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Guias e Dicas
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O mundo dos filósofos, Notas de estudo de Química

Filosofia minha segunda paixão

Tipologia: Notas de estudo

Antes de 2010

Compartilhado em 12/08/2009

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leandro-rocha-14 🇧🇷

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Baixe O mundo dos filósofos e outras Notas de estudo em PDF para Química, somente na Docsity! O MUNDO DOS FILÓSOFOS CONTEXTO I – Pensamento Clássico Os pré-socráticos Heráclito de Éfeso Pitágoras de Samos Zenão de Eléia Demócrito de Abdera Os sofistas Sócrates Platão Aristóteles Epicurismo, Ceticismo e Ecletismo O Estoicismo II – Pensamento Cristão Neoplatonismo – Plutarco de Queronéia O pensamento cristão O cristianismo A praxe ascética do cristianismo Santo Agostinho e a patrística pré-agostiniana Santo Agostinho A escolástica pré-tomista Santo Tomás de Aquino III – Pensamento Latino As ciências naturais na idade helenista e o pensamento latino O direito romano e a educação romana IV – Pensamento Moderno O pensamento moderno Os pensadores renascentistas – Giordano Bruno, Nicolau de Cusa O cartesianismo – Baruch Spinoza De Aristóteles à renascença René Descartes O empirismo – Francis Bacon, John Locke, George Berkeley O iluminismo francês – Jean-Jacques Rosseau Leibniz A renascença – o renovamento das antigas escolas filosóficas Nicolau Machiavelli, Galileu Galilei O cartesianismo – Malebranche, Leibniz, Wolff René Descartes O empirismo – David Hume, Thomás Hobbes O iluminismo francês – Condillac, Montesquieu, Voltaire Blaise Pascal 2 V – Pensamento Contemporâneo Emmanuel Kant Hegel – o idealismo lógico Nietzsche Kierkegaard Kant – moral, metafísica e crítica do juízo O idealismo pós-kantiano – Fichte, Schelling e Schleiermacher Hegel – a idéia, a natureza, o espírito O positivismo – Auguste Comte VI - Bibliografia 5 Segundo Aristóteles sobre a teoria de Tales: elemento estático e elemento dinâmico. Elemento Estático - a flutuação sobre a água. Elemento Dinâmico - a geração e nutrição de todas as coisas pela água. Tales acreditava em uma "alma do mundo", havia um espírito divino que formava todas as coisas da água. Tales sustentava ser a água a substância de todas as coisas. Anaximandro de Mileto (611-547 A.C.) "Ápeiron" Anaximandro de Mileto, geógrafo, matemático, astrônomo e político, discípulo e sucessor de Tales e autor de um tratado Da Natureza, põe como princípio universal uma substância indefinida, o ápeiron (ilimitado), isto é, quantitativamente infinita e qualitativamente indeterminada. Deste ápeiron (ilimitado) primitivo, dotado de vida e imortalidade, por um processo de separação ou "segregação" derivam os diferentes corpos. Supõe também a geração espontânea dos seres vivos e a transformação dos peixes em homens. Anaximandro imagina a terra como um disco suspenso no ar. Eterno, o ápeiron está em constante movimento, e disto resulta uma série de pares opostos - água e fogo, frio e calor, etc. - que constituem o mundo. O ápeiron é assim algo abstrato, que não se fixa diretamente em nenhum elemento palpável da natureza. Com essa concepção, Anaximandro prossegue na mesma via de Tales, porém dando um passo a mais na direção da independência do "princípio" em relação às coisas particulares. Para ele, o princípio da "physis" (natureza) é o ápeiron (ilimitado). Atribui-se a Anaximandro a confecção de um mapa do mundo habitado, a introdução na Grécia do uso do gnômon (relógio de sol) e a medição das distâncias entre as estrelas e o cálculo de sua magnitude (é o iniciador da astronomia grega). Ampliando a visão de Tales, foi o primeiro a formular o conceito de uma lei universal presidindo o processo cósmico total. Diz-se também, que preveniu o povo de Esparta de um terremoto. Anaximandro julga que o elemento primordial seria o indeterminado (ápeiron), infinito e em movimento perpétuo. Fragmentos "Imortal...e imperecível (o ilimitado enquanto o divino) - Aristóteles, Física". Esta (a natureza do ilimitado, ele diz que) é sem idade e sem velhice. Hipólito, Refutação. Anaxímenes de Mileto (588-524 A.C.) "Ar" Segundo Anaxímenes, a arkhé (comando) que comanda o mundo é o ar, um elemento não tão abstrato como o ápeiron, nem palpável demais como a água. Tudo provém do ar, através de seus movimentos: o ar é respiração e é vida; o fogo é o ar rarefeito; a água, a terra, a pedra são formas cada vez mais condensadas do ar. As diversas coisas que existem, mesmo apresentando qualidades diferentes entre si, reduzem-se a variações quantitativas (mais raro, mais denso) desse único elemento. Atribuindo vida à matéria e identificando a divindade com o elemento primitivo gerador dos seres, os antigos jônios professavam o hilozoísmo e o panteísmo naturalista. Dedicou-se especialmente à meteorologia. Foi o primeiro a afirmar que a Lua recebe sua luz do Sol. Anaxímenes julga que o elemento primordial das coisas é o ar. Fragmentos "O contraído e condensado da matéria ele diz que é frio, e o ralo e o frouxo (é assim que ele expressa) é quente. (Plutarco). " Com nossa alma, que é ar, soberanamente nos mantém unidos, assim também todo o cosmo sopro e ar o mantém. (Aécio). 6 Heráclito de Éfeso Vida de Heráclito Heráclito nasceu em Éfeso, cidade da Jônia, de família que ainda conservava prerrogativas reais (descendentes do fundador da cidade). Seu caráter altivo, misantrópico e melancólico ficou proverbial em toda a antigüidade. Desprezava a plebe. Recusou-se sempre a intervir na política. Manifestou desprezo pelos antigos poetas, contra os filósofos de seu tempo e até contra a religião. Sem ter sido mestre, Heráclito escreveu um livro Sobre a Natureza, em prosa, no dialeto jônico, mas de forma tão concisa que recebeu o cognome de Skoteinós, o Obscuro. Floresceu em 504-500 a.C. - Heráclito é por muitos considerados o mais eminente pensador pré-socrático, por formular com vigor o problema da unidade permanente do ser diante da pluralidade e mutabilidade das coisas particulares e transitórias. Estabeleceu a existência de uma lei universal e fixa (o Lógos), regedora de todos os acontecimentos particulares e fundamento da harmonia universal, harmonia feita de tensões, "como a do arco e da lira". Filosofia de Heráclito Heráclito concebe o próprio absoluto como processo, como a própria dialética. A dialética é: A. Dialética exterior, um raciocinar de cá para lá e não a alma da coisa dissolvendo-se a si mesma; B. Dialética imanente do objeto, situando-se, porém, na contemplação do sujeito; C. Objetividade de Heráclito, isto é, compreender a própria dialética como princípio. É o progresso necessário, e é aquele que Heráclito fez. O ser é o um, o primeiro; o segundo é o devir - até esta determinação avançou ele. Isto é o primeiro concreto, o absoluto enquanto nele se dá a unidade dos opostos. Nele encontra-se, portanto, pela primeira vez, a idéia filosófica em sua forma especulativa; o raciocínio de Parmênides e Zenão é entendimento abstrato; por isso Heráclito foi tido como filósofo profundo e obscuro e como tal criticado. O que nos é relatado da filosofia de Heráclito parece, à primeira vista, muito contraditório; mas nela se pode penetrar com o conceito e assim descobrir, em Heráclito, um homem de profundos pensamentos. Ele é a plenitude da consciência até ele - uma consumação da idéia na totalidade que é o início da Filosofia ou expressa a essência da idéia, o infinito, aquilo que é. O Princípio Lógico O princípio universal. Este espírito arrojado pronunciou pela primeira vez esta palavra profunda: "O ser não é mais que o não-ser", nem é menos; ou ser e nada são o mesmo, a essência é mudança. O verdadeiro é apenas como a unidade dos opostos; nos eleatas, temos apenas o entendimento abstrato, isto é, apenas o ser é. Dizemos, em lugar da expressão de Heráclito: O absoluto é a unidade do ser e do não-ser. Se ouvimos aquela frase "O ser não é mais que o não-ser", desta maneira, não parece, então, produzir muito sentido, apenas destruição universal, ausência de pensamento. Temos, porém, ainda uma outra expressão que aponta mais exatamente o sentido do princípio. Pois Heráclito diz: "Tudo flui (panta rei), nada persiste, nem permanece o mesmo". E Platão ainda diz de Heráclito: "Ele compara as coisas com a corrente de um rio - que não se pode entrar duas vezes na mesma corrente"; o rio corre e toca-se outra água. Seus sucessores dizem até que nele nem se pode mesmo entrar, pois que imediatamente se transforma; o que é, ao mesmo tempo já novamente não é. Além disso, Aristóteles diz que Heráclito afirma que é apenas um o que permanece; disto todo o resto é formado, modificado, transformado; que todo o resto fora deste um flui, que nada é firme, que nada se demora; isto é, o verdadeiro é o devir, não o ser - a determinação mais exata para este conteúdo universal é o devir. Os eleatas dizem: só o ser é, é o verdadeiro; a verdade do ser é o devir; ser é o primeiro pensamento enquanto imediato. Heráclito diz: Tudo é devir; este devir é o princípio. Isto está na expressão: "O ser é tão pouco como o não-ser; o devir é e também não é". As determinações absolutamente opostas estão ligadas numa unidade; nela temos o ser e também o não-ser. Dela faz parte não apenas o surgir, mas também o desaparecer; ambos não são para si, mas são idênticos. É isto 7 que Heráclito expressou com suas sentenças. O não ser é, por isso é o não-ser, e o não-ser é, por isso é o ser; isto é a verdade da identidade de ambos. É um grande pensamento passar do ser para o devir; é ainda abstrato, mas, ao mesmo tempo, também é o primeiro concreto, a primeira unidade de determinações opostas. Estas estão inquietas nesta relação, nela está o princípio da vida. Com isto está preenchido o vazio que Aristóteles apontou nas antigas filosofias - a falta de movimento; este movimento é aqui, agora mesmo, princípio. É uma grande convicção que se adquiriu, quando se reconheceu que o ser e o nada são abstrações sem verdade, que o primeiro elemento verdadeiro é o devir. O entendimento separa a ambos como verdadeiros e de valor; a razão, pelo contrário, reconhece um no outro, que num está contido seu outro - e assim o todo, o absoluto deve ser determinado como o devir. Heráclito também diz que os opostos são características do mesmo, como, por exemplo, "o mel é doce e amargo" - ser e não-ser ligam-se ao mesmo. Sexto observa: Heráclito parte, como os céticos, das representações correntes dos homens; ninguém negará que os sãos dizem do mel que é doce, e os que sofrem de icterícia que é amargo - se fosse apenas doce, não poderia modificar sua natureza através de outra coisa e assim também para os que sofrem de icterícia seria doce. Zenão começa a sobressumir os predicados opostos e aponta no movimento aquilo que se opõe - um por limites e um sobressumir os limites; Zenão só exprimiu o infinito pelo seu lado negativo - , por causa de sua contradição, como o não verdadeiro. Em Heráclito, vemos o infinito como tal expresso como conceito e essência: o infinito, que é em si e para si, é a unidade dos opostos e, na verdade, dos universalmente opostos, da pura oposição, ser e não-ser. Tomamos nós o ente em si e para si, não a representação do ente, do pleno, assim o puro ser é o pensamento simples, em que todo o determinado é negado, o absolutamente negativo - nada é o mesmo, apenas este igual a si mesmo - , passagem absoluta para o oposto, ao qual Zenão não chegou! "Do nada, nada vem." Em Heráclito o momento da negatividade é imanente; disto trata o conceito de toda a Filosofia. Primeiro tivemos a abstração de ser e não-ser, numa forma bem imediata e universal; mais exatamente, porém, também Heráclito concebeu as oposições de maneira mais determinada. É esta unidade de real e ideal, de objetivo e subjetivo; o objetivo somente é o devir subjetivo. Este verdadeiro é o processo do devir; Heráclito expressou de modo determinado este pôr-se numa unidade das diferenças. Aristóteles diz, por exemplo, que Heráclito "ligou o todo e o não-todo" (parte) - o todo se torna parte e a parte o é para se tornar o todo - , o "que se une e se opõe", do mesmo modo, "o que concorda e o dissonante"; e de que de tudo (que se opõe) resulta um, e de um tudo. Este um não é o abstrato, a atividade de dirimir- se; a morta infinitude é uma má abstração em oposição a esta profundidade que vemos em Heráclito. Sexto Empírico cita o seguinte que Heráclito teria dito: A parte é algo diferente do todo; mas é também o mesmo que o todo é; a substância é o todo e a parte. O fato de Deus ter criado o mundo Ter-se dividido a si mesmo, gerado seu Filho, etc. - todos estes elementos concretos estão contidos nesta determinação. Platão diz, em seu Banquete, sobre o princípio de Heráclito: "O um, diferenciado de si mesmo, une-se consigo mesmo" - este é o processo da vida, "como a harmonia do arco e da lira". Deixa então que Erixímaco, que fala no Banquete, critique o fato de a harmonia ser desarmônica ou se componha de opostos, pois que a harmonia se formaria de altos e baixos, mas da unidade pela arte da música. Mas isto não contradiz Heráclito, que justamente quer isto. O simples, a repetição de um único som não é harmonia. Da harmonia faz parte a diferença; é preciso que haja essencial e absolutamente uma diferença. Esta harmonia é precisamente o absoluto devir, transformar-se - não devir outro, agora este, depois aquele. O essencial é que cada diferente, cada particular seja diferente de um outro - mas não de um abstrato qualquer outro, mas de seu outro; cada um apenas é, na medida em que seu outro em si esteja consigo, em seu conceito. Mudança é unidade, relação de ambos a um, um ser, este e o outro. Na harmonia e no pensamento concordamos que seja assim; vemos, pensamos a mudança, a unidade essencial. O espírito relaciona-se na consciência com o sensível e este sensível é seu outro. Assim também no caso dos sons; devem ser diferentes, mas de tal maneira que também possam ser unidos - e isto os sons são em si. Da harmonia faz parte determinada oposição, seu oposto, como nas harmonia das cores. A subjetividade é o outro da objetividade, não de um pedaço de papel - o absurdo disto logo se mostra - , deve ser seu outro, e nisto reside sua identidade; assim cada coisa é o outro do outro enquanto seu outro. Este é o grande princípio de Heráclito; pode parecer obscuro, mas é especulativo; e 10 racional concepção de que tudo é regulado segundo relações numéricas, passa-se à visão fantástica de que o número seja a essência das coisas. Mas, achada a substância una e imutável das coisas, os pitagóricos se acham em dificuldades para explicar a multiplicidade e o vir-a-ser, precisamente mediante o uno e o imutável. E julgam poder explicar a variedade do mundo mediante o concurso dos opostos, que são - segundo os pitagóricos - o ilimitado e o limitado, ou seja, o par e o ímpar, o imperfeito e o perfeito. O número divide-se em par, que não põe limites à divisão por dois, e, por conseguinte, é ilimitado (quer dizer, imperfeito, segundo a concepção grega, a qual via a perfeição na determinação); e ímpar, que põe limites à divisão por dois e, portanto, é limitado, determinado, perfeito. Os elementos constitutivos de cada coisa - sendo cada coisa número - são o par e o ímpar, o ilimitado e o limitado, o pior e o melhor. Radical oposição esta, que explicaria o vir-a-ser e o múltiplice, que seriam reconduzidos à concordância e à unidade pela fundamental harmonia (matemática), que governa e deve governar o mundo material e moral, astronômico e sonoro. Como a filosofia da natureza, assim a astronomia pitagórica representa um progresso sobre a jônica. De fato, os pitagóricos afirmaram a esfericidade da Terra e dos demais corpos celestes, bem como a rotação da Terra, explicando assim o dia e a noite; e afirmaram também a revolução dos corpos celestes em torno de um foco central, que não se deve confundir com o Sol. Pelo que diz respeito à moral, enfim, dominam no pitagorismo o conceito de harmonia, logicamente conexo com a filosofia pitagórica, e as práticas ascéticas e abstinenciais, com relação à metempsicose e à reincarnação das almas. Para compreendermos seus princípios fundamentais, é preciso partir do eleatismo. Como é possível uma pluralidade? Pelo fato de o não-ser ter um ser. Portanto, identificam o não-ser ao Ápeiron de Anaximandro, ao absolutamente Indeterminado, àquilo que não tem nenhuma qualidade; a isso opõe-se o absolutamente Determinado, o Péras. Mas ambos compõem o Uno, do qual se pode dizer que é impar, delimitado e ilimitado, inqualificado e qualificado. Dizem, pois, contra o eleatismo, que, se o Uno existe, foi em todo caso formado por dois princípios, pois, nesse caso, há também uma pluralidade; da unidade procede a série dos números aritméticos (monádicos), depois os números geométricos ou grandezas (formas espaciais). Portanto, a Unidade veio a ser; portanto, há também uma pluralidade. Desde que se têm o ponto, a linha, as superfícies e os corpos, têm-se também os objetos materiais; o número é a essência própria das coisas. Os eleatas dizem: "Não há não-ser, logo, tudo é uma unidade". Os pitagóricos: "A própria unidade é o resultado de um ser e de um não-ser, portanto há, em todo caso, não-ser e, portanto, também uma pluralidade". À primeira vista, é uma especulação totalmente insólita. O ponto de partida me parece ser a apologia da ciência matemática contra o eleatismo. Lembramo-nos da dialética de Parmênides. Nela, é dito da Unidade (supondo que não existe pluralidade): 1) que ela não tem partes e não é um todo; 2) que tampouco tem limites; 3) portanto, que não está em parte nenhuma; 4) que não pode nem mover-se nem estar em repouso, etc. Mas, por outro lado, o Ser e a Unidade dão a Unidade existente, portanto a diversidade, e as partes múltiplas, e o número, e a pluralidade do ser, e a delimitação, etc. É um procedimento análogo: ataca-se o conceito da Unidade existente porque comporta os predicados contraditórios e é, portanto, um conceito contraditório, impossível. Os matemáticos pitagóricos acreditavam na realidade das leis que haviam descoberto; bastava-lhes que fosse afirmada a existência da Unidade para deduzir dela também a pluralidade. E acreditavam discernir a essência verdadeira das coisas em suas relações numéricas. Portanto, não há qualidades, não há nada além de quantidades, não quantidades de elementos (água, fogo, etc.), mas delimitações do ilimitado, do Ápeiron; este é análogo ao ser potencial da hyle de Aristóteles. Assim, toda coisa nasce de dois fatores opostos. De novo, aqui, dualismo. Notável quadro estabelecido por Aristóteles (Metaf. I, 5): delimitado, ilimitado; ímpar, par; uno, múltiplo; direita, esquerda; masculino, feminino; imóvel, agitado; reto, curvo; luz, trevas; bom, mau; quadrado, ablongo. De um lado têm-se, portanto: delimitado, ímpar, uno, direita, masculino, imóvel, reto, luz, bom, quadrado. De outro lado, ilimitado, par, múltiplo, esquerda, feminino, agitado, curvo, trevas, mau, ablongo. Isso lembra o quadro-modelo de Parmênides. O ser é luz e, portanto, sutil, quente, ativo; o não-ser é noite e, portanto, denso, frio, passivo. O ponto de partida que permite afirmar que tudo o que é qualitativo é quantitativo encontra-se na acústica. [Teoria das cordas sonoras; relação de intervalos; modo dórico.] 11 A música, con efeito, é o melhor exemplo do que queriam dizer os pitagóricos. A música, como tal, só existe em nossos nervos e em nosso cérebro; fora de nós ou em si mesma (no sentido de Locke), compõe-se somente das relações numéricas quanto ao ritmo, se se trata de sua quantidade, e quanto à tonalidade, se se trata de sua qualidade, conforme se considere o elemento harmônico ou o elemento rítmico. No mesmo sentido, poder-se-ia exprimir o ser do universo, do qual a música é, pelo menos em certo sentido, a imagem, exclusivamente com o auxílio de números. E tal é, estritamente, o domínio da química e das ciências naturais. Trata-se de encontrar fórmulas matemáticas para as forças absolutamente impenetráveis. Nossa ciência é, nesse sentido, pitagórica. Na química, temos uma mistura de atomismo e de pitagorismo, para a qual Ecphantus na Antiguidade passa por ter aberto o caminho. A contribuição original dos pitagóricos é, pois, uma invenção extremamente importante: a significação do número e, portanto, a possibilidade de uma investigação exata em física. Nos outros sistemas de física, tratava-se sempre de elementos e de sua combinação. As qualidades nasciam por combinação ou por dissociação; agora, enfim, afirma-se que as qualidades residem na diversidade das proporções. Mas esse presentimento estava ainda longe da aplicação exata. Contentou-se, provisoriamente, com analogias fantasiosas. [Simbolismo dos números pitagóricos: um é a razão, dois a opinião, quatro a justiça, cinco o casamento, dez a perfeição, etc.; um é o ponto, dois é a linha, três a superfície, quatro o volume. Cosmogonia. O Universo e os planetas esféricos. A harmonia das esferas.] Se se pergunta a que se pode vincular a filosofia pitagórica, encontra-se, inicialmente, o primeiro sistema de Parmênides, que fazia nascer todas as coisas de uma dualidade; depois, o Ápeiron de Anaximandro, delimitado e movido pelo fogo de Heráclito. Mas estes são apenas, evidentemente, problemas secundários; na origem há a descoberta das analogias numéricas no universo, ponto de vista inteiramente novo. Para defender essa idéia contra a doutrina unitária dos eleatas, tiveram de erigir a noção de número, foi preciso que também a Unidade tivesse vindo a ser; retomaram então a idéia heraclitiana do pólemos, pai de todas as coisas, e da Harmonia que une as qualidades opostas; a essa força, Parmênides chamava Aphrodite. Simbolizava a gênese de todas as coisas a partir da oitava. Decompuseram os dois elementos de que nasce o número em par e ímpar. Identificaram essas noções com termos filosóficos já usuais. Chamar o Ápeiron de Par é sua grande inovação; isso porque os ímpares, os gnómones, davam nascimento a uma série limitada de números, os números quadrados. Remetem-se, assim, a Anaximandro, que reaparece aqui pela última vez. Mas identificam esse limite com o fogo de Heráclito, cuja tarefa é, agora, dissolver o indeterminado em tantas relações numéricas determinadas; é essencialmente uma força calculadora. Se houvessem tomado emprestado de Heráclito a palavra lógos, teriam entendido por ela a proporção (aquilo que fixa as proporções, como o Péras fixa o limite). Sua idéia fundamental é esta: a matéria, que é representada inteiramente destituída de qualidade, somente por relações numéricas adquire tal ou tal qualidade determinada. Tal é a resposta dada ao problema de Anaximandro. O vir-a-ser é um cálculo. Isso lembra a palavra de Leibniz, ao dizer que a música é exercitium arithmeticae occultum nescientis se numerare animi (¹). Os pitagóricos teriam podido dizer o mesmo do universo, mas sem poder dizer quem faz o cálculo. (¹) O exercício de aritmética oculto do espírito que não sabe calcular. Notas Biográficas sobre Pitágoras A doutrina e a vida de Pitágoras, desde os tempos da antiguidade, jaz envolta num véu de mistério. A força mística do grande filósofo e reformador religioso, há 2.600 anos vem, poderosamente, influindo no pensamento Ocidentel. Dentre as religiões de mistérios, de caráter iniciático, a doutrina pitagórica foi a que mais se difundiu na antiguidade. Não consideramos apenas lenda o que se escreveu sobre essa vida maravilhosa, porque há, nessas descrições, sem dúvida, muito de histórico do que é fruto da imaginação e da cooperação ficcional dos que se dedicaram a descrever a vida do famoso filósofo de Samos. O fato de negar-se, peremptoriamente, a historicidade de Pitágoras (como alguns o fazem), por não se ter às mãos documentação bastante, não impede que seja o pitagorismo uma realidade empolgante na história da filosofia, cuja influência atravessa os séculos até nossos dias. 12 Acontece com Pitágoras o que aconteceu com Shakespeare, cuja existência foi tantas vezes negada. Se não existiu Pitágoras de Samos, houve com certeza alguém que construiu essa doutrina, e que, por casualidade, chamava-se Pitágoras. Podemos assim parafrasear o que foi dito quanto a Shakespeare. Mas, pondo de lado esses escrúpulos ingênuos de certos autores, que preferem declará-lo como não existente, como se houvesse maior validez na negação da sua historicidade do que na sua afirmação, vamos a seguir relatar algo, sinteticamente, em torno dessa lenda. Em 1917, perto de Porta Maggiori, sob os trilhos da estrada de ferro, que liga Roma a Nápoles, foi descoberta uma cripta, que se julgou a princípio fosse a porta de uma capela cristã subterrânea. Posteriormente verificou-se que se tratava de uma construção realizada nos tempos de Cláudio, por volta de 41 a 54 d.C., e que nada mais era do que um templo, onde se reuniam os membros de uma seita misteriosa, que, afinal, averigou-se ser pitagórica. Sabe-se hoje, com base histórica, que antes, já em tempos de César, proliferavam os templos pitagóricos, e se essa seita foi tão combatida, deve-se mais ao fato de ser secreta do que propriamente por suas idéias. Numa obra, hoje cara aos pitagóricos, Carcopino (La Brasilique pythagoricienne de la Porte Majeure) dá-nos um amplo relato desse templo. E foi inegavelmente essa descoberta tão importante que impulsionou novos estudos, que se realizaram sobre a doutrina de Pitágoras, os quais tendem a mostrar o grande papel que exerceu na história, durante vinte e cinco séculos, essa ordem, que ainda existe e tem seus seguidores, mebora esteja, em nossos dias, como já esteve no passado, irremediavelmente infectada de idéias estranhas que, ao nosso ver, desvirtuam o pensamento genuíno de Pitágoras de Samos. É aceito quase sem divergência por todos que se debruçaram a estudar a sua vida, que Pitágoras nasceu em Samos, entre 592 a 570 antes da nossa era; ou seja, naquele mesmo século em que surgiram tantos grandes condutores de povos e criadores de religiões, como foi Gautama Buda, Zoroastro (Zaratustra), Confúcio e Lao Tsé. Inúmeras são as divergências sobre a verdadeira nacionalidade de Pitágoras, pois uns afirmam ter sido ele de origem egípcia; outros, síria ou, ainda, natural de Tiro. Relata a lenda que Pitágoras, cujo nome significa o Anunciador pítico (Pythios), era filho de Menesarco e de Partêmis, ou Pythaia. Tendo esta, certa vez, levado o filho à Pítia de Delfos, esta sacerdotiza vaticinou-lhe um grande papel, o que levou a mãe a devotar-se com o máximo carinho à sua educação. Consta que Pitágoras, que desde criança se revelava prodigioso, teve como primeiros mestres a Hermodamas de Samos até os 18 anos, depois Ferécides de Siros, tendo sido, posteriormente, aluno de Tales, em Mileto, e ouvinte das conferências de Anaximandro. Foi depois discípulo de Sonchi, um sacerdote egípcio, tendo, também, conhecido Zaratos, o assírio Zaratustra ou Zoroastro, em Babilônia, quando de sua estada nessa grande metrópole da antiguidade. Conta-nos, ainda, a lenda que o hierofante Adonai aconselhou-o a ir ao Egito, recomendado ao faraó Amom, onde, afirma-se, foi iniciado nos mistérios egípcios, nos santuários de Mênfis, Dióspolis e Heliópolis. Afirma-se, ademais, que realizou um retiro no Monte Carmelo e na Caldéia, quando foi feito prisioneiro pelas tropas de Cambísis, tendo sido daí conduzido para a Babilônia. Foi em sua viagem a essa metrópole da Antiguidade, que conheceu o pensamento das antigas religiões do Oriente, e freqüentou as aulas ministradas por famosos mestres de então. Observa-se, porém, em todas as fontes que nos relatam a vida de Pitágoras, que este realizou, em sua juventude, inúmeras viagens e peregrinações, tendo voltado para Samos já com a idade de 56 anos. Suas lições atraíram-lhe muitos discípulos, mas provocaram, também, a inimizade de Policrates, então tirano de Samos, o que fez o sábio exilar-se na Magna Grécia (Itália), onde, em Crotona, fundou o seu famoso Instituto. Antes de sua localização na Magna Grécia, relata-se que esteve em contato com os órficos, já em decadência, no Peloponeso, tendo então conhecido a famosa sacerdotiza Teocléia de Delfos. Mas é na Itália que desempenha um papel extraordinário, porque aí é que funda o seu famoso Instituto, o qual, combatido pelos democratas de então, foi finalmente destruído, contando-nos a lenda que, em seu incêndio, segundo uns, pereceu Pitágoras, junto com os seus mais amados discípulos, enquanto outros afirmam que conseguiu fugir, tomando um rumo que permaneceu ignorado. 