a solução encontrada (Sartori, 1994) 2 para diminuir concomitantemente os “custos internos” e os “riscos externos” associados ao processo decisório. Os primeiros (custos internos) crescem com o aumento do número de decisores e se referem aos recursos mobilizados para se permitir a participação ampliada dos cidadãos. Vale citar, a título de exemplo, a quanti- dade e a variedade de recursos que são empregados para realizar 1 A expressão “melhores interesses dos cidadãos” foi retirada de PRZEWORSKI, MANIN e STOKES (1999). Nas palavras dos autores: “Governos são representativos se eles fazem o que é melhor para o povo, se eles agem no melhor interesse de, pelo menos, uma maioria dos cidadãos.” 2 A argumentação desenvolvida neste parágrafo e no seguinte está baseada em SARTORI, 1994, capítulo 8: “A teoria da democracia como processo decisório.” Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2717 20 Vale, não obstante, assinalar, a partir da observação do Quadro I, que os critérios uti- lizados por Lijphart para classificar as de- mocracias atuais em consensuais ou majoritárias não distinguem tais dimensões. Quando ele se refere ao Poder Executivo, por exemplo, o critério utilizado remete à com- posição da instância decisória (grandes coalizões versus governo unipartidário com maioria estrita). Já quando trata do Poder Legislativo, o critério relaciona-se às regras decisórias (bicameralismo simétrico versus assimétrico) ao passo que a classificação do sistema eleitoral está informada pelo mé- todo de formação das Casas Legislativas (sistema proporcional versus sistema majo- ritário). Partindo-se da suposição de que seja possível produzir ganhos analíticos através da distinção entre as dimensões menciona- das — método de formação das instâncias decisórias; regras de tomada de decisão; composição das instâncias decisórias; ope- ração efetiva das instituições — propõe-se, nesta seção, revisitar Lijphart e apresentar um esquema analítico apoiado em quatro eixos de análise em substituição aos dois eixos propostos pelo autor. O primeiro eixo, relativo ao método de for- mação das instâncias decisórias, englobaria: 1) Formas de Governo (monarquia 4 versus república): a distinção, aqui, se refere aos procedimentos através dos quais são esco- lhidos os chefes de Estado. Nas monarquias o princípio que informa tal definição é a tra- dição, o procedimento é o da sucessão por hereditariedade e o cargo é vitalício, enquan- to nas repúblicas democráticas o chefe de Estado e o chefe de governo são escolhidos através de algum tipo de procedimento elei- toral e os seus mandatos são limitados no tempo e em seu escopo. 2) Sistemas de Governo (presidencialismo versus parlamentarismo): sob o presidencia- lismo existem mecanismos que garantem a intervenção dos cidadãos na definição dos ocupantes dos cargos executivos, enquan- to no parlamentarismo o primeiro-ministro não é eleito diretamente pelos cidadãos. O importante a salientar, no que se refere a estes diferentes procedimentos, é que no primeiro se constituem duas correntes de accountability, enquanto no segundo há apenas uma corrente de accountability (Amorim; Strom, 2006). O primeiro, portanto, faculta maior dispersão de poder do que o segundo, já que pode ensejar, como o tem feito, o fenômeno conhecido por governo dividido, caracterizado pelo fato de o partido ou a coalizão política que dá suporte ao Presidente não controlar a maioria das ca- deiras legislativas. 3) Organização Político-Administrativa (fede- ralismo versus unitarismo): tendo em vista suas características tendentes à descentra- lização do poder entre os diferentes entes fe- derativos, o federalismo combina melhor com o modelo consensual e o unitarismo com o modelo majoritário (Lijphart, 2003). Em am- bos os casos, deve-se atentar para os proce- dimentos (eleições diretas ou indiretas; indicações; nomeações, etc.) que informam a escolha dos representantes no âmbito subnacional, seja para cargos executivos (go- vernadores, prefeitos), seja para cargos legislativos (deputados estaduais, vereado- res). Eleições diretas para todos os cargos e níveis de governo são procedimentos que se coadunam melhor com o consensua- lismo, enquanto eleições indiretas, indica- ções ou nomeações pelo poder central seriam procedimentos mais afins ao mode- lo majoritário. 4) Sistema Eleitoral: define os procedimentos de escolha dos ocupantes das cadeiras legislativas. Sistemas eleitorais podem variar quanto ao tipo — proporcional de listas aber- tas, flexíveis ou fechadas; majoritários; ou combinações entre eles, denominadas pela literatura de sistemas mistos — e quanto às determinações relacionadas aos critérios de elegibilidade e de realização de campanha eleitoral, especialmente no que se refere ao seu financiamento e à propaganda eleitoral. 4 “(...) para se ter um regime monárquico é necessária a existência de uma pessoa estável no vértice da organização estatal com as características de perpetuidade e de irrevogabilidade: o monarca é tal desde o momento de sua elevação ao trono até sua morte, exceto o caso de voluntária abdicação. Para expulsá-lo do poder é preciso uma verdadeira revolução” (COLLIVA, 1986, p. 776). Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2720 21A Reforma da Representação | Fátima Anastasia | Felipe Nunes 5) Tipo de Cameralismo: as democracias contemporâneas podem ser unicamerais ou bicamerais. O unicameralismo coaduna-se melhor com o modelo majoritário. No caso do bicameralismo, trata-se de examinar o método de constituição das Casas Legislativas e verificar se há congruência ou incongruên- cia entre os sistemas eleitorais utilizados para a eleição de cada câmara. Considerando- se os tipos Proporcional e Majoritário, seriam possíveis as seguintes combinações: No que se refere à distribuição de po- deres entre os agentes relevantes, pode-se afirmar que o sistema de representação proporcional é o mais conducente à dis- persão. O sistema majoritário caracteriza-se pela concentração do poder nas mãos das maiorias governativas. Portanto, a classifi- cação dos legislativos bicamerais em mais, ou menos, consensuais pode ser visualizada através do continuum: MM MP PM PP Majoritário Consensual O segundo eixo refere-se às regras deci- sórias que presidem a tomada de decisões nas democracias e que afetam a distribui- ção de direitos, recursos e atribuições entre os atores, englobando: 1) as regras que definem as prerrogativas e os poderes legislativos e não legislativos do Poder Executivo. Poderes concentrados nas mãos do Executivo são típicos do modelo majoritário; 2) as regras que definem a distribuição de atribuições e competências do Poder Legislativo, englobando: a) as que se refe- rem a cada uma das câmaras, no caso do bicameralismo, produzindo bicameralismo Câmara Alta Proporcional Majoritário Congruente (PP) Incongruente (PM) Incongruente (MP) Congruente (MM) Quadro II - Bicameralismo Congruente e Incongruente Fonte: Elaboração própria. Câmara Baixa Proporcional Majoritário simétrico (consensualismo) ou assimétrico (majoritarismo); b) as que distribuem direi- tos, atribuições e recursos parlamentares, no interior de cada Casa Legislativa, entre legisladores individuais, grupos de legisla- dores (comissões, bancadas partidárias, Co- légio de Líderes, Frentes Parlamentares) e o Plenário. Poderes concentrados nas mãos de lideranças partidárias e processos decisórios que têm no Plenário seu fórum privilegiado combinam com o modelo majoritário; dis- persão de poderes entre os parlamentares individuais e sistema de comissões robusto caracterizam o modelo consensual; 3) as regras que definem as relações entre os poderes Executivo e Legislativo, obser- vando-se se há separação entre os poderes e checks and balances (consensualismo) ou fusão de poderes e predomínio do Executi- vo (majoritarismo); 4) as regras para proposição e aprovação de emendas constitucionais, se maioria absoluta (majoritarismo) ou qualificada (consensua- lismo); 5) as regras que informam processos de re- visão constitucional, verificando-se se a revi- são é feita por órgão independente (modelo consensual) ou não (modelo majoritário); 6) as regras que informam o status do Banco Central, se dependente (majoritarismo) ou independente do governo central (consen- sualismo). O terceiro eixo refere-se à composição das instâncias decisórias, que é uma variá- vel dependente da interação entre o método de formação das instâncias decisórias, as regras decisórias e a distribuição de prefe- rências e recursos entre os atores. Este eixo englobaria: 1) a composição do Poder Executivo, tendo em vista a presença de coalizões governativas — seja no parlamentarismo ou no presiden- cialismo (modelo consensual) — ou a pre- sença de governo unipartidário com maioria estrita (modelo majoritário); 2) a configuração do sistema partidário, se multipartidarismo (modelo consensual) ou bipartidarismo (modelo majoritário), já que Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2721 22 nas democracias os sistemas bipartidários não o são por imposição legal, mas resultam da interação entre as instituições e as esco- lhas políticas dos atores; 3) a composição do Poder Legislativo, se expressiva da pluralidade de identidades, interesses e preferências presentes na socie- dade e aberta à representação das minorias ou do predomínio de um partido majoritário, seja ele governista ou oposicionista; 4) no caso de governos de coalizão, a com- posição e a natureza das mesmas, obser- vando-se a sua contigüidade no espectro político-ideológico (Inácio, 2006) e os recursos utilizados para cimentá-las. Coalizões contí- guas e resultantes, fundamentalmente, da competição eleitoral coadunam-se melhor com o consensualismo, por contraste com coalizões ad hoc e/ou intermitentes e construídas a partir de práticas distribu- tivistas. O quarto eixo refere-se à operação efetiva das instâncias decisórias, que constitui variá- vel dependente das interações entre os três primeiros eixos. Neste eixo estão englobados: 1) Relação entre os Poderes: Equilíbrio entre os poderes x predomínio do Executivo. A concentração de poderes de agenda e de veto nas mãos do Poder Executivo é caracte- rística do majoritarismo, enquanto a distri- buição equilibrada desses poderes entre Executivo e Legislativo coaduna-se melhor com o consensualismo. 2) Padrões de interação entre os atores da coalizão governativa: coesão x disciplina x distributivismo (fisiologismo, clientelismo, patronagem). 3) Padrões de interação entre governo e oposição(ões): cooperação x competição. 4) Sistema Partidário: dinâmica bipartidária x pluralismo moderado x pluralismo polari- zado (Sartori, 1994; Santos, 1986). A análise do arranjo institucional brasilei- ro pós-88 à luz da matriz analítica proposta permite verificar que tal arranjo expressa uma combinação de características do modelo consensual, decorrentes do método de cons- tituição das instâncias decisórias, com ca- racterísticas do modelo majoritário, decor- rentes das regras de tomada de decisões. O Brasil é uma República, presidencia- lista, federativa, com representação propor- cional e multipartidarismo. O Poder Legislativo é bicameral: na Câmara dos Deputados, eleita através do sistema proporcional de lis- tas abertas, se fazem representar os cida- dãos, enquanto no Senado Federal, eleito através do sistema majoritário, se fazem re- presentar os estados da Federação (três se- nadores para cada estado da Federação). Tais características são, todas elas, ten- dentes à dispersão de poder entre os atores relevantes, garantem a participação institu- cionalizada das minorias e facultam a ex- pressão da heterogeneidade e do pluralismo societais. Portanto, no que se refere ao eixo método de constituição das instâncias deci- sórias, o Brasil pode ser classificado como pertencente ao modelo consensual de demo- cracia. Vale, no entanto, ressaltar que alguns procedimentos adotados nas eleições pro- porcionais provocam distorções na represen- tação e precisariam ser modificados para garantir a observância do princípio de igualdade política entre os cidadãos. Os dis- tritos eleitorais, no Brasil, coincidem com os estados da Federação, e a Constituição de 1988 determinou um número mínimo de oito, e máximo de setenta representantes por cada distrito. Na prática, isso acarreta uma sub- representação dos cidadãos de São Paulo e a sobre-representação dos eleitores dos es- tados menos populosos, como Acre e Ro- raima. A legislação eleitoral faculta, ainda, a celebração de coligações para eleições pro- porcionais, gerando uma disjunção entre o sistema partidário eleitoral e o sistema par- tidário parlamentar (Lima Jr., 1993; Lima Jr.; Anastasia, 1999). Quando se analisa o segundo eixo — re- gras de tomada de decisão —, percebe-se a operação de um padrão bastante distinto. Embora haja procedimentos que se coadu- nam com o consensualismo, a estes se so- mam características mais afins ao modelo Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2722 25A Reforma da Representação | Fátima Anastasia | Felipe Nunes por conseqüência desta exposição, de for- ma a aproximá-la, o máximo possível, da expressão do melhor interesse público. As atribuições de legislar e de fiscalizar devem ser realizadas, como é sabido des- de Stuart Mill, através da deliberação entre pares. Porém, a identificação do melhor in- teresse público exige a construção de uma base informacional ampliada (Sen, 2000), capaz de abrigar a multiplicidade de identi- dades, preferências e demandas caracterís- ticas das sociedades atuais, e de sinalizá-las para os legisladores, libertando-os dos la- ços exclusivos com a sua constituency e capacitando-os a falar, agir e decidir em nome do conjunto dos cidadãos abrangidos pela Casa Legislativa. Para realizar suas atribuições de legislar e de fiscalizar, os parlamentares desempe- nham atividades variadas que envolvem, em maior ou menor grau, deliberação e decisão política e, muitas vezes, interações continu- adas com outros atores, tais como os líde- res de coalizões, os titulares de cargos no Poder Executivo e os cidadãos. No interior do processo legislativo, as comissões são as principais instâncias de deliberação. O sistema de comissões exis- te para proporcionar ganhos informacionais para os legisladores e para o Plenário. As comissões funcionam como comitês: locais especializados de discussão e deliberação sobre determinados temas, com a virtude de propiciar interações face a face entre os seus membros (Sartori, 1994). Portanto, as comissões são, por excelência, os loci apropriados para a promoção da interação institucionalizada e deliberativa entre repre- sentação e participação política. Nas pala- vras de Arnold: As comissões são o verdadeiro coração do processo legislativo. A maior parte do suspense sobre o que o Congresso fará a cada ano encontra-se mais nas comissões, que aprovam dez por cento das proposições que são introduzidas, do que no conjunto da Casa, que aprova 98 por cento das leis que chegam ao Plenário (Arnold, 2004, p. 154). Cada uma das Casas Legislativas que compõem o Congresso Nacional — Câmara dos Deputados e Senado Federal — possui Comissões Parlamentares, permanentes ou temporárias, com funções legislativas e fiscali- zadoras, na forma definida pela Constituição Federal e por seus Regimentos Internos. No cumprimento dessas duas funções básicas, de elaboração das leis e de acompanha- mento das ações administrativas, no âmbito do Poder Executivo, as comissões promo- vem, também, debates e discussões com a participação da sociedade em geral, sobre os temas ou assuntos de seu interesse. O papel desempenhado pelas comis- sões na organização interna do Congresso Nacional, embora importante, deveria ganhar maior centralidade. 9 Tal postulação se justi- fica pelo seu caráter deliberativo e pelo fato de que nelas se situam os principais meca- nismos que facultam a participação dos ci- dadãos no processo legislativo, existindo, inclusive, em várias Casas Legislativas bra- sileiras, comissões que admitem sugestões de grupos organizados da sociedade civil e, muitas vezes, as transformam em proposi- ções legislativas. A título de exemplo, vale citar a Comissão de Legislação Participativa (CLP) da Câmara dos Deputados. Criada em maio de 2001, a Comissão de Legislação Participativa tem por objetivos facultar aos cidadãos acesso ao sistema de produção legal do País e aproximar repre- sentantes e representados no Poder Legis- lativo Federal. A CLP tem por atribuição o recebimento de sugestões legislativas da sociedade civil organizada (associações, sindicatos, entida- des, órgãos de classe, ONGs, etc.), exceto de partidos políticos. Também podem apre- sentar sugestões legislativas os órgãos e entidades da administração pública direta e indireta, com participação paritária da soci- edade civil, como, por exemplo, os conse- lhos temáticos setoriais (da educação, da9 Ver, a respeito, o artigo de Santos, neste volume. Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2725 26 saúde, da assistência social, etc.). Se apro- vadas, as sugestões se transformam em proposições de autoria da Comissão e pas- sam a tramitar em regime de prioridade na Câmara dos Deputados. Antes da criação da CLP, a Constituição já previa a possibilidade de apresentação de projetos de iniciativa popular (art. 61, pa- rágrafo 2º), mas a norma constitucional exi- ge que a proposta seja subscrita por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacio- nal (o que equivale atualmente a cerca de 1,15 milhão de eleitores), distribuído por, pelo menos, cinco Estados da Federação, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles. Essa exigência dificulta a apresentação de propostas. Tan- to que, nos 15 anos de vigência da Carta de 1988, apenas três projetos de iniciativa po- pular foram apresentados à Câmara — os PLs 2710/92, 4146/93 e 1517/99. Por contraste, através desta Comissão, a Câmara dos Deputados abriu à sociedade civil um portal de acesso ao sistema de produção das normas que integram o ordenamento jurídico do País, chamando o cidadão comum, os homens e as mulheres representados pelos Deputados Federais, a levar diretamente ao Parlamento sua per- cepção dos problemas, demandas e neces- sidades da vida real e cotidiana (Cartilha da Comissão de Legislação Participativa, 2005, p. 7). Em cinco anos (2001-2005) 10 de trabalho, a CLP recebeu 362 sugestões legislativas, sendo que 275 delas, ou 75,9%, referem-se a pedidos de alteração ou de inclusão de proposições legislativas; 22,3% das suges- tões propõem emendas ao orçamento da União, solicitando transferência de renda para cidades ou instituições específicas. Emen- das ao Plano Plurianual e à Lei de Diretrizes Orçamentárias não somaram 2% das suges- tões. É importante ressaltar que 2002 e 2005 foram os anos em que a CLP recebeu mais sugestões, 59 e 107, respectivamente. 11 Das 362 sugestões encaminhadas à CLP entre 2001 e 2005, 182 foram apreciadas e 113 transformadas em proposição e encami- nhadas à Mesa da Câmara para tramitar na Casa. Destas 113, 53,98% se tornaram Pro- jetos de Lei; 5,31% Projetos de Lei Comple- mentar, e 22,12% Emendas ao Orçamento. Esses números apontam o bom desempe- nho da CLP no que se refere à incorporação de demandas da sociedade civil. 12 Pretende-se enfatizar, através deste exemplo, que nas democracias contempo- râneas a deliberação não é atributo exclusi- vo quer dos processos representativos, quer daqueles participativos. A deliberação deve estar presente, necessariamente, em ambos os pólos — representação e participação — assim como nos canais através dos quais representação e participação se comunicam e interagem. Portanto, não apenas as Casas Legislati- vas devem ser instâncias deliberativas, já que o que nelas se delibera deve ecoar e reverberar, da melhor forma possível, os pro- cessos de deliberação em curso nas enti- dades de participação política da sociedade civil. Para tanto, requer-se que haja canais permanentes, institucionalizados e delibe- rativos de interação entre as instâncias de representação e de participação política. 