15 intervalos musicais, aquelas esferas produziram, em seu movimento, sons de acorde perfeito. Essa "harmonia das esferas", permanentemente soante, seria a própria tessitura do que o homem considera "silêncio". "Educai as crianças e não será preciso punir os homens". (Pitágoras) Zenão de Eléia Vida, Obras e Pensamento Zenão floresceu cerca de 464/461 a.C. Nasceu em Eléia (Itália). Ao contrário de Heráclito, interveio na política, dando leis à sua pátria. Tendo conspirado contra a tirania e o tirano (Nearco?), acabou preso, torturado e, por não revelar o nome dos comparsas, perdeu a vida. - Escreveu várias obras em prosa: Discussões, Contra os Físicos, Sobre a Natureza, Explicação Crítica de Empédocles. - Considerado criador da dialética (entendida como argumentação combativa ou erística), Zenão erigiu-se em defensor de seu mestre, Parmênides, contra as críticas dos adversários, principalmente os pitagóricos. Defendeu o ser uno, contínuo e indivisível de Parmênides contra o ser múltiplo, descontínuo e divisível dos pitagóricos. A característica de Zenão é a dialética. Ele é o mestre da Escola Eleática; nela seu puro pensamento torna-se o movimento do conceito em si mesmo, a alma pura da ciência - é o iniciador da dialética. Pois até agora só vimos nos eleatas a proposição: "O nada não possui realidade, não é, e aquilo que é surgir e desaparecer cai fora". Em Zenão, pelo contrário, também descobrimos tal afirmar e sobressumir daquilo que o contradiz, mas não o vemos, ao mesmo tempo, começar com esta afirmação; é a razão que realiza o começo - ela aponta, tranqüila em si mesma, naquilo que é afirmado como sendo sua destruição. Parmênides afirmou: "O universo é imutável, pois na mudança seria posto o não- ser daquilo que é; mas somente é ser, no 'não-ser é' se contradizem sujeito e predicado". Zenão, pelo contrário, diz: "Afirmai vossa mudança: nela enquanto mudança, é o nada para ela, ou ela não é nada". Nisto consistia o movimento determinado, pleno para aquela mudança; Zenão falou e voltou-se contra o movimento como tal ou puro movimento. Também Zenão era um eleata; é o mais jovem e viveu particularmente em convívio com Parmênides. Este o amava muito e o adotou como filho. Seu pai verdadeiro chamava-se Teleutágoras. Em sua vida não apenas era algo de muito respeito em seu Estado, mas também em geral era célebre e muito respeitado como professor. Platão o lembra: de Atenas e de outros lugares vinham homens a ele para entregar-se à sua formação. Atribuiu-se-lhe orgulhosa auto-suficiência, pelo fato de (exceto sua viagem a Atenas) ter sua residência fixa em Eléia, negando-se a viver por mais tempo na grande e poderosa Atenas, para lá colher fama. Segundo muitas lendas, a fortaleza de sua alma tornou-se célebre pela sua morte. Ela teria salvo um Estado (não se sabe se sua pátria Eléia ou se Sicília) de seu tirano, sacrificando da seguinte maneira sua vida: Teria participado de uma conjuração para derrubar o tirano, tendo, porém, esta sido traída. Quando o tirano, diante de seu povo, o fez torturar de todos os modos, para arrancar- lhe a confissão dos nomes dos outros conjuradores, e ao perguntar pelos inimigos do Estado, Zenão delatou primeiro todos os amigos do tirano como participantes da conjuração, chamando então o tirano mesmo a peste do Estado. Dessa maneira, as poderosas admoestações ou também as torturas horríveis e a morte de Zenão ergueram os cidadãos e levantaram-lhes o ânimo, para caírem sobre o tirano, liquidá-lo e assim libertar-se. De modo violento e furioso de sua reação. Diz-se que ele se postou como se quisesse dizer ainda algo aos ouvidos do tirano, mordendo-lhe, no entanto, a orelha e cerrando os dentes até ter sido trucidado pelos outros. Outros narram que ele teria ferrado os dentes em seu nariz, segurando-o assim. Outros ainda dizem que, tendo suas respostas sido seguidas de enormes torturas, ele cortou a língua com os próprios dentes e a cuspiu no rosto do tirano, para lhe mostrar que dele nada arrancaria; depois disso teria sido triturado num pilão. 1) Segundo seu elemento tético, a filosofia de Zenão é, em seu conteúdo, inteiramente igual à que vimos em Xenófanes e Parmênides, apenas com esta diferença fundamental, que os momentos e as oposições são expressos mais como conceitos e pensamentos. Já em seu elemento tético vemos progresso; ele já está mais avançado no sobressumir das oposições e determinações. 16 "É impossível", diz ele, "que, quando algo é, surja" (ele relaciona isto com a divindade); "pois teria que surgir ou do igual ou do desigual. Ambas as coisas são, porém. impossíveis; pois não se pode atribuir, ao igual, que dele se produza mais do que deve ser produzido, Já que os iguais devem ter entre si as mesmas determinações." Com a aceitação da igualdade, desaparece a diferença entre o que produz e aquilo que é produzido. "Tampouco pode surgir o desigual do desigual; pois se do mais fraco se originasse o mais forte ou do menor o maior ou do pior o melhor, ou se, inversamente, o pior viesse do melhor, originar-se-ia o não-ser do ente, o que é impossível; portanto. Deus é eterno." Isto foi denominado panteísmo (spinozismo), que repousaria sobre a proposição ex nihilo nihil fit. Em Xenófanes e Parmênides tínhamos ser e nada. Do nada é imediatamente nada, do ser, ser; mas assim já é. Ser é a igualdade expressa como imediata; pelo contrário, igualdade como igualdade pressupõe o movimento do pensamento e a mediação, a reflexão em si. Ser e não-ser situam-se assim, lado a lado, sem que sua unidade seja concebida como a de diferentes; estes diferentes não são expressos como diferentes. Em Zenão a desigualdade é o outro membro em oposição a igualdade. Em seguida, é demonstrada a unidade de Deus: "Se Deus é o mais poderoso de tudo, então Ihe é próprio que seja um; pois, na medida em que dele houvesse dois ou ainda mais, ele não teria poder sobre eles; mas enquanto Ihe faltasse o poder sobre os outros não seria Deus. Se, portanto, houvesse mais deuses, eles seriam mais poderosos e mais fracos um em face do outro; não seriam, por conseguinte, deuses; pois faz parte da natureza de Deus não ter acima de si nada mais poderoso; pois o igual não é nem pior nem melhor que o igual - ou não se distingue dele. Se, portanto, Deus é e se ele é de tal natureza, então só há um Deus; não seria capaz de tudo o que quisesse, se houvesse mais deuses". "Sendo um, é em toda parte igual, ouve, vê e possui também, em toda parte, os outros sentimentos; pois, não fosse assim, as partes de Deus dominariam uma sobre a outra" (uma estaria onde a outra não está, reprimi-la-ia; uma parte teria determinações que faltariam às outras), "o que é impossível. Como Deus é em toda parte igual, possui ele a forma esférica; pois não é aqui assim, em outra parte de outro modo, mas em toda parte igual." Diz ainda: "Já que é eterno, um e esférico, ele nao é nem infinito (ilimitado) nem limitado. Pois, a) ilimitado é o não-ente; pois este não possui nem meio, nem começo, nem fim, nem uma parte - tal coisa é o ilimitado. Como, porém, é o não-ente, assim não é o ente. 0 ilimitado é o indeterminado, o negativo; seria o não-ente, a supressão do ser, e é assim, ele mesmo, determinado como algo unilateral. b) Dar-se-ia delimitação mútua, se houvesse diversos; mas. como é apenas um, ele não é limitado." Assim Zenão também mostra: "O um não se move, nem é imóvel. Pois imóvel é a) o não-ente" (no não-ente não se realiza nenhum movimento; com a falta de movimento estaria posto o não-ser ou o vazio; o imóvel é negativo; "pois para ele nenhuma outra coisa advém, nem vai para coisa alguma. b) Movido, porém, somente é o múltiplo; pois um dever-se-ia mover para o outro." Movido só é o que é diferente de outro; pressupõe-se uma multiplicidade de tempo, espaço. "O um, portanto, não está nem em repouso nem se movimenta; pois não se parece nem com o não-ente nem com o múltiplo. Em tudo isto, Deus se comporta assim; pois ele é eterno e um, idêntico a si mesmo e esférico nem ilimitado nem limitado, nem em repouso nem em movimento." Do fato de nada poder provir, quer do igual quer do desigual, Aristóteles conclui que, ou nada existe fora de Deus, ou tudo é eterno. Vemos, em tal tipo de raciocínio, uma dialética que se pode denominar de raciocínio metafísico. 0 princípio da identidade Ihe serve de fundamento: "O nada é igual ao nada, não passa para o ser, nem vice-versa; do igual, portanto, nada pode provir". O ser, o um da Escola Eleática é apenas esta abstração, este afundar-se no abismo da identidade do entendimento. Este modo, o mais antigo, de argumentar é ainda, até o dia de hoje, válido, por exemplo, nas assim chamadas demonstrações da unidade de Deus. A isto vemos ligada uma outra espécie de raciocínio metafísico: são feitas pressuposições, por exemplo. o poder de Deus, raciocinando-se, a partir daí. negando-se predicados. Esta a maneira comum de nós raciocinarmos. No que se refere às determinações deve-se observar que elas, enquanto algo negativo, devem ser mantidas afastadas do ser positivo e apenas real. Para ir a esta abstração fazemos um outro caminho, não utilizamos a dialética que usa a Escola Eleática; nosso caminho é trivial e mais óbvio. Nós dizemos que Deus é imutável, a mudança apenas se atribui às coisas finitas (isto como que sendo uma proposição empírica); de um lado temos, assim, as coisas finitas 17 e a mudança; de outro lado, a imutabilidade nesta unidade abstrata e absoluta consigo mesma. É a mesma separação; só que nós deixamos valer como ser também o finito. o que os eleatas desprezaram. Ou também partimos das coisas finitas para as espécies, gêneros, e deixamos, passo a passo, o negativo de lado; e o gênero mais alto é então Deus, que, enquanto o ser supremo, é apenas afirmativamente, mas sem qualquer determinação. Ou passamos do finito para o infinito, dizendo que o finito, enquanto limitado, deve ter seu fundamento no infinito. Em todas estas formas que nos são bem familiares está contida a mesma dificuldade da questão que se levanta no que diz respeito ao pensamento eleático: De onde vem a determinação, como deve ela ser concebida, tanto no um mesmo, que deixa o finito de lado, como no modo como o infinito se manifesta no finito? Os eleatas distinguem-se, em seu pensamento, de nosso modo de refletir comum, pelo fato de terem posto mãos à obra de maneira especulativa - o especulativo tem lugar no fato de afirmarem que a mudança não é - e pelo fato de, desta maneira. terem mostrado que, assim como se pressupõe o ser, a mudança é em si contradição, algo incompreensível: pois do um, do ser, está afastada a determinação do negativo, da multiplicidade. Enquanto nós deixamos valer, em nossa representação, a realidade do mundo finito, os eleatas foram mais conseqüentes, avançando até a afirmação de que só o um é e de que o negativo não é - conseqüência que, ainda que deva ser por nós admirada, é, contudo, não menos, uma grande abstração Particularmente digno de nota é o fato de que. em Zenão, já há a consciência mais alta de que uma determinação é negada de que esta negação mesma é novamente uma determinação, devendo então, na negação absoluta. não ser negada apenas uma determinação, mas ambas as negações que se opõem. Antes é negado o movimento e a essência absoluta aparece como em repouso; ou é negada enquanto finita. e então é puramente infinita. Isto, porém, também é determinação, também ela finita. Do mesmo modo, também o ser em oposição ao não-ser é uma determinação. Sendo a essência absoluta posta como o um ou o ser, ela é posta através da negação; é determinada como o negativo e, assim, como o nada, e ao nada se atribuem os mesmos predicados que ao ser: o puro ser não é movimento, é o nada do movimento. Isto pressentiu Zenão; e, porque previu que o ser é o oposto do nada, assim negou ele do um o que deveria dizer-se do nada. Mas o mesmo deveria acontecer com o resto. 0 um é o mais poderoso e nisto determinado propriamente como o destruir absoluto; pois o poder é também o não-ser absoluto de um outro, o vazio. 0 um é igualmente o não dos muitos: tanto no nada como no um, a multiplicidade está sobressumida. Esta dialética mais alta encontramo-la em Platão, em seu Parmênides. Aqui isto surge apenas referido a algumas determinações não com referência às determinações do um e do ser mesmo. A consciência mais alta é a consciência sobre a nulidade do ser enquanto algo determinado em face do nada; isto se dá, parte em Heráclito e, então, nos sofistas; com isto não permanece verdade alguma, ser- em-si, mas apenas o ser para o outro é, ou seja, a certeza da consciência individual e a certeza como refutação - o lado negativo da dialética. 2) Já lembramos que também encontramos a verdadeira dialética objetiva igualmente em Zenão. Zenão possui o aspecto importante de ser o descobridor da dialética: se não é ele propriamente, no que vimos, o descobridor da dialética em sua plenitude, ao menos é quem está em seu começo; pois ele nega predicados que se opõem. Portanto, Xenófanes, Parmênides, Zenão põem como fundamento a proposição: Nada é nada, o nada não é, ou o igual (como diz Melisso) é a essência; isto é, eles afirmam um dos predicados que se opõem, como a essência. Eles põem-no fixamente; onde encontram, numa determinação, o oposto, suprimem com isto essa determinação. Mas, assim, esta somente se suprime através de um outro, através de minha afirmação, através da distinção que faço de que um lado é o verdadeiro, o outro sem importância (nulo) (parte-se de uma determinada proposição); sua nulidade não aparece nela mesma, não de maneira que se suprima a si mesma, isto é, que contenha em si uma contradição. Como movimento: Verifiquei algo e vejo que é o nulo; demonstrei isto, segundo o pressuposto, no movimento; conclui-se, portanto, que ele é o nulo. Mas uma outra consciência não verifica aquilo; eu declaro isto como imediatamente verdadeiro; a outra consciência tem razão em afirmar uma outra: coisa como imediatamente verdadeira, por exemplo, o movimento. Como sempre é o caso quando um sistema filosófico refuta o outro, o primeiro sistema é posto como fundamento e a partir dele se entra em debate contra o outro. Assim a coisa é facilitada: "O outro sistema não possui verdade, porque não concorda com o meu"; mas o outro sistema tem o mesmo direito de dizer assim. Eu não 20 A resposta geral e a solução de Aristóteles é que espaço e tempo não são divididos infinitamente, mas apenas divisíveis. Parece, entretanto, que, enquanto são divisíveis (potentia, dynámei, não actu, energeía), também devem estar efetivamente divididos infinitamente; pois, de outro modo, não poderiam ser divididos ao infinito - uma resposta geral para a representação. 2) "O segundo argumento" (que também é pressuposição da continuidade e posição da divisão) chama-se "argumento de Aquiles", o homem dos pés velozes. Os antigos gostavam de vestir as dificuldades com representações sensíveis. De dois corpos que se movem numa direção, dos quais um está na frente e outro o segue numa determinada distância, movendo-se, porém, mais rapidamente que aquele, sabemos que o segundo alcançará o primeiro. Zenão, porém, diz: "O mais vagaroso nunca poderá ser alcançado nem mesmo pelo mais rápido"; e isto ele demonstra assim: o que segue necessita de uma determinada parte do tempo para "alcançar o lugar de onde partiu o que está em fuga", no começo desta determinada parte do tempo. Durante o tempo em que o segundo atingiu o ponto onde o primeiro se achava, este já avançou para mais longe, deixou atrás de si novo espaço que o segundo novamente deverá percorrer numa parte desta parte do tempo; e assim se vai até o infinito. B percorre numa hora duas milhas, A, no mesmo tempo, uma milha. Se estão separados entre si por duas milhas, então B chegou numa hora onde A estava no começo da hora. Mas o espaço (uma milha), vencido por A, será percorrido por B na metade de uma hora, e assim ao infinito. Desta maneira, o movimento mais rápido nada ajuda ao segundo corpo para percorrer o espaço intermediário que o separa do outro; o tempo de que necessita, também o mais vagaroso sempre tem à sua disposição, e "com isto ele já sempre conseguiu uma vantagem". Aristóteles, que trata disto, diz brevemente sobre o mesmo: "Este argumento representa a mesma divisão infinita'' ou o infinito ser dividido através do movimento. "É algo não verdadeiro; pois o rápido, contudo, alcançará o vagaroso, se Ihe for permitido ultrapassar o limite, o limitado." A resposta é correta e contém tudo. Nesta representação são admitidos dois pontos de tempo e dois de espaço que estão separados entre si - isto é, são limitados, são limites um para o outro. Se, ao contrário, se admite que tempo e espaço são contínuos, de maneira tal que dois pontos do tempo ou dois pontos de espaço se relacionam entre si de maneira contínua, então eles são, igualmente, na medida em que são dois também não dois - são idênticos. Zenão apenas faz valer o limite, a divisão, o momento da separação de espaço e tempo em sua total determinação; por isto surge a contradição. O que gera a dificuldade sempre é o pensamento, porque separa em sua distinção aqueles momentos de um objeto, na realidade unidos. 0 pensamento produziu a queda original, quando o homem comeu da árvore do conhecimento do bem e do mal; mas também ressarce este prejuízo. É uma dificuldade superar o pensamento e é somente ele que causa esta dificuldade. 3) "O terceiro argumento" tem a forma que Zenão descreve assim: "A flecha em vôo repousa", e isto porque "o que se move sempre está no mesmo agora" e no aqui igual a si mesmo, no "não-distinguível" (en tõ nyn, katà tò íson); ele está aqui, e aqui e aqui. Assim que dizemos que sempre é o mesmo; a isto, porém, não chamamos movimento, mas repouso: o que sempre está no aqui e agora, repousa. Ou deve- se dizer da flecha que sempre está no mesmo espaço e no mesmo tempo; não consegue ultrapassar seu espaço, não conquista um outro espaço, isto é, um espaço maior ou menor. Aqui o tornar-se outro foi sobressumido; o ser limitado é posto como tal, mas o limitar é, contudo, um momento. No aqui agora como tais, não há diferença. No espaço, um ponto é tão bem um aqui como o outro, isto aqui e isto aqui e mais um outro, etc.; e, contudo, o aqui é sempre o mesmo aqui; não são distintos entre si. A continuidade, a igualdade do aqui e afirmada aqui contra a opinião da diferença. Cada lugar é lugar diferente - portanto, o mesmo; a diferença é apenas aparente. Não é neste estado de coisas. mas no mundo do espirito que se manifesta a verdadeira e objetiva diferença. Isto acontece também na mecânica: pergunta-se qual se move de dois corpos. Para determinar qual deles se move é preciso mais de dois lugares, ao menos três. Mas uma coisa é correta: o movimento é absolutamente relativo; se, no espaço absoluto, por exemplo, o olho repousa ou se move, é inteiramente o mesmo. Ou, conforme uma proposição de Newton: se dois corpos giram, em círculo, um em torno do outro, surge a pergunta se um repousa ou se ambos se movem. Newton quer decidir isto por uma circunstância exterior, os fios estendidos (tensio filorum). Se num navio caminho na direção oposta da 21 direção em que se move o navio, o mover-me é movimento com relação ao navio, mas repouso com relação a outra coisa. Nos dois primeiros argumentos a continuidade no avançar é o que predomina: não existe limite absoluto, nem espaço limitado, mas apenas continuidade absoluta, transgredir todos os limites. No argumento agora em questão é retido o aspecto inverso, a saber, o absoluto ser-limitado, a interrupção da continuidade, nenhuma passagem para outro. Sobre este terceiro argumento diz Aristóteles que ele se origina do fato de se aceitar que o tempo consiste de "agoras"; pois, se não se concede isto, não se pode tirar a conclusão a que Zenão chegou. 4) "O quarto argumento" e tomado de corpos iguais que se movem no estádio ao lado de um igual, com velocidade igual, um a partir do fim do estádio, o outro a partir do meio, um em direção do outro; disto se deveria concluir que a metade do tempo é igual ao dobro. O erro da conclusão consiste no fato de admitir que, no que se move e no que está em repouso, a coisa percorre uma mesma extensão em tempo igual, com velocidade igual; isto, porém, é falso. Esta quarta forma diz respeito à contradição no movimento oposto. A oposição possui aqui uma outra forma: a) mas também novamente o universo, o comum, que deve ser atribuído inteiramente a cada parte, enquanto realiza para si apenas uma parte; b) é apenas posto como verdadeiro (como sendo) o que cada parte faz para si. Aqui a distância de um corpo é a soma do afastar se de ambos; é o que acontece quando caminho dois pés para o leste e outro, partindo do mesmo ponto, caminha dois pés para o oeste; assim estamos distantes um do outro quatro pés - aqui ambos devem ser somados; na distância de ambos, ambos são positivos. Ou avancei e retrocedi dois pés - no mesmo ponto; ainda que tenha andado quatro pés, não saí do ponto em que estava. 0 movimento é, portanto, nulo; pois pelo movimento de ir para frente e para trás há aqui coisas opostas que se suprimem. Isto é então a dialética de Zenão. Ele captou as determinações que contém nossa representação do espaço e tempo; ele as tinha em sua consciência e nelas mostra o aspecto contraditório. As antinomias de Kant nada mais são do que aquilo que Zenão aqui já fizera. O elemento universal da dialética, a proposição universal da escola eleática foi, portanto: "0 verdadeiro é apenas o um, todo o resto é não-verdadeiro"; como a filosofia kantiana chegou ao resultado: "Conhecemos apenas fenômenos". No todo é o mesmo princípio: "O conteúdo da consciência é apenas um fenômeno, nada verdadeiro"; mas nisto também reside uma diferença. Pois Zenão e os Eleatas afirmaram sua proposição com a seguinte significação: "O mundo sensível é em si mesmo apenas mundo fenomenal, com suas formas infinitamente diversas - este lado não possui verdade em si mesmo". Nào é, porém, isto que pensa Kant. Ele afirma: Voltando-se para o mundo, quando o pensamento se dirige para o mundo exterior (para o pensamento também o mundo dado no interior é algo exterior), voltando-se para ele, fazemos dele um fenômeno; é a atividade de nosso pensamento que atribui ao exterior tantas determinações: o sensível, determinações da reflexão, etc. Só nosso conhecimento é fenômeno, o mundo é em si absolutamente verdadeiro; só nossa aplicação, nosso acréscimo o arruína para nós; o que acrescentamos, nada vale. O mundo torna-se não-verdadeiro pelo fato de Ihe jogarmos em cima uma massa de determinações. Isto é então a grande diferença. Este conteúdo também é nulo em Zenão; mas, em Kant, porque é obra nossa. Em Kant é o elemento espiritual que arruína o mundo; segundo Zenão, é o mundo, o que aparece em si que é não-verdadeiro. Segundo Kant, é nosso pensar, a atividade de nosso espírito o elemento mau - é uma enorme humildade do espírito não ter confiança no conhecimento. Na Bíblia diz Cristo: "Pois não sois melhores que os pardais?" Nós o somos enquanto pensamos - enquanto seres sensíveis, tão bons ou tão maus como os pardais. O sentido da dialética de Zenão possui maior objetividade que esta dialética moderna. A dialética de Zenão ainda se conteve nos limites da metafísica: mais tarde, com os sofistas, tornou se universal. 1.5 - Demócrito de Abdera De sua vida sabemos poucas coisas seguras. mas muitas lendas. Viagens extraordinárias, a ruína material, as honras que recebeu de seus concidadãos, sua solidão, seu grande poder de trabalho. Uma tradição tardia afirma que ele ria de tudo. . . 22 Demócrito e Leucipo partem do eleatismo. Mas o ponto de partida de Demócrito é acreditar na realidade do movimento porque o pensamento é um movimento. Esse é seu ponto de ataque: o movimento existe porque eu penso e o pensamento tem realidade. Mas se há movimento deve haver um espaço vazio, o que eqüivale a dizer que o não-ser é tão real quanto o ser. Se o espaço é absolutamente pleno, não pode haver movimento. Com efeito: 1) o movimento espacial só pode ter lugar no vazio, pois o pleno não pode acolher em si nada que Ihe seja heterogêneo; se dois corpos pudessem ocupar o mesmo lugar no espaço, poderia haver uma infinidade deles, pois o menor poderia acolher em si o maior; 2) a rarefação e a condensação só se explicam pelo espaço vazio; 3) o crescimento só se explica porque o alimento penetra nos interstícios do corpo; 4) em um vaso cheio de cinza pode-se ainda derramar tanta água quanta se ele estivesse vazio, a cinza desaparece nos interstícios vazios da água. O não ser é, portanto, também o pleno, nastón (de nasso, ou aperto), o stereón. O pleno é aquilo que não contém nenhum Kenón. Se toda grandeza fosse divisível ao infinito, não haveria mais nenhuma grandeza, não haveria mais ser. Se deve subsistir um pleno, isto é, um ser, é preciso que a divisão não possa ir ao infinito. Mas o movimento demonstra o ser, tanto quanto o não-ser. Se somente o não ser existisse, não haveria movimento. O que resta são os átomos. O ser é a unidade indivisível. Mas, se esses seres devem agir uns sobre os outros pelo choque, é preciso que sejam de natureza idêntica. Demócrito afirma, portanto, como Pitágoras, que o ser deve ser semelhante a si mesmo em todos os pontos. O ser não pertence mais a um ponto do que a outro. Se um átomo fosse o que o outro não é, haveria um não-ser, o que é uma contradição. Somente nossos sentidos nos mostram coisas qualitativamente diferentes. São chamadas também idéai ou skhémata. Todas as qualidades são nómo, os seres só diferem pela quantidade. É preciso, pois, remeter todas as qualidades a diferenças quantitativas. Elas só se distinguem pela forma (rhysmós, skhéma), pela ordem (diathigé, táxis), peia posição (tropé, thésis). A difere de N pela forma, AN de NA pela ordem, Z de N pela posição. A principal diferença está na forma, que indica diferença de grandeza e de peso. O peso pertence a cada corpo (como medida de todas as quantidades). Como todos os seres são da mesma natureza, o peso deve pertencer igualmente a todos, isto é, à mesma massa, o mesmo peso. O ser, portanto, é definido como pleno, dotado de uma forma, pesado; os corpos são idênticos a esses predicados. Temos aqui a distinção que reaparece em Locke: as qualidades primárias pertencem às coisas em si mesmas, fora de nossa representação; não se pode fazer abstração delas; são: a extensão, a impermeabilidade, a forma, o número. Todas as outras qualidades são secundárias, produzidas pela ação das qualidades primárias sobre os órgãos de nossos sentidos, dos quais são apenas as impressões: cor, som, gosto, odor, dureza, moleza, polido, rugoso, etc. Pode-se, portanto, fazer abstração da natureza dos corpos na medida em que é apenas a ação dos nervos sobre os órgãos sensoriais. Uma coisa nasce quando se produz um certo agrupamento de átomos; desaparece quando esse grupo se desfaz, muda quando muda a situação ou a disposição desse grupo ou quando uma parte é substituida por outra. Cresce quando Ihe são acrescentados novos átomos. Toda ação de uma coisa sobre outra se produz pelo choque dos átomos; se há separação no espaço, recorre-se à teoria das aporrhoaí. Percebe- se, pois, que Empédocles foi utilizado a fundo, pois este havia discernido o dualismo do movimento em Anaxágoras e recorrido à ação mágica. Demócrito adota uma posição adversa. Anaxágoras reconhecia quatro elementos; Demócrito esforçou-se por caracterizá-los a partir de seus átomos da mesma natureza. O fogo é feito de átomos pequenos e redondos; nos outros elementos estão misturados átomos diversos; os elementos distinguem-se apenas pela grandeza de suas partes. É por isso que a água, a terra e o ar podem nascer um do outro por dissociação. Demócrito pensa, com Empédocles, que somente o semelhante age sobre o semelhante. A teoria dos poros e das aporrhoaí preparava a do kenón. O ponto de partida de Demócrito, a realidade do movimento, Ihe é comum com Anaxágoras e Empédocles, provavelmente também sua dedução a partir da realidade do pensamento. Com Anaxágoras, tem em comum os ápeira ou matérias originais. Naturalmente, é antes de tudo de Parmênides que ele procede, é este que domina todas as suas concepções fundamentais. Ele retorna ao primeiro sistema de Parmênides, segundo o qual o mundo se compunha de ser e de não-ser. Toma emprestado de Heráclito a crença absoluta no movimento, a idéia de que todo movimento pressupõe uma contradição e de que o conflito é o pai de todas as coisas. 25 Todos os materialistas pensam que, se o homem é infeliz, é por não conhecer a natureza. Assim o Sistema da Natureza começa nestes termos: "O homem é infeliz porque não conhece a natureza". Sobre a questão da criação do mundo, Demócrito é perfeitamente claro. Uma seqüência infinita de anos, a cada mil anos uma pedrinha é juntada às outras, e a terra acaba por ser o que é. Sobre o problema da origem do mundo, ele foi, igualmente, de uma completa clareza. O materialismo é o elemento conservador na ciência como na vida. A ética de Demócrito é conservadora. "Contenta-te com o mundo tal como é", é o cânon moral que o materialismo produziu. Uma plena virilidade do pensamento e da investigação aparece cm Demócrito. Entretanto, ele não perde o senso da poesia. É o que prova sua própria descrição, seu juízo sobre os poetas, que considera como profetas da verdade (isso Ihe parece um fato natural). Não acreditamos nos contos, mas sentimos sua força poética. Características do Pensamento de Demócrito Gosto pela ciência. Aitíai. Viagens. Clareza. Aversão ao bizarro. Simplicidade do método. Arrojo poético (poesia do atomismo). Sentimento de um progresso poderoso. Fé absoluta em seu sistema. O Mal excluído de seu sistema. Paz de espírito, resultado do estudo cientifico. Pitágoras. Inquietações míticas: racionalismo. Inquietações morais: ascetismo. Inquietações políticas: quietismo. Inquietações conjugais: adoção de filhos. Vauvenargues diz com razão que os grandes pensamentos vêm do coração. É na moral que está a chave da física de Demócrito. Sentir-se liberto de todo Incognoscível. – É a meta de sua filosofia. Os sistemas anteriores não Ihe davam isso, pois deixavam subsistir um elemento irracional. Eis por que ele procurou remeter tudo àquilo que é mais fácil de compreender, a queda e o choque. Queria sentir-se no mundo como em um quarto claro. Racionalista encarnado, pai do racionalismo, acomodava à sua maneira os deuses, o espetáculo dos sacrifícios, etc. Demócrito, sem dúvida, deve igualmente ser incluído entre os melancólicos... A meta é o otium litteratum: "ter a paz" Demócrito, esse Humboldt do mundo antigo. Sente-se impelido a correr o mundo. Retorna pobre e sem recursos, reduzido, como um mendigo, a viver das esmolas de seu irmão. Sua cidade natal o toma por um pródigo. Recusam-lhe uma sepultura honrada, até o dia em que seus parentes tomam as dores do morto e em que se elevam monumentos em honra daquele que, desprezado em vida, quase morrera de fome. Ele se desempenha com excessiva rapidez dos encargos de construir o mundo e a moral. Os problemas mais profundos Ihe permanecem ocultos. É que sua vontade é a mola de sua investigação; o que quer é terminá-la e atingir o conhecimento último. Ele se atrela a este, e é isso que Ihe dá sua segurança e sua confiança em si. Ainda não havia notado, ao passar em revista os sistemas anteriores, uma abundância infinita de pontos de vista diversos; conservou, de seus raros predecessores.,aquilo que Ihe era homogêneo, aquilo que lhe parecia inteligível e simples, e condenou sem indulgência a intrusão de um mundo mítico. É, pois, um racionalista confiante; crê na capacidade liberadora de seu sistema e elimina dele tudo aquilo que é mau e imperfeito. 