3. A reforma em marcha Como fazer? No contexto da nova ordem democrática brasileira, a reforma política tem freqüentado a agenda pública brasileira já desde a promulgação da Constituição de 1988, que previa, em seu texto, a realização 10 A partir deste parágrafo, serão descritos e analisados alguns dados relativos ao comportamento, aos procedimentos e à produção legislativa no Brasil. As tabelas de onde essas informações foram retiradas estão disponíveis no Anexo 1, no final deste artigo. 11 A análise das sugestões apreciadas na CLP aponta que aproximadamente metade delas foi aprovada (46,15%) e metade foi rejeitada (44,5%). Das 182 sugestões que já foram apreciadas, nove receberam o parecer de prejudicialidade, ou seja, diziam respeito a matérias que já estavam em tramitação via outro Projeto de Lei ou Emenda. O ano em que a comissão conseguiu apreciar o maior número de sugestões (70) foi 2003, tendo sido a maioria delas (38) rejeitada. 12 Faz-se necessário, ainda, analisar o conteúdo dessas sugestões. Das 275 sugestões encaminhadas à CLP, a maioria absoluta refere-se à regulação, independentemente de sua autoria. Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2726 27A Reforma da Representação | Fátima Anastasia | Felipe Nunes de plebiscito sobre forma e sistema de gover- no e uma revisão constitucional, ambos em 1993 (art. 3º das Disposições Transitórias). 13 Ademais desses dispositivos constitu- cionais, várias iniciativas sobre a reforma da representação foram propostas à consi- deração dos legisladores. Entre 1989 e 2005, 14 cerca de 180 proposições legislativas tramitaram no Congresso Nacional, a grande maioria delas de iniciativa de legisladores individuais (deputados ou senadores). É interessante observar que há uma con- centração de apresentação de propostas de reforma no período mais recente, especial- mente nos três últimos anos, o que explica por que tais proposições, em sua maioria, estejam ainda em tramitação e apenas 11 delas tenham sido transformadas em nor- mas jurídicas. Algumas das proposições que se torna- ram leis provocaram importantes impactos sobre o comportamento dos atores, a dinâ- mica de interação entre eles e seus resulta- dos: (a) a Proposição 1/1995, que foi transformada em emenda constitucional, per- mite a reeleição do Presidente da Repúbli- ca, dos governadores de Estado e do Distrito Federal e dos prefeitos; (b) a Proposição 427/ 1997 estabelece critérios para edição e ree- dição de medidas provisórias (EC 32 de 2001); (c) o Projeto de Iniciativa Popular, que tramitou como Proposição 1517/1999 e foi transformado em norma jurídica, estabele- ce punição para o crime de compra de vo- tos, prevendo a possibilidade de cassação de registro do candidato que doar, oferecer ou prometer bem ou vantagem pessoal em troca do voto (Lei da Captação do Sufrágio); (d) e, finalmente, a Proposição 548/2002 dá nova redação ao parágrafo 1 o do artigo 17 da Constituição Federal, disciplinando as coligações eleitorais. Há temas que têm sido, recorrente- mente, objetos de iniciativas dos legislado- res: fidelidade partidária, listas partidárias, propaganda eleitoral, pesquisas eleitorais, financiamento de campanhas, coligações eleitorais, ainda que, muitas vezes, essas iniciativas tenham sinais trocados. 15 Vale, no entanto, assinalar, a partir da análise de alguns dados produzidos no âm- bito da Pesquisa sobre Elites Parlamentares Ibero-Americanas (Módulo Brasil) 16 , que há alguma convergência de opiniões entre os legisladores quanto à natureza e à desejabi- lidade de algumas medidas relacionadas ao tema da representação política. No que se refere ao sistema eleitoral, verifica-se a existência de clara preferência, por parte da maioria dos deputados, pelo sistema proporcional, “que garanta a repre- sentação eqüitativa de todas as forças polí- ticas”, por contraste com a adoção de um sistema majoritário, “que garanta governos fortes e efetivos”. A questão relacionada ao tipo de lista partidária já desperta maiores controvérsias, ainda que a maior minoria (aproximadamente 40% dos respondentes) declare preferir a lis- ta aberta — caracterizada como um “siste- ma de voto personalizado que garanta uma relação próxima entre o eleitor e seus repre- sentantes” — ao “sistema de voto de lista fechada, que favoreça a formação de parti- dos fortes e coesos” (23%). Cerca de 18% dos legisladores escolheram uma posição 13 “Art. 3º. A revisão constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral.” 14 Foi possível localizar, através do site da Câmara dos Deputados, 180 proposições legislativas relacionadas ao tema da reforma da representação, apresentadas entre 1989 e 2005. 15 A título de exemplo, examinem-se as ementas de algumas dessas proposições: • Proposição 242/2000 “dá nova redação aos arts. 17 e 55 da Constituição Federal, que dispõem sobre fidelidade partidária, promovendo a perda do cargo eletivo nas hipóteses de o ocupante deixar o partido pelo qual foi eleito e de grave violação da disciplina partidária”; • Proposição 254/2004 “retira do texto constitucional a exigência de filiação partidária como condição de elegibilidade”; • Proposição 461/2005 “cria novo instrumento de democracia participativa na Constituição Federal, a fim de possibilitar a autoconvocação popular para realização de plebiscito”; • Proposição 669/1999 “altera o artigo 6º da Lei 9.504, de 30 de setembro de 1997, impedindo a celebração de coligações para eleição proporcional”; • Proposição 1974/1999 “altera o artigo 9º da Lei 9.504, de 30 de setembro de 1997, aumentando para dois anos o prazo de filiação partidária com vistas a cargo eletivo”; • Proposição 3949/2000 “cria o voto em lista partidária preordenada para eleições proporcionais”. 16 Pesquisa realizada junto aos deputados federais através da cooperação entre o Centro de Estudos Legislativos do Departamento de Ciência Política (CEL- DCP) da UFMG e o Instituto Interuniversitário de Estúdios de Iberoamérica y Portugal, da Universidad de Salamanca, Espanha. Foi construída uma amostra de 134 legisladores, estruturada por quotas partidárias. Os questionários foram aplicados no período compreendido entre julho e dezembro de 2005. As tabelas que apresentam os dados examinados nesta seção encontram-se no Anexo I. Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2727 30 LIMA JÚNIOR, Olavo B.; ANASTASIA, Fátima. A participação eleitoral: a ampliação do mercado, indica- dores de participação e distorções do sistema de representação. Teoria & Sociedade, Belo Horizonte, v. 4, p. 33-104, 1999. MELO, Carlos Ranulfo. A dança das cadeiras. São Paulo: Editora UNESP; Rio de Janeiro: Fundação Konrad - Adenauer - Stiftung, 2004. PRZEWORSKI, Adam; STOKES, Susan C.; MANIN, Bernard (Ed.). Democracy, accountability, and representation. New York: Cambridge University Press, 1999. SANTOS, Fabiano. Poder Legislativo no presidencialismo de coalizão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Sessenta e quatro: anatomia da crise. Rio de Janeiro: Vértice, 1986. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Poliarquia em 3D. Dados, v. 41, n. 2, 1998. SARTORI, Giovanni. A teoria da democracia revisitada. São Paulo: Ática, 1994. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Cia. das Letras, 2000. TIPO Projetos de Lei, Requerimentos de Audiência Pública, etc. Emendas de Orçamento Emendas ao PPA Emendas à LDO TOTAL 2001 24 11 - - 35 2002 59 21 - - 80 2003 57 16 1 - 74 2004 28 12 - - 40 2005 107 21 - 5 133 TOTAL 275 (75,9%) 81 (22,3%) 1 (0,27%) 5 (1,43%) 362 (100%) Tabela 1 - Nº de sugestões recebidas pela Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados, Brasil, 2001-2005 Fonte: Cartilha da Comissão de Legislação Participativa. Câmara dos Deputados, 2005. Anexo I Fonte: Cartilha da Comissão de Legislação Participativa. Câmara dos Deputados, 2005. Nota: No número total de sugestões apreciadas (Tab. 2) não estão computadas as emendas orçamentária, à LDO e ao PPA. Tabela 2 - Nº de sugestões apreciadas na Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados, Brasil, 2001-2005 TIPO Aprovadas Rejeitadas Prejudicadas Devolvidas TOTAL 2001 3 - - 2 5 2002 27 20 - 1 48 2003 27 38 - 5 70 2004 13 12 8 - 33 2005 14 11 1 - 26 TOTAL 84 (46,15%) 81 (44,5%) 9 (4,94%) 8 (4,39%) 182 (100%) Tabela 3 - Sugestões Transformadas em Proposições pela Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados, Brasil, 2001-2005 Fonte: Cartilha da Comissão de Legislação Participativa. Câmara dos Deputados, 2005. Nota: A categoria “Outros” (Tab. 3) inclui 4 emendas (à LDO e ao PPA) e 4 sugestões transformadas em proposições. TIPO Projeto de Lei Projeto de Lei Complementar Emenda a Projeto de Lei Indicação Requerimento de Audiência Pública e Seminário Requerimento de Informação Emenda ao Orçamento Outros TOTAL 2001 1 1 - - - - 5 - 7 2002 20 4 - 2 2 1 5 - 34 2003 22 1 - - 1 - 5 1 30 2004 10 - 1 1 - - 5 - 17 2005 8 - 2 - 3 - 5 7 25 TOTAL 61 (53,98%) 6 (5,31%) 3 (2,65%) 3 (2,65%) 6 (5,31%) 1 (0,88%) 25 (22,12%) 8(7,07%) 113 Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2730 31A Reforma da Representação | Fátima Anastasia | Felipe Nunes Total 3 1,7% 4 2,2% 19 10,6% 79 43,9% 75 41,7% 180 100,0% Autor de Proposição Comissão - - - 1 25,0% 3 75,0% 4 100,0% Senador, Individualmente - 1 7,7% 1 7,7% 9 69,2% 2 15,4% 13 100,0% Deputado, Individualmente 3 1,8% 3 1,8% 18 11,0% 69 42,3% 70 42,9% 163 100,0% Legislatura (ano) 1989 1990 - 1994 1995 - 1998 1999 - 2002 2003 - 2005 Total Tabela 4 - Autor de Proposições Relativas à Reforma Política, por Legislatura, Câmara dos Deputados, Brasil, 1989-2005 Fonte: Elaboração própria, a partir de informações coletadas em www.camara.gov.br, no período compreendido entre 25 de maio e 05 de junho de 2006. Tabela 5 - Opiniões sobre Sistemas Eleitorais, por Deputados Agregados segundo Filiação Partidária, Câmara dos Deputados, Brasil, 2005 Sistema proporcional e sistema majoritário (1) (2) (3) (4) (5) (6) (7) (8) (9) (10) N.S. Total PDT 2 66,7% - - - - 1 33,3% - - - - - 3 100,0% PT 7 30,4% 3 13,0% 3 13,0% 2 8,7% 2 8,7% 3 13,0% 1 4,3% 2 8,7% - - - 23 100,0% PTB 6 42,9% - 1 7,1% - 3 21,4% 1 7,1% - 2 14,3% - 1 7,1% - 14 100,0% PMDB 8 40,0% 1 5,0% 3 15,0% 1 5,0% 1 5,0% - 1 5,0% 1 5,0% 1 5,0% 2 10,0% 1 5,0% 20 100,0% PL 5 41,7% 1 8,3% 1 8,3% - - - - - - 5 41,7% - 12 100,0% PFL 6 37,5% - 1 6,3% - 7 43,8% - 1 6,3% 1 6,3% - - - 16 100,0% PSDB 6 50,0% - 2 16,7% - 4 33,3% - - - - - - 12 100,0% PCdoB 2 100,0% - - - - - - - - - - 2 100,0% OUTROS 15 46,9% - 4 12,5% - 7 21,9% 2 6,3% 2 6,3% - - 2 6,3% - 32 100,0% Total 57 42,5% 5 3,7% 15 11,2% 3 2,2% 24 17,9% 7 5,2% 5 3,7% 6 4,5% 1 0,7% 10 7,5% 1 0,7% 134 100,0% Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de Dados Representação Política e Qualidade da Democracia – Instituto Interuniversitario de Estudios de Iberoamérica y Portugal/Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, 2005. (1) Sistema Proporcional que garanta a representação eqüitativa de todas as forças políticas. (10) Sistema majoritário que garanta governos fortes e efetivos. PARTIDOS Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2731 32 Tabela 6 - Tipo Preferido de Lista Eleitoral, por Deputados Agregados segundo Filiação Partidária, Câmara dos Deputados, Brasil, 2005 Sistemas de voto (1) (3) (4) (5) (6) (7) (8) (9) (10) N.S. Total PDT 2 66,7% - - - - 1 33,3% - - - - 3 100,0% PT 2 8,7% 1 4,3% - 7 30,4% 1 4,3% 4 17,4% 5 21,7% - 3 13,0% - 23 100,0% PTB 9 64,3% 1 7,1% - 2 14,3% - - - - 2 14,3% - 14 100,0% PMDB 6 30,0% 1 5,0% 1 5,0% 3 15,0% - - - 2 10,0% 6 30,0% 1 5,0% 20 100,0% PL 10 83,3% - - 2 16,7% - - - - - - 12 100,0% PFL 3 18,8% - - 5 31,3% - - - 1 6,3% 6 37,5% 1 6,3% 16 100,0% PSDB 1 8,3% - - 4 33,3% 1 8,3% - - - 6 50,0% - 12 100,0% PCdoB 2 100,0% - - - - - - - - - 2 100,0% OUTROS 18 56,3% 1 3,1% - 1 3,1% 1 3,1% - 3 9,4% - 8 25,0% - 32 100,0% Total 53 39,6% 4 3,0% 1 0,7% 24 17,9% 3 2,2% 5 3,7% 8 6,0% 3 2,2% 31 23,1% 2 1,5% 134 100,0% Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de Dados Representação Política e Qualidade da Democracia – Instituto Interuniversitario de Estudios de Iberoamérica y Portugal/Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, 2005. (1) Sistema de voto personalizado que garanta uma relação próxima entre o eleitor e seus representantes. (10) Sistema de voto de lista fechada que favoreça a formação de partidos fortes e coesos. PARTIDOS Tabela 7 - Opiniões sobre Democracia e Partidos Políticos, por Deputados Agregados segundo Filiação Partidária, Câmara dos Deputados, Brasil, 2005 Se concorda ou não com a frase: Sem partidos não pode existir democracia Discorda Concorda Pouco Concorda mais ou menos Concorda muito N.S. N.R Total PDT - - - 3 100 % - - 3 100 % PT 2 8,7% - 3 13,0% 18 78,3% - - 23 100 % PTB - - 3 21,4% 11 78,6% - - 14 100 % PMDB - 1 5,0% 1 5,0% 18 90,0% - - 20 100 % PL 2 16,7% - 3 25,0% 7 58,3% - - 12 100 % PFL - - 1 6,3% 15 93,8% - - 16 100 % PSDB 1 8,3% - 1 8,3% 10 83,3% - - 12 100 % PCdoB - - - 2 100,0% - - 2 100 % OUTROS 3 9,4% 1 3,1% 3 9,4% 23 71,9% 1 3,1% 1 3,1% 32 100 % Total 8 6,0% 2 1,5% 15 11,2% 107 79,9% 1 0,7% 1 0,7% 134 100 % Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de Dados Representação Política e Qualidade da Democracia – Instituto Interuniversitario de Estudios de Iberoamérica y Portugal/Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, 2005. PARTIDOS Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2732 Reforma Política e Participação no Brasil Leonardo Avritzer O sistema político gerado pela Constituição de 1988 é um siste- ma híbrido que incorporou na sua organização amplas formas de participação no plano do processo decisório federal, assim como, no plano local. Duas formas principais de participação foram gera- das pela Constituição de 1988: uma primeira, a participação direta através da expressão da soberania por meio de plebiscitos, refe- rendo e iniciativas populares, parece ter sido a preferência do legis- lador constitucional, ainda que o seu exercício pós-Constituição de 1988 não tenha sido muito grande. Uma segunda forma de participa- ção, centrada no nível local, proliferou como decorrência da incorpo- ração da participação exigida por alguns capítulos de políticas sociais da Constituição de 1988, em particular, os capítulos da seguridade social e da reforma urbana. Neste artigo irei, em primeiro lugar, des- crever a institucionalidade participativa presente na Constituição de 1988, para, em seguida, analisar as instituições participativas gera- das pela Constituição. A Constituição de 1988 propôs, na sua arquitetura mais genéri- ca, uma combinação entre formas de representação e formas de participação. Essa combinação está expressa na redação do artigo 14, incisos I, II e III, que assegura que “[a] soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: plebiscito; referendo [e] iniciativa popular”. Assim, o Brasil, a partir de 1988, passou a integrar um grupo bastante seleto de países que não têm na representação o monopólio das formas de expressão política institucionalizadas. Do ponto de vista da arquitetura política, pou- cos países têm essa formulação presente no plano constitucional, ainda que um número relativamente grande de países tenha pre- sente essa combinação entre representação e participação na sua estrutura política. 1 A tentativa de combinação entre participação e representação está prevista também para os estados e municípios no artigo 27 da Constituição de 1988 que estabelece que “[a] lei disporá sobre a iniciativa popular no processo legislativo estadual” e no artigo 29, 1 Os Estados Unidos são o exemplo mais clássico de um país cuja constituição não fala das formas de participação no nível local. Formas de participação local existem na região de New England desde o período da colônia e foram preservadas no momento da constituição do poder central enquanto poder representativo. Vide MANSBRIDGE, 1980. A França tem uma arquitetura política distinta com os governos locais tendo sido proibidos até a reforma política realizada por Mitterand em 1981 (GAUDIN, 1999). Entre os países em desenvolvimento a Índia é o país que mais tem instituições participativas. Veja HELLER; ISAAC, 2002. Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2735 36 incisos XII e XIII, sobre os Municípios, que dispõe que [o] Município reger-se-á por lei orgânica, (...) atendidos os princípios esta- belecidos nesta Constituição, na Constitui- ção do respectivo Estado e os seguintes preceitos: “... iniciativa popular de projetos de lei de interesse específico do município, da cidade ou de bairros, através de mani- festação de, pelo menos, cinco por cento do eleitorado...”. Assim, não se trata, quan- do falamos de participação, apenas de um artigo isolado na formulação das formas de expressão da soberania popular mas de uma arquitetura que se desdobra para os entes federados. É interessante notar, tam- bém, que a exigência de participação não se esgota nos níveis do Poder Executivo, mas abrange também o Legislativo. O artigo 61 da Constituição de 1988 assegura que “[a] iniciativa popular pode ser exercida pela apre- sentação à Câmara dos Deputados de pro- jeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional distribuído pelo menos por cinco estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles”. Sendo assim, as formas de exercício direto da soberania, plebiscito, refe- rendo e iniciativa popular estão amplamente incorporadas no texto constitucional ainda que elas tenham sido pouco exercidas no Brasil democrático. Há uma segunda forma de participação que está prevista na Constituição de 1988 que é a de atores ou entidades da socieda- de civil na deliberação sobre políticas públi- cas. Essas formas presentes nos capítulos da seguridade social e da reforma urbana tornaram-se amplamente difundidas no Bra- sil democrático. Em relação à gestão das políticas públicas, o artigo 194, parágrafo único, inciso VII, a respeito da Seguridade Social, assegura o “caráter democrático e descentralizado da administração, median- te gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do governo nos órgãos cole- giados”. O artigo 204, inciso II, sobre a As- sistência Social, prescreve a “participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis”. Finalmente, o artigo 227, parágrafo 1º, acer- ca da Família, da Criança, do Adolescente e do Idoso, dispõe que “ [o] Estado promove- rá programas de assistência integral à saú- de da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não-governamen- tais (...)” (Avritzer; Dolabella, 2005). O artigo 186 sobre a reforma urbana requer a elabo- ração de planos diretores municipais em todas as cidades com mais de 20 mil habi- tantes. Nesse caso, apenas a legislação infraconstitucional, o assim chamado “Esta- tuto da Cidade”, requer a participação da população na elaboração dos planos direto- res (Caldeira; Holston, 2004; Avritzer, 2006). Assim, o próprio processo constituinte se tornou a origem de um conjunto de institui- ções híbridas que foram normatizadas nos anos 90, tais como os conselhos de política e tutelares ou as formas de participação a nível local. Em seguida, iremos analisar o impacto de cada uma das legislações parti- cipativas no Brasil democrático. Plebiscito e referendum: uma breve incursão sobre o seu uso político no Brasil democrático Os mecanismos de democracia direta, em especial, o plebiscito, o referendum 2 e a iniciativa popular de lei, não foram as for- mas de participação ampliada mais utiliza- das no Brasil democrático. Um plebiscito e um referendo foram convocados no Brasil democrático, o primeiro, acerca da forma de governo, e o segundo, sobre a comercializa- ção das armas de fogo. Foram propostas três leis de iniciativa popular, todas elas apro- vadas ainda que através de processos dife- renciados na Câmara dos Deputados. Vale a pena, apesar das poucas experiên- cias em curso, discutir os três tipos de utilização 2 Vale a pena para os objetivos deste artigo diferenciar plebiscito de referendum. Ainda que os dois sejam uma consulta direta à população sobre aspectos políticos, o que os diferencia é que o plebiscito é uma decisão soberana da população tomada diretamente, que irá gerar uma lei, ao passo que o referendum é uma ratificação pela via eleitoral de uma lei ou de partes de uma lei já aprovada pelo Poder Legislativo. Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2736 37Reforma Política e Participação no Brasil | Leonardo Avritzer dos mecanismos de democracia direta no Brasil democrático. O primeiro experimento utilizado no Brasil para que a população se manifestasse diretamente foi o plebiscito da forma de governo, mais conhecido como o plebiscito sobre o parlamentarismo. Apesar do ineditismo da maioria das formas de con- sulta geradas pela Constituição de 1988, o plebiscito sobre a forma de governo não era, em si, inédito. Um outro plebiscito foi feito no Brasil em 1963 no contexto da crise que levou ao final da primeira experiência demo- crática (Lamounier, 1991). O plebiscito de 1993 foi realizado em um contexto de cons- trução institucional e sua inclusão no debate político brasileiro deveu-se mais à influência de alguns cientistas políticos, em particular Juan Linz, no processo de construção insti- tucional 3 do que a um debate mais expres- sivo no interior da opinião pública. No final, o posicionamento da população acabou obe- decendo mais à dinâmica política de curto prazo, na qual Luis Inácio Lula da Silva lidera- va a corrida presidencial naquele momento. A decisão pela manutenção do presidencia- lismo parece ter sido acertada, pelo menos em relação à preocupação de Linz, já que as diversas crises entre o Presidente e o Congresso, em particular a crise atual vivida pelo governo Lula, não parecem ter afetado a estabilidade institucional do país. No que diz respeito ao referendum, o Bra- sil democrático teve apenas um caso, que foi o do referendum sobre a comercialização de armas de fogo, realizado no ano de 2005. A origem do referendum sobre o desarma- mento pode ser localizada em um impasse surgido durante a elaboração do estatuto do desarmamento. Naquele momento, entre as diversas iniciativas debatidas para desarmar a população apareceu a proposta de proibir a comercialização de armas para toda a população civil, proposta essa que encon- trou oposição em grupos conservadores do Congresso Nacional. O referendum foi então convocado não no sentido de ratificar uma lei e sim com o objetivo de transferir para a população uma decisão que causava impas- se no Parlamento (Brasil, 2003). Mais uma vez o posicionamento da população no refe- rendum foi influenciado por questões políti- cas de curto prazo, em particular a forte crise política enfrentada pelo governo Lula, que fez com que esse se ausentasse do debate sobre o assunto. O resultado do referendum foi a derrota da proibição do porte e comer- cialização de armas por civis, uma derrota contundente para os defensores da proibi- ção no interior do sistema político e princi- palmente no campo da sociedade civil. 4 Assim, se analisamos as duas experiências principais de manifestação direta da popu- lação no Brasil democrático, podemos ver que elas acabaram obedecendo a dinâmi- cas de curto prazo do país ou do sistema político no pouco uso que foi feito desses instrumentos. Entre todas as formas de democracia direta, a mais utilizada no Brasil democrático foi a iniciativa popular de lei. A iniciativa popular de lei pode ser apresentada ao Con- gresso Nacional desde que subscrita por 1% do eleitorado distribuído por, pelo menos, cinco estados, com não menos de 0,3% do eleitorado em cada um deles (Pessanha, 2004). Foram apresentados, até o momen- to, três projetos de iniciativa popular de lei no Congresso Nacional e alguns poucos pro- jetos nos legislativos estaduais dos estados de Minas Gerais e Rio Grande do Sul, para os quais existem dados disponíveis. Os três projetos apresentados foram: corrupção elei- toral com um milhão de assinaturas, projeto apresentado pela CNBB; mudança na lei de crimes hediondos, com 1,3 milhão de assi- naturas; e projeto sobre o fundo nacional da habitação popular, com um pouco mais de três milhões de assinaturas. Entre os três 3 A principal influência foi Juan Linz, para quem há uma incompatibilidade entre os poderes do Presidente e o da maioria parlamentar, gerando uma crise no sistema político. Veja COUTINHO. 4 É possível argumentar que a derrota da proibição do porte de armas foi a principal derrota dos setores organizados da população brasileira desde a democratização. Do lado da sociedade civil organizada existia um consenso quase absoluto a favor da proibição, consenso esse que abrangia todas as principais religiões e Igrejas, assim como as entidades laicas mais influentes da sociedade civil. É interessante também apontar que o padrão de voto vigente no país foi completamente alterado pelo referendum, tanto no que se refere às supostas regiões mais progressistas no que diz respeito a assuntos sociais (Rio Grande do Sul e Sudeste) quanto pela composição social do eleitorado. Os setores mais pobres, geralmente chamados de despolitizados, foram os setores a favor da proibição do porte de armas. Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2737 40 variação na sua presença nas diferentes re- giões do país. As regiões Norte e Nordeste são as que ainda não apresentam uma rede completamente constituída de conselhos, com um número de conselhos da criança e do adolescente e do meio ambiente significa- tivamente menor do que as demais regiões. É importante também mencionar que os da- dos do IBGE não distinguem entre a infor- mação sobre a presença de conselhos e sua efetividade pensada, seja em termos do número de reuniões realizadas por ano, seja pela sua capacidade de pautar a delibera- ção da política pública a ele vinculada. Da- dos parciais de pesquisa para algumas regiões do país revelam essa discrepância, que sugere que alguns conselhos não se reúnem ou, em alguns casos, não chegam nem ao menos a existir efetivamente (Avritzer, Cunha; Cunha, 2003). Ainda que não existam dados conclusi- vos sobre o papel dos conselhos na mudan- ça do padrão de políticas públicas nas áreas nas quais eles estão melhor estruturados, alguns indicadores parciais merecem ser mencionados. No caso dos conselhos de saúde e de assistência social há uma ten- dência democratizadora da ação dos con- selhos nos lugares em que eles são mais atuantes. Essa tendência envolve o levanta- mento de um conjunto de queixas e deman- das sobre o funcionamento de postos de saúde, que acaba tendo um efeito positivo sobre a organização da política pública. Es- ses casos envolvem principalmente grandes capitais com organização significativa dos conselhos de saúde (Coelho; Veríssimo, 2004; Avritzer, 2004; Cortes, 2002). Há tam- bém evidências de organização mais efici- ente das políticas públicas na área da assistência social. A partir da resolução do Conselho Nacional de Assistência Social de redistribuir os recursos de emendas de par- lamentares a partir de critérios técnicos, há uma tendência mais racional de distribuição dos recursos federais na área. Assim, ainda que não tenha havido até o momento uma avaliação nacional do papel dos conselhos, existem evidências parciais de um funcio- namento exitoso em algumas grandes cida- des ou no caso do papel desempenhado por alguns conselhos nacionais, como os da saúde e da assistência social. A outra instituição participativa que tem se destacado no Brasil democrático é o Orçamento Participativo (OP), a única entre as instituições discutidas neste artigo cuja criação não é decorrência direta da Consti- tuição de 1988. O orçamento participativo é uma forma de balancear a articulação entre representação e participação ampla da po- pulação através da cessão da soberania por aqueles que a detêm enquanto resultado de um processo eleitoral. A decisão de iniciar o OP é sempre do prefeito. A soberania passa a ser partilhada com um conjunto de assem- bléias regionais e temáticas que operam a partir de critérios de livre participação. Todos os cidadãos são tornados, automaticamente, membros das assembléias regionais e temá- ticas com igual poder de deliberação. A prin- cipal experiência de OP, até esse momento, ocorreu na cidade de Porto Alegre a partir de 1990. Belo Horizonte, São Paulo e Recife são outras capitais de porte que também têm o orçamento participativo. As experiências de orçamento participativo tiveram até 1997 um cunho fundamentalmente partidário, uma vez que a sua grande maioria esteve vinculada ao Partido dos Trabalhadores. A partir de 1997 há uma tendência à expansão do orça- mento participativo e à sua pluralização no universo partidário. Existiam em 2004 170 experiências de orçamento participativo espalhadas pelo país da seguinte forma: Mapa 1 – OPs Gestão 2001 - 2004 Fonte: Avritzer, 2006. Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2740 41Reforma Política e Participação no Brasil | Leonardo Avritzer É possível perceber uma concentração regional dos casos de OP nos estados do Rio Grande do Sul, São Paulo e Minas Gerais e uma baixa presença de casos nos esta- dos das regiões Norte e Nordeste. Vale a pena pensar mais vagarosamente sobre os motivos da concentração de casos de OP nesses estados. A melhor explicação seria um misto de elementos de uma cultura po- lítica mais participativa (Avritzer, 2006) com elementos da dinâmica política local. Os ca- sos mais fortes de OP até 2004 estavam concentrados no estado do Rio Grande do Sul, um estado com uma tradição política mais igualitária e onde o Partido dos Traba- lhadores se destacou no começo dos anos 90 como introdutor de políticas participati- vas. Os casos dos estados de São Paulo e Minas Gerais parecem ser bastante diferen- tes, e a proliferação dos casos de OP parece estar mais ligada à dinâmica local da vida política. No estado de São Paulo, administra- ções não petistas que se seguiram a admi- nistrações petistas, em geral, deram continuidade às experiências de orçamento participativo em curso. O mesmo parece ser verdadeiro no estado de Minas Gerais, em cidades importantes como Betim e Ipatinga. É possível também perceber uma plura- lização dos partidos cujos prefeitos adotam o orçamento participativo. Entre os casos de orçamento participativo existentes até 1997, havia 53 experiências no Brasil, 62% entre elas concentradas em administrações do Partido dos Trabalhadores e 72% entre elas concentradas no campo de esquerda (PSB, PDT e PCdoB). Entre 2000 e 2004, foram re- gistradas 170 experiências de OP no Brasil, 47% dentre elas concentradas no Partido dos Trabalhadores e 57% no campo de esquerda. (Avritzer, 2006) O principal fenômeno obser- vado nesse período é o crescimento do nú- mero de experiências feitas no espectro político centrista, isto é, por partidos como o PMDB e o PSDB. Assim, o que é possível perceber em relação às experiências de par- ticipação como o OP é que elas têm se am- pliado no Brasil tanto no seu número quanto na sua influência política. Originalmente, parte de um repertório político limitado a partidos de esquerda, em especial, ao PT, essas experiências hoje atingem o espec- tro do centro e da esquerda e envolvem um número significativo de partidos políticos. No entanto, o que vale a pena avaliar é o impac- to dessas formas de participação no siste- ma político como um todo, ou seja, se de fato ocorreu no Brasil pós-1988 a combina- ção entre representação e participação alme- jada pelo legislador constitucional. Participação e representação no Brasil democrático Como mostramos anteriormente, a arqui- tetura institucional do Brasil democrático é híbrida, e privilegia a combinação entre re- presentação e participação. No entanto, o fato de combinar representação e participa- ção não quer dizer que as duas formas de soberania política foram combinadas nos lu- gares adequados e na proporção correta. Duas observações mais gerais podem ser feitas sobre essa combinação no Brasil de- mocrático: em primeiro lugar, as instituições de democracia semidireta, tais como o ple- biscito, o referendum e a iniciativa popular, permaneceram muito mais vinculadas ao fun- cionamento do Congresso Nacional ou dos legislativos estaduais do que seria desejá- vel ou do que acontece em outros países. O plebiscito de 1993 e o referendum de 2005 surgiram a partir de polêmicas internas à Constituinte de 1988 e ao Congresso Nacio- nal e não conseguiram substituir essa lógi- ca da disputa interna por uma lógica além da representação, na qual os mecanismos de democracia semidireta obedecem a um nexo mais societário. A mesma coisa pode ser afirmada em relação à iniciativa popular de leis: as poucas experiências de iniciativa de lei foram prejudicadas por um procedi- mento pouco claro de tramitação no Con- gresso, que não deu à iniciativa prioridade na tramitação legislativa, apesar do enorme esforço envolvido na coleta de mais de um milhão de assinaturas. Nesse sentido, é Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2741 42 possível apontar como o problema maior para a proliferação das formas de participação direta, a dependência que elas ficaram, na sua formulação constitucional, de autorização do Congresso Nacional. O ideal em relação a essas formas amplas de consulta da popu- lação é que elas sejam amplamente inde- pendentes do Poder Legislativo, e que, com o tempo, adquiram uma lógica própria. O segundo tema analisado neste artigo, o da proliferação das formas de participação no nível local, parece apontar na direção con- trária. Os orçamentos participativos e os conselhos se tornaram as formas principais de participação no Brasil democrático. No entanto, essas novas formas locais de parti- cipação não têm se articulado bem com os legislativos locais, que têm sido, via de regra, postos em um segundo plano na sua capa- cidade decisória. Essas instituições, cujas prerrogativas e capacidade de decisão são, em geral, baixas, não têm sido capazes de se articular com as formas de participação e têm perdido legitimidade na política local. O ideal seria que os arranjos participativos locais tivessem algum tipo de participação de representantes dos Legislativos. Para isso, faz-se necessária uma mudança norma- tiva, já que a legislação existente entende os conselhos de políticas como parte da estrutura do Executivo, o que, a nosso ver, parecer ser um equívoco. Assim, à guisa de conclusão, podemos afirmar que apesar da intenção do legislador constituinte de criar formas híbridas de relação entre a partici- pação e a representação, esse objetivo ainda não foi alcançado no Brasil democrático. É desejável que nos próximos anos as formas de democracia semidiretas adquiram auto- nomia em relação à dinâmica do Congresso Nacional, assim como é desejável que os arranjos participativos locais se articulem melhor com os legislativos locais. Somente assim cada uma das formas de exercício da soberania, a participação e a represen- tação, poderão complementar déficits ou incompletudes presentes na outra. Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2742 Reforma Política em Perspectiva Comparada na América do Sul Carlos Ranulfo Melo Introdução Os últimos vinte anos foram marcantes para a América do Sul. Boa parte de seus países restabeleceu as regras do jogo democrá- tico, mas, na grande maioria dos casos, teve que fazê-lo em meio a um quadro de enorme desigualdade social, agravado por crises econômicas e pela falência do antigo modelo de desenvolvimento centrado no Estado. Submetidas a duros testes, as jovens demo- cracias da região atravessaram períodos de intensa crise política e sofreram, em alguns países, ameaças de retrocesso. Mesmo na- queles casos em que a experiência democrática não chegou a ser interrompida pelo ciclo de golpes militares, como a Colômbia e a Venezuela, o sistema político atravessou os anos 80 emitindo cla- ros sinais de instabilidade e perda de representatividade. Em resposta a esse conjunto de fatores, os países sul-america- nos vêm passando por um intenso movimento de inovação e expe- rimentação institucional. A depender do país, esse processo envolveu a convocação de uma Assembléia Constituinte, a realiza- ção de um conjunto de reformas constitucionais e/ou mudanças na legislação ordinária. 1 Este artigo centrará sua atenção em um subconjunto dessas mudanças: as reformas nos sistemas eleitorais. Praticamente to- dos os países do continente modificaram algumas das regras sob as quais são eleitos os membros dos Poderes Legislativo e Execu- tivo. 2 Ocorreram alterações na forma de eleição do Presidente (se por maioria absoluta ou simples) e/ou na duração do mandato. Em alguns países a reeleição passou a ser admitida, e eleições diretas para governadores e prefeitos foram introduzidas. Calendários elei- torais sofreram alterações, fazendo com que as eleições nos dife- rentes níveis, nacional ou subnacional, deixassem de coincidir. No que tange ao Poder Legislativo, alguns países transitaram do bica- meralismo para o unicameralismo, extinguindo o Senado. Outros modificaram o número de membros e o processo de composição 1 Brasil (1988), Colômbia (1991), Equador (1998) e Venezuela (1999) convocaram Constituintes. A Venezuela o fez depois de haver experimentado uma série de reformas pontuais em sua constituição entre o final dos anos 80 e meados dos anos 90. Argentina e Bolívia em 1994, o Uruguai em 1996 e, recentemente, o Chile em 2005, realizaram reformas constitucionais no curso de processos legislativos ordinários. 2 A afirmação não inclui o Suriname, a Guiana e a Guiana Francesa. Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2745 46 dessa Casa. Finalmente, no que se refere à Câmara dos Deputados, foram registradas a introdução de sistemas eleitorais mistos, a modificação no número dos representan- tes e a alteração do número de cadeiras em disputa nos distritos. O texto está organizado da seguinte ma- neira: na primeira seção é feita uma breve abordagem acerca dos problemas envolvi- dos nos processos de reforma político-elei- toral e das condições que podem favorecer, ou dificultar, a sua ocorrência. A seguir são discutidos e comparados os casos da Argen- tina, Bolívia, Brasil, Chile, Uruguai e Vene- zuela. 