26 Demócrito e suas Teorias Demócrito fez uma tentativa bem independente de reconstrução. Como Sócrates, seu contemporâneo, defrontou-se com as dificuldades referentes ao conhecimento, levantadas pelo seu concidadão Protágoras e outros, e, da mesma forma que ele, deu grande atenção ao problema do comportamento, ao qual também os sofistas deram impulsos. Ao contrário de Sócrates, porém, ele era um autor volumoso, e nós ainda podemos constatar, através dos scus fragmentos, que era um dos maiores escritores da Antigüidade. Para nos, contudo, é como se não tivesse escrito quase nada; de fato, sabemos menos a seu respeito do que de Sócrates. Isto deve-se ao fato de ele ter escrito em Abdera, e as suas obras na realidade nunca foram bem conhecidas em Atenas, onde teriam tido a possibilidade de serem preservadas, como aquelas de Anaxágoras e outrem, na biblioteca da Academia. Não é certo que Platão haja conhecido alguma coisa sobre Demócrito, pois que as poucas passagens no Timeu e alhures, no qual parece que o reproduz, são facilmente explicadas pelas influências pitagóricas que afetaram a ambos. Aristóteles, por outro lado, conhece bem Demócrito, pois era também jônio do Norte. É certo, não obstante, que as obras completas de Demócrito (que incluem as obras de Leucipo e outros, bem como as de Demócrito) continuaram a existir, porquanto a escola as conservou em Abdera e Teos ao longo dos tempos helenísticos. Por isso, foi possível para Trasilo, sob o reinado de Tibério, fazer uma edição das obras de Demócrito, organizada em tetralogias, exatamente como sua edição dos diálogos de Platão. Mesmo isso não foi suficiente para preservá-las. Os epicuristas, que tinham a obrigação de ter estudado o homem a quem deviam tanto, detestavam qualquer tipo de estudo, e provavelmente nem se preocuparam em multiplicar os exemplares de um escritor cujas obras teriam sido um testemunho permanente para a carência de originalidade que caracterizou o próprio sistema deles. Sabemos extremamente pouco sobre a vida de Demócrito. Como Protágoras, era natural de Abdera na Trácia, uma cidade que nem mereceria a reputação proverbial de embotamento, considerando que pode dar origem a dois homens de tanta envergadura. Quanto à data do seu nascimento, temos apenas conjeturas para nos orientar. Em uma das principais obras, afirmou que elas foram escritas 730 anos após a queda de Tróia; não sabemos; porém, quando, segundo a suposição dele, isto ocorrera. Havia nessa época e posteriormente diversas eras em uso. Disse também algures que, quando Anaxágoras era velho, ele era jovem, e a partir dai concluiu-se que nasceu em 460 a.C. Parece, entretanto, cedo demais, visto estar baseado na hipótese de que tinha quarenta anos quando se encontrou com Anaxágoras, e a expressão "jovem" sugere menos que esta idade. Demais, cumpre-nos encontrar um espaço para Leucipo entre eles [Demócrito] e Zenão. Se Demócrito morreu, como se diz, com a idade de noventa ou cem anos, de qualquer maneira ainda vivia quando Platão fundara a Academia. Mesmo a partir de fundamentos meramente cronológicos, é falso classificar Demócrito entre os predecessores de Sócrates, e obscurece o fato de que, como Sócrates, ele tentou responder ao seu distinto concidadão Protágoras. Demócrito foi discípulo de Leucipo, e temos uma prova contemporânea, a de Glauco de Régio, que também os pitagóricos foram seus mestres. Um membro posterior da escola, Apolodoro de Quizico, diz que tomou conhecimento por intermédio de Filolau, o que parece muito provável. Isto esclarece o seu conhecimento geométrico, bem como, outros aspectos do seu sistema. Sabemos, outrossim, que Demócrito falou nas obras das doutrinas de Parmênides e Zenão, que chegou a conhecê-las através de Leucipo. Fez menção a Anaxágoras, e parece ter dito que a sua teoria do sol e da lua não era original. Isto pode referir se à explicação dos eclipses, que geralmente fora atribuída em Atenas, e sem dúvida alguma na Jonia, a Anaxágoras, ainda que Demócrito naturalmente estivesse ciente de ser ela pitagórica. Diz-se ter visitado o Egito, mas há uma certa razão para se acreditar que o fragmento onde isto é mencionado (fragmento 298 b) é apócrifo. Há um outro (fragmento 116) no qual ele diz: "Eu fui a Atenas e ninguém tomou conhecimento de mim". Se disse isto, sem dúvida deu a entender que não conseguira causar uma impressão tal como o fizera o seu mais brilhante concidadão Protágoras. Por outro lado, Demétrio de Falerão afirmou que Demócrito jamais visitou Atenas; então é possível que este fragmento também seja apócrifo. Seja como for, ele deve ter despendido a maior parte do seu tempo no estudo, ensinando e escrevendo em Abdera. Não era um sofista itinerante do tipo moderno, mas sim o cabeça de uma escola regular. 27 A verdadeira grandeza de Demócrito não está na teoria dos átomos e do vazio, que ele parece ter exposto bem conforme a tinha recebido de Leucipo. Menos ainda está no seu sistema cosmológico, que deriva mormente de Anaxágoras. Pertence inteiramente a uma outra geração que a desses homens, e não está preocupado de modo especial em encontrar uma resposta a Parmênides. A questão à qual tinha que se dedicar era a de sua própria época. A possibilidade de ciência havia sido negada, bem como todo o problema do conhecimento levantado por Protágoras, e era isto que exigia uma solução. Ademais, o problema do comportamento tornara-se premente. A originalidade de Demócrito, portanto, está precisamente na mesma linha que a de Sócrates. Teoria do Conhecimento Demócrito procedeu como Leucipo ao fazer uma avaliação puramente mecânica da sensação, e é provável que ele seja o autor da doutrina minuciosa dos átomos com respeito a este assunto. Uma vez que a alma se compõe de átomos como qualquer outra coisa, a sensação deve consistir no impacto dos átomos externos sobre os átomos da alma, e os órgãos dos sentidos devem ser simplesmente ''passagens" (póroi = poros) através das quais estes átomos se introduzem. Disto decorre que os objetos da visão não são estritamente as coisas que nós mesmos presumimos ver, mas as "imagens" (deíkela, eídola) que os corpos estão constantemente emitindo. A imagem na pupila do olho era considerada como a coisa essencial em visão. Não é, porém, uma semelhança exata do corpo do qual provém, pois está sujeita às distorções causadas pela interferência do ar. Este é o motivo por que vemos as coisas a distância de um modo embaraçado e indistinto, e por que, se a distância for grande, não podemos vê-las de modo algum. Se não houvesse ar, mas somente o vazio, entre nós e os objetos da visão, isto não seria assim; "poderíamos ver uma formiga rastejando no firmamento". As diferenças de cor devem-se à lisura ou aspereza das imagens ao tato. A audição explica-se de uma maneira similar. O som é uma torrente de átomos que jorram do corpo sonante e produzem movimento no ar entre ele [corpo] e o ouvido. Chegou, portanto, ao ouvido junto com aquelas porções do ar que se Ihe assemelham. As diferenças de paladar são devidas às diferenças nas figuras (eide, skhémata) dos átomos que entram em contato com os órgãos desse sentido; e o olfato explica-se semelhantemente, embora não com os mesmos detalhes. De modo idêntico, o tato, considerado como o sentido pelo qual sentimos o calor e o frio, o molhado e o seco e outros que tais, é afetado de acordo com a forma e o tamanho dos átomos chocando nele. Aristóteles afirma que Demócrito reduziu todos os sentidos ao tato, e é realmente verdade se entendermos por tato o sentido que percebe qualidades, tais como forma, tamanho e peso. Este, todavia, deve ser cautelosamente distinguido do sentido próprio do tato, que acima foi descrito. Para compreender esta questão, temos que considerar a doutrina do conhecimento "legítimo" e "ilegítimo". É aqui que Demócrito entra nitidamente em conflito com Protágoras, que asseverou serem todas as sensações igualmente verdadeiras para o objeto sensível. Demócrito, pelo contrário, considera falsas todas as sensações dos sentidos próprios, posto que elas não têm uma contrapartida real fora do objeto sensível. Nisto, naturalmente, está em conformidade com a tradição eleática onde repousa a teoria atômica. Parmênides afirmara claramente que o paladar, as cores, o som e outros semelhantes eram apenas "nomes" (onómata), e é bastante idêntico a Leucipo que disse algo de parecido, apesar de não haver razão de se acreditar que ele tenha elaborado uma teoria sobre o assunto. Seguindo o exemplo de Protágoras, Demócrito foi obrigado a ser explícito com referência à questão. Sua doutrina, felizmente, foi- nos preservada através de suas próprias palavras. "Por convenção (nómo)": disse ele (fragmento 125), "há o doce; por convenção há o amargo; por convenção há o quente e por convenção há o frio; por convenção há a cor." Porém, na realidade (etee), há os átomos e o vazio. Deveras, as nossas sensações não representam nada de externo, apesar de serem causadas por algo fora de nós, cuja verdadeira natureza não pode ser apreendida pelos sentidos próprios. Esta é a razão por que a mesma coisa às vezes dá a sensação de doce e às vezes de amargo. "Pelos sentidos", afirmou Demócrito (fragmento 9), "nós na verdade não conhecemos nada de certo, mas somente alguma coisa que muda de acordo com a disposição do corpo e das coisas que nele penetram ou Ihe opõem resistência." Não podemos conhecer a realidade deste modo, pois "a verdade jaz num abismo" 30 epicurismo do período seguinte; Platão e Aristóteles, deles procedendo a Academia e o Liceu , que sobreviverão também no período seguinte e além ainda, especialmente a Academia por motivos éticos e religiosos, e em seus desenvolvimentos neoplatônicos em especial - apesar de o aristotelismo ter superado logicamente o platonismo. A Sofística Após as grandes vitórias gregas, atenienses, contra o império persa, houve um triunfo político da democracia, como acontece todas as vezes que o povo sente, de repente, a sua força. E visto que o domínio pessoal, em tal regime, depende da capacidade de conquistar o povo pela persuasão, compreende-se a importância que, em situação semelhante, devia ter a oratória e, por conseguinte, os mestres de eloqüência. Os sofistas, sequiosos de conquistar fama e riqueza no mundo, tornaram-se mestres de eloqüência, de retórica, ensinando aos homens ávidos de poder político a maneira de consegui-lo. Diversamente dos filósofos gregos em geral, o ensinamento dos sofistas não era ideal, desinteressado, mas sobejamente retribuído. O conteúdo desse ensino abraçava todo o saber, a cultura, uma enciclopédia, não para si mesma, mas como meio para fins práticos e empíricos e, portanto, superficial. A época de ouro da sofística foi - pode-se dizer - a segunda metade do século V a.C. O centro foi Atenas, a Atenas de Péricles, capital democrática de um grande império marítimo e cultural. Os sofistas maiores foram quatro. Os menores foram uma plêiade, continuando até depois de Sócrates, embora sem importância filosófica. Protágoras foi o maior de todos, chefe de escola e teórico da sofística. Moral, Direito e Religião Em coerência com o ceticismo teórico, destruidor da ciência, a sofística sustenta o relativismo prático, destruidor da moral. Como é verdadeiro o que tal ao sentido, assim é bem o que satisfaz ao sentimento, ao impulso, à paixão de cada um em cada momento. Ao sensualismo, ao empirismo gnosiológicos correspondem o hedonismo e o utilitarismo ético: o único bem é o prazer, a única regra de conduta é o interesse particular. Górgias declara plena indiferença para com todo moralismo: ensina ele a seus discípulos unicamente a arte de vencer os adversários; que a causa seja justa ou não, não lhe interessa. A moral, portanto, - como norma universal de conduta - é concebida pelos sofistas não como lei racional do agir humano, isto é, como a lei que potencia profundamente a natureza humana, mas como um empecilho que incomoda o homem. Desta maneira, os sofistas estabelecem uma oposição especial entre natureza e lei, quer política, quer moral, considerando a lei como fruto arbitrário, interessado, mortificador, uma pura convenção, e entendendo por natureza, não a natureza humana racional, mas a natureza humana sensível, animal, instintiva. E tentam criticar a vaidade desta lei, na verdade tão mutável conforme os tempos e os lugares, bem como a sua utilidade comumente celebrada: não é verdade - dizem - que a submissão à lei torne os homens felizes, pois grandes malvados, mediante graves crimes, têm freqüentemente conseguido grande êxito no mundo e, aliás, a experiência ensina que para triunfar no mundo, não é mister justiça e retidão, mas prudência e habilidade. Então a realização da humanidade perfeita, segundo o ideal dos sofistas, não está na ação ética e ascética, no domínio de si mesmo, na justiça para com os outros, mas no engrandecimento ilimitado da própria personalidade, no prazer e no domínio violento dos homens. Esse domínio violento é necessário para possuir e gozar os bens terrenos, visto estes bens serem limitados e ambicionados por outros homens. É esta, aliás, a única forma de vida social possível num mundo em que estão em jogo unicamente forças brutas, materiais. Seria, portanto, um prejuízo a igualdade moral entre os fortes e os fracos, pois a verdadeira justiça conforme à natureza material, exige que o forte, o poderoso, oprima o fraco em seu proveito. Quanto ao direito e à religião, a posição da sofística é extremista também, naturalmente, como na gnosiologia e na moral. A sofística move uma justa crítica, contra o direito positivo, muitas vezes arbitrário, contingente, tirânico, em nome do direito natural. Mas este direito natural - bem como a moral 31 natural - segundo os sofistas, não é o direito fundado sobre a natureza racional do homem, e sim sobre a sua natureza animal, instintiva, passional. Então, o direito natural é o direito do mais poderoso, pois em uma sociedade em que estão em jogo apenas forças brutas, a força e a violência podem ser o único elemento organizador, o único sistema jurídico admissível. A respeito da religião e da divindade, os sofistas não só trilham a mesma senda dos filósofos racionalistas gregos do período precedente e posterior, mas - de harmonia com o ceticismo deles - chegam até o extremo, até o ateísmo, pelo menos praticamente. Os sofistas, pois, servem-se da injustiça e do muito mal que existe no mundo, para negar que o mundo seja governado por uma providência divina. Protágoras de Abdera Protágoras nasceu em Abdera - pátria de Demócrito , cuja escola conheceu - pelo ano 480. Viajou por toda a Grécia, ensinando na sua cidade natal, na Magna Grécia, e especialmente em Atenas, onde teve grande êxito, sobretudo entre os jovens, e foi honrado e procurado por Péricles e Eurípedes. Acusado de ateísmo, teve de fugir de Atenas, onde foi processado e condenado por impiedade, e a sua obra sobre os deuses foi queimada em praça pública. Refugiou-se então na Sicília, onde morreu com setenta anos (410 a.C.), dos quais, quarenta dedicados à sua profissão. Dos princípios de Heráclito e das variações da sensação, conforme as disposições subjetivas dos órgãos, inferiu Protágoras a relatividade do conhecimento. Esta doutrina enunciou-a com a célebre fórmula; o homem é a medida de todas as coisas. Esta máxima significava mais exatamente que de cada homem individualmente considerado dependem as coisas, não na sua realidade física, mas na sua forma conhecida. Subjetivismo, relativismo e sensualismo são as notas características do seu sistema de ceticismo parcial. Platão deu o nome de Protágoras a um dos seus diálogos, e a um outro o de Górgias. Górgias de Leôncio Górgias nasceu em Abdera, na Sicília, em 480-375 a.C - correlacionado com Empédocles - representa a maior expressão prática da sofística, mediante o ensinamento da retórica; teoricamente, porém, foi um filósofo ocasional, exagerador dos artifícios da dialética eleática. Em 427 foi embaixador de sua pátria em Atenas, para pedir auxílio contra os siracusanos. Ensinou na Sicília, em Atenas, em outras cidades da Grécia, até estabelecer-se em Larissa na Tessália, onde teria morrido com 109 anos de idade. Menos profundo, porém, mais eloqüente que Protágoras, partiu dos princípios da escola eleata e concluiu também pela absoluta impossibilidade do saber. É autor duma obra intitulada "Do não ser", na qual desenvolve as três teses: Nada existe; se alguma coisa existisse não a poderíamos conhecer; se a conhecêssemos não a poderíamos manifestar aos outros. A prova de cada uma destas proposições e um enredo de sofismas, sutis uns, outros pueris. No Górgias de Platão, Górgias declara que a sua arte produz a persuasão que nos move a crer sem saber, e não a persuasão que nos instrui sobre as razões intrínsecas do objeto em questão. Em suma, é mais ou menos o que acontece com o jornalismo moderno. Para remediar este extremo individualismo, negador dos valores teoréticos e morais, Protágoras recorre à convenção estatal, social, que deveria estabelecer o que é verdadeiro e o que é bem! Sócrates A Vida Quem valorizou a descoberta do homem feita pelos sofistas, orientando-a para os valores universais, segundo a via real do pensamento grego, foi Sócrates. Nasceu Sócrates em 470 ou 469 a.C., em Atenas, filho de Sofrônico, escultor, e de Fenáreta, parteira. Aprendeu a arte paterna, mas dedicou-se inteiramente à meditação e ao ensino filosófico, sem recompensa alguma, não obstante sua pobreza. Desempenhou alguns cargos políticos e foi sempre modelo irrepreensível de bom cidadão. Combateu a Potidéia, onde salvou a vida de Alcebíades e em Delium, onde carregou aos ombros a Xenofonte, 32 gravemente ferido. Formou a sua instrução sobretudo através da reflexão pessoal, na moldura da alta cultura ateniense da época, em contato com o que de mais ilustre houve na cidade de Péricles. Inteiramente absorvido pela sua vocação, não se deixou distrair pelas preocupações domésticas nem pelos interesses políticos. Quanto à família, podemos dizer que Sócrates não teve, por certo, uma mulher ideal na quérula Xantipa; mas também ela não teve um marido ideal no filósofo, ocupado com outros cuidados que não os domésticos. Quanto à política, foi ele valoroso soldado e rígido magistrado. Mas, em geral, conservou-se afastado da vida pública e da política contemporânea, que contrastavam com o seu temperamento crítico e com o seu reto juízo. Julgava que devia servir a pátria conforme suas atitudes, vivendo justamente e formando cidadãos sábios, honestos, temperados - diversamente dos sofistas, que agiam para o próprio proveito e formavam grandes egoístas, capazes unicamente de se acometerem uns contra os outros e escravizar o próximo. Entretanto, a liberdade de seus discursos, a feição austera de seu caráter, a sua atitude crítica, irônica e a conseqüente educação por ele ministrada, criaram descontentamento geral, hostilidade popular, inimizades pessoais, apesar de sua probidade. Diante da tirania popular, bem como de certos elementos racionários, aparecia Sócrates como chefe de uma aristocracia intelectual. Esse estado de ânimo hostil a Sócrates concretizou-se, tomou forma jurídica, na acusação movida contra ele por Mileto, Anito e Licon: de corromper a mocidade e negar os deuses da pátria introduzindo outros. Sócrates desdenhou defender-se diante dos juizes e da justiça humana, humilhando-se e desculpando-se mais ou menos. Tinha ele diante dos olhos da alma não uma solução empírica para a vida terrena, e sim o juízo eterno da razão, para a imortalidade. E preferiu a morte. Declarado culpado por uma pequena minoria, assentou-se com indômita fortaleza de ânimo diante do tribunal, que o condenou à pena capital com o voto da maioria. Tendo que esperar mais de um mês a morte no cárcere - pois uma lei vedava as execuções capitais durante a viagem votiva de um navio a Delos - o discípulo Criton preparou e propôs a fuga ao Mestre. Sócrates, porém, recusou, declarando não querer absolutamente desobedecer às leis da pátria. E passou o tempo preparando-se para o passo extremo em palestras espirituais com os amigos. Especialmente famoso é o diálogo sobre a imortalidade da alma - que se teria realizado pouco antes da morte e foi descrito por Platão no Fédon com arte incomparável. Suas últimas palavras dirigidas aos discípulos, depois de ter sorvido tranqüilamente a cicuta, foram: "Devemos um galo a Esculápio". É que o deus da medicina tinha-o livrado do mal da vida com o dom da morte. Morreu Sócrates em 399 a.C. com 71 anos de idade. Método de Sócrates É a parte polêmica. Insistindo no perpétuo fluxo das coisas e na variabilidade extrema das impressões sensitivas determinadas pelos indivíduos que de contínuo se transformam, concluíram os sofistas pela impossibilidade absoluta e objetiva do saber. Sócrates restabelece-lhe a possibilidade, determinando o verdadeiro objeto da ciência. O objeto da ciência não é o sensível, o particular, o indivíduo que passa; é o inteligível, o conceito que se exprime pela definição. Este conceito ou idéia geral obtém-se por um processo dialético por ele chamado indução e que consiste em comparar vários indivíduos da mesma espécie, eliminar-lhes as diferenças individuais, as qualidades mutáveis e reter-lhes o elemento comum, estável, permanente, a natureza, a essência da coisa. Por onde se vê que a indução socrática não tem o caráter demonstrativo do moderno processo lógico, que vai do fenômeno à lei, mas é um meio de generalização, que remonta do indivíduo à noção universal. Praticamente, na exposição polêmica e didática destas idéias, Sócrates adotava sempre o diálogo, que revestia uma dúplice forma, conforme se tratava de um adversário a confutar ou de um discípulo a instruir. No primeiro caso, assumia humildemente a atitude de quem aprende e ia multiplicando as perguntas até colher o adversário presunçoso em evidente contradição e constrangê-lo à confissão humilhante de sua ignorância. É a ironia socrática. No segundo caso, tratando-se de um discípulo (e era muitas vezes o próprio adversário vencido), multiplicava ainda as perguntas, dirigindo-as agora ao fim de 35 Escolas Socráticas Menores A reforma socrática atingiu os alicerces da filosofia. A doutrina do conceito determina para sempre o verdadeiro objeto da ciência: a indução dialética reforma o método filosófico; a ética une pela primeira vez e com laços indissolúveis a ciência dos costumes à filosofia especulativa. Não é, pois, de admirar que um homem, já aureolado pela austera grandeza moral de sua vida, tenha, pela novidade de suas idéias, exercido sobre os contemporâneos tamanha influência. Entre os seus numerosos discípulos, além de simples amadores, como Alcibíades e Eurípedes, além dos vulgarizadores da sua moral (socratici viri), como Xenofonte, havia verdadeiros filósofos que se formaram com os seus ensinamentos. Dentre estes, alguns, saídos das escolas anteriores não lograram assimilar toda a doutrina do mestre; desenvolveram exageradamente algumas de suas partes com detrimento do conjunto. Sócrates não elaborou um sistema filosófico acabado, nem deixou algo de escrito; no entanto, descobriu o método e fundou uma grande escola. Por isso, dele depende, direta ou indiretamente, toda a especulação grega que se seguiu, a qual, mediante o pensamento socrático, valoriza o pensamento dos pré-socráticos desenvolvendo-o em sistemas vários e originais. Isto aparece imediatamente nas escolas socráticas. Estas - mesmo diferenciando-se bastante entre si - concordam todas pelo menos na característica doutrina socrática de que o maior bem do homem é a sabedoria. A escola socrática maior é a platônica; representa o desenvolvimento lógico do elemento central do pensamento socrático - o conceito - juntamente com o elemento vital do pensamento precedente, e culmina em Aristóteles, o vértice e a conclusão da grande metafísica grega. Fora desta escola começa a decadência e desenvolver- se-ão as escolas socráticas menores. São fundadores das escolas socráticas menores, das quais as mais conhecidas são: 1. A escola de Megara, fundada por Euclides (449-369), que tentou uma conciliação da nova ética com a metafísica dos eleatas e abusou dos processos dialéticos de Zenão. 2. A escola cínica, fundada por Antístenes (n. c. 445), que, exagerando a doutrina socrática do desapego das coisas exteriores, degenerou, por último, em verdadeiro desprezo das conveniências sociais. São bem conhecidas as excentricidades de Diógenes. 3. A escola cirenaica ou hedonista, fundada por Aristipo, (n. c. 425) que desenvolveu o utilitarismo do mestre em hedonismo ou moral do prazer. Estas escolas, que, durante o segundo período, dominado pelas altas especulações de Platão e Aristóteles , verdadeiros continuadores da tradição socrática, vegetaram na penumbra, mais tarde recresceram transformadas ou degeneradas em outras seitas filosóficas. Dentre os herdeiros de Sócrates, porém, o herdeiro genuíno de suas idéias, o seu mais ilustre continuador foi o sublime Platão. Introdução à Apologia de Sócrates De acordo com Diógenes Laércio, a acusação apresentada contra Sócrates, em janeiro de 399 a.C., foi a que segue: "A seguinte acusação escreve e jura Meleto, filho de Meleto, do povoado de Piteo, contra Sócrates, filho de Sofronisco, do povoado de Alópece. Sócrates é culpado de não aceitar os deuses que são reconhecidos pelo Estado, de introduzir novos cultos, e, também, é culpado de corromper a juventude. Pena: a morte" A cidade de Atenas não podia mover ações, mas um cidadão podia, assumindo, porém, total responsabilidade, se a acusação não fosse considerada procedente pelo júri. O acusador era Meleto, mas não só ele; também Ânito e Lícon, com os mesmos direitos à palavra no decorrer do processo. Meleto era o acusador oficial, porém nada exigia que o acusador oficial fosse o mais respeitável, hábil ou temível, mas somente aquele que assinava a acusação. E, neste caso, a influência exercida por Ânito constituiu o elemento mais respeitável no desfecho do processo, que foi por ele zelosamente preparado nas reuniões dos diversos cidadãos, sustentando-o com a autoridade de seu nome. No Eutífron, vemos que Sócrates, ao se aproximar do Pórtico do Rei, onde fora afixada a acusação por Meleto, ao ser inquirido pelo adivinho Eutífron a respeito de quem era aquele que o acusava, respondeu: 36 "Sei bem pouco a respeito dele, talvez porque seja um homem jovem e desconhecido. Acredito chamar-se Meleto, do povoado de Piteo, de cabelos lisos, barba rala e nariz em forma de bico de pássaro". A respeito de saber com exatidão quem era esse Meleto, existem muitas dúvidas, sendo uma delas se se tratava do personagem citado por Aristófanes. Mas não há elementos em que basear essa suposição, pois um jovem poeta de 399 a.C. pouco provavelmente chamaria a atenção de Aristófanes em 405 a.C., além de considerar que Sócrates insiste no fato de que Meleto é desconhecido. Julgar tratar-se do Meleto que, em 399 a.C., chegou a tomar parte da acusação contra Andócides, no célebre processo por causa da mutilação da estátua de Hermes e da profanação dos Mistérios, seria muito conveniente, por haver sido essa também uma acusação de impiedade. Contudo, existe outro obstáculo, de acordo com a própria informação de Andócides: esse Meleto foi um dos que, em 404 a.C., por ordem dos Trinta Tiranos, se prestaram a deter Leon de Salamina. À parte o problema da mudança de lado - de partidário dos Trinta Tiranos tornar-se aliado de Ânito, que derrotara e expulsara esses mesmos Trinta Tiranos –, sobra a dificuldade de explicar por que motivo Sócrates, que conforme ele mesmo afirma na Apologia, juntamente com outros quatro homens recebera a ordem de deter a Leon de Salamina, tendo sido o único a recusar-se a obedecer, não disse que Meleto era um desses homens. Exceto se reputarmos que essa defesa não seja de fato de Sócrates, e sim escrita por Platão, que se vale do nome de Meleto, já então tido como um fanático religioso, a fim de engrandecer o mestre desaparecido. Desse modo, podemos considerar Meleto de Sócrates o mesmo Meleto de Andócides, assim solucionando o problema que tanta discussão tem provocado, embora, logicamente, fique apenas no campo da suposição, já que nada corrobora realmente esta pretensão. O pouco que conhecemos ou podemos presumir a respeito de Lícon é que pouca importância e autoridade teve no decorrer do processo, com seu nome sendo citado sempre com evidente desapreço. Ânito, o mais importante dos acusadores, é aquele que, não resta dúvida, dava a impressão de conhecer Sócrates, que a ele alude como se Meleto fosse seu subordinado, como se deste tivesse se originado a idéia da pena de morte para persuadir Sócrates a abandonar a cidade antes que o processo tivesse seguimento. Ânito era filho de Antemione, comerciante de couro, nascera por volta de – 150 a.C. e já havia exercido importantes cargos e magistraturas, sendo estratego em 410 a.C. Após ter sido enviado ao exílio pelos Trinta Tiranos, juntamente com Trasíbulo e outros, regressou de File com estes e tomou parte da expedição armada contra o governo dos tiranos. Depois da restauração do regime democrático, tornou-se um dos mais eminentes cidadãos de Atenas. Ânito manteve relação com Sócrates, segundo comprova sua atuação no Mênon, onde manifesta uma ameaça velada a este: "Afigura-se-me, ó Sócrates, que com muita facilidade te dedicas à maledicência, e eu te aconselho, se quiseres me ouvir, que tenhas cuidado". A opinião de Platão a esse respeito é bem clara: não foi por razões religiosas que Sócrates recebeu a condenação, mas sim por questões evidentemente políticas. A bem da verdade, Sócrates dera, mediante palavras e atos, patente mostra de sua obstinada repulsa aos governos democráticos. Portanto, nessa época de instalação do regime democrático, convinha afastar de Atenas o mestre de Crísias, o homem que sempre se recordava de haver sido discípulo de Arquesilau, o qual, por sua vez, fora discípulo de Anaxágoras, expulso de Atenas em decorrência de um processo parecido com o seu. Mas é preciso frisar que o propósito, como o próprio Sócrates repete, não era matá-lo, e sim afastá-lo de Atenas, e se isso não ocorreu deveu-se à demasiada teimosia do próprio Sócrates, que em vez de escolher o exílio preferiu a proposta de uma multa irrisória, vindo a ser, por conseguinte, condenado. No que concerne à condenação por motivos religiosos, da mesma maneira que se dá com condenações por motivos políticos, o texto da sentença preocupa-se muito mais em esconder do que apresentar as verdadeiras causas. Tanto isso é verdade que, em sua defesa, vemos o réu inverter a ordem das acusações e colocar em primeiro lugar a última imputação: corromper os jovens. Desde a época de Sócrates, afirmara-se o culto patriarcal, em que Zeus era o deus-pai, o líder máximo. Se a acusação tivesse se dado em épocas mais antigas, poderíamos presumir que Sócrates teria adotado a defesa do culto da deusa, isto é, um movimento reacionário em termos de culto. 37 Coloquemos a questão com mais clareza: as lendas referem a revolta patriarcal contra o matriarcado. A Tripla Deusa, venerada como Réia, esposa de Cronos, em seus três aspectos: lua crescente, lua cheia a lua minguante, era a suprema deusa e gerava uma vez por ano a Dionisos – Zagreus, seu filho, que era sempre devorado pelo tempo. Dessa maneira, as múltiplas facetas da deusa prevaleciam, constituindo as sacerdotisas os verdadeiros líderes das povoações e os homens, seus instrumentos de fertilização e prazer, executando os trabalhos mais necessários à sobrevivência e à defesa. Numerosas revoltas começaram a eclodir com a chegada de contínuas levas de dórios, minianos e jônios, em cujas culturas o patriarcalismo era arraigado, que acabaram por fomentar a rebelião de Zagreus contra seu pai e mãe. Zagreus torna-se Zeus, o Deus-Agnes, ou o Agnos-Deus, que pode significar tanto o deus desconhecido quanto o deus-carneiro; Réia vem a ser adorada como Hera, e seus aspectos: marinho, lunar e noturno, como Anfitrite, Ártemis e Cérbero. Anfitrite é esposa de Posêidon, um dos aspectos de Zeus; Ártemis é filha de Zeus, e permanece virgem; quanto a Cérbero, representa Hécate, sendo fiel guardião dos domínios de Hades, outro aspecto de Zeus, seu culto tendo sido de novo extinto durante o período de estabelecimento do culto olímpico. Nessa fase seria de fato correto crer que alguém sofresse um processo por questões religiosas, mas à época de Sócrates tudo isso já se encontrava devidamente solidificado, e a argumentação de Burnet, em seu comentário à Apologia, revela-se, portanto, bem pouco confiável, quando afirma "que esses novos deuses da cosmologia jônica eram uma antiga história e que poderia ser uma violação da anistia colocá- los de novo à luz do dia". Portanto, considerando-se a anistia garantida até mesmo pelo próprio Ânito, que juntamente com Trasíbulo fora seu principal defensor, não era possível levar em conta as culpas passadas de Sócrates para condená-lo, isso presumindo que existisse alguma, e era necessário arranjar o pretexto para executá-lo. Era todo o ensinamento socrático que se tornava perigoso, e não os novos fatos. O que significava aquela sabedoria, proclamada superior até mesmo pelo oráculo, que consistia em saber que não se sabe? Qual a postura dos políticos diante disso? Que direitos seriam mais opostos aos da democracia do que aqueles originados da experiência e da competência, e a superioridade da inteligência sobre os direitos da assembléia popular e soberana? É isso que causou a condenação de Sócrates, a exigência de que o piloto do barco conheça seu ofício, isto é, a superioridade do saber sobre a aclamação do povo. Ademais, é necessário recordar que Sócrates manteve relações com os Trinta Tiranos: estes não Ihe teriam ordenado a prisão de Leon de Salamina se não o considerassem um deles; Crísias, o mais feroz dos Tiranos, havia sido seu discípulo, e também Alcebíades, que voltara a ser assunto pela recente inclusão de seu nome entre os envolvidos na profanação dos Mistérios. E mais: Sócrates menciona a seu favor sua participação no caso do exílio de Querofonte, porém, assim, insiste no fato de que, durante o mandato dos Trinta, Querofonte foi obrigado a se exilar, enquanto Sócrates pôde permanecer. Some-se a isto que Sócrates jamais desejou exercer nenhuma magistratura, nem participar de alguma forma do governo de sua cidade, embora não seja verdade que permanecesse fora do âmbito do governo, pois com freqüência era visto discutindo em público; e não se pode afirmar, pelos testemunhos que possuímos, que fosse singularmente prudente ou diplomático em sua maneira de discutir. As mais importantes orientações da vida eram subvertidas por seu orgulho de ter consciência da sua ignorância, e os jovens, de fato, iriam acabar desrespeitando qualquer autoridade que não se identificasse com a inteligência e a sabedoria, provocando ainda o desapreço por tudo que não buscasse a sabedoria, desprezando a economia doméstica e a riqueza. Preâmbulo Desconheço atenienses, que influência tiveram meus acusadores em vosso espírito; a mim próprio, quase me fizeram esquecer quem sou, tal o poder de persuasão de sua eloqüência. De verdades, porém, não disseram nenhuma. Uma, sobretudo, me espantou das muitas perfídias que proferiram: a recomendação de precaução para não vos deixardes seduzir pelo orador formidável que sou. Com efeito, não corarem 40 passo que esses, de quem vos falava há pouco, talvez sejam possuidores de uma sabedoria sobre- humana, mas afirmo que não a conheço, e quem diz o contrário mente, apenas com o intuito de caluniar-me. Peço-vos para não fazer algazarra, ó atenienses, embora possais ter a impressão de que eu esteja proferindo palavras por demais fortes; que não é meu depoimento, mas o de uma testemunha que merece toda a vossa confiança. De minha sabedoria, se de fato se trata de sabedoria, e de sua natureza, invocarei como testemunha, diante de vós, o próprio deus de Delfos. Todos vós conheceis Querefonte. Era meu amigo desde o tempo da juventude e pertencente ao vosso partido popular; partiu no último exílio em vossa companhia e regressou também em vossa companhia. Sabeis que tipo de homem era Querofonte e de como era determinado em suas resoluções Dirigiu-se em certa ocasião a Delfos e atreveu-se a perguntar ao oráculo se existia alguém mais sábio que eu. A pitonisa respondeu que não existia ninguém. Como testemunho deste fato se prestará o irmão de Querefonte, em virtude de este haver falecido. Pesquisa Junto aos Políticos Saberão agora o motivo pelo qual vos relato isso: meu intento é pôr-vos a par de onde se originou a calúnia contra mim. Após ter ouvido a resposta do oráculo, refleti da seguinte maneira: "Que pretende o deus dizer? Qual é o significado oculto do enigma? Tendo em vista que eu não me considero sábio, que quer dizer o deus ao afirmar que sou o mais sábio dos homens? Com certeza não mente, pois ele não pode mentir". E longamente me mantive nesta dúvida. Por fim, ao arrepio de minha vontade, comecei a investigar acerca disso. Fui ter com um daqueles que possuem reputação de sábios, julgando que somente assim poderia desmentir o oráculo e responder ao vaticínio: "Este é mais sábio que eu e afirmastes que era eu". Mas enquanto estava analisando este – o nome não é necessário que eu vos revele, ó cidadãos; basta dizer que era um de nossos políticos –, enfim, este com que, analisando e raciocinando em conjunto, fiz a experiência que irei descrever-vos, e este homem aparentava ser sábio, no entender de muitas pessoas e especialmente de si mesmo, mas talvez não o fosse de verdade. Procurei fazê-lo compreender que embora se julgasse sábio, não o era. Em vista disso, a partir daquele momento, não só ele passou a me odiar, como também muitos dos que se encontravam presentes. Afastei-me dali e cheguei à conclusão de que era mais sábio que aquele homem, neste sentido, que nós, eu e ele, podíamos não saber nada de bom, nem de belo, mas aquele acreditava saber e não sabia, enquanto eu, ao contrário, como não sabia, também não julgava saber, e tive a impressão de que, ao menos numa pequena coisa, fosse mais sábio que ele, ou seja, porque não sei, nem acredito sabê-lo. Aí procurei um outro, entre os que possuem reputação de serem mais sábios que aqueles, e me ocorreu exatamente a mesma coisa, e também este me dedicou ódio, juntamente com muitos outros. Pesquisa Junto aos Poetas Não obstante isso, continuei diligentemente com minha pesquisa, embora notando, com desagrado e assombro, que todos passaram a me odiar e que, contudo, afigurava-se-me impossível deixar de atentar para as palavras do deus. "Se almejas saber o que o oráculo quer dizer", dizia a mim mesmo, "deves visitar todos aqueles que possuem reputação de sabedoria." Por isso, ó atenienses, devo dizer- vos de novo a verdade; juro-vos que este foi o resultado da minha pesquisa: os que eram famosos por possuírem maior sabedoria, conforme minha pesquisa, conforme a palavra do deus, pareceram-me quase todos em maior erro. E outros, sem fama alguma, se me afiguraram melhores e mais sábios. Mas desejo terminar de relatar-vos minhas peregrinações e as fadigas que sofri para convencer-me de que a palavra do oráculo era incontestável. Em seguida aos políticos, fui procurar os poetas, tanto os que escreviam ditirambos' e tragédias como os demais, convencido de que diante daqueles confirmaria minha ignorância e sua superioridade. Peguei suas melhores poesias, as que considerava mais bem construídas, e indaguei aos próprios poetas o que eles pretendiam dizer; porque dessa maneira aprenderia alguma coisa com eles. Estou com vergonha, ó atenienses, de contar-vos a verdade! Mas é obrigatório que eu a diga. Resumindo, todas as outras pessoas presentes discorriam melhor a respeito do que os poetas haviam escrito que os próprios autores; 41 diante disto, descobri que não era por nenhum tipo de sabedoria que eles faziam versos, mas por uma propensão e inspiração natural que eu desconheço, como os adivinhos e vaticinadores, que dizem de fato muitas coisas belas, mas não conhecem nada do que dizem, e aproximadamente o mesmo, e isto eu percebi com clareza, é o que ocorre entre os poetas. E compreendi também que os poetas, pelo fato de fazerem poesias, julgavam-se os mais sábios dos homens até mesmo em outras coisas em que realmente não o eram. Então afastei-me deles, com a certeza de ser mais sábio que eles, pelo mesmo motivo que era mais que os políticos. Pesquisa Junto aos Artesãos No final, dirigi-me aos artesãos, que de sua arte tinha a consciência de não conhecer nada, e eles sabiam que eu os considerava conhecedores de numerosas e belas coisas. E não me equivoquei, eles conheciam coisas que eu não conhecia, e nisso eram mais sábios do que eu. Porém, ó atenienses, também os artesãos famosos apresentavam o mesmo defeito dos poetas: por conhecerem muito bem sua arte, cada um deles julgava-se extremamente sábio, até mesmo em outros assuntos de maior realce e dificuldade, e este importante defeito deslustrava toda sua sabedoria. De forma que eu, em nome do oráculo, indaguei a mim mesmo se deveria permanecer tal como era, nem sabedor de minha sabedoria nem ignorante de minha ignorância, ambas as coisas, como eles, e respondi a mim e ao oráculo que convinha continuar tal qual eu era. O Verdadeiro Saber Consiste em Saber Que Não se Sabe Em virtude desta pesquisa, fiz numerosas e perigosíssimas inimizades, e a partir destas inimizades surgiram muitas calúnias, e entre as calúnias, a fama de sábio, porque, toda vez que participava de uma discussão, as pessoas julgavam que eu fosse sábio naqueles assuntos em que somente punha a descoberto a ignorância dos demais. A verdade, porém, é outra, ó atenienses: quem sabe é apenas o deus, e ele quer dizer, por intermédio de seu oráculo, que muito pouco ou nada vale a sabedoria do homem, e, ao afirmar que Sócrates é sábio, náo se refere propriamente a mim, Sócrates, mas só usa meu nome como exemplo, como se tivesse dito: "Ó homens, é muito sábio entre vós aquele que, igualmente a Sócrates, tenha admitido que sua sabedoria nao possui valor algum". É por esta razao que ainda hoje procuro e investigo, de acordo com a palavra do deus, se existe alguém entre os atenienses ou estrangeiros que possa ser considerado sábio e, como acho que ninguém o seja, venho em ajuda ao deus provando que nao há sábio algum. E tomado como estou por esta ânsia de pesquisa, não me restou mais tempo para realizar alguma coisa de importante nem pela cidade nem pela minha casa, é levo uma existência miserável por conta deste meu serviço ao deus. As Muitas Inimizades e a Acusação Vós tendes conhecimento de que os jovens que dispõem de mais tempo que os outros, os filhos das famílias mais ricas, seguem-me de livre e espontânea vontade, e se regozijam em assistir a esta minha análise dos homens; inúmeras vezes procuram imitar-me e tentam, por sua própria conta, analisar alguma pessoa. Logicamente, deparam-se com numerosos homens que julgam saber alguma coisa e sabem pouco ou nada, e então, aqueles que são analisados por eles voltam-se contra mim e não contra quem os analisou, declarando que Sócrates é homem por demais infame e corruptor dos jovens. E se alguém indaga: "Afinal, o que faz e o que ensina este Sócrates para corromper os jovens?", nada respondem, porque o desconhecem, e, só para não evidenciar que estão confusos, dizem as coisas que comumente são ditas contra todos os filósofos, além de afirmar que ele especula sobre as coisas que se encontram no céu e as que ficam embaixo da terra, e que também ensina a não acreditar nos deuses e apresenta como melhores as piores razões. A verdade, porém, é que esses homens demonstraram ser pessoas que dão a impressão de saber tudo, porém, naturalmente, não querem dizer a verdade. Desta maneira, ambiciosos, dominados pela paixão e numerosos como são, e todos da mesma opinião nesta difamação a meu respeito e com argumentos que podem parecer também convincentes, sem escrúpulo 42 algum encheram vossos ouvidos com suas calúnias. Este é o motivo pelo qual, finalmente, lançaram- se contra mim Meleto, Ânito e Lícon: Meleto profundamente irado por causa dos poetas, Ânito por causa dos artesãos e dos políticos, Lícon por causa dos oradores. Contudo, como vos disse desde o início, seria de fato um verdadeiro milagre se eu tivesse a capacidade de arrancar-vos do coração esta calúnia que possui raízes tão firmes e profundas. Esta é, ó cidadãos, a verdade, e eu a revelo por completo, sem ocultar-vos nada, nem mesmo esquivando-me dela, embora saiba que sou odiado por muitos exatamente por isso. Por sinal, é outra prova de que digo a verdade, e que esta é a calúnia contra mim e esta a causa. Indagai quanto quiserdes, agora ou depois, e recebereis sempre a mesma resposta. Defesa Contra Meleto No que diz respeito aos meus primeiros acusadores, isso é o bastante para a defesa das culpas a mim atribuídas; procurarei em seguida defender-me de Meleto, homem digno e patriota, como ele mesmo se define, e dos acusadores que virão depois. Vou começar desde o início e como se na verdade dissesse respeito a outra espécie de acusadores, analisemos também o ato de acusação deste. Declarou mais ou menos isto: "Sócrates é réu de corromper os jovens, de não crer nos deuses nos quais a cidade crê e também de praticar cultos religiosos extravagantes". Analisemos esta acusação minuciosamente. Meleto afirma que corrompo a juventude, e eu digo, ó atenienses, que o réu é o próprio Meleto, porque aborda com leviandade assuntos sérios e tão inescrupulosamente leva homens diante do tribunal, com o intuito de fazer crer que se preocupa com coisas com as quais, na verdade, nunca se preocupou. E procurarei provar-vos que isso é a pura verdade. Meleto Não Sabe o Que é Educar Nem Corromper Meleto, mostra-te e responde. Não julgas de suprema importância que os jovens consigam se tornar os melhores possíveis? MELETO: — Julgo. SÓCRATES: — Dize, então, aos juizes o que os torna melhores. Com certeza o sabes, pois esta é uma preocupação tua e descobriste quem os corrompe, conforme afirmas, e por este motivo citaste-me diante do tribunal e me acusaste. Vamos, dize aos juizes o que os faz melhores. Vês, Meleto, como ficas calado, sem saber o que dizer? E isto não te se afigura vergonhoso, e prova suficiente do que afirmo: que nunca te preocupaste com estes assuntos? Vamos, ó excelente homem, responde: que os faz melhores? MELETO: — As leis. SÓCRATES: — Não se trata disto, meu amigo. Indago-te qual é o homem que, em primeiro lugar, deve ter conhecimento, conforme dizes, das leis. MELETO: — Estes, ó Sócrates, os juizes. SÓCRATES: — Afirmas, então, Meleto, que estes possuem a capacidade de educar os jovens e torná-los melhores? MELETO: — Afirmo. SÓCRATES: — Crês que todos, ou alguns sim e outros não? MELETO: — Todos. SÓCRATES: — Dizes bem, por Hera! E grande a quantidade de bons educadores! Também estes que estão nos ouvindo tornam os jovens melhores ou não? MELETO: — Sim, também estes. SÓCRATES: — E os senadores? MELETO: — Também os senadores. SÓCRATES: — Quer dizer, então, Meleto, que talvez aqueles das Assembléias Populares corrompam os jovens? Ou também aqueles os tornam melhores? MELETO: — Também aqueles. SÓCRATES: — Todos os atenienses que te ouvem tornam os jovens bons e belos, todos, exceto eu. Portanto, sou eu quem os corrompe. É isto que queres dizer? 45 dano, não será nem Meleto nem Ânito, mas sim este ódio, esta calúnia e esta raiva das pessoas. Pessoas estas que já causaram a perda de tantos outros e valorosos homens, e, acredito, outros ainda irão perder, não havendo perigo que causem somente a minha perda. Algum de vós poderia talvez altercar-me: "Sócrates, não te envergonhas de haveres exercido tal atividade, que agora coloca em risco tua vida?" Eu responderia a este: "Não falas bem se pensas que alguém, tendo a capacidade de fazer algum bem, mesmo sendo pequeno, deva calcular os riscos de vida ou de morte e não deva olhar o injusto e se pratica as ações de homem honesto e corajoso ou de infame e mau. Por outro lado, acompanhando este teu raciocínio, teriam sido néscios todos os heróis que morreram em Tróia, e o mais néscio de todos seria o filho de Tétis que, sem se envergonhar, tamanho desdém mostrou pelo perigo, quando sua mãe, uma deusa, estando ele ávido do sangue de Heitor, disse-lhe, se bem me lembro: 'Ó filho, se vingares a morte do teu companheiro Pátroclo e matares Heitor, também morrerás'. Ao ouvir tais palavras, Aquiles negligenciou o perigo e a morte, receando muito mais viver miseravelmente sem vingar o amigo, e declarou: 'Rapidamente eu morra, logo após ter castigado a quem matou, nem que para isso me torne objeto de desprezo'. Acreditas que Aquiles tenha pensado na morte e no perigo?" É assim que deve ser, ó atenienses, que onde alguém se haja instalado, considerando ser aquele seu lugar mais honroso, ou onde tenha sido instalado por quem ordena, aí, creio, deve ficar e enfrentar os riscos e não pensar na morte, nem em outra desgraça qualquer, à exceção de na desonra e na vergonha. Declaro-vos, ó cidadãos, que meu comportamento seria anormal e excêntrico se, ao passo que em Potidéia, Anfípolis e Délio, quando os comandantes que vós elegestes me designaram uma posição, lá fiquei, como qualquer outro, arriscando minha vida, aqui, ao contrário, ao receber ordens do deus, ao menos conforme pude ouvir e interpretar essa mesma ordem, pela qual deveria viver filosofando e dedicando-me a conhecer a mim mesmo e aos outros, que, digo, por temor à morte ou a outra desgraça semelhante, tivesse desertado do posto a mim designado pelo deus. Seria algo, repito, anormal e, de fato, existiriam então motivos para trazer-me aqui no tribunal como sendo um desumano que não cresse nos deuses, já que desobedece ao oráculo, receia a morte e julga ser sábio sem sê-lo. Com efeito, atenienses, recear a morte não passa de julgar ser sábio e não sê-lo, dado que significa pensar saber aquilo que não se sabe. E, em verdade, ninguém sabe se, por acaso, ela não seja o maior de todos os bens que podem ser dados ao homem e, contudo, receiam-na como se soubessem que ela é a maior das desgraças. E não é ignorância, a mais vergonhosa das ignorâncias, acreditar saber o que não se sabe? Ora, atenienses, acredito distinguir-me por este motivo e precisamente neste ponto da maior parte dos homens, e se me atrevesse a dizer que em alguma coisa sou mais sábio que os outros, somente por isto o diria, que como não sei nada de preciso a respeito das coisas do Hades, também nada penso saber a esse respeito. Mas ser injusto e desobedecer a quem é melhor que nós, seja deus, seja homem, isto bem sei que é coisa vergonhosa e indecente. Por isso, como ocorre diante dos males que sei que são nefastos, nunca acontecerá que eu fuja diante daqueles de que não sei se por acaso não são bens. Portanto, mesmo que me concedesses a liberdade, contra a vontade de Ânito que, desde o começo, declarava não ser necessário que eu viesse até este tribunal, ou, uma vez aqui trazido, que era impossível não condenar-me à morte, porque, dizia, se consigo safar-me da condenação, daquele momento em diante, seus filhos prosseguindo a praticar os ensinamentos de Sócrates, estariam inapelavelmente perdidos e corrompidos; se, ao ouvir este raciocínio de Ânito, me dissésseis: "Ó Sócrates, não pretendemos dar, agora, atenção a Ânito e deixamos-te livre, desde que não empregues mais teu tempo nessas pesquisas, nem te ocupes mais de filosofia, e se fores surpreendido a praticar ainda estas coisas, morrerás"; se, como dizia, com esta condição me deixásseis em liberdade, eu vos responderia: "Ó atenienses, eu vos amo, mas obedecerei primeiro ao deus do que a vós, e enquanto tiver ânimo, e enquanto for capaz, não pararei de filosofar, não pararei de estimular-vos e censurar-vos; e a quem quer que eu encontrasse de vós, em qualquer ocasião, conversando da minha maneira habitual, assim diria: "E tu, que és o melhor dos homens; tu, ateniense, cidadão da maior cidade e mais célebre por sabedoria e poder, não te envergonhes de pensar em acumular o máximo de riquezas, fama e honras, sem te preocupar em cuidar da inteligência, da verdade e da tua alma, para que se tornem tão boas quanto possível?" E se algum de vós retrucasse que cuida de fato delas, não o deixaria afastar-se nem iria embora, mas o interrogaria, o analisaria, o impugnaria, e se me afigurasse que não possui 46 virtude mas apenas afirma possuí-la, eu o envergonharia demonstrando-lhe que considera infames as coisas mais estimáveis e de valor, as infames. E agiria assim com qualquer um que eu quisesse: jovens ou velhos, atenienses ou estrangeiros, e também com vós, que me sois mais estritamente próximos. Isto, vós não desconheceis, é ordem do deus e estou convencido de que haja para vós maior bem na cidade do que esta minha obediência ao deus. Em verdade, com este meu caminhar não faço outra coisa a não ser convencer-vos, jovens e velhos, de que não deveis vos preocupar nem com o corpo, nem com as riquezas, nem com qualquer outra coisa antes e mais que com a alma, a fim de que ela se torne excelente e muito virtuosa, e de que das riquezas não se origina a virtude, mas da virtude se originam as riquezas e todas as outras coisas que são venturas para os homens, tanto para os cidadãos individualmente como para o Estado. Se ao falar desta maneira corrompo os jovens, está certo, isto significará que minhas palavras são nocivas, mas se alguém afirma que falo diferentemente e não deste modo, então diz coisas insensatas. Por tudo isso, permiti que vos diga, ó cidadãos atenienses: ou dareis ouvidos a Ânito, ou não dareis, absolver-me-eis ou não, mas, de qualquer forma, tende a certeza de que nunca agirei de outra maneira que esta, mesmo que não só uma, mas muito mais vezes devesse morrer. Não promoveis algazarra, ó cidadãos, lembrai-vos de meu pedido de que não causásseis balbúrdia diante do que eu dissesse, mas que vos limitásseis a ouvir. Ademais, creio que vos será útil escutar. Restam-me algumas outras coisas a dizer-vos, às quais, talvez, erguereis a voz. Não, não fazei assim. Convencei-vos: se me condenardes à morte, a mim que sou como vos disse, não me causareis maior dano que podeis causar a vós mesmos. A mim não causarão dano nem Meleto nem Ânito. E nem o poderiam. Não penso que seja possível que um homem de bem receba o mal de um malvado. Poderá sim, Ânito, condenar-me à morte, ou ao desterro, espoliar-me dos direitos civis; tudo em que este homem crer e outros crerem serão grandes males, não o creio eu; penso que seja um mal bem mais grave aquele que é cometido por esses que tentam condenar à morte um homem inocente. Logo, ó atenienses, de maneira alguma estou falando em minha defesa, como alguém poderia achar, mas falo por vós, que não necessitais pecar, condenando-me à morte, contra o dom do deus. Pois se me matardes, não encontrarão facilmente um outro igual a mim, que, não riam da comparação, tenha sido colocado de fato pelo deus aos flancos da cidade como aos flancos de um cavalo grande e de boa raça, mas pelo seu próprio tamanho, um pouco lerdo e necessitado de estímulo, um ferrão. Assim parece-me que o deus me colocou aos flancos da cidade; nunca paro de exortar-vos, de convencer-vos, de falar-vos, um por um, estando a vosso lado, em todo lugar. Afirmo, pois, que outro como eu não nascerá facilmente, ó atenienses, e se desejais me ouvir, me poreis a salvo. Mas se estais irritados comigo como o que está em vias de adormecer com quem o desperta, e golpeais como a matar um inseto inoportuno, condenar-me-eis à morte, por obediência a Ânito, e depois, no decorrer de todo o resto de vossa existência, dormireis tranqüilamente, se o deus não vos mandar algum outro para substituir-me. E se for eu mesmo a pessoa indicada pelo deus para presentear a cidade, podereis me reconhecer por isso: que não parece humano que haja descuidado todos os meus negócios e ainda agüentar por tantos anos que tenham sido descuidadas as coisas da minha casa, e sempre, ao contrário, cuidando das vossas, estando por perto como estaria um pai ou irmão mais velho, para convencer-vos a buscar a virtude. Que se desta vida tirasse algum proveito e se pelos conselhos que dou recebesse alguma compensação, aí sim haveria uma razão, mas vistes que meus detratores, que me acusaram tão despudoradamente de tantas outras culpas, desta não tiveram o despudor de me acusar, pondo-me frente a frente com uma testemunha, somente uma, que provasse ter eu recebido uma única vez compensação ou de havê-la solicitado. E a prova cabal de que é verdade o que vos declaro, eu dou: a minha pobreza. Repugnância e Abstenção Socrática da Política Comum É possível que pareça estranho eu me encontrar sempre próximo e me dar tanto ao trabalho de fornecer conselhos a este ou àquele em particular, se, ao se tratar de aconselhar a cidade e de ir à tribuna para falar ao povo, então me falte coragem. E o motivo disso me haveis ouvido dizer várias vezes e em vários lugares, que existe em mim não sei que espírito divino e demoníaco, a respeito do qual, também Meleto, com jeito de estar se divertindo, aponta no ato da acusação. É como uma voz que possuo dentro de mim 47 desde criança, e que, toda vez que eu a ouço, sempre faz com que eu desista do que estou para fazer, e nunca me convence a realizar qualquer outra coisa. É essa voz que me impede de me ocupar das coisas do Estado, e parece-me que faz muito bem em agir dessa forma. Sabeis perfeitamente, ó cidadãos, que se eu tivesse, por algum tempo, me ocupado dos negócios de Estado, teria sido morto também num curto espaço de tempo e não teria realizado nada de útil, nem por vós nem por mim. E não me desprezei se falo assim, pois é a verdade. Não existe homem que possa se salvar ao opor-se com sinceridade, não digo a vós, mas a qualquer outra multidão, e tente impedir que muitas vezes se cometam injustiças as leis na cidade; e é também preciso que aquele que luta em defesa do que é justo, se de fato pretende escapar da morte, mesmo que por breve tempo, de viver de forma privada e não exercer funções públicas. Daquilo que afirmo eu mesmo posso oferecer-vos provas cabais, e não palavras, mas do que mais necessitais: fatos. Escutai o que me sucedeu e vereis então que diante do que é justo não sou homem de ceder a ninguém por temor à morte; e que, além de não ceder, estou pronto a morrer. Falarei um pouco grosseiramente, como fazem alguns dos freqüentadores dos tribunais, mas com sinceridade. Tendes conhecimento, ó cidadãos, de que nunca exerci em nossa cidade magistratura alguma, exceto uma vez em que fiz parte do Conselho, justamente no dia em que era o vosso desejo julgar em conjunto, ao arrepio da lei, e em seguida acolhestes todos ao meu parecer, aqueles dez capitães que não haviam recolhidos os náufragos e os mortos depois da batalha naval das Arginusas.Então eu me opus, lutando para que nada fosse feito contra a lei, e votei contra. Os oradores habituais já estavam prontos para suspender-me da função e aprisionar-me, e vós a intigá-los e a gritar; julguei que era meu dver correr aquele risco mantendo-me ao lado do direito e do justo em vez de apoiar-vos e deliberar o injusto por temer a prisão e a morte. E isto ocorreu quando a cidade ainda era regida por uma democracia. Mais tarde, depois que surgiu a oligarquia, os Trinta mandaram-me chamar, e a mais outros quatros, levaram- nos à sala do Tolo e ordenaram que retirássemos de Salamina o Leon de Salamina, para que este viesse a morrer. E davam ordens semelhantes a vários outros homens, na tentativa de envolver em seus atos cruéis o maior número de pessoas possível. E naquela ocasião, não com palavras, e sim com fatos, demonstrei que a morte, se a palavra não soar por demais vulgar, não possui importância alguma para mim, mas de não cometer injustiças ou crueldades, isto sim me importa acima de qualquer coisa.E aquele governo, apesar de prepotente, não me atemorizou, não me obrigou a cometer um ato injusto, e, quando saímos do Tolo e os outros quatro se dirigiram para Salamina a fim de retirar Leon, deixei-os ir e voltei para casa. Acredito que só por causa disso, eu já teria morrido, se aquele governo não tivesse sido deposto logo em seguida. E disto que relatei possuo muitas testemunhas. O Testemunho dos Discípulos, de seus Pais e Irmãos Credes que eu teria vivido por tantos anos se houvesse me ocupado de assuntos públicos e, fazendo-o como homem de bem, tivesse lutado em defesa da justiça e tivesse considerado esta defesa, como é necessário, meu dever mais alto? Com certeza, atenienses, não existe homem que o tivesse conseguido! Em verdade, em toda minha existência, tanto em público, nas poucas vezes que me ocupei de coisas públicas, como privadamente, sempre fui o mesmo, um homem que diante do justo nunca cedeu a quem quer que fosse, a ninguém, e nem mesmo àqueles que os caluniadores chamam de meus discípulos. Nunca fui mestre de quem, quer que seja, principalmente se é uma pessoa que , quando falo ou atendo àquilo que acredito ser meu ofício, deseja escutar-me; seja jovem, seja velho, nunca me refutaram, e não é verdade que, se recebo dinheiro, eu falo e se não recebo, fico calado, porque estou da mesma maneira à disposição de todos, pobres e ricos, quem quer que me indague e deseje ouvir as minhas respostas. Por conseguinte, se entre os homens que me freqüentam, um se torne de boa formação moral ou não, não será justo que eu receba elogios ou impropérios, já que não prometi ensinamento algum a ninguém, nem nunca ensinei coisa alguma. E se há quem diga que aprendeu ou ouviu alguma coisa de mm, em particular, alguma coisa que todos os outros não tenham aprendido ou ouvido, tenhais a certeza de que este não diz a verdade. Diante disso, como é possível que a alguns agrade estar comigo tanto tempo? Vós ouvistes, ó cidadãos, que eu disse toda a verdade: têm prazer de ouvir-me quando submeto à prova aqueles que pensam 50 escolher outra entre aquelas que eu sei serem más? Deverei