3 Para cada país são apresentados os atores responsáveis pela condução das re- formas, o tipo de constrangimento — insti- tucional e/ou social — sob o qual atuavam, e analisados os resultados. Na conclusão, é feito um rápido balanço dos seis processos reformistas. O jogo da reforma eleitoral A democracia pode ser entendida como um tipo de jogo em que a incerteza é institu- cionalizada (Przeworski, 1994). Arranjos ins- titucionais possuem impacto sobre o resultado dos conflitos políticos, fazendo com que determinados resultados sejam descar- tados, delimitando o leque dos desfechos possíveis e apontando aqueles que são os mais prováveis. Isso é tanto mais verdadeiro quanto mais consolidado se mostre deter- minado arranjo: a institucionalização é “o processo através do qual as organizações adquirem valor e estabilidade” (Huntington, 1975, p. 24). Um processo de reforma eleitoral é um tipo de mudança institucional que pode en- volver, nas palavras de Tsebelis (1998), alte- rações no conjunto de jogadores, nas jogadas permitidas, na seqüência do jogo e/ou na informação disponível para cada jo- gada. Trata-se, geralmente, de um jogo mar- cado pela incerteza (Norris, 2000). O conhecimento adquirido pelos atores políti- cos — que aprenderam a lidar com as re- gras vigentes e sob estas condições esta- beleceram suas estratégias — perde parte de seu valor. A mudança nas regras exigirá um novo aprendizado. Mais importante, ain- da, sob as novas regras, os resultados po- dem ser de difícil previsão. Mesmo que seja possível avaliar a possibilidade de ganhos imediatos ligados ao contexto em que se realiza a reforma, a situação pode se alterar com o tempo: não se pode prever como re- agirá o conjunto dos atores à medida que todos se familiarizem com as novidades; não se sabe exatamente como se combinarão (em termos de efeito sobre o processo polí- tico) as novas e as antigas instituições; não se pode impedir a interferência de fenôme- nos diversos que anulem ou minimizem os efeitos esperados. Em outras palavras, como toda mudança institucional, uma reforma eleitoral é um tipo de investimento de longo prazo (Tsebelis, 1998), o que torna mais difí- cil o controle do processo e aumenta a chance de que sejam produzidas conseqüências não intencionais. A experiência recente das democracias consolidadas fornece exemplos de reformas eleitorais cujos objetivos foram plenamente alcançados e outras onde o fracasso foi retumbante. No primeiro caso encontra-se a Nova Zelândia que, a partir de 1993 e após a realização de dois referendos, transitou de um sistema eleitoral majoritário de tipo in- glês para um sistema misto, ao estilo ale- mão. 4 O objetivo dos reformadores era possibilitar o acesso dos partidos minoritá- rios à House of Representatives e, com isso, conferir maior representatividade ao sistema político (Denemark, 1996; Lima Júnior, 1999). 3 Como ficará claro, os países serão agrupados dois a dois: Argentina e Uruguai; Bolívia e Venezuela; Brasil e Chile. A escolha dos países se justifica por serem expressivos de diferentes contextos de reforma. 4 Os deputados neozelandeses eram eleitos até então em 99 distritos, cada um deles elegendo um representante para a Câmara. A partir das eleições de 1996, metade dos deputados passou a ser eleito por meio de voto proporcional em lista fechada. A outra metade continuou a ser eleita de forma majoritária. O eleitor passou a contar com dois votos, um reservado à disputa no distrito e outro à disputa entre as listas partidárias. O número de votos dados nas listas serve como referência para o cálculo das cadeiras atribuídas aos partidos, o que assegura que os resultados da eleição sejam proporcionais, corrigindo a distorção típica dos sistemas majoritários puros. O sistema misto foi introduzido pelos alemães em 1949. Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2746 47Reforma Política em Perspectiva Comparada na América do Sul | Carlos Ranulfo Melo O objetivo foi alcançado, e a partir das elei- ções seguintes a Nova Zelândia passou a apresentar um sistema multipartidário. 5 A Itália ilustra o segundo caso. Também em 1993 e novamente após a realização de referendos, os legisladores italianos substi- tuíram o sistema de representação propor- cional em vigor desde o pós-guerra por um sistema misto. 6 O objetivo era reduzir a frag- mentação partidária e aumentar o grau de estabilidade governamental (Morlino, 1996). Mas a mudança no sistema, segundo Pas- quino (1997), apenas reforçou uma tendên- cia, já em curso, de desalinhamento eleitoral e crise do sistema partidário, que terminou, como se sabe, por implodir pouco tempo depois. A partir de 1994 as eleições italia- nas passaram a ser polarizadas por duas grandes coalizões, de centro-esquerda e centro-direita, dentro das quais se abrigava um enorme número de novas organizações partidárias. Em 2005 a Itália, por iniciativa do governo Berlusconi, voltou a adotar o sis- tema de representação proporcional para Câmara e Senado. 7 A incerteza inerente ao processo reformista pode dificultar a construção de uma coali- zão capaz de conduzi-lo. Mesmo que tais coalizões contem com apoios no poder Exe- cutivo e na sociedade, a adesão de uma maioria de congressistas se mostra essen- cial para o sucesso da empreitada. Legisla- dores, como se sabe, são especialmente preocupados com sua reeleição, e não se deve esperar que adiram a projetos que co- loquem em risco sua sobrevivência política. Dessa forma, os atores interessados em li- derar processos reformistas devem lançar mão de estratégias de persuasão e de modi- ficação (Arnold, 1990). O objetivo das primei- ras é não só o de convencer os legisladores quanto à justeza das propostas em pauta, mas principalmente o de tranqüilizá-los quan- to a seus impactos eleitorais. Quanto às se- gundas, trata-se de modificar aspectos da proposta ou de tornar sua implementação gradual, de modo a contemplar as preferên- cias de seus liderados, atrair novos adeptos e, se possível, dissuadir oponentes. Finalmente, é preciso levar em conta o arranjo institucional em tela. Democracias que se organizam com base em arranjos consensuais (Lijphart, 2003), ou proporcio- nais (Powell, 2000), tendem a ampliar o nú- mero e a pluralidade dos representantes presentes no processo de produção de polí- ticas, o que aponta para a necessidade de conformação de maiorias mais amplas e para processos decisórios mais negociados e incrementais. Democracias que, por outro lado, se baseiam em uma concepção majo- ritária tendem a concentrar poderes nas mãos de uma maioria estrita, diminuindo o número de atores com poder de negocia- ção e, em função disso, podendo tornar mais fáceis os processos de mudanças, ainda que, no limite, também possam gerar deci- sões menos representativas. O impacto do arranjo institucional pode ainda ser maior ou menor a depender do grau de desinstitucionalização exigido pela pro- posta reformista. Evidentemente, reformas políticas baseadas em projetos de lei ordi- nária são mais fáceis de serem aprovadas do que aquelas que exigem alterações cons- titucionais. Neste último caso, o sucesso da empreitada reformista poderá depender, ain- da, do quórum necessário para a realização de emendas constitucionais. Exigências de maiorias mais elevadas conferem às dife- rentes minorias maior poder de veto sobre as mudanças. Apesar de permanecerem cercadas de incertezas, reformas eleitorais têm sido fre- qüentes nos últimos vinte anos. E se isso ocorre deve-se a que os resultados obtidos pelos arranjos eleitorais vigentes passam a 5 O domínio absoluto dos partidos Trabalhista e Nacional foi questionado. Nas eleições de 2002, a Câmara dos Deputados neozelandesa chegou ao seu momento de maior fragmentação, apresentando um número efetivo de partidos (N) igual a 4,6. Em 2005, a fragmentação voltou a diminuir e o valor de N baixou para 3,0. 6 O sistema misto na versão italiana distingue-se da matriz alemã pelo fato de que 75% dos eleitos são escolhidos nos distritos, restando apenas 25% das vagas a serem preenchidas a partir das listas partidárias. 7 O novo sistema italiano traz como inovação um “bônus de maioria”, de modo a garantir que a coalizão mais votada não possua menos do que 340 (em 630) cadeiras na Câmara dos Deputados. Evidentemente, Berlusconi esperava que sua coalizão chegasse em primeiro lugar. O sistema estabelece ainda que coalizões partidárias necessitam obter pelo menos 10% da votação nacional (votos válidos) para ter direito a assento no Legislativo. No caso de partidos que concorram sozinhos, a exigência cai para 4%. Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2847 50 Nos dois países os objetivos de curtíssi- mo prazo dos atores que conduziram o pro- cesso de reforma foram alcançados. Carlos Menem se reelegeu presidente em 1995, mas as mudanças realizadas em 1994 am- pliaram o espaço institucional da oposição (Jones, 1997) e contribuíram para que pela primeira vez na história argentina um “tercei- ro partido” ultrapassasse uma das organiza- ções tradicionais. O candidato presidencial da FREPASO — uma organização de cen- tro-esquerda que contava entre seus funda- dores com dissidentes do PJ — superou a votação da UCR e praticamente igualou a sua força na Câmara dos Deputados. Nas eleições seguintes, em 1999, uma aliança entre a UCR e a FREPASO imporia ao justicia- lismo sua maior derrota em todos os tem- pos (Anastasia; Melo; Santos, 2004). A comparação entre os arranjos institu- cionais antes e depois de 1994 não deixa margem para dúvida. A reeleição, a introdu- ção do segundo turno e o fim do Colégio Eleitoral nas eleições presidenciais, as elei- ções diretas para a prefeitura de Buenos Ai- res e para o Senado, bem como a ampliação deste último, fizeram com que o sistema político argentino ganhasse pontos em ter- mos de representatividade e accountability. Tais mudanças não foram suficientes, no entanto, para evitar que no calor da crise que se abateu sobre o país em 2001 e que levou à renúncia do presidente De la Rua, os ar- gentinos saíssem às ruas aos gritos de “que se van todos”. Ainda que a crise tenha sido resolvida por meios institucionais, não resta dúvida de que os acontecimentos aba- laram profundamente a legitimidade dos partidos e de líderes políticos nacionais. 13 No Uruguai, os partidos Colorado e Nacio- nal conseguiram impedir que Tabaré Vázquez chegasse à presidência da República em 1999. O candidato da Frente Ampla venceu o primeiro turno, com 38,5% dos votos, mas perdeu no segundo para o candidato do partido Colorado, apoiado pelo Nacional, Jorge Batlle, por 54,1% a 45,9%. Na eleição seguinte, contudo, a esquerda manteve sua trajetória ascendente, e Vázquez venceu as eleições no primeiro turno, obtendo ainda maioria de 51,5% na Câmara e 56,7% no Senado. Resultados eleitorais à parte, as mudan- ças no arranjo institucional também reforçam a democracia uruguaia nos quesitos de repre- sentatividade e accountability. Com a intro- dução do segundo turno e da candidatura única por partido deixou de existir a possi- bilidade da eleição de presidentes minori- tários no país. Nas eleições de 1989 e 1994, os presidentes uruguaios haviam sido elei- tos com 22,6% e 24,7% dos votos, respec- tivamente. Da mesma forma, a introdução de eleições internas abertas para a escolha dos candidatos presidenciais representou uma considerável oxigenação de um siste- ma político desde sempre acostumado à di- nâmica das listas fechadas. Trata-se de medida que contribui para o aumento do grau de inclusividade do sistema político; de um avanço na direção apontada pela quarta con- dição da poliarquia de Dahl 14 (1989), na me- dida em que aumenta o número de pessoas com algum poder de definição das alternati- vas colocadas à votação (Anastasia; Melo; Santos, 2004). Venezuela e Bolívia De acordo com Robert Dahl (1989), sob determinadas condições não há arranjo de- mocrático que consiga se estabilizar. Os ca- sos da Venezuela e, em menor grau, da Bolívia são exemplos de situações em que a elite política, ao perceber a redução do grau de legitimidade do arranjo institucional em tela e sentindo aumentar a pressão social por mudanças, assume a dianteira do pro- cesso de reformas, mas termina por perder o controle do processo. Os dois casos me- recem um pouco mais de atenção. 13 A crise de 2001 levou ao desmantelamento da FREPASO e ao encolhimento expressivo da UCR, que na eleição presidencial de 2003 conseguiu apenas 3% dos votos, embora tenha mantido alguma força no Congresso. Carlos Menem também sentiu o gosto da crise: nas eleições de 2003 obteve pouco mais de 20% dos votos, muito longe dos 49,7% de 1995. 14 De acordo com Dahl, entre as condições que permitem o avanço das poliarquias rumo aos objetivos de soberania popular e igualdade política está a de que “qualquer membro que perceba um conjunto de alternativas, pelo menos uma das quais considera preferível a qualquer daquelas na ocasião apresentadas, pode inseri-la(s) entre as apresentadas à votação” (1989, p. 72). Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2850 51Reforma Política em Perspectiva Comparada na América do Sul | Carlos Ranulfo Melo A estabilidade do presidencialismo vene- zuelano, após o pacto de Punto Fijo, em 1958, e até o final dos anos 80 guardava forte rela- ção com uma brutal concentração de poder no eixo Poder Executivo/sistema partidário. 15 Em regime de duopólio, Ação Democrática (AD) e Comitê de Organização Política Elei- toral Independente (COPEI) partilharam o controle do processo político formal e da or- ganização da sociedade civil, partilha defini- da com base nos resultados das eleições presidenciais. O Presidente, além de porta- voz da nação, era também o árbitro desta disputa particular, cabendo-lhe as decisões referentes à partilha do poder — o que se desdobrava na nomeação de ministros, go- vernadores, dirigentes de empresas estatais e um sem-número de cargos na máquina administrativa. No arranjo institucional resul- tante, os poderes Legislativo e Judiciário perdiam autonomia. As condições vigentes na Venezuela começaram a se modificar na década de 80. A economia entrou em declínio, a infla- ção subiu e a renda caiu, frustrando as ex- pectativas da população quanto à melhoria do nível de vida. Ao mesmo tempo, como decorrência de três décadas de estabilida- de e recursos abundantes, a sociedade ha- via alterado o seu perfil, ensejando o surgimento de associações e de movimen- tos que não mais dependiam dos partidos e não se mostravam dispostos a se subme- ter às suas redes. Finalmente, os casos de corrupção passaram a se tornar mais fre- qüentes, ao passo que aumentava a percep- ção, por parte da sociedade, de que o sistema político, em especial os partidos, era incapaz de lidar com o problema (Anas- tasia; Melo; Santos, 2004). Conforme relata Lucena (2003), as pres- sões da sociedade civil se faziam no senti- do de reivindicar “mais poder aos cidadãos e menos aos partidos políticos”. A absten- ção, que nunca havia ultrapassado os 13%, fechou a década na casa dos 50%. E em 1989 uma revolta popular contra medidas adotadas pelo presidente Carlos Andréz Pérez (AD) foi brutalmente reprimida pelo Exército nas ruas de Caracas, gerando 350 mortos (Uchoa, 2003) e alargando o fosso entre a sociedade civil e o sistema político. Pérez, que havia firmado um acordo com o FMI sem consultar sequer seu partido e pretendia implementar um pacote de reformas econô- micas de caráter neoliberal, não conseguiu terminar seu mandato: depois de enfrentar duas tentativas de golpe militar lideradas pelo então coronel Hugo Chávez, em feve- reiro e novembro de 1992, o Presidente foi destituído sob a acusação de malversação de dinheiro público. 16 A primeira resposta oficial ao desconten- tamento crescente veio ainda em 1984, quando o presidente Jaime Lusinchi criou a Comissão Presidencial para a Reforma do Estado (COPRE), composta por intelectuais e acadêmicos sem filiação partidária, por um grupo de notáveis e por representantes dos partidos. A partir de então, e até que o pro- cesso fosse interrompido com a vitória de Hugo Chávez nas eleições de 1998, a elite política venezuelana colocou em curso uma série de modificações no sistema político nacional. As principais mudanças realizadas até 1998 foram: • Estabelecimento, em 1988, de eleições diretas para governadores e prefeitos, simul- taneamente à escolha das Assembléias 15 Em 1958, um acordo firmado entre os três maiores partidos venezuelanos permitiu que a Venezuela superasse uma longa sucessão de governos caudilhescos e/ou militares e inaugurasse um período de grande estabilidade democrática. O pacto de Punto Fijo, como ficou conhecido, além de oferecer uma série de garantias a empresários, sindicalistas, Igreja e militares, estabelecia que os três partidos aceitariam os resultados das eleições, trabalhariam para a formação de governos de unidade nacional, nos quais haveria compartilhamento de cargos e responsabilidade e acionariam mecanismos de consulta sobre os assuntos mais importantes. Tal acordo implicou grandes concessões por parte do maior partido, a AD, e gerou dissidências à sua esquerda. 16 Sob o governo Pérez verifica-se a primeira fissura no duopólio partidário. A segunda viria com Rafael Caldera, eleito logo após, por uma recém-criada Convergência Nacional. Rompido com o COPEI, e tendo montado o primeiro governo da história democrática da Venezuela sem a presença de nenhum membro dos dois grandes partidos (AMORIM NETO, 2002), Caldera apenas iria oferecer mais do mesmo (JÍMENEZ, 2003). Enfrentaria uma ameaça de colapso do sistema bancário, o que lhe fez declarar estado de emergência econômica e assumir poderes de decreto antes que o Congresso os delegasse (McCOY, 1999); veria seu capital político ser rapidamente corroído e sua frágil base parlamentar desconstituída ao adotar medidas antipopulares e apresentar um plano de reformas de corte liberal; e teria que, finalmente, recorrer à AD para evitar a paralisia do governo. Preocupada com o agravamento da crise, mas ao mesmo tempo não disposta a conceder a Caldera mais do que o necessário para a sobrevivência, a AD empresta-lhe apoio apenas para reformas de curto fôlego (CORRALES, 2000; JÍMENEZ, 2003). Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2851 52 Legislativas e Câmaras Municipais. Anterior- mente, os governos subnacionais eram no- meados pelo Presidente da República; • Introdução, em 1989, de um sistema elei- toral misto, nos moldes do adotado na Ale- manha, em substituição ao sistema de representação proporcional de lista fechada. Diferentemente do sistema alemão, o cál- culo dos votos dados aos partidos passou a ser feito nos estados e não no plano nacional, o que diminui a proporcionalidade dos resul- tados alcançados. Como forma de corrigir parcialmente tal distorção, foi mantida uma sistemática de alocação de cadeiras compen- satórias; • Modificação na composição do Conselho Supremo Eleitoral, que também teve seu nome alterado para Conselho Nacional Elei- toral, de forma a torná-lo independente dos partidos políticos. Até 1993, o CSE era composto por nove membros, sendo cin- co indicados pelos partidos com maior vota- ção nas últimas eleições e quatro cidadãos sem vinculação partidária eleitos pelo Con- gresso; 17 • Alteração, em 1998, do calendário eleitoral, de forma que as eleições para o Congresso, governadores e Assembléias Legislativas passaram a se realizar um mês antes da es- colha presidencial. 18 Como dito na introdução, o processo de reforma política na Venezuela, pelo menos em sua primeira fase, redundou em absolu- to fracasso. Condutores do processo, os dois grandes partidos (AD e COPEI) pretendiam reassentar as bases de legitimidade do sis- tema. Para tanto tinham que torná-lo mais aberto e competitivo. A estratégia reformista visava, em especial, diminuir a centralização política no plano federal e reduzir o controle dos partidos sobre o processo eleitoral e legislativo. A expectativa era de que o con- junto das iniciativas adotadas apontasse para um cenário no qual: a) os recursos de patro- nagem à disposição do Presidente e dos lí- deres partidários diminuiriam com a introdução das eleições diretas nos planos subnacionais; b) estas mesmas eleições ge- rariam a abertura de novos espaços para a competição política possibilitando, em con- seqüência, a emergência de líderes nos pla- nos regionais e abrindo espaço para que pequenos (ou novos) partidos crescessem pela “periferia” do sistema, modificando, em médio prazo, o seu funcionamento; e, final- mente, d) os representantes eleitos nos dis- tritos passariam a ter incentivos no sentido de patrocinar interesses locais ou, pelo me- nos, articulá-los àqueles definidos e persegui- dos pelos líderes partidários no Congresso. O desafio, para os condutores do processo reformista, estava em conciliar essa tendên- cia à dispersão de poderes com a manuten- ção de sua proeminência no interior do sistema político (Kornblith; Levine, 1995; Crisp, 1997; Lucena, 2003). A dinâmica da reforma seria, no entanto, superada pela da crise, que rapidamente as- sumiria um caráter sistêmico, atropelando as intenções dos reformadores e desmon- tando o regime de Punto Fijo antes que a estratégia reformista lograsse algum resul- tado. No contexto de uma crise institucional da democracia e do Estado, de um esgota- mento das identidades conectadas com o regime de partidos e de um contundente repúdio ao antigo regime, Hugo Chávez ven- ceu a eleição presidencial de 1998 com 56% dos votos válidos, sem que AD e COPEI con- seguissem apresentar candidaturas compe- titivas. 19 Uma vez no governo, Chávez deu origem a outro processo de reformas, muito mais radical do que o anterior e em direção opos- ta, com o objetivo de fundar uma nova repú- blica no país. Aproveitando-se de seu enorme prestígio, da fragilidade e desarticulação daqueles que poderiam fazer-lhe oposição, o presidente eleito conduziu a Venezuela a sucessivas escolhas eleitorais, por meio das quais impôs seu projeto. 17 Segundo JÍMENEZ (2003) o controle da AD e do COPEI ia além do CSE uma vez que eram os partidos, e não a Justiça Eleitoral, os responsáveis por recrutar os membros das mesas escrutinadoras. 18 As eleições subnacionais nem sempre coincidem com as nacionais, uma vez que a duração dos mandatos é distinta. Governadores e prefeitos são eleitos por três anos. 19 AD e COPEI, depois de conseguirem 30% e 13% das cadeiras nas eleições para o Congresso, realizadas um mês antes das presidenciais, desistiram de suas respectivas candidaturas e passaram a apoiar a candidatura do empresário Salas Roemer, do então criado Projeto Venezuela. Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2852 55Reforma Política em Perspectiva Comparada na América do Sul | Carlos Ranulfo Melo Ao final do governo, no entanto, as esperan- ças da população indígena e camponesa se frustrariam. Em 1997 Hugo Banzer venceria as elei- ções presidenciais e conduziria um governo conservador amparado por uma coalizão tão ampliada quanto inconsistente (Mayorga, 2001). Diante da incapacidade da esquer- da, ou pelo menos o que havia sobrado da tradicional esquerda boliviana representada pelo MNR, MIR e MBL, de expressar mini- mamente as reivindicações populares, a Bolívia veria surgir novos atores sociais e novas formas de protestos, envolvendo os povos indígenas e os plantadores de coca, que passariam a questionar de forma radi- cal a ordem estatal e colocariam em xeque a política pactuada pelos grandes partidos (Anastasia; Melo; Santos, 2004). Em 2002, o sistema partidário boliviano emergiu das urnas drasticamente modifica- do (Ballivián, 2003). Três dos cinco grandes partidos — UCS, CONDEPA e ADN — pra- ticamente desapareceram do Congresso Na- cional. Ganharam representação o Movimento ao Socialismo (MAS), cujo candidato presi- dencial (Evo Morales) chegou em segundo lugar no primeiro turno, e a Nova Força Revo- lucionária (NFR). Sánchez de Lozada (MNR) foi novamente eleito, renunciando um ano depois em função de um levante popular. Finalmente, em 2005, Evo Morales vence, no primeiro turno, as eleições para a presi- dência da Bolívia. No Congresso, o MIR per- deu toda a sua representação e o MNR conquistou apenas 5,3% das cadeiras. O sistema partidário pós-democratização ha- via se desconstituído, e a Bolívia adentraria um outro período de sua história. Chile e Brasil Entre os países aqui analisados, Brasil e Chile são aqueles em que a agenda de re- forma política apresenta mais dificuldades para ser implementada. Podemos iniciar pelo Brasil, onde o tema mantém-se na pauta desde o fim dos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte. Grosso modo pode- se distinguir entre duas agendas de refor- ma. A primeira, e mais ambiciosa, advoga a introdução do parlamentarismo, de um sis- tema distrital misto com cláusula de barrei- ra de 5% para a Câmara dos Deputados e do voto facultativo. Tal agenda parte do diag- nóstico de que o sistema político brasileiro padece de crônica instabilidade política, advinda da combinação entre presidencia- lismo e multipartidarismo. 28 Uma segunda agenda, centrando a aten- ção no aperfeiçoamento da representação proporcional no Brasil, propõe: a) corrigir a desproporcionalidade gerada pelo atual cri- tério de distribuição das cadeiras na Câma- ra dos Deputados entre os estados; b) instituir algum mecanismo de fidelidade par- tidária ou que iniba a troca de legenda entre uma eleição e outra; c) proibir as coligações para as eleições proporcionais; d) substituir o sistema de lista aberta por um outro, de listas preordenadas, fechadas ou flexíveis; e) suprimir o preceito que define o quocien- te eleitoral como cláusula de exclusão (Tava- res, 1998; Lima Júnior, 1997; Melo, 2006). 29 Nenhuma das agendas logrou grande sucesso. A proposta de parlamentarismo foi derrotada no plebiscito de 1993. O sistema distrital misto esteve em discussão na fra- cassada Revisão Constitucional de 1994. Durante o primeiro governo FHC, a Comis- são de Estudos para a Reforma da Legisla- ção Eleitoral do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Relatório Final da “Comissão Tem- porária Interna encarregada de estudar a re- forma político-partidária”, de autoria do Senador Sérgio Machado (1997), voltaram ao tema, sem sucesso. Além disso, desde 1982, em todas as legislaturas, parlamentares apresentaram propostas contendo alguma 28 No dizer de LESSA (1997), trata-se de uma agenda marcada “por uma teoria da representação mínima”. De acordo com SANTOS (1998), trata-se pura e simplesmente de uma tentativa de retomar o controle oligárquico sobre a competição política no Brasil, controle esse que estaria, segundo o autor, ameaçado na última década pelo acentuado crescimento numérico do eleitorado e do público atento. 29 Além dos autores citados, vale mencionar os excelentes trabalhos de NICOLAU (2003 e 2006). Neles, o autor procura, de maneira parcimoniosa, discutir os aspectos positivos e negativos das propostas de reforma do sistema de representação proporcional no Brasil. Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2855 56 forma de sistema misto (Nicolau, 1999). No que se refere à primeira agenda menciona- da, o único avanço registrado foi a aprova- ção da Lei 9.096, de 1995, que estabelece a obtenção de 5% dos votos válidos para a Câmara dos Deputados — distribuídos em, pelo menos, um terço dos estados, com um mínimo de dois por cento do total em cada um deles — como condição para o funcio- namento parlamentar, em qualquer Casa Legislativa, e critério para acesso ao Fundo Partidário e à propaganda gratuita no rádio e na TV. A cláusula irá vigorar a partir das elei- ções de 2006. Durante o governo Lula, a Câmara dos Deputados instituiu a Comissão Especial da Reforma Política. Essa Comissão, após rea- lizar 26 reuniões, sete audiências públicas e fazer um vasto levantamento de todas as pro- postas existentes no Congresso, encami- nhou em dezembro de 2003, à Comissão de Constituição e Justiça, o Projeto de Lei 2.679, propondo: a) a adoção do sistema de listas fechadas; b) a proibição de coliga- ções para as eleições proporcionais; c) a criação de federações partidárias com dura- ção de pelo menos três anos após a posse; d) a instituição de uma cláusula de barreira de 2% dos votos válidos; e) o financiamento público exclusivo das campanhas eleitorais (Soares; Rennó, 2006). Em agosto de 2005, a proposta estava pronta para ser incluída na ordem do dia e votada, o que acabou não ocorrendo. Dezoito anos após a nova Constituição, foram as seguintes as modificações no sis- tema eleitoral brasileiro: • Redução, por ocasião da Revisão Constitu- cional de 1993, do mandato presidencial de cinco para quatro anos; • Exclusão dos votos brancos do cálculo do quociente eleitoral (o que provocava sua ele- vação artificial); • Instituição, em 1996, da reeleição para os cargos executivos; • Extinção, em 1998, da regra que definia os deputados como candidatos natos (indepen- dentemente da vontade das convenções partidárias) às eleições imediatamente subseqüentes; • Aprovação, em 2006, do fim da verticalização obrigatória das coligações partidárias; • Aprovação, em 2006, de regras mais rígi- das sobre o financiamento das campanhas eleitorais, as quais determinam: a) o cancela- mento de registro de candidatura ou cassa- ção de mandato no caso de uso comprovado de “caixa 2”; b) a divulgação de dois relatórios parciais de arrecadação e gastos por parte dos candidatos durante a campanha, sem necessidade de revelar doadores; c) a proi- bição de que entidades beneficentes e reli- giosas, entidades esportivas e organizações não-governamentais que recebam recursos públicos, organizações da sociedade civil de interesse público, façam doações de cam- panha; d) a proibição de showmícios e distri- buição de brindes pelos candidatos. Como se percebe, são modificações pontuais, nada que permita dizer que qual- quer uma das duas agendas anteriormente mencionadas esteja sendo efetivada. Em dois casos, nos votos brancos e no quoci- ente eleitoral, foram realizados aperfeiçoa- mentos incrementais na legislação. O fim da verticalização significou uma reação do Congresso a uma interpretação do TSE no que concerne às coligações para as eleições majoritárias. 30 A redução do mandato presi- dencial teve como objetivo principal eliminar a figura da eleição solteira, fazendo coincidir as eleições estaduais e a nacional. Somente as modificações aprovadas nos mecanis- mos de financiamento eleitoral, em 2006, guardam relação com momentos de crise política e levam em conta os humores da 30 A verticalização foi instituída pelo TSE para as eleições de 2002 por meio de uma interpretação da legislação já existente. Determinava que as coligações estabelecidas para as eleições estaduais fossem coerentes com aquelas definidas para a disputa da presidência da República. Longe de garantir coerência às coligações, a verticalização apresentou duas conseqüências não previstas: a) a proliferação de alianças informais nos estados entre partidos, ou setores de partidos, que no plano nacional concorriam em coligações diversas e, b) a desistência, por parte de alguns partidos, de participar formalmente da disputa presidencial — lançando candidato ou coligando-se — como forma de manter a liberdade para as coligações estaduais. Em 2006, o Congresso aprovou legislação específica sobre o assunto, liberando as coligações a partir de 2008. Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2856 57Reforma Política em Perspectiva Comparada na América do Sul | Carlos Ranulfo Melo opinião pública. 31 E em apenas uma oca- sião, a introdução da reeleição, o Poder Exe- cutivo mobilizou sua maioria no Congresso com o objetivo de alterar a legislação, nesse caso, a seu favor. Esta última observação remete a um pon- to levantado por Soares e Rennó (2006). Se- gundo esses autores, a discussão sobre reforma política no Brasil faz parte da agenda do Poder Legislativo, geralmente tem origem em iniciativas individuais dos congressistas, e raramente chega ao plenário. Ora, como se sabe (Figueiredo; Limongi, 1999), o Exe- cutivo brasileiro é quem apresenta cerca de 85% das proposições legislativas aprovadas no Congresso Nacional. Isso certamente aju- da a entender por que a reforma política no país não vai muito além dos debates, no Congresso e na academia, e dos noticiários na imprensa. O último país a ser analisado, o Chile, é o caso de maior estabilidade institucional dentre os seis e, certamente, em toda a América do Sul. De 1989, ano que marca a eleição do primeiro presidente após a dita- dura do General Pinochet, até 2005, o siste- ma eleitoral chileno havia passado por apenas duas modificações dignas de regis- tro, ambas por ocasião do processo de rede- mocratização: o aumento do número de senadores eleitos e a diminuição do man- dato presidencial de oito para seis anos. Ao longo de todo esse período, uma coa- lizão de centro-esquerda, a Concertación por la Democracia, venceu as eleições presiden- ciais, derrotando a coalizão conservadora, mas nunca conseguiu maioria suficiente nas duas Casas Legislativas — 3/5 dos mem- bros — para modificar vários dos artigos da Constituição imposta por Pinochet em 1980. Entre os maiores problemas merecem des- taque: os excessivos poderes do Conselho de Segurança Nacional, a inamovibilidade dos comandantes das Forças Armadas, a presença de nove membros não eleitos no Senado e o sistema eleitoral baseado em distritos binominais. 32 Parte da explicação para a longevidade da constituição ditatorial está na força eleito- ral da direita chilena, cujos dois maiores partidos — União Democrática Independente (UDI) e Renovação Nacional (RN) — sempre obtiveram votação suficiente para atuar como atores com poder de veto sobre qualquer mudança constitucional proposta pelos go- vernos da Concertación. Particularmente, como assinala Garretón (2001), a iniciativa do veto sempre coube à UDI, extremamente fiel ao legado pinochetista e capaz de man- ter sob sua influência a RN. A outra parte da explicação, no entanto, reside na própria herança constitucional da ditadura. De um lado, a presença dos nove senadores não eleitos, entre eles membros designados pelas Forças Armadas e pelos Carabineiros, sempre favoreceu a bancada conservadora. De outro, o sistema eleitoral sempre beneficiou a força minoritária, no caso a coalizão direitista. É o caso de expli- car melhor. Nas eleições chilenas, tanto para a Câmara como para o Senado, são eleitos dois representantes por distrito — sendo 60 distritos para a primeira casa e 19 para a segunda. As duas cadeiras são destinadas para o partido ou coalizão majoritária ape- nas quando esta obtém mais do que o do- bro de votos da segunda colocada. Quando esta última obtém pelo menos 1/3 + 1 dos votos, sua representação iguala-se à da coa- lizão majoritária. Isso terminou por garantir à coalizão conservadora, na maioria das vezes, a segunda colocada nos distritos, mais ca- deiras do que votos no Congresso chileno. Apenas recentemente, em setembro de 2005, após um longo processo de negocia- ção, os resquícios autoritários puderam ser retirados da Constituição. Ainda que a coali- zão conservadora tivesse condições de con- tinuar a exercer seu poder de veto, optou por 31 Embora as mudanças tenham sido aprovadas pelo Congresso a menos de um ano das eleições de 2006, o TSE decidiu por sua aplicabilidade imediata. Segundo declaração do ministro Marco Aurélio de Mello ao jornal Estado de São Paulo do dia 26 de maio de 2006, “o anseio popular por mudanças pesou na decisão”, referindo-se às expectativas de mudança geradas por ocasião do escândalo do “mensalão”. Outras modificações devem vigorar a partir de 2008: a) definição, a cada ano, de um limite dos gastos de campanha para cada cargo em disputa; b) proibição de divulgação de pesquisas nos 15 dias que antecedem as eleições; c) definição do tempo de televisão de cada partido com base na bancada eleita e não na existente por ocasião da posse. 32 Nos anos 1989 e 1991, relata SIAVELIS (2001), algumas reformas limitaram o alcance do poder presidencial, como a eliminação da capacidade do Presidente de dissolver a Câmara dos Deputados. Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2857 60 por acentuado grau de polarização política. O arranjo institucional venezuelano afastou-se do “sistema de segurança mútua” que, de acordo com Dahl (1997), caracteriza uma poliarquia. Cada um dos lados, chavistas e antichavis- tas, trabalha para retirar o outro de cena, re- duzindo o espaço para a tolerância e o diálogo. Como afirmam Anastasia, Melo e Santos: É possível que Chávez se mantenha no po- der a despeito da oposição. Mas é pouco provável que a Venezuela desfrute de algu- ma estabilidade nos próximos anos. Falta um mínimo de consenso, seja quanto às alter- nativas de política, seja quanto aos procedi- mentos para dirimir os conflitos. Tampouco se pode apostar que o recém-inaugurado arranjo institucional se consolide. O novo regime tem a fragilidade peculiar das cons- truções apoiadas em lideranças carismáticas; Chávez é o seu alfa e o seu ômega, e a sobre- vivência de ambos encontra-se intimamente conectada (2004, p. 156). Na Bolívia, como pode ser visto, o pri- meiro governo de Sánchez de Lozada (MNR) se aliou a um partido de origem indígena na formulação do projeto reformista, numa ten- tativa de recuperar os vínculos com a gran- de massa de excluídos do país. Dez anos depois, o mesmo Lozada seria forçado a renunciar de seu segundo governo devido a um levante popular. A aliança MNR/MRTK, firmada em 1993, primava pela incongruên- cia. De um lado, bradava por uma democra- cia participativa, de outro, oferecia ao povo boliviano um cardápio ortodoxo em termos de política econômica. O governo seguinte, do ex-ditador Hugo Banzer, encarregou-se de minimizar o impacto democratizante de al- gumas das reformas contidas no Plan de Todos. Ao fim e ao cabo, a estratégia refor- mista revelou-se incapaz de conter o proces- so de erosão do sistema partidário e do próprio regime representativo. No vácuo ge- rado pela crise, a eleição de Evo Morales trouxe a esperança de que as reivindicações da Bolívia “profunda” sejam levadas em con- ta. Do sucesso ou fracasso de seu governo — e no caso de sucesso, dos procedimen- tos adotados — pode depender o destino da (frágil) democracia boliviana. Chile e Brasil fornecem exemplos de si- tuações em que a ausência de pressões so- ciais e a inexistência de uma coalizão capaz de contornar os obstáculos institucionais fi- zeram com que a agenda reformista, ainda que se mantivesse na pauta, se realizasse de forma muito precária. A reforma da Constituição de 1980 sem- pre esteve na agenda da coalizão de centro- esquerda que governa o Chile desde 1989 e, certamente, sempre foi uma aspiração de seu eleitorado. Mas ainda que vitoriosa em todas as eleições presidenciais, a Concerta- ción nunca conseguiu os 3/5 de votos em ambas as Casas Legislativas, necessários para levar seu projeto à frente. As mudan- ças realizadas em 2005 só foram possíveis graças a um acordo com a oposição. Mas as negociações não permitiram que fosse alterada uma das peças centrais do arranjo imposto por Pinochet: o método de consti- tuição da Câmara dos Deputados. A exis- tência de distritos binominais é responsável pelo viés acentuadamente majoritário do sis- tema eleitoral chileno. No Brasil, a explicação para que as refor- mas no sistema eleitoral tenham ocorrido de forma pontual, na forma de pequenos aper- feiçoamentos de caráter incremental ou como resposta a questões conjunturais, repousa no fato de que o ponto, simplesmente, não constou da agenda de nenhum dos Executi- vos eleitos desde 1989. FHC e Lula, por exemplo, conseguiram constituir maioria legislativa e aprovaram, com maior ou me- nor grau de dificuldade, parte expressiva de sua agenda. Além disso, os partidos forma- dores de ambas as coalizões — PSDB e PT — possuíam projetos de reforma política. Não obstante, tais projetos não puderam ser transformados em projetos de governo, pelo simples e bom motivo de que não eram compartilhados pelos seus parceiros de coalizão. Na única ocasião em que a reforma política foi incorporada à agenda de um go- verno foi aprovada a reeleição do então presi- dente Fernando Henrique Cardoso. Alguns Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2860 61Reforma Política em Perspectiva Comparada na América do Sul | Carlos Ranulfo Melo anos depois, ironicamente, o PSDB tentou patrocinar a revogação do mecanismo, sob o argumento de que o mesmo beneficiava em demasia os detentores dos postos exe- cutivos... Este artigo procurou mostrar que a ocor- rência de um processo de reforma política, sua direção e seus resultados, depende de como se combinam pressões sociais e cons- tituição de maiorias legislativas. A depen- der de como isso se dá, as reformas po- dem ser bem-sucedidas, ainda que os objetivos imediatos dos reformadores sejam suplantados pela dinâmica política, fracas- sar completamente em seus objetivos, sim- plesmente, não acontecer ou fazê-lo de forma muito limitada. 