solicitar a prisão? E por que motivo deverei viver preso, a serviço da eterna magistratura dos Onze? Uma pena em dinheiro e permanecer enjaulado enquanto não for paga? Mas é exatamente a mesma coisa que a anterior, porque não possuo dinheiro para pagá-la. Pedirei o exílio? Sim, talvez seja precisamente esta pena que desejastes para mim. Porém, em verdade, ó atenienses, eu teria de estar imbuído de uma bem ingênua vontade de viver se fosse assim tão irracional a ponto de não poder nem mesmo fazer este raciocínio, que enquanto vós, embora sendo meus concidadãos, não fostes capazes de agüentar minha companhia e os meus discursos, e mais, que minha companhia foi tão desagradável que procuras agora livrar-vos dela, que outros a agüentariam de bom grado? E ainda, atenienses, que excelente vida seria a minha, nesta idade, exilado, mudando sempre de país para país, perseguido em todos os lugares. Porque sei muito bem que aonde quer que eu vá, os jovens acorrerão a fim de me ouvir, como aqui, e, se eu os repelir, serão estes mesmos que me farão perseguir, convencendo os mais velhos; e se não os repelir, serei perseguido por seus pais e demais parentes. Algum de vós talvez pudesse contestar-me: "Em silêncio e quieto, ó Sócrates, não poderias viver após ter saído de Atenas?" Isso seria simplesmente impossível. Porque, se vos dissesse que significaria desobedecer ao deus e que, por conseguinte, não seria possível que eu vivesse em silêncio, não acreditaríeis e pensaríeis que estivesse sendo sarcástico. Se vos dissesse que esse é o maior bem para o homem, meditar todos os dias sobre a virtude e acerca dos outros assuntos que me ouvistes discutindo e analisando a meu respeito e dos demais, e que uma vida desprovida de tais análises não é digna de ser vivida, se vos dissesse isto, acreditar-me-iam menos ainda. Contudo, é isto que vos digo, ó atenienses, porém é difícil convencer-vos. Por outro lado, não estou habituado a considerar-me merecedor de mal algum. Se eu possuísse dinheiro, poderia ter-me aplicado uma multa que conseguisse pagar, porque, assim, não teria me infligido mal algum. Mas não possuo dinheiro e não posso fazer isso, exceto se desejeis multar-me de uma quantia que eu tenha a possibilidade de pagar. Poderei pagar-vos apenas uma mina de prata. Portanto, multo-me em uma mina de prata. Mas vedes, ó atenienses, que Platão, Críton, Critóbulo e Apolodoro querem que eu me multe em trinta minas, que eles mesmos garantirão. Multo-me então em trinta minas. E esses homens, dignos de crédito e confiança, serão garantes dessa quantia. Após a Condenação Aos que Votaram Contra Por não haverdes aguardado mais um pouco, atenienses, aqueles que desejarem injuriar a cidade vos impingirão a fama e a acusação de terdes matado Sócrates, um sábio. Sim, chamar-me-ão de sábio, apesar de que eu não o seja, os que vos quiserem censurar. Se esperásseis mais algum tempo, a própria natureza satisfaria o vosso desejo. Bem sabeis a minha idade, já distante da vida e próxima da morte. Não dirijo essas palavras a todos vós, mas aos que votaram pela minha morte. Para esses mesmos, adito o seguinte: talvez imagineis, senhores, que me perdi por falta de discursos com que vos poderia persuadir, se na minha opinião se devesse tudo fazer e dizer para escapar à justiça. Engano! Perdi-me por falta, não de discursos, mas de atrevimento e descaramento, por me recusar a proferir o que mais gostais de ouvir, lamentos e gemidos, fazendo e dizendo uma porção de coisas que declaro indignas de mm, tais como costumais ouvir dos outros. Ora, se antes achei que o perigo não justificava indignidade alguma, tampouco me pesa agora da maneira por que me defendi; ao contrário, muito mais folgo em morrer após a defesa que fiz, do que folgaria em viver após fazê-la daquele outro modo. Quer no tribunal, quer na guerra, não devo eu, não deve ninguém lançar mão de todo e qualquer recurso para escapar à morte. Com efeito, é evidente que, nas batalhas, muitas vezes se pode escapar à morte arrojando as armas e suplicando piedade aos perseguidores; em cada perigo, tem muitos outros meios de escapar à morte quem ousa tudo fazer e dizer. Não se tenha por difícil escapar à morte, porque muito mais difícil é escapar à maldade; ela corre mais ligeira que a morte. Neste momento, fomos apanhados, eu, que sou um velho vagaroso, pela mais lenta das duas, eu e os meus acusadores, ágeis e velozes, pela mais ligeira, a malvadez. Agora, vamos partir; eu, condenado por vós à morte; eles, 51 condenados pela verdade a seu pecado e a seu crime. Eu aceito a pena imposta; eles igualmente. Por certo, tinha de ser assim e penso que não houve excessos. Acerca do futuro, no entanto, quero fazer-vos um vaticínio, meus condenadores; de fato, eis-me chegado àquele momento em que os homens vaticinam melhor, quando estão para morrer. Eu vos afianço, homens que me mandais matar, que o castigo os vos alcançará logo após a minha morte e será, por Zeus, muito mais duro que a pena capital que me impusestes. Vós o fizestes supondo que vos livraríeis de dar boas contas de vossa vida; mas o resultado será inteiramente oposto, eu vo-lo asseguro. Serão mais numerosos os que vos pedirão contas; até agora eu os continha e vós não os percebíeis; eles serão tanto mais importunos quanto são mais jovens, e vossa irritação será maior. Se imaginais que, matando homens, evitareis que alguém vos repreenda a má vida, estais enganados; essa não é uma forma de libertação, enm é inteiramente eficaz nem honrosa; esta outra, sim, é a mais honrosa e mais fácil; em vez de tapar a boca dos outros, preparar-se para ser o melhor possível. Com este vaticínio, despeço-me de vós que me condenastes. Aos que o Absolveram Com os que votaram pela absolvição, gostaria de conversar com respeito ao que se acaba de suceder, enquanto os magistrados estão ocupados e antes de ir para onde devo morrer. Por conseguinte, senhores, ficai comigo mais um pouco; nada obsta que nos entretenhamos enquanto dispomos de tempo. Quero explicar-vos, como a amigos, o sentido exato de que me aconteceu agora. O que me ocorreu senhores juízes, a vós é que chamo com tino de juízes, foi algo prodigioso. A usual inspiração, a da divindade, sempre foi rigorosamente assídua em opor-se a ações mínimas, quando eu ia cometer um erro; agora, porém, acaba de me ocorrer o que vós estais vendo, o que se poderia considerar, e há quem o faça, como o maior dos males; mas a advertência divina não se me opôs de manhã, ao sair de casa, nem enquanto subia aqui para o tribunal, nem quando ia dizer alguma coisa; no entanto, quantas vezes ela me conteve em meio de outros discursos! Mas hoje não se me opôs vez alguma no decorrer do julgamento, em nenhuma ação ou palavra. A que devo atribuir isso? Vou dizer- vos: é bem possível que seja um bem para mim o que aconteceu e não é forçoso acreditar que a morte seja um mal. Disso tenho agora uma boa prova, porque a usual advertência não poderia deixar de opor- se, se não fosse uma ação boa o que eu estava para praticar. Façamos mais esta reflexão: há grande esperança de que isto seja um bem. Morrer é uma destas duas coisas: ou o morte é igual a nada, e não sente nenhuma sensação d coisa nenhuma; ou, então, como se costuma dizer, trata-se duma mudança, uma emigração da alma, do lugar deste mundo para outro lugar. Se não há nenhuma sensação, se é como um sono em que o adormecido nada vê nem sonha, que maravilhosa vantagem seria a morte! Bem posso imaginar que, se devêssemos identificar uma noite em que estivéssemos dormindo tão profundamente que nem mesmo sonhássemos e, contrapondo a essa as demais noites e dias de nossa vida, pensar e dizer quantos dias e noites de nossa existência vivemos melhor e mais agradavelmente do que naquela noite, bem posso imaginar que, já não digo um homem comum, mas o próprio rei da Pérsia acharia fácil enumerar tal noite entre as outras noites e dias. Logo, se a morte é isso, digo que é uma vantagem, porque, assim sendo, toda a duração do tempo se apresenta como nada mais que uma noite. Se, do outro lado, a morte é como a mudança daqui para outro lugar e está certa a tradição de que lá estão todos os mortos, que maior bem haveria que esse, senhores juízes? Se, ao chegar ao Hades, livre dessas pessoas que se intitulam juízes, a gente vai encontrar os verdadeiros juízes que, segundo consta, lá distribuem a justiça, Minos,¹ Radamanto, Éaco, Triptólemo e outros semideuses que foram justiceiros em vida, não valeria a pena a viagem? Quanto não daria qualquer de vós para estar na companhia de Orfeu,² Museu, Hesíodo e Homero? Por mm, estou pronto a morrer muitas vezes, se isso é verdade; eu de modo especial acharia lá um entretenimento maravilhoso, quando encontrasse Palamedes, Ajax de Telamon e outros dos antigos, que tenham morrido por um sentença iníqua; não me seria desagradável comparar com os deles os meus sofrimentos e, o que é mais, passar o tempo examinando e interrogando os de lá como aos de cá, a ver quem deles é sábio e quem, não o sendo, cuida que é. Quanto não se daria, senhores juízes, para sujeitar a exame aquele que 52 comandou a imensa expedição contra Tróia, ou Ulisses, ou Sísifo? Milhares de outros se poderiam nomear, homens e mulheres, com quem seria uma felicidade indizível estar junto, conversando com eles, sujeitando-os a exame! Os de lá absolutamente não matam por uma razão dessas! Os de lá são mais felizes que os de cá, entre outros motivos, por serem imortais pelo resto do tempo, se a tradição está certa. Vós também, senhores juízes, deveis bem esperar da morte e considerar particularmente esta verdade: não há, para o homem bom, mal algum, quer na vida, quer na morte, e os deuses não descuidam de seu destino. O meu não é conseqüência do acaso; vejo claramente que era melhor para mim morrer agora e ficar livre de fadigas. Por isso é que a advertência nada me impediu. Não me insurjo absolutamente contra os que votaram contra mm ou me acusaram. Verdade é que não me acusaram e condenaram com esse modo de pensar, mas na suposição de que me causavam dano: nisso merecem censura. No entanto, só tenho um pedido a lhes fazer: quando meus filhos crescerem, castigai-os, atormentai-os com os mesmíssimos tormentos que eu vos infligi, se achardes que eles estejam cuidando mais da riqueza ou de outra coisa que da virtude; se estiverem supondo ter um valor que não tenham, repreendei-os, como vos fiz eu, por não cuidarem do que devem e por suporem méritos, sem ter nenhum. Se vós assim agirdes, eu terei recebido de vós justiça; eu, e meus filhos também. Bem, é chegada a hora de partirmos, eu para a morte, vós para a vida. Quem segue melhor destino, se eu, se vós, é segredo para todos, exceto para a divindade. ¹ Rei lendário de Creta, filho de Europa e de Zeus, marido de Pasífae, sábio legislador, juiz dos Infernos com Éaco e Triptólemo. ² Célebre aedo da era pré-homérica, cantava e tocava a lira com tal perfeição que até as feras se aquietavam e vinham deitar-se a seus pés. Atribuía-se-lhe a invenção da lira e dos rituais mágicos e divinatórios, origem de seitas místicas, a que se deu o nome de orfismo. Platão A Vida e as Obras Diversamente de Sócrates , que era filho do povo, Platão nasceu em Atenas, em 428 ou 427 a.C., de pais aristocráticos e abastados, de antiga e nobre prosápia. Temperamento artístico e dialético - manifestação característica e suma do gênio grego - deu, na mocidade, livre curso ao seu talento poético, que o acompanhou durante a vida toda, manifestando-se na expressão estética de seus escritos; entretanto isto prejudicou sem dúvida a precisão e a ordem do seu pensamento, tanto assim que várias partes de suas obras não têm verdadeira importância e valor filosófico. Aos vinte anos, Platão travou relação com Sócrates - mais velho do que ele quarenta anos - e gozou por oito anos do ensinamento e da amizade do mestre. Quando discípulo de Sócrates e ainda depois, Platão estudou também os maiores pré-socráticos. Depois da morte do mestre, Platão retirou-se com outros socráticos para junto de Euclides, em Mégara. Daí deu início a suas viagens, e fez um vasto giro pelo mundo para se instruir (390-388). Visitou o Egito, de que admirou a veneranda antigüidade e estabilidade política; a Itália meridional, onde teve ocasião de travar relações com os pitagóricos (tal contato será fecundo para o desenvolvimento do seu pensamento); a Sicília, onde conheceu Dionísio o Antigo, tirano de Siracusa e travou amizade profunda com Dion, cunhado daquele. Caído, porém, na desgraça do tirano pela sua fraqueza, foi vendido como escravo. Libertado graças a um amigo, voltou a Atenas. Em Atenas, pelo ano de 387, Platão fundava a sua célebre escola, que, dos jardins de Academo, onde surgiu, tomou o nome famoso de Academia. Adquiriu, perto de Colona, povoado da Ática, uma herdade, onde levantou um templo às Musas, que se tornou propriedade coletiva da escola e foi por ela conservada durante quase um milênio, até o tempo do imperador Justiniano (529 d.C.). Platão, ao contrário de Sócrates, interessou-se vivamente pela política e pela filosofia política. Foi assim que o filósofo, após a morte de Dionísio o Antigo, voltou duas vezes - em 366 e em 361 - à Dion, esperando poder experimentar o seu ideal político e realizar a sua política utopista. Estas duas viagens políticas a Siracusa, porém, não tiveram melhor êxito do que a precedente: a primeira viagem terminou 55 sua efetiva realidade. E, em geral, o mundo ideal é provado pela necessidade de justificar os valores, o dever ser, de que este nosso mundo imperfeito participa e a que aspira. Visto serem as idéias conceitos personalizados, transferidos da ordem lógica à ontológica, terão consequentemente as características dos próprios conceitos: transcenderão a experiência, serão universais, imutáveis. Além disso, as idéias terão aquela mesma ordem lógica dos conceitos, que se obtém mediante a divisão e a classificação, isto é, são ordenadas em sistema hierárquico, estando no vértice a idéia do Bem, que é papel da dialética (lógica real, ontológica) esclarecer. Como a multiplicidade dos indivíduos é unificada nas idéias respectivas, assim a multiplicidade das idéias é unificada na idéia do Bem. Logo, a idéia do Bem, no sistema platônico, é a realidade suprema, donde dependem todas as demais idéias, e todos os valores (éticos, lógicos e estéticos) que se manifestam no mundo sensível; é o ser sem o qual não se explica o vir-a-ser. Portanto, deveria representar o verdadeiro Deus platônico. No entanto, para ser verdadeiramente tal, falta-lhe a personalidade e a atividade criadora. Desta personalidade e atividade criadora - ou, melhor, ordenadora - é, pelo contrário, dotado o Demiurgo o qual, embora superior à matéria, é inferior às idéias, de cujo modelo se serve para ordenar a matéria e transformar o caos em cosmos. As Almas A alma, assim como o Demiurgo, desempenha papel de mediador entre as idéias e a matéria, à qual comunica o movimento e a vida, a ordem e a harmonia, em dependência de uma ação do Demiurgo sobre a alma. Assim, deveria ser, tanto no homem como nos outros seres, porquanto Platão é um pampsiquista, quer dizer, anima toda a realidade. Ele, todavia, dá à alma humana um lugar e um tratamento à parte, de superioridade, em vista dos seus impelentes interesses morais e ascéticos, religiosos e místicos. Assim é que considera ele a alma humana como um ser eterno (coeterno às idéias, ao Demiurgo e à matéria), de natureza espiritual, inteligível, caído no mundo material como que por uma espécie de queda original, de um mal radical. Deve portanto, a alma humana, libertar-se do corpo, como de um cárcere; esta libertação, durante a vida terrena, começa e progride mediante a filosofia, que é separação espiritual da alma do corpo, e se realiza com a morte, separando-se, então, na realidade, a alma do corpo. A faculdade principal, essencial da alma é a de conhecer o mundo ideal, transcendental: contemplação em que se realiza a natureza humana, e da qual depende totalmente a ação moral. Entretanto, sendo que a alma racional é, de fato, unida a um corpo, dotado de atividade sensitiva e vegetativa, deve existir um princípio de uma e outra. Segundo Platão, tais funções seriam desempenhadas por outras duas almas - ou partes da alma: a irascível (ímpeto), que residiria no peito, e a concupiscível (apetite), que residiria no abdome - assim como a alma racional residiria na cabeça. Naturalmente a alma sensitiva e a vegetativa são subordinadas à alma racional. Logo, segundo Platão, a união da alma espiritual com o corpo é extrínseca, até violenta. A alma não encontra no corpo o seu complemento, o seu instrumento adequado. Mas a alma está no corpo como num cárcere, o intelecto é impedido pelo sentido da visão das idéias, que devem ser trabalhosamente relembradas. E diga-se o mesmo da vontade a respeito das tendências. E, apenas mediante uma disciplina ascética do corpo, que o mortifica inteiramente, e mediante a morte libertadora, que desvencilha para sempre a alma do corpo, o homem realiza a sua verdadeira natureza: a contemplação intuitiva do mundo ideal. O Mundo O mundo material, o cosmos platônico, resulta da síntese de dois princípios opostos, as idéias e a matéria. O Demiurgo plasma o caos da matéria no modelo das idéias eternas, introduzindo no caos a alma, princípio de movimento e de ordem. O mundo, pois, está entre o ser (idéia) e o não-ser (matéria), e é o devir ordenado, como o adequado conhecimento sensível está entre o saber e o não-saber, e é a opinião verdadeira. Conforme a cosmologia pampsiquista platônica, haveria, antes de tudo, uma alma do 56 mundo e, depois, partes da alma, dependentes e inferiores, a saber, as almas dos astros, dos homens, etc. O dualismo dos elementos constitutivos do mundo material resulta do ser e do não-ser, da ordem e da desordem, do bem e do mal, que aparecem no mundo. Da idéia - ser, verdade, bondade, beleza - depende tudo quanto há de positivo, de racional no vir-a-ser da experiência. Da matéria - indeterminada, informe, mutável, irracional, passiva, espacial - depende, ao contrário, tudo que há de negativo na experiência. Consoante a astronomia platônica, o mundo, o universo sensível, são esféricos. A terra está no centro, em forma de esfera e, ao redor, os astros, as estrelas e os planetas, cravados em esferas ou anéis rodantes, transparentes, explicando-se deste modo o movimento circular deles. No seu conjunto, o mundo físico percorre uma grande evolução, um ciclo de dez mil anos, não no sentido do progresso, mas no da decadência, terminados os quais, chegado o grande ano do mundo, tudo recomeça de novo. É a clássica concepção grega do eterno retorno, conexa ao clássico dualismo grego, que domina também a grande concepção platônica. Moral Segundo a psicologia platônica, a natureza do homem é racional, e, por conseqüência, na razão realiza o homem a sua humanidade: a ação racional realiza o sumo bem, que é, ao mesmo tempo, felicidade e virtude. Entretanto, esta natureza racional do homem encontra no corpo não um instrumento, mas um obstáculo - que Platão explica mediante um dualismo filosófico-religioso de alma e de corpo: o intelecto encontra um obstáculo nos sentidos, a vontade no impulso, e assim por diante. Então a realização da natureza humana não consiste em uma disciplina racional da sensibilidade, mas na sua final supressão, na separação da alma do corpo, na morte. Agir moralmente é agir racionalmente, e agir racionalmente é filosofar, e filosofar é suprimir o sensível, morrer aos sentidos, ao corpo, ao mundo, para o espírito, o inteligível, a idéia. Em todo caso, visto que a alma humana racional se acha, de fato, neste mundo, unida ao corpo e aos sentidos, deve principiar a sua vida moral sujeitando o corpo ao espírito, para impedir que o primeiro seja obstáculo ao segundo, à espera de que a morte solte definitivamente a alma dos laços corpóreos. Noutras palavras, para que se realize a sabedoria, a contemplação, a filosofia, a virtude suma, a única virtude verdadeiramente humana e racional, é necessário que a alma racional domine, antes de tudo, a alma concupiscível, derivando daí a virtude da temperança, e domine também a alma irascível, donde a virtude da fortaleza. Tal harmônica distribuição de atividade na alma conforme a razão constituiria, pois, a justiça, virtude fundamental, segundo Platão, juntamente com a sapiência, embora a esta naturalmente inferior. Temos, destarte, uma classificação, uma dedução das famosas quatro virtudes naturais, chamadas depois cardeais - prudência, fortaleza, temperança, justiça - sobre a base da metafísica platônica da alma. Quanto ao destino das almas depois da morte, eis o pensamento de Platão: em geral, o destino da alma depende da sua filosofia, da razão; em especial, depende da religião, dos mistérios órfico-dionisíacos. Em geral, distingue ele três categorias de alma: 1. As que cometeram pecados inexpiáveis, condenadas eternamente; 2. As que cometeram pecados expiáveis; 3. As que viveram conforme à justiça. As almas destas últimas duas categorias nascem de novo, encarnam-se de novo, para receber a pena ou o prêmio merecidos. Segundo o pensamento que lemos no Fédon, seria mister acrescentar uma quarta categoria de almas, as dos filósofos, videntes de idéias, libertados da vida temporal para sempre. A Política Os escritos em que Platão trata especificamente do problema da política, são a República, o Político e as Leis. Na República, a obra fundamental de Platão sobre o assunto, traça o seu estado ideal, o reino do espírito, da razão, dos filósofos, em chocante contraste com os estados e a política deste mundo. 57 Qual é, pois, a justificação da sociedade e do estado? Platão acha-a na própria natureza humana, porquanto cada homem precisa do auxílio material e moral dos outros. Desta variedade de necessidades humanas origina-se a divisão do trabalho e, por conseqüência, a distinção em classes, em castas, que representam um desenvolvimento social e uma sistematização estável da divisão do trabalho no âmbito de um estado. A essência do estado seria então, não uma sociedade de indivíduos semelhantes e iguais, mas dessemelhantes e desiguais. Tal especificação e concretização da divisão do trabalho seria representada pela instituição da escravidão; tal instituição, consoante Platão, é necessária porquanto os trabalhos materiais, servis, são incompatíveis com a condição de um homem livre em geral. Segundo Platão, o estado ideal deveria ser dividido em classes sociais. Três são, pois, estas classes: a dos filósofos, a dos guerreiros, a dos produtores, as quais, no organismo do estado, corresponderiam respectivamente às almas racional, irascível e concupiscível no organismo humano. À classe dos filósofos cabe dirigir a república. Com efeito, contemplam eles o mundo das idéias, conhecem a realidade das coisas, a ordem ideal do mundo e, por conseguinte, a ordem da sociedade humana, e estão, portanto, à altura de orientar racionalmente o homem e a sociedade para o fim verdadeiro. Tal atividade política constitui um dever para o filósofo, não, porém, o fim supremo, pois este fim supremo é unicamente a contemplação das idéias. À classe dos guerreiros cabe a defesa interna e externa do estado, de conformidade com a ordem estabelecida pelos filósofos, dos quais e juntamente com os quais, os guerreiros receberam a educação. Os guerreiros representam a força a serviço do direito, representado pelos filósofos. À classe dos produtores, enfim, - agricultores e artesãos - submetida às duas precedentes, cabe a conservação econômica do estado, e, consequentemente, também das outras duas classes, inteiramente entregues à conservação moral e física do estado. Na hierarquia das classes, a dos trabalhadores ocupa o ínfimo lugar, pelo desprezo com que era considerado por Platão - e pelos gregos em geral - o trabalho material. Na concepção ideal, espiritual, ética, ascética do estado platônico, pode causar impressão, à primeira vista, o comunismo dos bens, das mulheres e dos filhos, que Platão propugna para as classes superiores. Entretanto, Platão foi levado a esta concepção política - tornada depois sinônimo de imanentismo, materialismo, ateísmo - não certamente por estes motivos, mas pela grande importância e função moral por ele atribuída ao estado, como veículo dos valores transcendentais da Idéia. Tinha ele compreendido bem que os interesses particulares, privados, econômicos e, especialmente, domésticos, estão efetivamente em contraste com os interesses coletivos, sociais, estatais, sendo estes naturalmente superiores àqueles - eticamente considerados. E não hesita em sacrificar totalmente os interesses inferiores aos superiores, a riqueza, a família, o indivíduo ao estado, porquanto representa precisamente - consoante seu pensamento - um altíssimo valor moral terreno, político-religioso, como única e total expressão da eticidade transcendente. Se a natureza do estado é, essencialmente, a de organismo ético-transcendente, a sua finalidade primordial é pedagógico-espiritual; a educação deve, por isso, estar substancialmente nas mãos do estado. O estado deve, então, promover, antes de tudo, o bem espiritual dos cidadãos, educá-los para a virtude, e ocupar-se com o seu bem estar material apenas secundária e instrumentalmente. Platão tende a desvalorizar a grandeza militar e comercial, a dominação e a riqueza, idolatrando a grandeza moral. O grande, o verdadeiro político não é - diz Platão - o homem prático e empírico, mas o sábio, o pensador; não realiza tanto as obras exteriores, mas, sobretudo, se preocupa com espiritualizar os homens. Desta maneira é concebido o estado educador de homens virtuosos, segundo as virtudes que se referem a cada classe, respectivamente. Esta educação é dispensada essencialmente às classes superiores - especialmente aos filósofos, a quem cabem as virtudes mais elevadas, e, portanto, a direção da república. Ao contrário, o estado em nada se interessa - ao menos positivamente - pelo povo, pelo vulgo, pela plebe, cuja formação é inteiramente material e subordinada, consistindo sua virtude apenas na obediência, visto a alma concupiscível estar sujeita à alma racional. A educação das classes superiores importa, fundamentalmente, música e ginástica. A música - abrangendo também a poesia, a história, etc., e, em geral, todas as atividades presididas pelas Musas - é, todavia, cultivada apenas para fins práticos e morais. Deveria ela equilibrar, com a sua natureza gentil e civilizadora, a ação oposta, fortificadora, da ginástica. Platão reconhece a importância da ginástica, mas 60 E isto é significativo e simbólico. A verdade e a justiça (das quais Sócrates será o símbolo) não possuem bom aspecto, pertencem a um mundo que não o das aparências. Na Atenas vencida, o jovem Platão é convocado por parentes e amigos a participar do governo autoritário dos Trinta; ele se retrai, porém, e constata que os Trinta acumulam injustiças e violências. Devemos agora, portanto, caracterizar os grandes traços da filosofia de Sócrates: 1. Sócrates não pretende, como Empédocles ou Heráclito, elaborar uma cosmologia; segundo ele, deve- se deixar aos deuses o cuidado de se ocupar com o universo; devemos nos interessar, de preferência, por aquilo que nos concerne diretamente. "Conhece-te a ti mesmo". Esta máxima gravada no frontão do templo de Delfos, é a palavra-chave do humanismo socrático. 2. Sócrates, todavia, não pretende ensinar coisa alguma sobre a natureza humana; não quer nos comunicar um saber que não possuiríamos. Ajuda-nos tão somente a refletir, isto é, a tomar consciência dos nossos próprios pensamentos, dos problemas que eles colocam. Muitas vezes, ele se comparava à sua mãe, que era parteira. Nada ensinava e limitava-se a partejar os espíritos, ajudá-los a trazer à luz o que já trazem em si mesmos. Tal é a maiêutica socrática. 3. Ao mesmo tempo que convida o interlocutor a tomar consciência de seu próprio pensamento, Sócrates fá-lo compreender que, na verdade, ignora o que acreditava saber. Tal é a ironia, que, ao pé da letra, significa a arte de interrogar. Sócrates, de fato, faz perguntas e sempre dá a impressão de buscar uma lição no interlocutor. Aborda com humildade fingida os sofistas inflados de falso-saber. E as perguntas feitas por Sócrates levam o interlocutor a descobrir as contradições de seus pensamentos e a profundidade de sua ignorância. 4. Na realidade, se Sócrates é o primeiro a reconhecer sua própria ignorância, ele funda todas as suas esperanças na verdade tão somente. Seu método é, antes de tudo, um esforço de definição. Por exemplo: partindo dos aspectos os mais diversos da justiça, ele procura depreender o conceito de justiça, a idéia geral que contém os caracteres constitutivos da justiça. Sócrates possui tal confiança no saber e na verdade que está firmemente persuadido que os injustos e os maus não passam de ignorantes. Se conhecessem verdadeiramente a justiça, eles a praticariam, pois ninguém é "maus voluntariamente". Segundo sua perspectiva racionalista, só há salvação pelo saber. O verdadeiro ponto de partida da filosofia de Platão é a morte de Sócrates em 399 a.C. Acontecimento político: é o partido popular, de novo no poder, que, por iniciativa de um certo Anytos (filho de um rico empreiteiro e antigo amigo dos Trinta, aos quais traiu para assumir a liderança do outro partido), condena Sócrates a beber a cicuta como corruptor da juventude e adversário dos deuses da cidade. Condenação injusta e escandalosa que exprime uma incompatibilidade trágica entre o poder político e a sabedoria do filósofo. Daí as resoluções que Platão nos apresenta na sétima carta. "Reconheço que todos os Estados atuais, sem exceção, são mal governados...