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Olvera debilitado, primeiramente, com as reformas neoliberais implementadas pelos governos do PRI entre 1985 e 1997, e, também, pelo colapso do velho modelo de presidencialis- mo autoritário, que estava fundado em uma série de acordos metaconstitucionais, que careciam de uma base jurídica firme (Cres- po, 2005). Com efeito, o Estado mexicano tem problemas estruturais de desenho cons- titucional, já que o sistema presidencialista é legalmente precário, pois o Presidente ca- rece de poderes de controle do Poder Legis- lativo (seu poder de veto é fraco) e de capacidade significativa de promulgação de decretos (que podem ser questionados di- ante da Suprema Corte); o Poder Legislativo não é profissional, pois não existe reeleição dos legisladores, seus regulamentos inter- nos são obsoletos e trabalham poucos dias ao ano; o Poder Judiciário é econômica e administrativamente frágil, além de pouco transparente, o que propicia a corrupção. Por outro lado, o governo tem grandes espaços de fragilidade institucional, uma vez que al- guns de seus aparatos e organismos estão colonizados por uma densa rede de interes- ses privados, que vão desde sindicatos, em- preiteiros, máfias de políticos profissionais, grupos delituosos e até alguns grupos orga- nizados da sociedade civil, que atuam como meros grupos de interesses. É fisicamente precário, pois sua capacidade de cobrar impostos é uma das mais baixas da América Latina (11,8% do PIB). O governo, em senti- do amplo, tem uma profunda incapacidade de inovação. Em outras experiências históricas, a tran- sição foi o momento de fundação de um novo regime, na maioria dos casos, através de novas constituições e de novos pactos políticos. Se, por um lado, um novo ordena- mento jurídico não garante a criação de um novo sistema de governabilidade democrá- tica, pelo menos permite uma reordenação institucional que pode ter efeitos inovadores. Precisamente nesse ponto, as transições do México e do Brasil divergem. A ausência de um processo constituinte no México, tão ra- dical que nem uma modesta reforma do Estado foi possível, assinalou o limite políti- co de um processo incompleto que, na prá- tica, foi reduzido a uma pluralização política das elites no contexto de uma continuidade essencial do regime político. No Brasil, o processo constituinte que desemboca na Constituição de 1988 marca uma clara se- paração entre o velho e o novo regime e abre brecha jurídica e política para as inovações democráticas que distinguem o Brasil no ce- nário internacional. O sistema partidário e os problemas de governabilidade A transição mexicana teve a particulari- dade de criar um sistema com três partidos principais, nenhum dos quais é majoritário no Poder Legislativo federal; e três partidos pequenos, com escassa representação par- lamentar. Até 1997, o PRI havia sido um par- tido hegemônico, com uma prolongada fase de partido quase único. O PRI controlava a presidência, as duas Câmaras Legislativas, os governos dos estados e as presidências municipais. Nesse caráter quase monopó- lico fundava-se o poder metaconstitucional do Presidente da República, sendo ele o diretor de todo o sistema. Nas eleições federais de 1997, o PRI per- deu pela primeira vez a maioria absoluta da Câmara dos Deputados, e, nas eleições de 2000, perdeu, também, o controle da Câmara dos Senadores. Desde 1989 os partidos PAN e PRD começaram a ganhar os governos de alguns estados e de vários municípios e, em 1997, conseguiram dar um salto qualitativo, já que o PRD ganhou a primeira eleição de um chefe de governo da Ciudad de México (que até então era designado pelo Presidente). E o PAN ganhou o governo do estado de Nuevo León, o mais poderoso economica- mente, e que, somado a outros governos estatais ganhados anteriormente por este partido, permitiam-no governar mais de 30% da população do país. Enquanto isso, o PRD também avançava, sobretudo em nível muni- cipal (Lujambio, 2000). Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2865 66 Nas eleições de 2000, na qual o PAN ganhou a presidência, o PAN e o PRI empa- taram suas forças parlamentares, e o PRD quase se converteu em um partido minoritá- rio, já que sua fracassada aliança com vários partidos pequenos o fez perder posições. Sem dúvida, seus votos eram estratégicos para constituir uma maioria parlamentar. O PRD considerou que o trunfo do partido de direita era perigoso para o país, e dado que não havia uma agenda política comum com o PAN, as reformas políticas necessárias para dar governabilidade ao país ficaram penden- tes. O PAN desejava, antes de tudo, termi- nar o ciclo das reformas neoliberais através de três reformas pendentes: a trabalhista (flexibilidade na contratação, pensões), a energética (para permitir investimento priva- do na indústria elétrica) e a fiscal (novos im- postos ao consumo). O PRD não apoiava nenhuma, e o PRI, que até 1999 impulsio- nou o projeto neoliberal, decidiu, como táti- ca política, passar para a oposição, pois nenhuma das três reformas eram populares. Em 2000, diversos fóruns de intelectuais e de políticos discutiram os conteúdos de uma “Reforma do Estado” que, na realida- de, era uma síntese de uma grande quanti- dade de propostas de reforma constitucional, uma agenda de novas leis, que incluía uma reforma política que mudava o calendário eleitoral (fazendo-o mais racional), uma re- forma do regulamento do Congresso, uma reforma do Poder Judiciário e algumas idéias para impulsionar a participação cidadã, atra- vés da introdução de formas de democracia direta (plebiscito, referendum e iniciativa popular). Sem dúvida, nenhum partido apoiou realmente esta agenda de reformas, pois, dado que não poderiam controlar o processo legislativo, nem estavam dispostos a correr o risco de convocar um Congresso Consti- tuinte, era melhor aguardar e contar com uma conjuntura mais favorável. Em verdade, não havia uma mobilização social que exigisse reformas, pois no imaginário cidadão preva- lecia a errônea idéia de que a derrota do PRI seria suficiente para mudar radicalmente a vida política. Diante desse quadro, o governo do pre- sidente Fox decidiu seguir o caminho da con- tinuidade, o que só foi possível devido ao tamanho e à complexidade do Estado mexi- cano, à eficácia das novas políticas sociais criadas no último governo do PRI e do presi- dente Ernesto Zedillo (1994-2000), à força da inércia burocrática e ao poder das congre- gações de funcionários públicos. Diferente- mente de outros países latinos, o Estado mexicano tem presença e controle em todo território nacional e, através da política de subsídios para o combate à pobreza, chega até aos povos mais afastados do país. Mo- ver ou mudar esse enorme Estado é uma tarefa complicada e de longo prazo. Devido a essas condições, durante es- ses anos de transição, não se experimentou uma verdadeira crise de governabilidade no México, porém, tampouco, uma reforma da vida política. Marcado por certo conflito per- manente, o caso mais próximo de uma cri- se foi a tentativa da Câmara dos Deputados de impor ao Presidente um orçamento pú- blico nacional diferente do que ele havia en- viado à Câmara para aprovação nos anos de 2004 e 2005. Durante esses dois anos, os Poderes Executivo e Legislativo se enfren- taram seriamente, e a lei parecia dar razão ao Legislativo, já que a Constituição indica que é de sua exclusiva responsabilidade a aprovação do orçamento. O Presidente so- mente pode vetar as leis que tenham pas- sado por ambas as Câmaras Legislativas, o que não é o caso do orçamento. Sem dúvi- da, a Suprema Corte da Nação, atendendo um recurso do Presidente, considerou que o Primeiro Mandatário pode, sim, ter capaci- dade de revisão do orçamento aprovado pela Câmara dos Deputados. Com efeito, nem o Presidente nem os partidos de oposição quiseram levar ao extremo seus conflitos, calculando que os cidadãos castigariam, nas urnas, o partido que causasse uma verda- deira crise de governabilidade. A Suprema Corte de Justiça assumiu o papel de juiz dos conflitos entre os três po- deres da União, entre os poderes estatais e os municipais, e entre estes e a Federação. Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2866 67Transição e Governabilidade nas Democracias Mexicana e Brasileira | Alberto J. Olvera Este ativismo permitiu desafogar os principais conflitos apesar da ausência de um novo marco constitucional. Entre 2001 e 2005, pelo menos 25 problemas muito importantes foram resolvidos por essa via. (González Plascencia, 2005) É, assim, evidente que o presidencialismo mexicano difere do brasileiro em vários pontos essenciais. Em primeiro lugar, no México não há coalizões de governo, somente eleitorais, que são, por sua própria natureza, conjunturais. O número limitado de partidos pro- tagonistas também influi decisivamente: todos têm presença naci- onal e gozam de um relativo equilíbrio de forças, o que é um incentivo ao bloqueio das reformas essenciais. Um presidente com minoria parlamentar pode governar, conquanto que não tente fazer refor- mas fundamentais. Esse fato coloca um grave limite à inovação política e jurídica, que não pode durar indefinidamente, sob pena de deslegitimar, em curto prazo, a limitada democracia mexicana. Por outro lado, o presidencialismo de coalizão brasileiro obriga a criar alianças entre partidos baseadas em um programa de gover- no, porém o custo disso é muito alto devido ao fato de que a dis- persão programática e de forças entre os numerosos partidos induz à formação de coalizões frágeis, oportunistas e de tendência cen- trista. As coalizões limitam o horizonte das reformas possíveis e elevam o custo político em níveis tais que deterioram a legitimi- dade dos acertos políticos. Em segundo lugar, o presidencialismo mexicano é mais debilitado que o brasileiro, pois o Presidente conta com poucos elementos legais para opor-se às decisões do Congresso e carece de poder para legislar de maneira paralela, que é uma via de escape, ainda que seja temporal, da chantagem parlamentar. No México os partidos têm avançado com numerosas reformas parciais por meio de um ativismo legislativo sem paralelo. Como se pode observar no Quadro 1, os partidos têm apresentado mais de 2000 iniciativas na atual legislatura, cinco vezes mais do que na primeira legislatura, sem maioria do PRI, e 15 vezes mais do que na época do Poder Legislativo subordinado (Casar, 2006). Quadro 1 - Iniciativas Apresentadas à Câmara dos Deputados (1982-2006) Origem Legislaturas LII LII LIV LV LVI LVII LVIII LIX* 1982-1985 1985-1988 1988-1991 1991-1994 1994-1997 1997-2000 2000-2003 2003-2006 Executivo 139 128 70 84 56 37 63 42 Senadores - 60 15 47 24 46 53 60** Partidos 159 352 1997 117 163 493 909 2139 Comissões - 16 12 - 02 29 17 14 Legis. Locais 10 03 - 02 02 34 85 97 Vários Partidos ND ND ND 10 03 34 82 36 Total 308 559 294 206 250 673 1209 2388 * Os dados da LIX legislatura podem variar, posto que as informações ainda não estão totalizadas na página da Câmara dos Deputados. ** Não considera minutas provenientes do Senado. Fonte: Para 1982-1997, CASAR (2006) e NACIF (2005). Para 1997-2006, a elaboração foi feita pelo próprio autor a partir da Gazeta Parlamentar. Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2867 —] | Reforma Política no Brasil 01 272.p65 01/08/06, 17:28 Entendendo as Mudanças Necessárias no Sistema Político Parte II Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2871 —] | Reforma Política no Brasil 01 272.p65 01/08/06, 17:28 75Leonardo Avritzer | Fátima Anastasia [org.] ausência de dependência da vontade arbi- trária de um ou de muitos homens quanto com a dimensão da ação e da participação dos indivíduos na vida da polis. Dessa concepção ativa de liberdade os séculos 18 e 19 retiraram algumas conse- qüências. Uma delas, uma certa percepção do que poderia ser definido a política da liberdade, como se costumava dizer à época da Revolução Americana: a idéia, por exem- plo, que o poder estava na periferia, nos diversos estados soberanos, livres e inde- pendentes; ou, então, que esse poder se concentrava nos legislativos e, em particular, nas câmaras baixas; ou, ainda, que a liber- dade só florescia em Estados pequenos. De outro lado, a noção de que organismos go- vernamentais secundários — como, por exemplo, estados ou províncias —, poderiam efetivamente compartilhar soberania com o poder central. Uma outra ordem de conseqüências muito característica da sensibilidade repu- blicana que se formou na vertente anglo-saxã da tradição veio da intuição de que havia algo muito pertinente na defesa do direito do in- divíduo desfrutar os próprios bens com imu- nidade contra a ação arbitrária do príncipe ou de seus representantes. Dito de outro modo: essa tópica colocou em relevo a pos- sibilidade de uma conduta política orienta- da pela utilidade, pela concepção da liberdade como “um bem que permite go- zar todos os outros bens” — para usar o ar- gumento e a linguagem de Montesquieu — e pela idéia de que a forma republicana in- cluía o reconhecimento compreensivo de que os interesses também possuem valor agre- gativo. A idéia de associar bem público ao que Tocqueville definiu como o exercício do inte- resse bem compreendido produziu uma atualização, para a modernidade, do antigo princípio republicano da virtude. As virtudes possuem dois traços gerais: são qualida- des de caráter reais e raras, capazes de ex- primir as paixões humanas em feitos nobres e singulares. Articuladas ao mundo público implicam civismo, isto é, oferecem um ideal de excelência no exercício da cidadania. Contudo, nos tempos modernos, em que ocorre uma perda considerável das antigas virtudes, a oportunidade de se romper o cor- dão de isolamento da concentração do indi- víduo em seu espaço privado estaria menos na reativação do ideal moral e mais na iden- tificação racional dos interesses particulares com aqueles da cidadania. Em qualquer dos casos, porém, o elemento dinâmico central do republicanismo não é tanto a virtude cívi- ca ou o interesse bem compreendido, mas o resultado do seu exercício como modo de conduzir a vida na polis. Contudo, no caso brasileiro, o percurso do republicanismo durante o século 18 e, especialmente, ao longo do século 19, não traduziu a possibilidade histórica da sua afir- mação na vida política do país após o golpe republicano de 1889. Com efeito, a idéia de ausência, de vazio, parece ter aderido for- temente às pretensões de enraizamento e ancestralidade da República no Brasil, pro- jetando um cenário que se desdobraria nos períodos subseqüentes, marcados por forte negatividade quanto à possibilidade de se recorrer a uma tradição do republicanismo para enfrentar os problemas que afligem a formação histórica brasileira. Assim, é um engano supor que o golpe de Estado de 15 de novembro de 1889 foi a materialização de um projeto lentamente amadurecido por um longo período de ação republicana. Não por acaso, a trajetória de consolidação da República até os anos 30 pode ser conhecida entre nós a partir da observação dos processos de sucessão presidencial, momentos em que a não insti- tucionalização dos procedimentos de esco- lha dos candidatos tornava a estabilidade do experimento republicano dependente da habilidade dos caciques brasileiros, e reve- lava as condições de forte retração da esfe- ra pública, oligárquica e hieraquizada, controlada por um número reduzido de po- líticos em cada estado, principal sustentáculo do federalismo desigual vigente no Brasil. Essa foi sua marca de origem: a Repú- blica se tornou vitoriosa em 1889 sem a Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2875 76 vocação da incorporação dos princípios do republicanismo diante da sociedade que emergia com a expansão da vida mercantil; e permaneceu fiel a essa marca, liberal em economia, excludente em política e no social, administrada por homens de frágeis convic- ções republicanas. Com efeito, a distância entre o ideário formador de suas matrizes e o exercício de sua prática política persistiu ao longo da nossa história política contem- porânea: a Revolução de Trinta refundou a República impondo o predomínio da União sobre a Federação, das corporações sobre os indivíduos e a procedência do Estado sobre a sociedade civil. O preço da moder- nização autoritária e da ampliação do esco- po do Estado a fim de abrigar os novos personagens sociais nascidos do mundo ur- bano e industrial importou na perda da auto- nomia da sociedade quanto ao Estado e uma herança do autoritarismo político a pesar sobre a história republicana desse Brasil moderno — como ocorreria no regime mili- tar pós-1964 que obedeceu em linhas ge- rais a esse modelo — deixando para trás, como um elo do republicanismo ainda a ser retomado, o desafio da construção de uma experiência efetivamente republicana sob condições democráticas. Referências BIGNOTTO, Newton (Org.). Pensar a República. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000. CARDOSO, Sérgio (Org.). Retorno ao republicanismo. Belo Horizonte: Edi- tora UFMG, 2004. MAQUIAVEL, Nicolau. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Brasília: Editora da UnB, 1982. MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Abril Cultural, 1979. LESSA, Renato. A invenção republicana. 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Uma discussão sobre reforma política deve começar indagando se a própria dis- cussão é política, em dois sentidos: no de saber se o demos, “nós, o povo”, efetiva- mente a assume como sua, em vez de con- finar-se ela ao grupo dos especialistas, como se estes fossem engenheiros da vida social e política — e no de saber se estabelece um recorte entre as posições políticas, sobre- tudo entre direita e esquerda. Nos dois casos, o debate da reforma política brasileira é pouco político, porque confinado a especialistas e porque apartado das divisões partidárias. São raros, no debate da reforma política brasileira, os temas que polarizam os partidos, ou que chegam à arena pública, à sociedade, com forte conteúdo político — eu enfatizaria apenas o caráter obrigatório ou facultativo do voto (Ribeiro, 2003), a corrupção e o financia- mento das campanhas. Uma questão rele- vante como a do voto distrital ou proporcional, que em vários países opõe direita a esquerda, aqui é levantada quase que só tecnicamente, por cientistas políticos. Não empolga sequer os parlamentares, quanto mais o povo. Mas na França, por exemplo, a eleição distrital dos deputados foi introduzida, em começos dos anos 1870, para evitar que a cada poucos Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2877 80 grandes fundos junto aos maiores financia- dores, isto é, os ricos e as empresas priva- das. Sem um financiamento amplamente público das candidaturas, essas tenderão a ser reféns dos grupos de interesse que as apóiem. O custo social pode ser maior do que a economia no gasto público resultante do financiamento privado. Grupos de inte- resse cobrarão, depois, com forte ágio, o que pagaram. Por outro lado, é quase impossível as di- reitas aceitarem uma proposta cortando os recursos que podem obter dos indivíduos mais ricos e das maiores empresas. A essa razão pragmática, soma-se outra: é extrema- mente difícil fiscalizar a entrega de recursos às campanhas. Será fácil burlar as leis exis- tentes ou futuras — o que, por sua vez, como apropriadamente comenta Delia Ferreira Rubio, 1 requer a criação de órgãos capaci- tados para acompanhar a boa arrecadação e uso do dinheiro, o que, acrescentamos, leva mais uma vez a uma solução burocrá- tica (sem sentido pejorativo) do problema, por meio de algum órgão público, como um tribunal ou uma agência, independente dos poderes eleitos. Em face disso, Rubio pro- põe uma solução intermediária: o financia- mento público, sem proibição da contribuição privada, mas com forte fiscalização desta última (e do uso do dinheiro de ambas). Na verdade, a discussão sobre a doença e seu remédio, isto é, sobre a corrupção e o financiamento das campanhas, tem-se tor- nado altamente especializada e propõe cada vez mais a criação de órgãos tecnicamente capacitados, para coibir as formas de se- qüestro privado da coisa pública. Trabalhos como os de Fleischer, 2 em que pese sua qualidade, apresentam o reforço dos con- troles como a principal saída para um ambi- ente corrupto. Este ponto contrasta com o que dissemos no início do verbete, quando comentamos que o debate sobre o financia- mento público é um dos poucos capazes de inflamar os ânimos políticos na discus- são brasileira sobre a reforma. Pois, como bem expressa Rodolfo Terragno em seu Proyecto 95, Se as pessoas não confiam nos partidos, a missão da política se torna ilusória: para mobilizar e orientar, os partidos precisam ser confiáveis. Como confiar em partidos que operam às escuras? Como esperar que ad- ministrem bem o Estado quando não podem (ou não querem) mostrar sua própria admi- nistração? Se hoje recebem fundos clandes- tinos, como acreditar que, amanhã, tenham independência e autoridade para punir a clan- destinidade? 