É somente pela filosofia que se pode discernir todas as formas de justiça política e individual". Talvez a solução seja a evasão do filósofo que "foge daqui debaixo" para se refugiar na meditação pura (tal é o filósofo cujo retrato nos é traçado no Teeteto; filósofo puramente contemplativo que nem sabe onde se reúne o Conselho e cujo corpo está apenas presente na Cidade). Mas uma outra solução seria o próprio filósofo encarregar-se do governo da cidade (a Justiça reinará, diz Platão, no dia em que os filósofos forem reis ou no dia em que os reis forem filósofos). Tal é o sonho que Platão tentaria realizar em Siracusa. Encontrara aí um discípulo estusiasta na pessoa de Dion, cunhado do novo tirano, Dionísio I. Este último, todavia, não se revelou muito adequado para se tornar o rei filósofo que Platão quisera fazer dele. Dionísio I prendeu Platão e, na ilha de Egina, fê-lo expor no mercado de escravos para ser vendido. Resgatado por Anikeris de Cítera por vinte minas, Platão retornou a Atenas. É então que ele funda, aos quarenta anos, uma escola de filosofia à portas da cidade, perto de Colona, nos jardins de Academos. Devemos representar a Academia como uma espécie de Universidade onde se ensina matemáticas (não entra aqui quem não for geômetra), filosofia e a arte de governar as cidades segundo a justiça. O ensino esotérico (isto é, secreto, reservado aos iniciados) dado por Platão a seus discípulos só nos é conhecido atualmente pelas críticas de Aristóteles; restam-nos, porém, a obra escrita de Platão, seus diálogos célebres tais como o Gógias, o Fedro, o Fédon, o Banquete, a República, o Teeteto, o Sofista, o Político, o Parmênides, o Timeu, as Leis. Esses trabalhos esotéricos de Platão constituem a mais pura jóia da filosofia de todos os tempos. Platão morre em 348 a.C. 61 Se quiséssemos resumir a filosofia de Platão em uma palavra, poderíamos dizer que ela é fundamentalmente um dualismo. Platão, de certo modo, reconcilia Parmênides e Heráclito ao admitir a existência de dois mundos: o mundo das idéias imutáveis, eternas, e o mundo das aparências sensíveis, perpetuamente mutáveis. Acrescenta-se que o mundo das Idéias é, no fundo, o único mundo verdadeiro. Platão concede ao mundo sensível uma certa realidade, mas ele só existe porque participa do mundo das idéias do qual é uma cópia ou, mais exatamente, uma sombra. Um belo efebo, por exemplo, só é belo porque participa da Beleza em si. Podemos mostrar de duas maneiras que a intuição fundamental de Platão se prende ao ensinamento de Sócrates: a) Recordemos o ensinamento socrático sobre a definição, sobre o conceito; para que haja, por exemplo, como Sócrates o estabeleceu, uma definição do homem em geral, uma essência universal do homem, é preciso que exista algo além dos homens particulares e diferentes entre si que nós reconhecemos, um outro mundo onde exista o Homem em si, a Justiça em si, isto é, as Idéias. Em suma, Platão dá realidade ao conceito socrático. A idéia platônica é uma promoção ontológica do conceito socrático. b) Mas é sobretudo a vida e a morte de Sócrates que suscitam o idealismo platônico. Como diz muito bem André Bonnard, a cidade que condena Sócrates à morte, a cidade que vê triunfar a injustiça e a mentira é "um mundo ao inverso, um mundo de pernas para o ar". Desse modo, o idealismo platônico "traz a marca de um grave traumatismo. A morte de Sócrates feriu-o mortalmente. É no mundo invisível que a justiça e a verdade triunfam". E Sócrates, pela tranqüilidade quase contente de sua morte, atesta a existência desse mundo invisível, mostra que, para ele, as Idéias contam mais que a vida. Os temas principais do platonismo podem ligar-se à distinção entre o mundo das Idéias eternas e o mundo das aparências mutáveis. A ascensão dialética, por exemplo, é o itinerário pelo qual nos levamos do mundo sensível ao mundo das Idéias: no mais baixo grau, as simples impressões sensíveis (eikasia), um pouco mais acima, as opiniões estabelecidas (pistis), em seguida, o pensamento discursivo (dianoia) que constrói o raciocínio partindo de figuras, como fazem os geômetras, e, finalmente, no mais alto grau, o pensamento intuitivo, a iluminação direta pela Idéia (noesis). A teoria platônica da alma está ligada à doutrina das Idéias. As almas outrora contemplaram às Idéias à vontade. Depois, por punição de alguma falta, segundo a doutrina órfico-pitagórica, elas foram aprisionadas no corpo. Todavia, elas continuam capazes de reminiscência, uma vez que guardaram uma lembrança obscura - que, no entanto, pode ser redespertada - de seu antigo contato com as Idéias. Assim, o jovem escravo que Sócrates interroga no Mênon descobre propriedades geométricas quase sem ajuda. Platão pensa igualmente que a emoção amorosa, a emoção que rebata a alma diante da Beleza - de todas as idéias a mais fácil de reconhecer - é o meio de uma conversão dialética: o amor por um belo corpo, em seguida pelos belos corpos, depois pelas belas almas e pelas belas virtudes conduz à redescoberta do Belo em si (leia-se o Banquete). À doutrina das Idéias também se correlaciona a esperança da imortalidade da alma, "esse belo risco a ser corrido". Uma vez que a alma é feita para as Idéias - visto que sua união com o corpo é acidental e monstruosa - por que não seria eterna como as Idéias que ela tem por vocação contemplar? Do mesmo modo, uma vez que as Idéias constituem absolutos referenciais - não o homem, mas Deus é que é a medida de todas as coisas, objeta Platão a Protágoras - é preciso renunciar do oportunismo e à imoralidade dos sofistas. Platão sustenta contra Cálicles (no Górgias), contra Trasímaco e Gláucon (na República) o valor absoluto da Idéia de justiça. A justiça é a hierarquia harmônica das três partes da alma - a sensibilidade, a vontade e o espírito. Ela também se encontra em cada uma das virtudes particulares: a temperança nada mais é que uma sensibilidade regulamentada segundo a justiça; a coragem é a justiça da vontade e a sabedoria é a justiça do espírito. A justiça política é uma harmonia semelhante à justiça do indivíduo, mas "escritas em caracteres mais fortes" na escala do Estado... A política de Platão distingue, à imagem de todas as sociedades indo- européias primitivas, três classes sociais: os artesãos dos quais a Justiça exige a temperança, os militares nos quais a Justiça será coragem, os chefes cuja Justiça é, antes de tudo, Sabedoria e que são filósofos longamente instruídos. Entre todas as formas de governo, Platão prefere a aristocracia e, nele, é preciso tomar a palavra em seu sentido etimológico: governo dos melhores. Finalmente, podemos ligar à distinção dos dois mundos algumas observações sobre o mito platônico: 62 a) O mito, procedimento pedagógico paradoxal, traduz uma espécie de narração poética legendária, isto é, numa linguagem de imagens uma verdade filosófica estranha ao mundo sensível! É o mundo das Idéias eternas transposto em imagens sensíveis, sugerido pelo mundo das imagens! b) O mito é o único meio de exposição para os problemas de origem (acontecimentos sem testemunhos) e dos fins últimos (que ainda não existem!), pois a inteligência abstrata só compreende o eterno e não pode bastar para evocar o que pertence à história. c) O mito indica que o pensamento filosófico vem se abeberar nas fontes das crenças religiosas tradicionais. d) Finalmente, o mito ressalta as relações que, segundo Platão, existem entre a poesia e a verdade. A poesia mítica é uma mensagem metafísica, o belo não é senão o "esplendor do verdadeiro" e a arte está em segundo lugar em relação à filosofia. Aristóteles A Vida e as Obras Este grande filósofo grego, filho de Nicômaco, médico de Amintas, rei da Macedônia, nasceu em Estagira, colônia grega da Trácia, no litoral setentrional do mar Egeu, em 384 a.C. Aos dezoito anos, em 367, foi para Atenas e ingressou na academia platônica, onde ficou por vinte anos, até à morte do Mestre. Nesse período estudou também os filósofos pré-platônicos, que lhe foram úteis na construção do seu grande sistema. Em 343 foi convidado pelo Rei Filipe para a corte de Macedônia, como preceptor do Príncipe Alexandre, então jovem de treze anos. Aí ficou três anos, até à famosa expedição asiática, conseguindo um êxito na sua missão educativo-política, que Platão não conseguiu, por certo, em Siracusa. De volta a Atenas, em 335, treze anos depois da morte de Platão, Aristóteles fundava, perto do templo de Apolo Lício, a sua escola. Daí o nome de Liceu dado à sua escola, também chamada peripatética devido ao costume de dar lições, em amena palestra, passeando nos umbrosos caminhos do ginásio de Apolo. Esta escola seria a grande rival e a verdadeira herdeira da velha e gloriosa academia platônica. Morto Alexandre em 323, desfez-se politicamente o seu grande império e despertaram-se em Atenas os desejos de independência, estourando uma reação nacional, chefiada por Demóstenes. Aristóteles, malvisto pelos atenienses, foi acusado de ateísmo. Preveniu ele a condenação, retirando-se voluntariamente para Eubéia, Aristóteles faleceu, após enfermidade, no ano seguinte, no verão de 322. Tinha pouco mais de 60 anos de idade. A respeito do caráter de Aristóteles, inteiramente recolhido na elaboração crítica do seu sistema filosófico, sem se deixar distrair por motivos práticos ou sentimentais, temos naturalmente muito menos a revelar do que em torno do caráter de Platão, em que, ao contrário, os motivos políticos, éticos, estéticos e místicos tiveram grande influência. Do diferente caráter dos dois filósofos, dependem também as vicissitudes exteriores das duas vidas, mais uniforme e linear a de Aristóteles, variada e romanesca a de Platão. Aristóteles foi essencialmente um homem de cultura, de estudo, de pesquisas, de pensamento, que se foi isolando da vida prática, social e política, para se dedicar à investigação científica. A atividade literária de Aristóteles foi vasta e intensa, como a sua cultura e seu gênio universal. "Assimilou Aristóteles escreve magistralmente Leonel Franca todos os conhecimentos anteriores e acrescentou-lhes o trabalho próprio, fruto de muita observação e de profundas meditações. Escreveu sobre todas as ciências, constituindo algumas desde os primeiros fundamentos, organizando outras em corpo coerente de doutrinas e sobre todas espalhando as luzes de sua admirável inteligência. Não lhe faltou nenhum dos dotes e requisitos que constituem o verdadeiro filósofo: profundidade e firmeza de inteligência, agudeza de penetração, vigor de raciocínio, poder admirável de síntese, faculdade de criação e invenção aliados a uma vasta erudição histórica e universalidade de conhecimentos científicos. O grande estagirita explorou o mundo do pensamento em todas as suas direções. Pelo elenco dos principais escritos que dele ainda nos restam, poder-se-á avaliar a sua prodigiosa atividade literária". A primeira edição completa das obras de Aristóteles é a de Andronico de Rodes pela metade do último século a.C. substancialmente autêntica, salvo uns apócrifos e umas interpolações. Aqui classificamos as obras doutrinais de Aristóteles do modo seguinte, tendo presente a edição de Andronico de Rodes. 65 unicamente pensamento, atividade teorética, no dizer de Aristóteles, enquanto qualquer outra atividade teria fim extrínseco, incompatível com o ser perfeito, auto-suficiente. Se o agir, o querer têm objeto diverso do sujeito agente e "querente", Deus não pode agir e querer, mas unicamente conhecer e pensar, conhecer a si próprio e pensar em si mesmo. Deus é, portanto, pensamento de pensamento, pensamento de si, que é pensamento puro. E nesta autocontemplação imutável e ativa, está a beatitude divina. Se Deus é mera atividade teorética, tendo como objeto unicamente a própria perfeição, não conhece o mundo imperfeito, e menos ainda opera sobre ele. Deus não atua sobre o mundo, voltando-se para ele, com o pensamento e a vontade; mas unicamente como o fim último, atraente, isto é, como causa final, e, por conseqüência, e só assim, como causa eficiente e formal (exemplar). De Deus depende a ordem, a vida, a racionalidade do mundo; ele, porém, não é criador, nem providência do mundo. Em Aristóteles o pensamento grego conquista logicamente a transcendência de Deus; mas, no mesmo tempo, permanece o dualismo, que vem anular aquele mesmo Absoluto a que logicamente chegara, para dar uma explicação filosófica da relatividade do mundo pondo ao seu lado esta realidade independente dele. A Moral Aristóteles trata da moral em três Éticas, de que se falou quando das obras dele. Consoante sua doutrina metafísica fundamental, todo ser tende necessariamente à realização da sua natureza, à atualização plena da sua forma: e nisto está o seu fim, o seu bem, a sua felicidade, e, por conseqüência, a sua lei. Visto ser a razão a essência característica do homem, realiza ele a sua natureza vivendo racionalmente e senso disto consciente. E assim consegue ele a felicidade e a virtude, isto é, consegue a felicidade mediante a virtude, que é precisamente uma atividade conforme à razão, isto é, uma atividade que pressupõe o conhecimento racional. Logo, o fim do homem é a felicidade, a que é necessária à virtude, e a esta é necessária a razão. A característica fundamental da moral aristotélica é, portanto, o racionalismo, visto ser a virtude ação consciente segundo a razão, que exige o conhecimento absoluto, metafísico, da natureza e do universo, natureza segundo a qual e na qual o homem deve operar. As virtudes éticas, morais, não são mera atividade racional, como as virtudes intelectuais, teoréticas; mas implicam, por natureza, um elemento sentimental, afetivo, passional, que deve ser governado pela razão, e não pode, todavia, ser completamente resolvido na razão. A razão aristotélica governa, domina as paixões, não as aniquila e destrói, como queria o ascetismo platônico. A virtude ética não é, pois, razão pura, mas uma aplicação da razão; não é unicamente ciência, mas uma ação com ciência. Uma doutrina aristotélica a respeito da virtude doutrina que teve muita doutrina prática, popular, embora se apresente especulativamente assaz discutível é aquela pela qual a virtude é precisamente concebida como um justo meio entre dois extremos, isto é, entre duas paixões opostas: porquanto o sentido poderia esmagar a razão ou não lhe dar forças suficientes. Naturalmente, este justo meio, na ação de um homem, não é abstrato, igual para todos e sempre; mas concreto, relativo a cada qual, e variável conforme as circunstâncias, as diversas paixões predominantes dos vários indivíduos. Pelo que diz respeito à virtude, tem, ao contrário, certamente, maior valor uma outra doutrina aristotélica: precisamente a da virtude concebida como hábito racional. Se a virtude é, fundamentalmente, uma atividade segundo a razão, mais precisamente é ela um hábito segundo a razão, um costume moral, uma disposição constante, reta, da vontade, isto é, a virtude não é inata, como não é inata a ciência; mas adquiri-se mediante a ação, a prática, o exercício e, uma vez adquirida, estabiliza-se, mecaniza-se; torna-se quase uma segunda natureza e, logo, torna-se de fácil execução - como o vício. Como já foi mencionado, Aristóteles distingue duas categorias fundamentais de virtudes: as éticas, que constituem propriamente o objeto da moral, e as dianoéticas, que a transcendem. É uma distinção e uma hierarquia, que têm uma importância essencial em relação a toda a filosofia e especialmente à moral. As virtudes intelectuais, teoréticas, contemplativas, são superiores às virtudes éticas, práticas, ativas. Noutras palavras, Aristóteles sustenta o primado do conhecimento, do intelecto, da filosofia, sobre a ação, a vontade, a política. 66 A Política A política aristotélica é essencialmente unida à moral, porque o fim último do estado é a virtude, isto é, a formação moral dos cidadãos e o conjunto dos meios necessários para isso. O estado é um organismo moral, condição e complemento da atividade moral individual, e fundamento primeiro da suprema atividade contemplativa. A política, contudo, é distinta da moral, porquanto esta tem como objetivo o indivíduo, aquela a coletividade. A ética é a doutrina moral individual, a política é a doutrina moral social. Desta ciência trata Aristóteles precisamente na Política, de que acima se falou. O estado, então, é superior ao indivíduo, porquanto a coletividade é superior ao indivíduo, o bem comum superior ao bem particular. Unicamente no estado efetua-se a satisfação de todas as necessidades, pois o homem, sendo naturalmente animal social, político, não pode realizar a sua perfeição sem a sociedade do estado. Visto que o estado se compõe de uma comunidade de famílias, assim como estas se compõem de muitos indivíduos, antes de tratar propriamente do estado será mister falar da família, que precede cronologicamente o estado, como as partes precedem o todo. Segundo Aristóteles, a família compõe-se de quatro elementos: os filhos, a mulher, os bens, os escravos; além, naturalmente, do chefe a que pertence a direção da família. Deve ele guiar os filhos e as mulheres, em razão da imperfeição destes. Deve fazer frutificar seus bens, porquanto a família, além de um fim educativo, tem também um fim econômico. E, como ao estado, é-lhe essencial a propriedade, pois os homens têm necessidades materiais. No entanto, para que a propriedade seja produtora, são necessários instrumentos inanimados e animados; estes últimos seriam os escravos. Aristóteles não nega a natureza humana ao escravo; mas constata que na sociedade são necessários também os trabalhos materiais, que exigem indivíduos particulares, a que fica assim tirada fatalmente a possibilidade de providenciar a cultura da alma, visto ser necessário, para tanto, tempo e liberdade, bem como aptas qualidades espirituais, excluídas pelas próprias características qualidades materiais de tais indivíduos. Daí a escravidão. Vejamos, agora, o estado em particular. O estado surge, pelo fato de ser o homem um animal naturalmente social, político. O estado provê, inicialmente, a satisfação daquelas necessidades materiais, negativas e positivas, defesa e segurança, conservação e engrandecimento, de outro modo irrealizáveis. Mas o seu fim essencial é espiritual, isto é, deve promover a virtude e, consequentemente, a felicidade dos súditos mediante a ciência. Compreende-se, então, como seja tarefa essencial do estado a educação, que deve desenvolver harmônica e hierarquicamente todas as faculdades: antes de tudo as espirituais, intelectuais e, subordinadamente, as materiais, físicas. O fim da educação é formar homens mediante as artes liberais, importantíssimas a poesia e a música, e não máquinas, mediante um treinamento profissional. Eis porque Aristóteles, como Platão, condena o estado que, ao invés de se preocupar com uma pacífica educação científica e moral, visa a conquista e a guerra. E critica, dessa forma, a educação militar de Esparta, que faz da guerra a tarefa precípua do estado, e põe a conquista acima da virtude, enquanto a guerra, como o trabalho, são apenas meios para a paz e o lazer sapiente. Não obstante a sua concepção ética do estado, Aristóteles, diversamente de Platão, salva o direito privado, a propriedade particular e a família. O comunismo como resolução total dos indivíduos e dos valores no estado é fantástico e irrealizável. O estado não é uma unidade substancial, e sim uma síntese de indivíduos substancialmente distintos. Se se quiser a unidade absoluta, será mister reduzir o estado à família e a família ao indivíduo; só este último possui aquela unidade substancial que falta aos dois precedentes. Reconhece Aristóteles a divisão platônica das castas, e, precisamente, duas classes reconhece: a dos homens livres, possuidores, isto é, a dos cidadãos e a dos escravos, dos trabalhadores, sem direitos políticos. Quanto à forma exterior do estado, Aristóteles distingue três principais: a monarquia, que é o governo de um só, cujo caráter e valor estão na unidade, e cuja degeneração é a tirania; a aristocracia, que é o governo de poucos, cujo caráter e valor estão na qualidade, e cuja degeneração é a oligarquia; a democracia, que é o governo de muitos, cujo caráter e valor estão na liberdade, e cuja degeneração é a demagogia. As preferências de Aristóteles vão para uma forma de república democrático-intelectual, a 67 forma de governo clássica da Grécia, particularmente de Atenas. No entanto, com o seu profundo realismo, reconhece Aristóteles que a melhor forma de governo não é abstrata, e sim concreta: deve ser relativa, acomodada às situações históricas, às circunstâncias de um determinado povo. De qualquer maneira a condição indispensável para uma boa constituição, é que o fim da atividade estatal deve ser o bem comum e não a vantagem de quem governa despoticamente. A Religião e a Arte Com Aristóteles afirma-se o teísmo do ato puro. No entanto, este Deus, pelo seu efetivo isolamento do mundo, que ele não conhece, não cria, não governa, não está em condições de se tornar objeto de religião, mais do que as transcendentes idéias platônicas. E não fica nenhum outro objeto religioso. Também Aristóteles, como Platão, se exclui filosoficamente o antropomorfismo, não exclui uma espécie de politeísmo, e admite, ao lado do Ato Puro e a ele subordinado, os deuses astrais, isto é, admite que os corpos celestes são animados por espíritos racionais. Entretanto, esses seres divinos não parecem e não podem ter função religiosa e sem física. Não obstante esta concepção filosófica da divindade, Aristóteles admite a religião positiva do povo, até sem correção alguma. Explica e justifica a religião positiva, tradicional, mítica, como obra política para moralizar o povo, e como fruto da tendência humana para as representações antropomórficas; e não diz que ela teria um fundamento racional na verdade filosófica da existência da divindade, a que o homem se teria facilmente elevado através do espetáculo da ordem celeste. Aristóteles como Platão considera a arte como imitação, de conformidade com o fundamental realismo grego. Não, porém, imitação de uma imitação, como é o fenômeno, o sensível, platônicos; e sim imitação direta da própria idéia, do inteligível imanente no sensível, imitação da forma imanente na matéria. Na arte, esse inteligível, universal é encarnado, concretizado num sensível, num particular e, destarte, tornando intuitivo, graças ao artista. Por isso, Aristóteles considera a arte a poesia de Homero que tem por conteúdo o universal, o imutável, ainda que encarnado fantasticamente num particular, como superior à história e mais filosófica do que a história de Heródoto que tem como objeto o particular, o mutável, seja embora real. O objeto da arte não é o que aconteceu uma vez como é o caso da história , mas o que por natureza deve, necessária e universalmente, acontecer. Deste seu conteúdo inteligível, universal, depende a eficácia espiritual pedagógica, purificadora da arte. Se bem que a arte seja imitação da realidade no seu elemento essencial, a forma, o inteligível, este inteligível recebe como que uma nova vida através da fantasia criadora do artista, isto precisamente porque o inteligível, o universal, deve ser encarnado, concretizado pelo artista num sensível, num particular. As leis da obra de arte serão, portanto, além de imitação do universal verossimilhança e necessidade coerência interior dos elementos da representação artística, íntimo sentimento do conteúdo, evidência e vivacidade de expressão. A arte é, pois, produção mediante a imitação; e a diferença entre as várias artes é estabelecida com base no objeto ou no instrumento de tal imitação. A Metafísica A metafísica aristotélica é "a ciência do ser como ser, ou dos princípios e das causas do ser e de seus atributos essenciais". Ela abrange ainda o ser imóvel e incorpóreo, princípio dos movimentos e das formas do mundo, bem como o mundo mutável e material, mas em seus aspectos universais e necessários. Exporemos portanto, antes de tudo, as questões gerais da metafísica, para depois chegarmos àquela que foi chamada, mais tarde, metafísica especial; tem esta como objeto o mundo que vem-a-ser  natureza e homem  e culmina no que não pode vir-a-ser, isto é, Deus. Podem-se reduzir fundamentalmente a quatro as questões gerais da metafísica aristotélica: potência e ato, matéria e forma, particular e universal, movido e motor. A primeira e a última abraçam todo o ser, a segunda e a terceira todo o ser em que está presente a matéria. I. A doutrina da potência e do ato é fundamental na metafísica aristotélica: potência significa possibilidade, capacidade de ser, não-ser atual; e ato significa realidade, perfeição, ser efetivo. Todo ser, que não seja o Ser perfeitíssimo, é portanto uma síntese  um sínolo  de potência e de ato, em diversas 70 A Cosmologia Uma questão geral da física aristotélica, como filosofia da natureza, é a análise dos vários tipos de movimento, mudança, que já sabemos ser passagem da potência ao ato, realização de uma possibilidade. Aristóteles distingue quatro espécies de movimentos: 1. Movimento substancial - mudança de forma, nascimento e morte; 2. Movimento qualitativo  mudança de propriedade; 3. Movimento quantitativo  acrescimento e diminuição; 4. Movimento espacial  mudança de lugar, condicionando todas as demais espécies de mudança. Outra especial e importantíssima questão da física aristotélica é a concernente ao espaço e ao tempo, em torno dos quais fez ele investigações profundas. O espaço é definido como sendo o limite do corpo, isto é, o limite imóvel do corpo "circundante" com respeito ao corpo circundado. O tempo é definido como sendo o número  isto é, a medida  do movimento segundo a razão, o aspecto, do "antes" e do "depois". Admitidas as precedentes concepções de espaço e de tempo  como sendo relações de substâncias, de fenômenos  é evidente que fora do mundo não há espaço nem tempo: espaço e tempo vazios são impensáveis. Uma terceira questão fundamental da filosofia natural de Aristóteles é a concernente ao teleologismo  finalismo  por ele propugnado com base na finalidade, que ele descortina em a natureza. "A natureza faz, enquanto possível, sempre o que é mais belo". Fim de todo devir é o desenvolvimento da potência ao ato, a realização da forma na matéria. Quanto às ciências químicas, físicas e especialmente astronômicas, as doutrinas aristotélicas têm apenas um valor histórico, e são logicamente separáveis da sua filosofia, que tem um valor teorético. Especialmente célebre é a sua doutrina astronômica geocêntrica, que prestará a estrutura física à Divina Comédia de Dante Alighieri. Juízo sobre Aristóteles É difícil aquilatar em sua justa medida o valor de Aristóteles. A influência intelectual por ele até hoje exercida sobre o pensamento humano e à qual se não pode comparar a de nenhum outro pensador dá- nos, porém, uma idéia da envergadura de seu gênio excepcional. Criador da lógica, autor do primeiro tratado de psicologia científica, primeiro escritor da história da filosofia, patriarca das ciências naturais, metafísico, moralista, político, ele é o verdadeiro fundador da ciência moderna e "ainda hoje está presente com sua linguagem científica não somente às nossas cogitações, senão também à expressão dos sentimentos e das idéias na vida comum e habitual". Nem por isso podemos deixar de apontar as lacunas do seu sistema. Sua moral, sem obrigação nem sanção, é defeituosa e mais gravemente defeituosa ainda que a teodicéia, sobretudo na parte que trata das relações de Deus com o mundo. O dualismo primitivo e irredutível entre Deus, ato puro, e a matéria, princípio potencial, é, na própria teoria aristotélica, uma verdadeira contradição e deixa subsistir, como enigma insolúvel e inexplicável, a existência dos seres fora de Deus. Vista Retrospectiva Com Sócrates entre a filosofia em seu caminho definitivo. O problema do objeto e da possibilidade da ciência é posto em seus verdadeiros termos e resolvido, nas suas linhas gerais, pela doutrina do conceito. Platão dá um passo além, procurando determinar a relação entre o conceito e a realidade, mas encalha, dum lado, nas dificuldades insolúveis de um realismo exagerado; de outro, nas extravagâncias dum idealismo extremo. Aristóteles, com o seu espírito positivo e observador, retoma o mesmo problema no pé em que o pusera Platão e dá-lhe, pela teoria da abstração e da inteligência ativa, uma solução satisfatória e definitiva nos grandes lineamentos. Em torno desta questão fundamental, que entende com a metafísica, a psicologia e a lógica, se vão desenvolvendo harmoniosamente as outras partes da filosofia até constituírem em Aristóteles esta grandiosa síntese do saber universal, o mais precioso legado da civilização grega que declinava à civilização ocidental que surgia. 71 O Epicurismo Epicuro, fundador da escola que tomou o seu nome, nasceu em Atenas, provavelmente, em 341 a.C., do ateniense Néocles, e foi criado em Samos. A mãe praticava a magia. Cedo dedicou-se à filosofia, sendo iniciado por Nausífanes de Teo no sistema de Demócrito. Em 306 abriu a sua famosa escola em Atenas, nos jardins da sua vila, que se tornaram centro das reuniões aristocráticas dos seus admiradores, discípulos e amigos. Epicuro expôs a sua doutrina num grande número de escritos, pela maior parte perdidos. Faleceu em 270 a.C. com setenta anos de idade. O epicurismo teve, desde logo, rápida e vasta difusão no mundo romano, onde encontramos, sobretudo, Tito Lucrécio Caro - I século a.C. - o poeta entusiasta, autor de De rerum natura, que venerava Epicuro como uma divindade. A ele devemos as melhores notícias sobre o sistema epicurista. A escola epicurista durou até o IV século d.C., mas teve escasso desenvolvimento, conforme o desejo do mestre, que queria os discípulos fiéis até a letra do sistema. A originalidade deveria manifestar-se na vida. Epicuro foi pessoa fidalga e refinada, o ideal da fidalguia antiga: fazer da formosura o princípio inspirador da vida, e fruir dessa formosura na própria existência pessoal. E foi um mestre eficaz de sabedoria aristocrática, feita de nobreza de sentimentos, senso refinado, gosto para a formosura, para a cultura superior. Em seus jardins, num sereno lazer, semelhante ao dos deuses, deu vida a uma sociedade genial, em que dominava o vínculo da amizade. As amizades dos epicuristas ficaram famosas como as dos pitagóricos. A associação espalhou-se depois, mas conservou-se fortemente organizada, mediante uma estável constituição, ajudas materiais, cartas, missões. O mestre pareceu aos discípulos como que um redentor; a sua filosofia foi considerada como uma religião, a sua doutrina, resumida em catecismos, a sua imagem, gravada nas jóias, em sua honra celebravam-se festas comemorativas, mensais e anuais. Se não houve pensadores epicuristas notáveis depois de Epicuro no mundo clássico nem depois, houve todavia, em todos os tempos e lugares, homens famosos, pertencentes a classes sociais elevadas, os quais aplicaram a sua doutrina à vida e dela fizeram a substância de sua arte. O Pensamento: Gnosiologia e Metafísica Também o epicurismo - como o estoicismo - divide a filosofia em lógica, física e ética; também subordina a teoria à pratica, a ciência à moral, para garantir ao homem o bem supremo, a serenidade, a paz, a apatia. A filosofia é a arte da vida. Precisamente, é tarefa do conhecimento do mundo, da física - diz Epicuro - libertar o homem dos grandes temores que ele tem a respeito da sua vida, da morte, do além- túmulo, de Deus e fazer com que ele atue de conformidade. Portanto, recorre Epicuro à física atomista, mecanicista, democritiana, pela qual também os deuses vêm a ser compostos de átomos, e - habitadores felizes de intermundos - desinteressam-se por completo dos homens. Aliás, não é excluído o fato de que a necessidade universal oprimiria o homem ainda mais do que o arbítrio divino. Igualmente, a alma - formada de átomos sutis, mas sempre materiais - perece com o corpo; daí, nenhuma preocupação com a morte, nem com o além-túmulo: seria igualmente absurdo preocupar-se com aquilo que se segue à morte, como com aquilo que precede o nascimento. A gnosiologia (lógica, canônica) epicurista é rigorosamente sensista. Todo o nosso conhecimento deriva da sensação, é uma complicação de sensações. Estas nos dão o ser, indivíduo material, que constitui a realidade originária. O processo cognoscitivo da sensação é explicado mediante os assim chamados fantasmas, que seriam imagens em miniatura das coisas, arrancar-se-iam destas e chegariam até à alma imediatamente, ou mediatamente através dos sentidos. Dada tal gnosiologia coerentemente sensista, é natural que o critério fundamental e único da verdade seja a sensação, a percepção sensível, que é imediata, intuitiva, evidente. Como a sensação, a evidência sensível é o único critério de verdade no campo teorético, da mesma forma o sentimento (prazer e dor) será o critério supremo de valor no campo prático. Como a gnosiologia epicurista é rigorosamente sensista, a metafísica epicurista é rigorosamente materialista: quer dizer, resolve-se numa física. Epicuro, seguindo as pegadas de Demócrito, concebe os elementos últimos constitutivos da realidade como corpúsculos inúmeros, eternos, imutáveis, invisíveis, 72 homogêneos, indivisíveis (átomos), iguais qualitativamente e diversos quantitativamente - no tamanho, na figura, no peso. Também segundo Epicuro, os átomos estão no espaço vazio, infinito, indispensável para que seja possível o movimento e, consequentemente, a origem e a variedade das coisas. Os átomos são animados de movimento necessário para baixo. Entretanto, no movimento uniforme retilíneo para baixo introduz Epicuro desvios múltiplos, sem causa, espontâneos (clinamen); daí derivam encontros e choques de átomos e, por conseqüência, os vórtices e os mundos. Estes, de fato, não teriam explicações se os átomos caíssem todos com movimentos uniforme e retilíneos para baixo - como pensava Demócrito. Mediante o clinamen Epicuro justifica ainda o livre arbítrio, que é uma simples combinação da contingência, do indeterminismo universal. O universo não é concebido como finito e uno, mas infinito e resultante de mundos inúmeros divididos por intermundos, espalhado pelo espaço infindo, sujeitos ao nascimento e à morte. Nesse mundo o homem, sem providência divina, sem alma imortal, deve adaptar-se para viver como melhor puder. Nisto estão toda a sabedoria, a virtude, a moral epicuristas. A Moral e a Religião A moral epicurista é uma moral hedonista. O fim supremo da vida é o prazer sensível; critério único de moralidade é o sentimento. O único bem é o prazer, como o único mal é a dor; nenhum prazer deve ser recusado, a não ser por causa de conseqüências dolorosas, e nenhum sofrimento deve ser aceito, a não ser em vista de um prazer, ou de nenhum sofrimento menor. No epicurismo não se trata, portanto, do prazer imediato, como é desejado pelo homem vulgar; trata-se do prazer imediato, refletido, avaliado pela razão, escolhido prudentemente, sabiamente, filosoficamente. É mister dominar os prazeres, e não se deixar por eles dominar; ter a faculdade de gozar e não a necessidade de gozar. A filosofia toda está nesta função prática. Este prazer imediato deveria ficar sempre essencialmente sensível, mesmo quando Epicuro fala de prazeres espirituais, para os quais não há lugar no seu sistema, e nada mais seriam que complicações de prazeres sensíveis. O prazer espiritual diferenciar-se-ia do prazer sensível, porquanto o primeiro se estenderia também ao passado e ao futuro e transcende o segundo, que é unicamente presente. Verdade é que Epicuro mira os prazeres estéticos e intelectuais, como os mais altos prazeres. Aqui, porém, se ele faz uma afirmação profunda, está certamente em contradição com a sua metafísica materialista. Em que consiste, afinal, esse prazer imediato, refletido, racionado? Na satisfação de uma necessidade, na remoção do sofrimento, que nasce de exigências não satisfeitas. O verdadeiro prazer não é positivo, mas negativo, consistindo na ausência do sofrimento, na quietude, na apatia, na insensibilidade, no sono, e na morte. Mas precisamente ainda, Epicuro divide os desejos em naturais e necessários - por exemplo, o instinto da reprodução; não naturais e não necessários - por exemplo, a ambição. O sábio satisfaz os primeiros, quando for preciso, os quais exigem muito pouco e cessam apenas satisfeito; renuncia os segundos, porquanto acarretam fatalmente inquietação e agitação, perturbam a serenidade e a paz; mas ainda renuncia os terceiros, pelos mesmos motivos. Assim, a vida ideal do sábio, do filósofo, que aspira a liberdade e à paz como bens supremos, consistiria na renúncia a todos os desejos possíveis, aos prazeres positivos, físicos e espirituais; e, por conseguinte, em vigiar-se, no precaver-se contra as surpresas irracionais do sentimento, da emoção, da paixão. Não sofrer no corpo, satisfazendo suas necessidades essenciais, para estar tranqüilo; não ser perturbado no espírito, renunciando a todos os desejos possíveis, visto ser o desejo inimigo do sossego: eis as condições fundamentais da felicidade, que é precisamente liberdade e paz. Em realidade, Epicuro, se ensina a renúncia, não tem a coragem de ensinar a renúncia aos prazeres positivos espirituais, estéticos e intelectuais, a amizade genial, que representa o ideal supremo na concepção grega da vida. E sustenta isto em contradição com a sua ascética radical, bem como contradiz a sua metafísica materialista com a sua moral, que encontra precisamente a mais perfeita realização nestes bens espirituais. O mundo e a vida são um espetáculo: melhor é ser espectadores e atores, melhor é conhecer do que agir. No entanto, o bem espiritual não consiste unicamente na contemplação (cfr. a virtude dianoética de Aristóteles), mas também na ação (cfr. a virtude ética de Aristóteles), e precisamente em uma vida curta e refinada, esteticamente, a maneira grega, no isolamento do mundo, 75 e técnica, filosofia moral e moral prática. Nesta civilização cosmopolita encontram-se dois valores universais: o pensamento e a arte dos gregos, isto é, o helenismo; o jus e a política dos romanos. O primeiro valor dá o conteúdo, o segundo a forma - Graecia capta ferum victorem cepit. No terceiro período do pensamento grego não se encontram mais alguns poucos e grandes pensadores, como no precedente, mas vastas orientações e escolas; não sistemas críticos, mas afirmações dogmáticas. Trataremos, antes de tudo, da escola estóica, em que ainda há uma metafísica, elementar, porém, e anacrônica, em contradição consigo mesma e com a moral; em segundo lugar, da escola epicuréia, em que a metafísica tem apenas uma função negativa, a saber, libertar o homem das preocupações transcendentais, do temor de além-túmulo; em terceiro lugar, da escola cética, em que não há mais metafísica alguma, e, portanto, nem moral, como na escola eclética, em que a metafísica e moral são sincretistas, e, por conseqüência, anuladas; enfim exporemos o pensamento latino, o qual, pelo que diz respeito à filosofia, depende de cultura grega, e precisamente desse terceiro período - ecletismo e estoicismo. A grandeza verdadeira e original do pensamento latino é o jus, o direito romano, valor universal como a filosofia grega. O Estoicismo Em seu conjunto, o estoicismo pode-se dividir em três períodos: um período antigo ou ético, um período médio ou eclético, um período recente ou religioso. Os dois últimos, bastante divergentes do estoicismo clássico. O fundador da antiga escola estóica é Zenão de Citium (334-262 a.C., mais ou menos). Seu pai, mercador, leva para ele, de Atenas, uns tratados socráticos, que lhe despertam o entusiasmo para com os estudos filosóficos. Aos vinte e dois anos vai para Atenas; aí - perdidos seus bens - dedica-se à filosofia, freqüentando por algum tempo várias escolas e mestres, entre os quais o cínico Crates. Finalmente, pelo ano 300, funda a sua escola, que se chamou estóica, do lugar onde ele costumava ensinar: pórtico em grego, stoá. Iniciou, juntamente com a atividade didática, a de escritor. Em seus escritos já se encontram a clássica divisão estóica da filosofia em lógica, física e ética, a primazia da ética e a união de filosofia e vida. A escola estóica média ou eclética, surge pela influência de outras escolas e para responder às objeções dessas escolas. Podem-se, pois, agrupar na escola estóica nova ou religiosa os que entendiam absolutamente a filosofia, o estoicismo, não como ciência, metafísica, mas como uma missão e uma prática religiosa, sacerdotal. O Pensamento: Gnosiologia e Metafísica O estoicismo não apresenta o fenômeno de um grande filósofo, seguido por uma série de discípulos mais ou menos originais, mas sim uma turma bastante uniforme de pensadores medíocres. No dizer dos estóicos, a tarefa essencial da filosofia é a solução do problema da vida; em outras palavras, a filosofia é cultivada exclusivamente em vista da moral, para firmar a virtude e, logo, para assegurar ao homem a felicidade. Entende-se, pois, como a filosofia estóica chega a ser substancialmente pragmatista e, por conseguinte, no fundo, acaba não sendo mais filosofia. E compreende-se o seu vasto êxito em todos os tempos, amiúde apresentando-se como a filosofia dos não filósofos que têm pretensões filosóficas, moralizadoras, rigoristas. Não obstante esse absorvente moralismo, os estóicos distinguem na filosofia uma lógica, uma física, uma ética. Na lógica trata-se da gnosiologia; a física iguala a metafísica; a ética é o fim último e único de toda a filosofia, inclusive da política e da religião. Os estóicos dividem a lógica em dialética e retórica, em correspondência com o discurso interior e exterior. A mente humana é concebida como uma tabula rasa. Como em Aristóteles, o conhecimento parte dos dados imediatos do sentido; mas, diversamente de Aristóteles, o conhecimento é limitado ao âmbito dos sentidos, não obstante as repetidas e múltiplas declarações estóicas em louvor da razão. O conhecimento intelectual nada mais pode ser que uma combinação, uma complicação quantitativa de elementos sensíveis. O conceito, pois, é destruído, seguindo-se o aniquilamento da ciência, da metafísica e, logo, também da moral. 76 A metafísica estóica reduz-se à física, porquanto é radicalmente materialista: se tudo é material, toda atividade é movimento, devem-se conceber materialisticamente também Deus, a alma, as propriedades das coisas. Esta matéria está em perpétuo vir-a-ser, conforme a concepção de Heráclito; e a lei desse princípio material só pode ser, naturalmente, uma necessidade mecânica, à maneira de Demócrito. Devendo os estóicos, todavia, fornecer alguma base à sua ética do dever, e dar uma explicação à razão, que se manifesta no mundo, em especial no homem, incoerentemente declaram racional o fogo - substância metafísica da realidade -, atribuem-lhe arbitrariamente os atributos divinos da sabedoria e da providência, imaginam-no como espírito ordenador, razão da vida, fazendo emergir todas as qualidades da matéria, como o Sol faz brotar da semente a planta, segundo uma ordem teológica. Deus, providência, espírito, ordem são afirmados ao lado dos conceitos opostos de fado, destino, necessidade, mecanicismo. Como se vê, a metafísica dos estóicos é uma metafísica elementar, decadente, contraditória, e os estóicos não são filósofos, metafísicos, mas pragmatistas, moralistas, inteiramente absorvidos na prática, na ética. A Moral e a Política No pensamento dos estóicos, o fim supremo, o único bem do homem, não é o prazer, a felicidade, mas a virtude; não é concebida como necessária condição para alcançar a felicidade, e sim como sendo ela própria um bem imediato. Com o desenvolvimento do estoicismo, todavia, a virtude acaba por se tornar meio para a felicidade da tranqüilidade, da serenidade, que nasce da virtude negativa da apatia, da indiferença universal. A felicidade do homem virtuoso é a libertação de toda perturbação, a tranqüilidade da alma, a independência interior, a autarquia. Como o bem absoluto e único é a virtude, assim o mal único e absoluto é o vício. E não tanto pelo dano que pode acarretar ao vicioso, quanto pela sua irracionalidade e desordem intrínseca, ainda que se acabe por repudiá-lo como perturbador da indiferença, da serenidade, da autarquia do sábio. Tudo aquilo que não é virtude nem vício, não é nem bem nem mal, mas apenas indiferença; pode tornar-se bem se for unido com a virtude, mal se for ligado ao vício; há o vício quando à indiferença se ajunta a paixão, isto é, uma emoção, uma tendência irracional, como geralmente acontece. A paixão, na filosofia estóica, é sempre e substancialmente má; pois é movimento irracional, morbo e vício da alma - quer se trate de ódio, quer se trate de piedade. De tal forma, a única atitude do sábio estóico deve ser o aniquilamento da paixão, até a apatia. O ideal ético estóico não é o domínio racional da paixão, mas a sua destruição total, para dar lugar unicamente à razão: maravilhoso ideal de homem sem paixão, que anda como um deus entre os homens. Daí a guerra justificada do estoicismo contra o sentimento, a emoção, a paixão, donde derivam o desejo, o vício, a dor, que devem ser aniquilados. A virtude estóica é, no fundo, a indiferença e a renúncia a todos os bens do mundo que não dependem de nós, e cujo curso é fatalmente determinado. Por conseguinte, indiferença e renúncia a tudo, salvo e pensamento, a sabedoria, a virtude, que constituem os únicos bens verdadeiros: indiferença e renúncia à vida e à morte, à saúde e à doença, ao repouso e à fadiga, à riqueza e à pobreza, às honras e à obscuridade, numa palavra, ao prazer e ao sofrimento - pois o prazer é julgado insana vaidade da alma. Dada a indiferença estóica do suicídio como voluntário e moral afastamento do mundo; isto não se concilia, porém, com a virtude da fortaleza que o estoicismo reconhece e louva, e nem se pode explicar racionalmente o suicídio, se a ordem do universo é racional, como precisamente afirmam os estóicos. O estóico pratica esta indiferença e renúncia para não ser perturbado, magoado pela possível e freqüente carência dos bens terrenos, e para não perder, de tal maneira, a serenidade, a paz, o sossego, que são o verdadeiro, supremo, único bem da alma. O sábio é beato, porque, inteiramente fechado na sua torre de marfim, nada lhe acontece que não seja por ele querido, e se conforma com o demais, sem saudades e sem esperanças; pois sabe que tudo é efeito de um determinismo universal. A serenidade, a apatia dos estóicos seria, sem dúvida, fruto de uma fatigosa conquista, de uma dura virtude. Mas é uma virtude absolutamente negativa. Com efeito, quando o homem se torna indiferente a tudo, e a tudo renuncia, salvo o seu pensamento - cujo conteúdo é, em definitivo, esta mesma renúncia -, não lhe resta efetivamente mais nada. Não Deus, pois no sistema estóico, é uma pura palavra; não a alma, destinada a 77 resolver-se na matéria. A sabedoria estóica é ação negadora da expansão das forças espirituais, virtude corrosiva, morte moral. Pelo que diz respeito à política, manifesta-se na filosofia estóica um racionalismo cosmopolita radical a propósito da sociedade estatal: o homem, político por natureza, torna-se cosmopolita por natureza. Diz o estóico Musônio: "O mundo é a pátria comum de todos os homens". Tal cosmopolitismo foi fecundo em progresso, em civilização humana e moral. Abre-se caminho a um sentimento de caridade, de perdão, até para os infelizes e os escravos, os estrangeiros e os inimigos, em virtude da doutrina que afirma a identidade da natureza humana, sentimento este inteiramente desconhecido ao mundo antigo, clássico, onde campeia solitária uma justiça, que existe, porém, apenas para os concidadãos, livres e íntegros. E até começam a nascer instituições caritativas para com os pobres e os doentes. Destarte, esse cosmopolitismo, a que os estóicos não podem fornecer uma base racional e metafísica, promove todavia os conceitos de sociedade universal, de direito natural, de lei racional, conceitos que deveriam ser deduzidos da natureza racional do homem. II - Cristão O Neoplatonismo Características Gerais do Neoplatonismo O neoplatonismo pode ser considerado como o último e supremo esforço do pensamento clássico para resolver o problema filosófico, que tinha encontrado um obstáculo intransponível no dualismo e racionalismo gregos - dualismo e racionalismo que nem sequer o gênio sintético e profundo de Aristóteles conseguiu superar. O neoplatonismo julga poder superar o dualismo, mediante o monismo estóico, na qual o aristotelismo fornece sobretudo os quadros lógicos; e julga poder superar, completar, integrar a filosofia mediante a religião, o racionalismo grego mediante o misticismo oriental, proporcionando o racionalismo grego especialmente a forma, e o misticismo oriental o conteúdo. Será acentuado o dualismo platônico entre sensível e inteligível, entre matéria e espírito, entre finito e infinito, entre o mundo e Deus: primeiro, identificando, por um lado, a matéria com o mal, e elevando, por outro lado, o vértice da realidade inteligível ao suprainteligível e, em segundo lugar, elaborando uma moral ascética e mística, em relação com tal metafísica, a qual, todavia, se esforçará por unificar os pólos opostos da realidade, fazendo com que da substância do Absoluto seja gerado todo o universo até a matéria obscura. A filosofia antiga, em seu último período, não tem mais sua capital tradicional em Atenas, cidade grega por excelência. O centro do pensamento então se estabelece em Alexandria, cidade cosmopolita na qual vivem egípcios, judeus, gregos e romanos. É o local privilegiado de todos os intercâmbios, particularmente os intelectuais. A cidade é povoada de pensadores que dispõem de uma admirável biblioteca. Isto nos ajuda a compreender o caráter sincrético, ou sintético, da filosofia neoplatônica. O racionalismo lúcido dos gregos se une - numa síntese muito original - aos fervores do misticismo oriental. Apesar das denegações dos céticos e da propaganda materialista dos epicuristas, nunca os homens foram tão famintos de Deus quanto nessa época. As religiões de salvação, o culto de Mitra, de Ísis, então se desenvolvem. O cristianismo tomará impulso. Preocupações filosóficas e religiosas se unem estreitamente. Os filósofos, além da verdade suprema, buscam a salvação. Os homens piedosos querem fundamentar suas crenças filosoficamente. Tal é a atmosfera que vamos encontrar envolvendo tanto Filon de Alexandria, quanto Plutarco ou Plotino. Filon de Alexandria Filon de Alexandria (nascido por volta de 25 a.C.) é bem representativo dos meios judeus helenizados que só sabiam ler a Bíblia na versão grega denominada dos Setenta (segundo a tradição, a Bíblia hebraica teria sido traduzida para o grego por setenta sábios, em Alexandria). Seus correligionários 80 A razão é a atividade do espírito, que conhece enquanto vem iluminado pelo pensamento propriamente dito, o qual é superior ao espírito. À razão segue-se o pensamento imediato, que é autocontemplação do espírito pensante. Nesse grau de conhecimento o espírito compreende, ao mesmo tempo, a si e as coisas. É conhecimento intuitivo, imediato, não discursivo e sucessivo. Também o pensamento - o intelecto - representa uma atividade do espírito humano participada do pensamento absoluto, isto é, da Inteligência - noûs. O pensamento absoluto, a inteligência, o noûs, em si mesmo, está sempre em ato de conhecer, e nunca erra; mas, no espírito humano, o pensamento vem a ser intermitente e sujeito ao erro, precisamente pelo fato de ser, nele, o conhecimento participado. O conhecimento humano, finalmente, se completa e atinge a sua perfeição no êxtase, que é identificação do espírito humano com o espírito absoluto, o Uno, Deus, em que o espírito humano se torna passivo, inconsciente. A Metafísica Como os graus de conhecimento são quatro - sensibilidade, razão, intelecto, êxtase - assim quatro são os graus do ser: matéria, alma, noûs, Uno. O Uno, Deus - segundo Plotino - é a raiz de todo ser e de todo conhecer, tudo depende dele. No entanto, transcende toda essência e todo o conhecimento, de sorte que é inteiramente indeterminado e inefável, e em torno dele pode-se dizer apenas o que não é - teologia negativa. O universo deriva de Deus, não por criação consciente e livre, mas por emanação inconsciente e necessária, que procede de Deus degradando-se até à matéria. Deus certamente transcende o mundo, mas o mundo é da sua mesma natureza. A primeira emanação é representada pelo noûs, inteligência subsistente, intuitiva e imutável, que se conhece a si mesma e em si as coisas. A segunda emanação do Uno é a alma; ela procede do pensamento, como este procede do Uno. A alma contempla as idéias - que estão no noûs - e enforma a matéria, segundo o modelo delas. A alma universal, a alma do mundo, por sua vez se multiplica e especifica nas várias almas individuais, que estão em escala decrescente do céu até os homens. Também Plotino sustenta que as almas humanas caíram de uma vida pré-mundana para o cárcere corpóreo; também ensina a metempsicose e a conversão. Com a alma termina o mundo inteligível, divino, e começa o mundo sensível, material. A matéria plotiniana, pois, não é apenas potencialidade, indeterminação, mas também mal, irracionalidade. A Moral Depois da descida - a emanação das coisas do Uno - há a subida, a conversão do mundo para Deus. Efetua-se ela através do homem, microcosmo, compêndio do universo. Nisto consiste a moral plotiniana, radicalmente ascética: libertação, purificação da matéria, do corpo, do sentido. Os graus dessa libertação são representados, em linha ascendente, pelas virtudes éticas, dianoéticas - arte e filosofia - , culminando no êxtase. A Religião O neoplatonismo afirma certa transcendência de Deus, em que este é imaginado como o suprainteligível. Por isso, é inefável e pode ser atingido na sua plenitude unicamente mediante o êxtase, que é uma fulguração divina, superior à filosofia. Com esta doutrina do êxtase, em que é afirmada uma relação específica com a Divindade, parece abrir-se o caminho para uma nova filosofia religiosa, para a valorização da religião positiva. E outro caminho parece abrir-se na doutrina dos intermediários, que estão entre Deus e o homem, e por Plotino distintos em deuses invisíveis e visíveis, a que são assimiladas as divindades das religiões tradicionais. O Cristianismo 81 As Características Filosóficas do Cristianismo Não há propriamente uma história da filosofia cristã, assim como há uma história da filosofia grega ou da filosofia moderna, pois no pensamento cristão, o máximo valor, o interesse central, não é a filosofia, e sim a religião. Entretanto, se o cristianismo não se apresenta, de fato, como uma filosofia, uma doutrina, mas como uma religião, uma sabedoria, pressupõe uma específica concepção do mundo e da vida, pressupõe uma precisa solução do problema filosófico. É o teísmo e o cristianismo. O cristianismo fornece ainda uma  imprescindível  integração à filosofia, no tocante à solução do problema do mal, mediante os dogmas do pecado original e da redenção pela cruz. E, enfim, além de uma justificação histórica e doutrinal da revelação judaico-cristã em geral, o cristianismo implica uma determinação, elucidação, sistematização racional do próprio conteúdo sobrenatural da Revelação, mediante uma disciplina específica, que será a teologia dogmática. Pelo que diz respeito ao teísmo, salientamos que o cristianismo o deve, historicamente, a Israel. Mas entre os hebreus o teísmo não tem uma justificação, uma demonstração racional, como, por exemplo, em Aristóteles, de sorte que, em definitivo, o pensamento cristão tomará na grande tradição especulativa grega esta justificação e a filosofia em geral. Isto se realizará graças especialmente à Escolástica e, sobretudo, a Tomás de Aquino. Pelo que diz respeito à solução do problema do mal, solução que constitui a integração filosófica proporcionada pelo cristianismo ao pensamento antigo  que sentiu profundamente, dramaticamente, este problema sem o poder solucionar  frisamos que essa representa a grande originalidade teórica e prática, filosófica e moral, do cristianismo. Soluciona este o problema do mal precisamente mediante os dogmas fundamentais do pecado original e da redenção da cruz. Finalmente, a justificação da Revelação em geral, e a determinação, dilucidação, sistematização racional do conteúdo da mesma, têm uma importância indireta com respeito à filosofia, porquanto implicam sempre numa intervenção da razão. Foi esta, especialmente, a obra da Patrística e, sobretudo, de Agostinho. Esta parte, dedicada à história do pensamento cristão, será, portanto, dividida do seguinte modo: o Cristianismo, isto é, o pensamento do Novo Testamento, enquanto soluciona o problema filosófico do mal; a Patrística, a saber, o pensamento cristão desde o II ao VIII século, a que é devida particularmente a construção da teologia, da dogmática católica; a Escolástica, a saber, o pensamento cristão desde o século IX até o século XV, criadora da filosofia cristã verdadeira e própria. Características Gerais do Pensamento Cristão Foi conquistada a cidade que conquistou o universo. Assim definiu São Jerônimo o momento que marcaria a virada de uma época. Era a invasão de Roma pelos germanos e a queda do Império Romano. A avalancha dos bárbaros arrasou também grande parte das conquistas culturais do mundo antigo. A Idade Média inicia-se com a desorganização da vida política, econômica e social do Ocidente, agora transformado num mosaico de reinos bárbaros. Depois vieram as guerras, a fome e as grandes epidemias. O cristianismo propaga-se por diversos povos. A diminuição da atividade cultural transforma o homem comum num ser dominado por crenças e superstições. O período medieval não foi, porém, a "Idade das Trevas", como se acreditava. A filosofia clássica sobrevive, confinada nos mosteiros religiosos. O aristotelismo dissemina-se pelo Oriente bizantino, fazendo florescer os estudos filosóficos e as realizações científicas. No Ocidente, fundam-se as primeiras universidades, ocorre a fusão de elementos culturais greco-romanos, cristãos e germânicos, e as obras de Aristóteles são traduzidas para o latim. Sob a influência da Igreja, as especulações se concentram em questões filosófico-teológicas, tentando conciliar a fé e a razão. E é nesse esforço que Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino trazem à luz reflexões fundamentais para a história do pensamento cristão. 