3 Porém, se o debate é quase candente, as propostas o esfriam. Praticamente não há projeto de solução de saída que enfatize a solução republicana — seja esta forte, isto é, propondo que caiba à ágora, aos cida- dãos, enfrentar a corrupção, seja ela fraca, confiando numa imprensa livre e pluralista para equilibrar os pontos de vista opostos. Nesse sentido, o que se propõe em termos de equilíbrio de chances entre os partidos, no Brasil, não destoa muito de uma legisla- ção eleitoral e um sistema judicial eleitoral cujas principais preocupações mais pare- cem consistir em coibir a discussão e a ex- pressão de idéias — e seus exageros — do que em liberar o debate para os cidadãos. No fundo, há uma certa amargura ou decep- ção no interior desses debates políticos: é a renúncia à expectativa de que a res publica possa prevalecer e, na sua falta, a aposta numa burocracia weberiana que dê conta dos excessos. Para aqueles que pensam a política como um excesso (Rancière, por exemplo, e os lacanianos), evidentemente, aqui há um erro de base, uma redução da política à administração e à livre concorrên- cia entre os partidos, como se criássemos um conselho que, a exemplo do CADE, evi- tasse os monopólios e assegurasse a com- petição. Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2880 81Leonardo Avritzer | Fátima Anastasia [org.] Notas 1 “Ante esse panorama [uma imagem de desonestidade dos políticos de 87% na América Latina, contra 63% na média mundial], a primeira reação é a proposta de soluções normativas” (RUBIO, Delia Ferreira. Financiamento de partidos e campanhas: fundos públicos versus fundos privados. Novos Estudos Cebrap. n. 73, p. 6-16, nov. 2005). Acrescenta que “A nosso ver, a divulgação pública da origem e do destino dos fundos que financiam a política é muito mais importante que o estabelecimento de limites e restrições de difícil aplicação e controle”, mas conclui: “a efetividade das restrições legais depende essencialmente da capacidade e eficácia dos órgãos de controle”. 2 Ver, por exemplo: “Uma das razões para que a corrupção política seja praticada com uma relativa impunidade no Brasil é a total falta de mecanismos internos e externos de controle.” In: FLEISCHER, David. Political corruption in Brazil. The delicate connection with campaign finance. Crime, law and social change, 25: 311, 1997; ver, também, seus Corruption in Brazil defining, measuring, and reducing. Washington: CSIS Report; e, especialmente: O impacto da Reforma Política sobre a Câmara Federal. Plenarium, 1: 123-41, 2004. 3 Citado, sem indicação do nome de Terragno, no interessante trabalho de CAMPOS, Mauro Macedo. Financiamento de campanhas eleitorais e accountability na América do Sul: Argentina, Brasil e Uruguai em perspectiva comparada. Programa de Ciência Política da UFMG, 2004. Referências CAMPOS, Mauro Macedo. Financiamento de campanhas eleitorais e accountability na América do Sul: Argentina, Brasil e Uruguai em perspec- tiva comparada. Programa de Ciência Política da UFMG, 2004. CONSTANT, Benjamin. A liberdade dos antigos comparada à dos modernos. In: BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília: Editora da UNB, 1958. FLEISCHER, David. Political corruption in Brazil. The delicate connection with campaign finance. Crime, Law and social change, 25: 311, 1997. FLEISCHER, David. Corruption in Brazil defining, measuring, and reducing. Washington: CSIS Report, 2002. FLEISCHER, David. O impacto da reforma política sobre a Câmara Federal. Plenarium, 1: 123-141, 2004. HALÉVY, Daniel. La Fin des Notables. 1930. HALÉVY, Daniel. La République des ducs. 1937. RIBEIRO, Renato Janine . Sobre o voto obrigatório. In: BENEVIDES, Maria Victoria; VANNUCHI, Paulo; KERCHE, Fábio (Org.). Reforma política e cidadania. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003. RUBIO, Delia Ferreira. Financiamento de partidos e campanhas: fundos públicos versus fundos privados. Novos Estudos CEBRAP, n. 73, p. 6-16, nov. 2005. Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2881 82 Corrupção e Estado de Direito Newton Bignotto Quando se discute reforma política no Brasil, um dos obstáculos mais citados para o pleno desenvolvimento da vida democráti- ca no país é a corrupção freqüente dos agen- tes do Estado e os prejuízos causados pelo que muitos acreditam ser um fato generali- zado na vida pública. Essa percepção do senso comum acompanha a maneira como alguns cientistas políticos definem o fenô- meno da corrupção nas sociedades contem- porâneas. Gianfranco Pasquino no conhecido Dicionário de Política, editado dentre outros por Norberto Bobbio, afirma que corrupção “designa o fenômeno pelo qual um funcio- nário público é levado a agir de modo diver- so dos padrões normativos do sistema, favorecendo interesses particulares em tro- co de recompensa. Corrupto é, portanto, o comportamento ilegal de quem desempe- nha um papel na estrutura estatal.” Ao colo- car assim o problema, o autor restringe seu alcance aos atores diretamente relacionados com a ação governamental e sugere que a corrupção é primariamente um ato ilegal, perpetrado por aqueles que deveriam zelar pelo bom funcionamento do aparelho esta- tal, notadamente os funcionários. O âmbito de ação dos corruptos é, pois, essencial- mente o Estado. A abordagem da questão tal como apre- sentada mostra que o principal remédio para a corrupção deve ser de natureza legal, uma vez que ela é antes de tudo um ato de ilega- lidade. Isso sugere que uma reforma políti- ca deveria se concentrar na modificação da legislação vigente, visando adequá-la ao caráter generalizado que o fenômeno pare- cer ter adquirido na sociedade brasileira. Ocorre que, se estudarmos o problema des- se ponto de vista, será mister reconhecer Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2882 85Leonardo Avritzer | Fátima Anastasia [org.] a separação entre o público e o privado nem sempre é percebida como um fato derivado das leis fundamentais e nela refletidos. De um lado, grupos ou partidos políticos que chegam ao poder costumam desconhecer o fato de que o aparato constitucional cons- titui um limite instransponível para suas ações. Agindo como grupo privado, vários atores políticos se comportam como se a vitória nas eleições significasse a posse da totalidade dos poderes do Estado. A confu- são entre a esfera do governo e os domínios do Estado conduzem à crença de que a so- berania popular, origem das leis em uma democracia, é apenas uma referência ideal, sem correspondência na realidade. Por ou- tro lado, o próprio Estado parece reproduzir seus quadros, como mostrou Faoro, criando um grupo dirigente, que não reconhece limi- tes para suas práticas, além daqueles ine- rentes às disputas políticas. Olhando para esse quadro, é possível concluir que no Brasil, se a corrupção é em grande medida o efeito do comportamento ilegal de funcionários públicos, ela é um fe- nômeno que atinge setores muito mais am- plos de nossa sociedade e ameaça romper o equilíbrio constitucional atentando contra alguns de seus princípios fundamentais. Atacar o problema de frente implica retomar o debate sobre as definições entre o público e o privado e pensar numa reforma da legis- lação que contemple o conjunto das forças políticas, e não apenas os agentes do Esta- do. Essa ampliação dos horizontes da análi- se ajuda a ver que a corrupção é um risco para os fundamentos da democracia. Ao preferir os interesses privados aos interes- ses públicos, mais do que transgredir a lei, atinge-se o núcleo mesmo do Estado: sua Constituição. Uma reforma da legislação terá pois necessariamente que levar em conta a ameaça representada pelos corruptos e o fato de que a corrupção diz respeito à ma- neira como a sociedade como um todo lida com a coisa pública. O Estado de direito não sobrevive sem que todos os atores en- volvidos no processo sejam responsabiliza- dos e sem a afirmação da superioridade do bem público sobre o bem privado. É claro que os crimes cometidos por funcionários e cidadãos devem ser punidos segundo a le- gislação vigente. Mas, se quisermos levar em conta a natureza verdadeiramente política da corrupção, será preciso prestar atenção a seu nascedouro nas relações promíscuas entre os interesses de agentes particulares e as ações governamentais. Sem uma defi- nição clara das fronteiras entre o público e o privado e a extensão da punição a todos os agentes corruptores, as diversas práticas ile- gais, que caracterizam a corrupção no Brasil, serão uma ameaça constante à manuten- ção do Estado de direito. A idéia dos anti- gos de que a corrupção dos homens leva à destruição do corpo político serve, assim, como uma indicação dos riscos que corre- mos, quando abandonamos o marco das leis fundamentais, para gerirmos a vida pú- blica com a lógica imediata das disputas eleitorais. Referências ARISTOTE. La politique. Paris: J.Vrin, 1982. BOBBIO, N. et al. Dicionário de Política. Brasília: EDUNB, 1992, 2 v. FAORO, R. Os donos do poder. Rio de Janeiro: Globo, 2001. LOCKE, J. Two treatises of government. Cambridge: Cambridge University Press, 1960. MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Editora Abril, 1979. PLATÃO. A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. RAWLS, J. A theory of justice. Oxford: Oxford University Press, 1973. ROUSSEAU, J.J. O contrato social. Rio de janeiro: Martins Fontes, 1999. Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2885 86 Voto Obrigatório Cícero Araújo O voto obrigatório é aquele em que a participação eleitoral não é deixada ao arbí- trio do eleitor, mas determinada por lei, que assim prevê sanções no caso de não-cum- primento. Seu oposto é o voto facultativo. Desde sua introdução em países euro- peus, no final do século 19 — a regra é ado- tada no Brasil desde 1934 —, o voto obrigatório é objeto de aceso debate, que incide sobre o próprio caráter da participa- ção política num regime democrático. O pre- sente verbete dará um panorama desse debate. As razões a favor ou contra o voto obriga- tório podem ser classificadas em dois tipos: I) razões de princípio, que levam em conta o significado e o estatuto mesmo do ato de votar; e II) razões prudenciais, que conside- ram os efeitos benéficos ou danosos da obrigatoriedade (ou não) da participação. I) Os críticos costumam argumentar que, se o voto é um direito, por definição ele não poderia ser obrigatório. Das duas, uma: ou possuímos um direito, caso em que está em nosso poder exercê-lo ou não; ou somos compelidos por lei a fazer algo, e então isso é de fato uma obrigação, não um direito. Porém, grande parte dos defensores do voto obrigatório concebem que o voto é um direi- to do cidadão, o que seria uma contradição patente. Há duas respostas distintas a essa obje- ção conceitual. Pode-se simplesmente dei- xar de lado a idéia de que o voto é um direito, para passar a vê-lo como um dever do cida- dão, passível da compulsão da lei. Nesse caso, faz-se necessária uma linha de argu- mento para explicar por que não seria um direito. Mas há ainda outro tipo de resposta: pensar num sentido de “direito” compatível com a simultânea idéia de obrigação. O voto Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2886 87Leonardo Avritzer | Fátima Anastasia [org.] seria, por exemplo, assemelhado ao direito à educação, no qual se faz necessário dis- tinguir “o acesso a” algo, de seu desfrute efetivo. Todo cidadão tem direito de acesso à educação — no sentido de que pode exi- gi-la do Estado —, mas, uma vez obtido, não está ao arbítrio do favorecido exercê-lo ou não. Tanto que, nos países em que a educação é declarada um direito, ela é tam- bém obrigatória para os seus beneficiários. Em outras palavras, um direito e um dever legal ao mesmo tempo. Mas seria mesmo adequado aproximar o voto à educação? A compulsoriedade da educação está relacionada à tutela que o Estado reivindica sobre sua população mais jovem. Na verdade, o Estado obriga os pais a exercerem sua função de tutores dos fi- lhos; em caso de falha paterna nessa tare- fa, o Estado se encarrega de cumpri-la diretamente. A tutela, porém, é dirigida a pessoas que ainda não atingiram a maiori- dade, isto é, a plena autonomia e responsa- bilidade por seus atos. Mas essa idéia não se aplica ao voto, que justamente pressu- põe a autonomia, não a tutela. Não se con- cede o voto a quem precisa de tutor. E isso nos remete ao cerne do problema de conce- ber o voto como uma obrigação legal. John Stuart Mill, num célebre ensaio so- bre o governo representativo, propôs que, em vez de pensá-lo como um direito indivi- dual — que pode ser exercido ou não, ou mesmo transferido, ao arbítrio de seu pos- suidor —, o voto deveria ser considerado o resultado de um ato público de confiança (trust), que lançaria a seu receptor certas res- ponsabilidades, a começar o próprio ato de votar. O exercício de qualquer função política, seja como um eleitor ou como um representan- te, é um poder sobre os outros. Aqueles que dizem que o sufrágio não é um ato de confi- ança, mas um direito, dificilmente aceitarão as conclusões a que sua doutrina conduz. Se é um direito, se pertence ao eleitor em seu próprio benefício, com que base poderíamos culpá-lo por vendê-lo, ou por usá-lo para re- comendar a si próprio a quem seja de seu interesse agradar? Atribuir a alguém um título de eleitor, portanto, não é o mesmo que atribuir-lhe um título de propriedade, mas antes oficiar-lhe a obrigação de fazer jus à confiança nele depositada, que é também um reconheci- mento de sua capacidade para contribuir com uma atividade necessariamente concertada. Mais do que da educação, poder-se-ia ar- gumentar, o voto se aproximaria de ativida- des como o serviço militar: de um tipo de serviço que, ou se realiza coletiva e coopera- tivamente, ou perde sua eficácia. Como não se trata de tutela, não seria contraditório fa- lar aqui de uma mesma pessoa ter um direi- to de acesso que, sendo algo distinto de um título de propriedade, é complementado por um dever de exercício. Quanto à trans- formação desse dever numa obrigação le- gal, esta poderia ser justificada como uma forma de evitar que uma parte dos cidadãos jogue nas costas dos demais um serviço público. Seria, em suma, um modo de deses- timular aquilo que os cientistas políticos cos- tumam chamar de “efeito do carona”. Contudo, há um problema que esse ar- gumento parece não levar em consideração: a qualidade do voto. Num regime democrá- tico, o voto define a qualidade de suas deci- sões, especialmente no que diz respeito à escolha dos representantes da comunida- de. Nesse sentido, querer que todos partici- pem de uma eleição implica supor que o voto de cada participante faz diferença, e, portanto, que cada voto expressa uma deci- são independente. É por isso que a quanti- dade de votos não deve servir de substituto para a sua qualidade. Note-se que, sob essa perspectiva, o direito de sufrágio é incom- patível com a obrigação legal, mas não é preciso que o seja com o dever cívico, con- tanto que pensado em termos morais, e, não, jurídicos. O cidadão tem o direito (legalmente garantido) e também o dever (moral) de vo- tar, mas de votar com sua consciência. Esse é o significado crucial de uma eleição “livre” e daí que tenha de ser formulada em termos de um direito: a livre consciência do eleitor, sua espontaneidade, digamos assim, define a qualidade de seu voto. Mas é exatamente Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2887 90 CPIs e Investigação Política Fábio Wanderley Reis As informações sobre as origens das comissões parlamentares de inquérito são variadas e desencontradas. Há mesmo inter- pretações que as fazem remontar à própria conquista normanda da Inglaterra. Mais usualmente, porém, elas são ligadas aos desdobramentos da Revolução Gloriosa de 1688 e do desenvolvimento do parlamenta- rismo naquele país, apesar de que gradual- mente a indicação de comissões especiais tenha então sido substituída pela atuação do próprio Gabinete na realização das inves- tigações sobre eventuais desvios de conduta em assuntos governamentais. Na primeira metade do século 19 as comissões parla- mentares de inquérito se estabelecem mais nitidamente na tradição britânica, com seu papel decaindo em seguida até a implan- tação, em 1921, dos Tribunais de Inquérito, destinados a funcionar em bases mais perma- nentes e menos sensíveis ao facciosismo ou partidarismo político. Mas é nos Estados Unidos que as co- missões parlamentares de inquérito mais se desenvolvem. Isso pode ser visto como decorrência da importância adquirida pelo recurso a comissões, em geral, no Congresso estadunidense, a qual, por sua vez, pode ser vinculada à peculiar dinâmica partidária do país. Girando em torno de partidos cor- respondentes ao que Maurice Duverger de- signou como “partidos de quadros” (de coesão precária e funcionamento pratica- mente restrito ao próprio Parlamento ou Con- gresso, a não ser nos momentos eleitorais), essa dinâmica tende a favorecer a operação de comissões suprapartidárias, em contraste com o efeito produzido no âmbito parlamentar pelo longo predomínio, em diferentes países da Europa, de partidos coesos e disciplinados, de orientação ideológica mais marcada e mais próximos ao modelo dos “partidos de Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2890 91Leonardo Avritzer | Fátima Anastasia [org.] massas” de Duverger. Seja como for, as constituições de vários estados norte-ameri- canos já contemplavam, desde a indepen- dência, o mecanismo das comissões parlamentares de inquérito, e elas continuam a ter papel destacado, tanto no âmbito esta- dual, quanto no federal. A influência da expe- riência dos Estados Unidos foi certamente a de maior importância para a introdução do mecanismo das comissões parlamentares de inquérito no Brasil. Mas elas são tam- bém importantes em vários outros países, podendo-se citar Alemanha, Grécia, Irlanda e Austrália como exemplos de relevo. Um conveniente resumo do status das comissões parlamentares de inquérito nas sucessivas constituições brasileiras é forne- cido por Sérgio Resende de Barros em texto recente (Barros, 2006). Ausentes das duas primeiras constituições, as de 1824 e 1891, elas vão aparecer pela primeira vez na cons- tituição de 1934, que previa a CPI em seu artigo 36. A CPI era aí restrita, porém, à Câ- mara dos Deputados, enquanto o poder para criar comissões de inquérito estava restrito, no Senado, à parte dele que funcionava du- rante o recesso parlamentar, a “Seção Perma- nente”. Omitido, naturalmente, na Constituição de 1937, imposta por Getúlio Vargas, o instru- mento da CPI retorna na Constituição de 1946, sendo previsto para ambas as Casas legisla- tivas. Já a Constituição de 1967, no artigo 39, prevê a CPI mista de deputados e senadores, além da CPI de cada Casa, introduzindo, ainda, a exigência de prazo certo para o fun- cionamento da CPI, ademais de reafirmar a exigência de que ela tenha “fato determi- nado” como seu objeto, que já vinha desde a Constituição de 1934. A Constituição em vigor, promulgada em 1988, dispõe sobre comissões parlamentares de inquérito no parágrafo 3 do artigo 58, rela- tivo a comissões permanentes e temporárias do Congresso Nacional. Diz o parágrafo 3: As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros pre- vistos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou sepa- radamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encami- nhadas ao Ministério Público, para que pro- mova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores. A avaliação a ser feita do instrumento representado pelas comissões parlamentares de inquérito e do papel que têm cumprido na vida política brasileira é equívoca. Em princípio, elas certamente podem trazer con- tribuições positivas e importantes na expo- sição pública de conduta imprópria em áreas variadas e no seu eventual esclarecimento. Contudo, dada precisamente a publicidade que tende a cercá-las, e que é afim às pró- prias razões de que existam, a atuação das CPIs se vê exposta também às complicações e dificuldades que, do ponto de vista do ideal democrático, envolvem a operação da “opi- nião pública” e as relações entre maiorias e minorias. Assim, as comissões parlamentares de inquérito são com freqüência, como suge- rido acima, objeto de partidarização e faccio- sismo excessivos, com conseqüências negativas. Esse aspecto de facciosismo pode ser ligado, na atualidade brasileira, ao próprio dispositivo do artigo 58 da Consti- tuição que estende às comissões, incluídas as CPIs, o princípio da proporcionalidade na representação dos partidos ou dos blocos parlamentares que participam da respectiva Casa legislativa. Embora o dispositivo possa, sem dúvida, pretender justificar-se em termos democráticos, sua vigência redunda em que os partidos ou blocos majoritários possam, com freqüência, estabelecer ou bloquear a instalação de CPIs, ou condicionar fortemente o seu funcionamento uma vez implantadas. A justificação democrática do dispositivo remete à importância da regra da maioria como meio, que parece natural ou mesmo inevitável, de traduzir em termos operacionais a idéia da vontade da coletividade, seja qual for a escala em que esta se defina. Mas os problemas se introduzem se temos em con- ta, com referência à coletividade política abrangente, o contraste entre o modelo da democracia direta, que tende a consagrar Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2891 92 sem mais a vontade da maioria em cada momento, e o modelo da democracia cons- titucional, empenhado na construção institu- cional complexa em que regras básicas limitam o peso das maiorias cambiantes (e da maioria suposta, a difusa “opinião pú- blica”) e tornam possível garantir os direitos liberais e civis, incluídos os direitos das mi- norias (como se sabe, a idéia dos direitos civis não existia, por exemplo, na Atenas clás- sica, o grande exemplo de democracia di- reta). Ora, as democracias modernas, incluída a brasileira, são, com boas razões, democracias constitucionais e representa- tivas (com os partidos políticos cumprindo papel indispensável no processo de repre- sentação), ainda que haja experimentação mais ou menos intensa com mecanismos de democracia direta em diferentes casos — experimentação que se vê cercada tanto de aspectos positivos e promissores quanto de conseqüências problemáticas. Por outro lado, elas são também democracias em que a “opinião pública” se faz sentir fortemente e de modo peculiar, tendo em vista a impor- tância, a diversidade e o dinamismo cres- cente dos meios de comunicação de massas. Tudo isso traz dificuldades à avaliação das comissões parlamentares de inquérito. Alguns pretendem ligar a atuação das CPIs justamente ao fato — seja como causa ou como efeito — de que haja “clamor público” a respeito de determinados assuntos ou pro- blemas, clamor este que é mesmo visto como um fator de legitimação delas, parti- cularmente no caso de certos desdobra- mentos especiais, como o do impeachment de governantes. Mas não cabe ignorar a tensão sugerida entre o clamor público (ou a “opinião pública”) e os princípios que a democracia constitucional e representativa consagra. A pressão em favor da unanimi- dade e a tendência a suprimir a divergência que se podem apontar na dinâmica da opi- nião pública são, na verdade, traços que, jun- tamente com pressões de outro tipo, não só dificultam a manifestação das preferências privadas e autênticas dos próprios cidadãos e eleitores: elas são obstáculos, igualmente, à livre deliberação pelo representante ou parlamentar no exercício de suas funções, incluindo o trabalho das comissões parla- mentares de inquérito. Se ninguém ques- tiona que o voto secreto seja uma conquista democrática quando se trata do cidadão em seu papel de eleitor, pretender algo dis- tinto com respeito às decisões no âmbito par- lamentar redundaria em defender o chamado “mandato imperativo”, em que o parlamentar simplesmente faria o que quisessem os elei- tores em cada momento e cuja impropriedade nas condições da democracia constitucional e representativa é evidente — ainda que po- nhamos de lado a diversidade de pressões a que pode estar sujeito o parlamentar e as dificuldades adicionais que vêm daí. Mas os embaraços envolvidos nesses temas complicados (vejam-se, por exemplo, Elster; Slagstad, 1993; Kuran, 1995) contaminam também, naturalmente, o próprio recurso à regra da maioria e à proporcionalidade parti- dária no que se refere à implantação e ao funcionamento das comissões parlamentares de inquérito, transformando-as em instru- mento sempre disponível — e fatalmente espúrio, em algum grau — para atores de motivação politicamente míope ou miúda. A experiência com as comissões parla- mentares de inquérito na história política mais ou menos recente do país respalda a ambi- valência em sua avaliação. Tomemos, para começar, um exemplo relativo às turbulências do período democrático de 1945 a 1964. Temos, em abril de 1953, a instalação, sob o controle da oposicionista União Democrá- tica Nacional (UDN) e a inspiração da cam- panha sem tréguas empreendida contra o governo constitucional de Getúlio Vargas por Carlos Lacerda, deputado e dono do jornal Tribuna da Imprensa, da CPI destinada a apurar o suposto favorecimento financeiro que teria sido prestado ilicitamente pelo governo ao jornal Última Hora, de Samuel Wainer, que competia com a Tribuna e ata- cava Lacerda ferozmente. Embora nada se tenha provado sobre o envolvimento do go- verno, inviabilizando-se uma eventual proposta de impeachment, o fato é que a CPI foi um fator saliente do tumulto político que cul- minou no suicídio de Vargas em agosto do Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2892 95Leonardo Avritzer | Fátima Anastasia [org.] A soberania popular será exercida pelo su- frágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I – plebiscito; II – referendo; III – iniciativa popular. A trajetória da inscrição da participação popular nos marcos legais no Brasil tem sido mais retórica que efetiva, só mesmo repre- sentando um novo patamar de exercício da democracia a partir da CF/88. Benevides (1991) historia a participação popular nas Constituições brasileiras desde a existência do princípio da revogação dos mandatos de representantes no Império, em relação à possibilidade de perda de mandato dos eleitos para o Conselho de Procuradores do Estado. No entanto, este instituto previsto em 1822, durou apenas um ano. Também menciona a ação popular na Constituição de 1824, que previa a responsabilização penal dos juízes de direito e dos oficiais de justiça em casos de suborno, peita, peculato e con- cussão. No entanto, recorre à interpretação do historiador Francisco Iglesias para analisar esta iniciativa como uma forma de disfarçar a outorga da Constituição de 1824. A Constituição Federal de 1891 não continha instrumentos de democracia semi- direta, embora as primeiras constituições republicanas de alguns estados da Fede- ração, como a de São Paulo, admitiam não só a revogação dos mandatos legislativos como também o veto popular, ou seja, a anulação das deliberações das autoridades municipais mediante proposta de um certo número de eleitores. Já as constituições republicanas dos estados do Rio Grande do Sul, de Goiás e de Santa Catarina, tam- bém introduziram o princípio do recall , isto é, o poder do eleitorado para cassar o man- dato de seus representantes. Enquanto a Constituição Federal de 1934 não acolheu os mecanismos de democracia semidireta, apenas introduzindo a inovação da representação classista, a Carta Outor- gada de 1937 estabelecia quatro modali- dades de plebiscito, relativas à alteração da divisão territorial, atribuição de poderes legis- lativos ao Conselho de Economia Nacional, aprovação de eventual emenda ou projeto de alteração da Constituição e, finalmente, rezava que o próprio texto constitucional deveria ser submetido a plebiscito, o que jamais ocorreu. O período democrático que se inaugura em 1945 e se consubstancia na Constituição de 1946 privilegiou a opção por uma demo- cracia representativa sem participação po- pular, vistas como concorrentes, sendo que apenas o plebiscito foi previsto para os casos de alteração da divisão territorial. Por essa razão, o plebiscito que ocorreu em 1963, foi, por muitos, considerado sem respaldo jurí- dico. O clima político conturbado pela re- núncia do presidente Jânio Quadros e a edição de Emenda Constitucional (nº 4 de 1961), alterando o sistema de governo com a instauração do parlamentarismo, propi- ciaram a convocação do plebiscito no qual a população aprovou, mais do que tudo, a retomada dos poderes pelo presidente João Goulart. A atmosfera hostil à democracia presente na confecção da Constituição de 1967 e da Emenda nº 1 de 1969 não permitiu avanços em relação à participação popular, apenas acrescentando a consulta prévia à população para a criação de municípios. A explosão da participação popular como tema de debates e como prática política vem a ocorrer com a redemocratização e a mobilização e a orga- nização da sociedade civil em torno das grandes campanhas políticas como as Di- retas Já em 1985 e as lutas por uma Assem- bléia Nacional Constituinte – ANC exclusiva e soberana. Apesar das derrotas sofridas em relação às duas propostas, com a insta- lação da ANC congressual em 1987, há uma intensa campanha pelo direito de apresen- tação de emendas populares que termina vitoriosa. O regimento da ANC garantiu o direito à emenda popular, (artigo 24) além da possi- bilidade de apresentação de sugestões e de audiências públicas nas comissões temá- ticas. As organizações da sociedade civil participaram ativamente do processo cons- tituinte fazendo uso destes instrumentos, 1 levando os constituintes a tomarem contato Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2895 96 com a efervescência dos movimentos so- ciais e com suas propostas de instituciona- lização da participação popular. Os argumentos em defesa da partici- pação popular são resumidos por Sgarbi e Assad (2006): 1- a democracia semidireta ou participativa é um processo permanente de educação para a cidadania ativa; 2- o regime democrático é fortalecido com a cobrança e o controle da população; 3- corrige os vícios de sistemas de governo desassociados da opinião pública; 4- os pequenos partidos, apoiados pela opi- nião pública, são fortalecidos; 5- no âmbito municipal, o cidadão pode de- cidir sobre questões que lhe dizem respeito; 6- criação de novas lideranças a partir de pe- quenas comunidades; 7- fonte de legitimação e recuperação da esfera política, podendo evitar cisões. As críticas em relação à democracia parti- cipativa estão baseadas na idéia de que ela restringiria a própria existência do regime democrático, ao solapar a legitimidade dos representantes eleitos, além de ser passível de manipulação da população pelo gover- nante, fortalecendo, assim, sua autoridade em situações de conflito com o Legislativo. Em termos históricos encontramos evi- dências que comprovam a veracidade de argumentos tanto favoráveis quanto desfa- voráveis à democracia participativa: enquanto na Suíça a participação popular tem sido importante fator de fortalecimento dos pe- quenos partidos ou blocos partidários con- tribuindo para superação de impasses, favorecendo a negociação e, assim, aproxi- mando governo e opinião pública, a França viveu a experiência traumática de utilizar a participação popular exclusivamente como meio de fortalecer o poder pessoal do gover- nante (Napoleão e De Gaulle). A experiência brasileira recente é rica em inovações em relação à combinação de democracia representativa e participativa, embora ainda resista em relação à regula- mentação das formas de participação. Em primeiro lugar, resta lembrar que na votação em primeiro turno da Constituição, além do plebiscito, do referendo e da inicia- tiva popular, também foi incluído o veto popular, que, no entanto, terminou sendo eliminado no segundo turno da votação. O veto popular pode ser entendido como um referendo revocatório, pois estabelece as condições nas quais a população pode der- rubar uma legislação já aprovada pelo Con- gresso. A ausência do veto popular e do instrumento do recall — que garante à população o direito de cassar um represen- tante eleito que não atua da forma prevista — tem sido denunciada como restrições à soberania popular. Com o aumento do des- crédito em relação ao comportamento de parlamentares, identificados como sendo movidos por interesses muito distantes do interesse público, cresce na sociedade civil organizada a demanda pela introdução destes instrumentos que poderiam coibir práticas legislativas escusas. Dentro da Cam- panha Nacional em Defesa da República e da Democracia, 2 os senadores Pedro Simon e Eduardo Suplicy lideram uma proposta de emenda constitucional que institui a revo- gação de mandatos eletivos no Executivo e nas diversas Casas Legislativas. Em relação aos instrumentos incluídos na CF/88 — o plebiscito, o referendo e a inicia- tiva popular — são muitas as dificuldades para implementá-los de forma mais rotineira no exercício da democracia, em função das várias lacunas no texto constitucional, da demora em promulgar uma legislação infra- constitucional que regulasse estas práticas e, finalmente, da ausência de uma cultura cívica amplamente disseminada entre a população. A legislação que regulamentou os instru- mentos constitucionais de participação po- pular tardou uma década a ser promulgada (Lei 9.709 de 18/11/1998), sendo que prati- camente repetiu o que estava no texto constitucional. O plebiscito é utilizado como uma forma de consulta sobre qualquer questão de inte- resse público, 3 não tendo feição normativa, mas servindo para se avaliar a repercussão de uma medida futura a ser tomada. Já o referendo é um instrumento concernente a Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2896 97Leonardo Avritzer | Fátima Anastasia [org.] ato normativo, de nível constitucional ou infra- constitucional, podendo anteceder ou não à feitura da norma, com caráter necessaria- mente vinculativo. Enquanto a doutrina clássica considera que no referendo consultivo, o qual antecede a qualquer lei ou ato normativo, não há ga- rantia de que as autoridades irão acatar a manifestação popular, a opinião atual mais corrente é que os referendos devem ter sempre caráter vinculante, caso contrário, seriam plebiscitos (Benevides, 1991). Outra polêmica diz respeito à convo- cação de plebiscitos e referendos, já que a Lei 9.709/98, ao regulamentar estes instru- mentos, determinou que em ambos os casos, apenas o Congresso Nacional (mínimo de 1/ 3 dos membros da Câmara ou do Senado) poderá fazê-lo. Enquanto na CF/88 (artigo 49, XV) o legislador dita que é competência exclusiva do Congresso Nacional autorizar referendo e convocar plebiscito, na legis- lação infraconstitucional o termo utilizado, em ambos os casos é convocar. Esta alte- ração é substancial, na medida em que fica assim vetada a possibilidade de que o povo solicite a realização de plebiscitos e refe- rendos, pois esta decisão é uma prerroga- tiva exclusiva do Congresso Nacional. Sobre este tema, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 4.718/2004 de autoria do jurista Fábio Konder Comparato, como parte da Campanha Nacional em De- fesa da República e da Democracia. O pro- jeto pretende resgatar o princípio constitucional da soberania popular, ao permitir que plebis- citos e referendos sejam convocados seja por iniciativa popular (1% do eleitorado), seja por iniciativa de um terço dos membros de uma das Casas do Congresso. Além disso, o projeto prevê a extensão do referendo às emendas constitucionais e aos tratados e outros acordos internacionais, bem como a obrigatoriedade de referendo sobre matérias eleitorais. Tais projetos de- verão ter prioridade em sua tramitação e a revogação ou alteração de uma lei oriunda de iniciativa popular só poderá ocorrer se submetida a referendo popular. Este projeto pretende ampliar a partici- pação popular nos termos previstos na CF/ 88, além de preencher as lacunas na legis- lação atual. São elas: subjetividade embu- tida na definição do que são temas de relevância nacional; caráter não vinculativo das decisões submetidas à decisão popular; indefinição do âmbito da participação popu- lar; ausência de procedimentos que garantam a prioridade na tramitação e na aprovação de iniciativas populares legislativas. Em 1993 ocorreu o plebiscito sobre a forma e o sistema de governo, vencendo a forma de governo republicana e o sistema de go- verno presidencialista. Já em 2005 houve o primeiro referendo, previsto no Estatuto do Desarmamento, no qual a população rejeitou a proibição de comercialização de armas de fogo. A iniciativa popular legislativa foi inscrita na CF/88 (artigo 61, parágrafo 2º.) e regu- lada pela Lei 9.709/98, estabelecendo que ela pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de Projeto de Lei subscrito por, no mínimo, 1% do eleitorado, distribuído em pelo menos cinco estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores em cada um deles. Estas condições são consideradas por muitos como altamente restritivas, já que requerem um elevado percentual de partici- pação em uma sociedade que, em muitos lugares, carece de informações, educação e cultura cívica. Além disso, não existe regu- lamentação sobre a tramitação, sobre a obri- gação de o Congresso votar estas matérias e prazos para sua regulamentação. A legis- lação em vigor também não esclarece se a Presidência poderá exercer seu poder de veto. Mesmo assim, a partir de uma situação de comoção desencadeada pela tragédia que acometeu a escritora Glória Perez e, com o apoio da mídia, foi promulgada lei de inicia- tiva popular (Lei 8.930/94) que ampliou o rol dos crimes hediondos inafiançáveis e insus- ceptíveis de graça ou anistia. Outro Projeto de Lei de iniciativa popular contra a corrup- ção eleitoral foi aprovado (Lei 9.840/99) a partir de intensa mobilização da sociedade civil, dando maiores condições à Justiça Eleitoral para coibir a compra de votos. Reforma Política no Brasil_01_272.p65 01/08/06, 17:2897
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