82 A Filosofia Medieval e o Cristianismo Ao longo do século V d.C., o Império Romano do Ocidente sofreu ataques constantes dos povos bárbaros. Do confronto desses povos invasores com a civilização romana decadente desenvolveu-se uma nova estruturação européia de vida social, política e econômica, que corresponde ao período medieval. Em meio ao esfacelamento do Império Romano, decorrente, em grande parte, das invasões germânicas, a Igreja católica conseguiu manter-se como instituição social mais organizada. Ela consolidou sua estrutura religiosa e difundiu o cristianismo entre os povos bárbaros, preservando muitos elementos da cultura pagã greco-romana. Apoiada em sua crescente influência religiosa, a Igreja passou a exercer importante papel político na sociedade medieval. Desempenhou, por exemplo, a função de órgão supranacional, conciliador das elites dominantes, contornando os problemas da fragmentação política e das rivalidades internas da nobreza feudal. Conquistou, também, vasta riqueza material: tornou-se dona de aproximadamente um terço das áreas cultiváveis da Europa ocidental, numa época em que a terra era a principal base de riqueza. Assim, pôde estender seu manto de poder "universalista" sobre diferentes regiões européias. Conflitos e Conciliação entre a Fé e Saber No plano cultural, a Igreja exerceu amplo domínio, trançando um quadro intelectual em que a fé cristã era o pressuposto fundamental de toda sabedoria humana. Em que consistia essa fé? Consistia na crença irrestrita ou na adesão incondicional às verdades reveladas por Deus aos homens. Verdades expressas nas Sagradas Escrituras (Bíblia) e devidamente interpretadas segundo a autoridade da Igreja. "A Bíblia era tão preciosa que recebia as mais ricas encadernações". De acordo com a doutrina católica, a fé representava a fonte mais elevada das verdades reveladas  especialmente aquelas verdades essenciais ao homem e que dizem respeito à sua salvação. Neste sentido, afirmava Santo Ambrósio (340-397, aproximadamente): Toda verdade, dita por quem quer que seja, é do Espírito Santo. Assim, toda investigação filosófica ou científica não poderia, de modo algum, contrariar as verdades estabelecidas pela fé católica. Segundo essa orientação, os filósofos não precisavam se dedicar à busca da verdade, pois ela já havia sido revelada por Deus aos homens. Restava-lhes, apenas, demonstrar racionalmente as verdades da fé. Não foram poucos, porém, aqueles que dispensaram até mesmo essa comprovação racional da fé. Eram os religiosos que desprezavam a filosofia grega, sobretudo porque viam nessa forma pagã de pensamento uma porta aberta para o pecado, a dúvida, o descaminho e a heresia (doutrina contrária ao estabelecido pela Igreja, em termos de fé). Por outro lado, surgiram pensadores cristãos que defendiam o conhecimento da filosofia grega, na medida em que sentiam a possibilidade de utilizá-la como instrumento a serviço do cristianismo. Conciliado com a fé cristã, o estudo da filosofia grega permitiria à Igreja enfrentar os descrentes e demolir os hereges com as armas racionais da argumentação lógica. O objetivo era convencer os descrentes, tento quanto possível, pela razão, para depois fazê-los aceitar a imensidão dos mistérios divinos, somente acessíveis à fé. Entre os grandes nomes da filosofia católica medieval destacam-se Agostinho e Tomás de Aquino. Eles foram os responsáveis pelo resgate cristão das filosofias de Platão e de Aristóteles, respectivamente. "Tomai cuidado para que ninguém vos escravize por vãs e enganadoras especulações da "filosofia", segundo a tradição dos homens, segundo os elementos do mundo, e não segundo Cristo." (São Paulo). Patrística "A fé em busca de argumentos racionais a partir de uma matriz platônica" 85 O Novo Testamento Como é notório, Cristo não deixou nada escrito, de sorte que o nosso conhecimento mais imediato em torno da sua personalidade se realiza através dos escritos dos seus discípulos. Temos de Cristo testemunhas também pagãs, além das testemunhas cristãs; estas são extracanônicas e canônicas. Estas últimas, porém, são fundamentais e mais do que suficientes para o nosso fim. Cronologicamente, são elas as seguintes: Paulo de Tarso, os Evangelhos sinópticos e o Evangelho de São João. Paulo de Tarso, na Cilícia, fôra um inteligente e zeloso israelita. Não conheceu Jesus Cristo durante sua vida terrena, mas, convertido ao cristianismo e mudado o nome de Saulo para o de Paulo, tornou-se o maior apóstolo do cristianismo entre os gentios ou pagãos, revelando-lhes em Cristo crucificado o Deus padecente, vítima e Salvador, que eles procuravam em suas religiões misteriosóficas - e não acharam. A vida de Paulo é caracterizada por muitas e longas viagens, realizadas para finalidades apostólicas. Para o mesmo fim escreveu Paulo as famosas cartas às comunidades cristãs dos vários centros da Antigüidade, relacionados com ele. As grandes viagens apostólicas de Paulo são três e têm como ponto de irradiação Antioquia, tocando os centros mais importantes do mundo antigo: Jerusalém, Atenas e Roma. Nesta cidade encerra a sua vida mortal com o martírio. Destarte ele se pôs em contato com todas as formas de civilização do Oriente helenista e do mundo greco-romano. Quanto às Epístolas - escritas em grego - devemos dizer que não são cartas logicamente orgânicas e ordenadas, nem literariamente aprimoradas, tanto assim que podiam desagradar a um helenista refinado como Porfírio; são porém, densas de conteúdo, de forma incisiva e eficaz. O problema que, sobretudo, preocupa Paulo é o do mal, do sofrimento, do pecado, de que acha a solução em Cristo redentor, crucificado e ressuscitado. É este o aspecto do cristianismo que mais o impressionou, de sorte que é ele, por excelência, o teólogo da Redenção. No Velho Testamento Deus tinha dado aos homens a lei que, devido à miséria do homem decaído, não tirava o pecado, embora fosse uma lei moral; pelo contrário, até o agradava, tornando o homem consciente de sua falta. No Novo Testamento, Deus, mediante a graça de Cristo, tira o pecado do mundo, embora nos deixando na luta e no sofrimento, que Paulo sentia tão profundamente. Os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas - chamados evangelhos sinópticos - formam um grupo à parte, por certa característica histórica e didática, que os torna comuns e os distingue do quarto evangelho, o de João, de caráter mais especulativo e teológico. O primeiro em ordem de tempo é o Evangelho de Mateus, o publicano, tornando em seguida um dos doze apóstolos. Escrito, originariamente, em aramaico e destinado ao ambiente palestino, foi em seguida traduzido para o grego e, nesta língua, transmitido. É o mais amplos dos Evangelhos e relata amplamente os ensinamentos de Cristo. O segundo é o Evangelho de Marcos, que não foi discípulo direto de Cristo, mas nos transmitiu o ensinamento de Pedro. Foi escrito em grego e destinado a um público não palestino. O terceiro dos Evangelhos sinópticos é, enfim, o de Lucas, companheiro de Paulo, que o chamava o caro médico. Também ele não foi discípulo imediato de Cristo, e o seu evangelho foi também escrito em grego. O quarto evangelho, inversamente - como o primeiro - foi escrito por um discípulo direto de Cristo, um dos doze apóstolos: João, o predileto do Mestre, testemunha da sua vida e da sua morte. O quarto Evangelho, juntamente com este valor histórico, tem um especial valor especulativo, teológico. Como Paulo pode ser considerado o teólogo da Redenção, João pode ser considerado o teólogo da Encarnação; Cristo é o Verbo de Deus encarnado para a redenção do gênero humano. Também o Evangelho de João foi escrito em grego; e, cronologicamente, é o último dos Evangelhos e dos escritos do Novo Testamento, os quais - no seu conjunto - podem se considerar compostos na Segunda metade do primeiro século, tomada com certa amplidão. A Solução do Problema do Mal Não há dúvida de que o problema do mal foi o escolho contra o qual debalde se bateu a grande filosofia grega, como qualquer outra filosofia, visto ser o mal um problema racionalmente insolúvel. Que coisa é, pois, precisamente este mal, que tem o poder de tornar teoricamente inexplicável a realidade, e praticamente dolorosa a vida? Não é, por certo, o mal assim chamado metafísico, a saber, a necessária limitação de todo ser criado: porquanto esta limitação nada tira à perfeição dos vários seres a eles devida 86 por natureza, mas apenas aquela plenitude do ser, que pertence unicamente a Deus, rigorosamente, isto é, teisticamente concebido como transcendente e criador, pois esse gênero de mal, no teísmo, é plenamente explicável. Não resta, então, senão o mal, o chamado físico e moral, porquanto é limitação da natureza, verdadeira imperfeição de um determinado ser. O mal, físico e moral, é um problema, precisamente se se considerar a natureza específica do homem, a qual é a natureza do animal racional, o que não significa certamente lhe pertença a racionalidade pura, devida ao puro espírito; mas certamente exige a subordinação do sensível ao inteligível, do material ao espiritual. Isto significa exigir que os sentidos sejam instrumentos do intelecto e o instinto seja instrumento da vontade, naquele característico processo que é o conhecimento e a operação humana; exige que o corpo humano e a natureza em geral sejam submetidos às imposições do espírito, como deveria ser em uma hierarquia racional dos valores. Ora, se se considerar, sem preconceitos, o indivíduo e a humanidade, a psicologia e a história, as coisas serão bem diferentes. Com efeito, demais vezes o sentido - do qual o conhecimento deve no entanto partir - sobrepuja o intelecto. E bem poucos homens e só com muitas dificuldades e não sem graves erros, chegam ao conhecimento daquelas verdades racionais - Deus, a alma, etc. - que são, entretanto, indispensáveis para uma solução humana do problema da vida. E, mais freqüentemente ainda, o instinto assenhoreia-se da vontade, e a maioria dos homens viveu e vive cegamente, contra as exigências da própria natureza racional, mesmo quando a verdade é conhecida pelo intelecto. Este é o mal moral, espiritual, que domina o mundo humano. Pelo que diz respeito ao mal físico, a coisa é ainda mais patente: basta lembrar o sofrimento e a morte. Com isto, naturalmente, não se quer dizer que a impassibilidade e a imortalidade sejam uma exigência da natureza humana, como tal, mas unicamente se quer frisar que a dor e a morte - bem como a ignorância e a concupiscência - em sua atual intensidade, se evidenciam como um estado inatural com respeito ao nosso ser espiritual e racional. Temos, pois, uma natureza, a natureza humana, que nos parece desordenada. A filosofia conhece a essência metafísica dessa natureza humana, deve reconhecer-lhe também a desordem, mas ignora-lhe a causa. A filosofia é certamente construtiva, metafísica; mas, chegada ao seu vértice, deve tornar-se crítica, isto é, deve reconhecer os próprios limites, porquanto não consegue resolver plenamente o seu problema, o problema da vida, precisamente por causa do mal. Não pode, todavia, renunciar absolutamente à solução deste problema, já que, desta maneira, comprometeria também a sua maior conquista: Deus. É antiga e famosa a objeção: de que modo concordar a absoluta sabedoria e poder de Deus com todo o mal que há no mundo, por ele criado? Deve-se entender, naturalmente, o mal físico e moral, e este propriamente em relação ao homem. O Pecado Original Se a filosofia é impotente para resolver plenamente o seu próprio problema, há, porventura, outro meio a que pode o espírito humano razoavelmente recorrer para a solução de um problema tão premente? Apresenta-se a religião, e especialmente uma religião entre as religiões, a qual nos fala de uma queda do homem no começo de sua história, e afirma esta verdade - bem como todo o sistema dos seus dogmas - como divinamente revelada. Quanto à possibilidade de uma queda do espírito, em geral, isto é, quanto à possibilidade do mal moral, do pecado, basta lembrar que o ser criado pode, por sua natureza, desviar-se da ordem: porquanto há nele algo de não-ser, de potência, precisamente pelo fato de ser ele um ser criado. E o livre arbítrio proporciona-lhe o modo de realizar essa possibilidade, a saber, proporciona-lhe o modo de desviar-se efetivamente do ser, da racionalidade, enveredando pelo não-ser, pela irracionalidade. Quanto à realidade de uma queda original do homem, remetemos ao fato da Revelação em que é contida. Da Escritura e da Tradição, garantidas pela interpretação da Igreja e sistematizadas pela teologia, evidencia-se, fundamentalmente, como o homem primigênio não só teria possuído aquela harmonia natural, de que agora é privado, mas teria sido outrossim elevado, como que por nova criação, à ordem sobrenatural, com um conveniente conjunto de dons preternaturais. Noutras palavras, o homem teria participado - com uma natureza extraordinariamente dotada - da vida de Deus, teria gozado de uma espécie de deificação, não por direito, mas por graça. E evidencia-se também que - devido a uma culpa 87 de orgulho contra Deus, cometida pelo primeiro homem, do qual, pela natureza humana, devia descender toda a humanidade - teria o homem perdido aquela harmonia e a dignidade sobrenatural, juntamente com os dons conexos. Há, portanto, uma enfermidade, uma debilitação espiritual e física na natureza humana, essencial desde o nosso nascimento, e que deve, por conseguinte, ser herdada. Basta, por exemplo, lembrar como, pela lei da hereditariedade, se podem transmitir deficiências materiais e, por conseqüência, também morais: deficiências que não dependem dos indivíduos, visto que eles a sofrem. O pecado original, pois - que importa na privação da ordem sobrenatural, isto é, na privação do único fim humano efetivo, até ao sofrimento e à concupiscência, quer dizer, até à vulneração da própria natureza - voluntário e culpado em Adão, seria culpado em seus descendentes, enquanto não quiserem servir-se das misérias provindas do pecado original como estímulo para a Redenção, praticando o Cristianismo, ingressando na Igreja. O aspecto da condição primitiva do homem, concernente à elevação sobrenatural, por mais supereminente e central que seja no cristianismo, aqui não interessa. Com efeito, a elevação à ordem sobrenatural sendo, por definição, gratuita, isto é, não devida à natureza humana, bem como a nenhuma natureza criada, a privação da mesma, provinda do pecado, não podia causar vulneração em a natureza humana, nem a perda dos dons praternaturais. E, logo, não podia suscitar o problema do mal, que temos considerado insolúvel pela filosofia. A Redenção pela Cruz Mas, que sentido tem o mal no mundo? Conseguiu o homem, mediante o pecado, frustar o plano divino da criação? Ou o próprio mal soube Deus tirar, mediante uma divina dialética, o bem e até um bem maior? É o que explica um segundo dogma da revelação cristã, o dogma da redenção operada por Cristo. Segundo este dogma, Deus, isto é, o Verbo de Deus, a Segunda pessoa da Trindade divina, assume natureza humana, precisamente para reparar o pecado original e, por conseguinte, suas conseqüências naturais também. Visto a ofensa feita a Deus pelo pecado ser infinita com respeito ao Infinito ofendido, Deus precisava de uma reparação infinita, que unicamente Deus podia dar. Sendo, porém, o homem que devia pagar, entende-se como o verbo de Deus assuma em Cristo a natureza humana. Para a Redenção, teria sido suficiente o mínimo ato expiatório de Cristo, tendo todo ato seu um valor infinito, devido à dignidade do operante. Ao contrário, ele se sacrifica até à morte de cruz. Fez isto para dar toda a glória possível à infinita majestade de Deus no reino do mal e da dor proveniente do pecado; é, pois, a glória de Deus o fim último de toda atividade divina. O Cristianismo - Conseqüente Praxe Ascética Ascetismo e Teísmo Das precedentes considerações segue-se que o cristianismo importa sempre e essencialmente numa praxe ascética com respeito ao mundo, e não pelo fato de o sobrenatural oprimir a natureza, mas por causa da desordem introduzida na ordem da natureza pelo pecado original. Em verdade, a raiz metafísica desta praxe ascética acha-se no próprio teísmo, e, precisamente, no conceito de criação, tomando-se esta palavra "ascética" não no sentido rigoroso de renúncia aos bens criados, mas no sentido de que o homem, sendo criatura e portanto dependendo totalmente de Deus, deve reconhecer praticamente esta sua dependência absoluta, este seu nada ser por si. A razão humana constata, nem pode deixar de constatar, que o mundo, de que temos imediatamente experiência, não se pode explicar por si mesmo, e, logo, exige absolutamente uma explicação. Entretanto, para que o problema do mundo tenha verdadeiramente solução, é preciso chegar até Deus. E Deus, para que seja verdadeiramente a explicação do mundo, não pode certamente ser imanente, mas deve ser transcendente e criador, o que eqüivale dizer, a relação entre Deus e o mundo deve ser concebida segundo o conceito de criação, retamente definido como uma produção das coisas do nada por parte de Deus. 90 porque tem como objeto não a pessoa, mas o ofício, nem pode objetivamente, de modo nenhum, transpor os confins da ética. Finalmente, a renúncia ascética não é estéril egoísmo, mas o contrário. Precisamente pelo fato de que o homem, renunciando a si mesmo e dando-se em holocausto a Deus, é disposto, até desejoso, imensamente capaz, cheio de boa vontade para sacrificar-se inteiramente para com todos. Não considera, todavia, a humanidade como fim último, como divina, mas conforme à transcendente vontade de Deus, que criou o homem à sua imagem, e o remiu com a Paixão do seu Verbo encarnado. A ética cristã da renúncia perfeita ao mundo é a mais proveitosa para a sociedade  familiar, nacional, universal. De fato, a prescindir dos demais, mesmo razoáveis, motivos de altruísmo, unicamente quem é indiferente às qualidades alheias, até solícito dos mais miseráveis, não encontra limites no altruísmo, no heroísmo, mas uma oportunidade de engrandecimento mediante o sacrifício. Este será o caminho percorrido  embora de modos diferentes  pelos santos, os super-homens do cristianismo: o caminho dos conselhos evangélicos, que é o caminho mais perfeito do que o dos preceitos. E os santos mais facilmente florescem nas Ordens Religiosas, precisamente porque é característica das Ordens Religiosas a via dos conselhos, da renúncia ao mundo, cada qual realizando este ascetismo cristão com diversa intensidade, de modos muito diferentes, conforme os tempos, os lugares, os temperamentos pessoais e as necessidades sociais. E é mediante e através desta renúncia ascética, que os santos se tornam os grandes benfeitores da humanidade. A Patrística Pré-agostiniana Características Gerais Com o nome de patrística entende-se o período do pensamento cristão que se seguiu à época neotestamentária, e chega até ao começo da Escolástica: isto é, os séculos II-VIII da era vulgar. Este período da cultura cristã é designado com o nome de Patrística, porquanto representa o pensamento dos Padres da Igreja, que são os construtores da teologia católica, guias, mestres da doutrina cristã. Portanto, se a Patrística interessa sumamente à história do dogma, interessa assaz menos à história, em que terá importância fundamental a Escolástica. A Patrística é contemporânea do último período do pensamento grego, o período religioso, com o qual tem fecundo contato, entretanto dele diferenciado-se profundamente, sobretudo como o teísmo se diferencia do panteísmo. E é também contemporâneo do império romano, com o qual também polemiza, e que terminará por se cristianizar depois de Constantino. Dada a culminante grandeza de Agostinho, a Patrística será dividida em três períodos: antes de Agostinho, período em que, filosoficamente, interessam especialmente os chamados apologistas e os padres alexandrinos; Agostinho, que merece um desenvolvimento à parte, visto ser o maior dos Padres; depois de Agostinho vem o período que, logo após a sistematização, representa a decadência da Patrística. O II Século: Os Apologistas e os Controvertistas A Patrística do II século é caracterizada pela defesa que faz do cristianismo contra o paganismo, o hebraísmo e as heresias. Os padres deste período podem-se dividir em três grupos: os chamados padres apostólicos, os apologistas e os controversistas. Interessam-nos particularmente os segundos, pela defesa racional do cristianismo contra o paganismo; ao passo que os primeiros e os últimos têm uma importância religiosa, dogmática, no âmbito do próprio cristianismo. Chamam-se apostólicos os escritos não canônicos, que nos legaram as duas primeiras gerações cristãs, desde o fim do primeiro século até a metade do segundo. Seus autores, quando conhecidos, recebem o apelido de padres apostólicos, porquanto floresceram no templo dos Apóstolos, ou os conheceram diretamente, ou foram discípulos imediatos deles. Costuma-se designar como o nome de apologistas os escritores cristãos dos fins do segundo século, que procuram de um lado demonstrar a inocência dos cristãos para obter em favor deles a tolerância das autoridades públicas; e provar do outro lado o valor da religião cristã para lhe granjear discípulos. Seus 91 escritos, portanto, são, por vezes, apologias propriamente ditas, por vezes, obras de controvérsia, às vezes, teses. E são dirigidas às vezes contra os pagãos, outras vezes contra os hebreus. Os apologistas, mais cultos do que os padres apostólicos, freqüentemente são filósofos - por exemplo, São Justino Mártir - ainda que não apresentem uma unidade sistemática; continuam filósofos também depois da conversão, e se esforçam por defender a fé mediante a filosofia. Para bem compreendê-lo, é mister lembrar que o escopo por eles visado era, sobretudo, por em focos os pontos de contato existentes entre o cristianismo e a razão, entre o cristianismo e a filosofia. E apresentavam o cristianismo como uma sabedoria, aliás, como a sabedoria mais perfeita, para levarem, gradualmente, até à conversão os pagãos. O maior dos apologistas é certamente São Justino. Flávio Justino Mártir nasceu em Siquém na Palestina em princípios do segundo século, e morreu mártir no ano 170. Depois de Ter peregrinado pelas mais diversas escolas filosóficas – peripatética, estóica, , pitagórica - em busca da verdade para a solução do problema da vida, abandonando o platonismo, último estádio da sua peregrinação filosófica, entrou no cristianismo, onde encontrou a paz. Ufana-se ele de ser filósofo e cristão; leigo embora, Justino dedicou sua vida à difusão e ao ensino do cristianismo. Imitando os filósofos, abriu em Roma uma escola para o ensino da doutrina cristã. Suas obras são duas Apologias - contra os pagãos - e um Diálogo com o judeu Trifão - contra os hebreus. Escreveu suas obras nos meados do segundo século. Justino procura a unidade, a conciliação entre paganismo e cristianismo, entre filosofia e revelação. E julga achá-la, primeiro, na crença de que os filósofos clássicos - especialmente Platão - dependem de Moisés e dos profetas, depois da doutrina famosa dos germes do Verbo, encarnado pessoalmente em Cristo, mas difundidos mais ou menos em todos os filósofos antigos. O III Século: Os Alexandrinos e os Africanos O terceiro século apresenta um interesse particular pelo que diz respeito ao pensamento cristão. Tentou- se um renovamento do paganismo com bases no panteísmo neoplatônico e nos cultos orientais, fundidos numa característica síntese filosófico-religiosa em oposição ao cristianismo, que já ia afirmando mesmo culturalmente. Os Padres deste período polemizam filosoficamente com os pensadores pagãos, levados a estimarem seus adversários. O cristianismo, sem mudar a sua fisionomia original, está em condições de desenvolver do seu seio um pensamento, uma filosofia, uma teologia, que representarão a sua essência doutrinal. Daí a distinção que então se afirmou entre os simples fiéis e os gnósticos - sábios - cristãos. Este gnosticismo cristão se afirmou especialmente em Alexandria do Egito, o grande centro cultural da época, mesmo do ponto de vista católico. Naquele famoso didascaléion, naquela celebrizada escola catequética, espécie de faculdade teológica, foram luminares Clemente e Orígenes. O cristianismo filosófico é próprio e característico dos padres alexandrinos, que vivem na tradição cultural helenista, enaltecedora e potenciadora dos valores intelectuais, teoréticos, especulativos, metafísicos, dos quais teremos, em tempo oportuno, o primeiro sistema orgânico de teologia cristã, graças a Orígenes. É, entretanto, hostilizado pelos padres chamados africanos, pertencentes não à África oriental, ao Egito, mas África ocidental, latina, que se ressentem, por conseguinte, do espírito prático, pragmatista, jurídico, moralista latino - que produziu os estóicos e os cínicos romanos - em oposição ao gênio grego. Se bem que entres os padres africano-latinos apareçam vulto notáveis, como por exemplo Tertuliano, os padres africanos - bem como os padres latinos em geral - não apresentam interesse particular para a história da filosofia. Clemente Alexandrino - Tito Flávio Clemente - nasceu no ano 150, provavelmente em Atenas, de família pagã. Converteu-se ao cristianismo talvez levado por exigências filosóficas; desejoso de um conhecimento mais profundo do cristianismo, empreendeu uma série de viagens em busca de mestres cristãos. Depois de ter visitado a Magna Grécia, a Síria e a Palestina, foi, pelo ano 180, para Alexandria do Egito, onde o seu espírito achou finalmente paz junto do eminente mestre Panteno. Falecido este no ano 200, Clemente foi chamado para dirigir a famosa escola catequética, cabendo-lhe a glória de ter o grande Orígines entre seus discípulos. Devido às perseguições anticristãs do imperador Setímio Severo, que mandou fechar a escola, Clemente teve de suspender o seu ensino alguns anos depois. Retirou-se 92 para a Ásia Menor, junto de um seu antigo discípulo, o bispo Alexandre de Capadócia, e morreu nessa cidade entre 211 e 216. Embora as preocupações de Clemente sejam sobretudo morais e pedagógicas, e os meios empregados, satisfatoriamente, religiosos e cristãos sobretudo, valoriza ele também, e grandemente, a filosofia, à maneira de Justino, sendo ademais dotado de uma erudição prodigiosa e de uma cultura incomparável. As obras principais de Clemente são: o Protréptico - isto é, o Verbo promotor da vida cristã - pequena apologia em doze capítulos, perfeitamente acabada na forma e no conteúdo; o Pedagogo, em três livros, apresentado no primeiro o Verbo como educador das almas, e indicando nos demais dois livros os vícios mais graves, que os cristãos devem evitar; os Strômata - tapetes - que é uma coleção de pensamentos, considerações, dissertações filosóficas, morais e religiosas, de interesse especialmente ético. Filosoficamente importante e característica é a distinção que faz Clemente dos cristãos em simples fiéis e gnósticos, isto é, sábios, perfeitos. O gnóstico cristão, diversamente do simples fiel ou crente, é consciente de sua fé, justificando-a e organizando-a racionalmente, filosoficamente. "Querendo harmonizar a doutrina cristã com a filosofia pagã, acentuava demasiadamente a última, negligenciando um tanto a Sagrada Escritura e a Tradição". Discípulo de Clemente, Orígenes, chamado adamantino por sua energia incomparável, é o maior expoente filosófico da escola alexandrina. Nasceu em Alexandria do Egito, pelo ano 185, de família cristã. O precoce menino recebeu do pai, Leônidas, a primeira formação literária e, sobretudo, religiosa. Durante a perseguição de Septímio Severo, Orígenes, desprezando os mais graves perigos, foi encarregado pelo bispo de Alexandria, Demétrio, da direção da famosa escola didascaléion, que o seu mestre Clemente teve que abandonar. Tinha então Orígenes dezoito anos. Aos vinte e cinco, sentindo a necessidade de conhecer profundamente as doutrinas que desejava combater e querendo completar a sua formação, escutou - como Plotino - as lições de Amônio Saca. Empreendeu então longas viagens para se instruir, sobretudo, religiosamente, e para atender aos desejos de grandes personagens que queriam consultá-lo. Ordenado sacerdote no ano 230 pelos bispos de Cesaréia e de Jerusalém, contra a vontade de seu bispo, de volta à pátria, foi proibido por este de ensinar e foi condenado, devido também a algumas opiniões heterodoxas contidas na sua grande obra Sobre os Princípios, e também por ciúme, talvez, no dizer de São Jerônimo. Retirou-se então Orígenes para a Palestina, abrindo em Cesaréia uma escola teológica ( chamada depois neo-alexandrina - , que superou a de Alexandria pelo seu caráter científico. Aí lecionou ainda durante vinte anos, falecendo em Tiro pelo ano 254. A atividade literária de Orígenes não conhece igual, atribuindo-se-lhe milhares de obras. Prescindindo dos escritos exegéticos e as céticos, que não nos interessam, mencionamos a obra Sobre os Princípios e os oito livros Contra Celso. Por princípios Orígenes entende os artigos principais do ensino da Igreja, e as verdades primordiais deduzidas mediante a razão teológica das premissas reveladas, por falta de revelação formal. A obra Sobre os Princípios nos proporciona a ciência baseada na Revelação, e representa uma suma teológica verdadeira e própria. Representa, talvez, a primeira grande síntese doutrinal da Igreja, segundo a tendência metafísica dos doutores orientais. Granjeou ao autor grande nomeada e contém o origenismo, que depois suscitou a grande polêmica origenista. A obra Contra Celso é a mais célebre de Orígenes sob o aspecto apologético. É uma resposta à obra Sermão Verdadeiro de Celso, filósofo pagão. Antes de tudo, declara Orígenes que a melhor apologia do cristianismo é constituída pela vitalidade divina da Igreja, isto é, pela sua força e virtude para a reforma moral dos homens e pela sua difusão universal, apesar dos ataques dos adversários. A maior parte do escrito é, todavia, dedicada ao exame atento e pormenorizado das profecias, dos milagres e das afirmações solenes de Cristo, visto que Celso, que tinha estudado as fontes do cristianismo, o ataca em todos os pontos. Nesta obra, Orígenes ostenta uma erudição extraordinária, uma serenidade nobre e inigualável, bem como uma fé inabalável. Orígenes pode ser considerado o verdadeiro fundador da teologia científica, bem como o primeiro sistematizador do pensamento cristão em uma vasta síntese filosófica. O IV Século: Os Luminares de Capadócia O século quarto, especialmente a Segunda metade, representa a idade de ouro da Patrística. Basta lembrar, para a igreja oriental, Atanásio, o malho do arianismo, os luminares de Capadócia - Basílio, 95 própria existência espiritual; daí tira uma verdade superior, imutável, condição e origem de toda verdade particular. Embora desvalorizando, platonicamente, o conhecimento sensível em relação ao conhecimento intelectual, admite Agostinho que os sentidos, como o intelecto, são fontes de conhecimento. E como para a visão sensível além do olho e da coisa, é necessária a luz física, do mesmo modo, para o conhecimento intelectual, seria necessária uma luz espiritual. Esta vem de Deus, é a Verdade de Deus, o Verbo de Deus, para o qual são transferidas as idéias platônicas. No Verbo de Deus existem as verdades eternas, as idéias, as espécies, os princípios formais das coisas, e são os modelos dos seres criados; e conhecemos as verdades eternas e as idéias das coisas reais por meio da luz intelectual a nós participada pelo Verbo de Deus. Como se vê, é a transformação do inatismo, da reminiscência platônica, em sentido teísta e cristão. Permanece, porém, a característica fundamental, que distingue a gnosiologia platônica da aristotélica e tomista, pois, segundo a gnosiologia platônica- agostiniana, não bastam, para que se realize o conhecimento intelectual humano, as forças naturais do espírito, mas é mister uma particular e direta iluminação de Deus. A Metafísica Em relação com esta gnosiologia, e dependente dela, a existência de Deus é provada, fundamentalmente, a priori, enquanto no espírito humano haveria uma presença particular de Deus. Ao lado desta prova a priori, não nega Agostinho as provas a posteriori da existência de Deus, em especial a que se afirma sobre a mudança e a imperfeição de todas as coisas. Quanto à natureza de Deus, Agostinho possui uma noção exata, ortodoxa, cristã: Deus é poder racional infinito, eterno, imutável, simples, espírito, pessoa, consciência, o que era excluído pelo platonismo. Deus é ainda ser, saber, amor. Quanto, enfim, às relações com o mundo, Deus é concebido exatamente como livre criador. No pensamento clássico grego, tínhamos um dualismo metafísico; no pensamento cristão - agostiniano - temos ainda um dualismo, porém moral, pelo pecado dos espíritos livres, insurgidos orgulhosamente contra Deus e, portanto, preferindo o mundo a Deus. No cristianismo, o mal é, metafisicamente, negação, privação; moralmente, porém, tem uma realidade na vontade má, aberrante de Deus. O problema que Agostinho tratou, em especial, é o das relações entre Deus e o tempo. Deus não é no tempo, o qual é uma criatura de Deus: o tempo começa com a criação. Antes da criação não há tempo, dependendo o tempo da existência de coisas que vem-a-ser e são, portanto, criadas. Também a psicologia agostiniana harmonizou-se com o seu platonismo cristão. Por certo, o corpo não é mau por natureza, porquanto a matéria não pode ser essencialmente má, sendo criada por Deus, que fez boas todas as coisas. Mas a união do corpo com a alma é, de certo modo, extrínseca, acidental: alma e corpo não formam aquela unidade metafísica, substancial, como na concepção aristotélico-tomista, em virtude da doutrina da forma e da matéria. A alma nasce com o indivíduo humano e, absolutamente, é uma específica criatura divina, como todas as demais. Entretanto, Agostinho fica indeciso entre o criacionismo e o traducionismo, isto é, se a alma é criada diretamente por Deus, ou provém da alma dos pais. Certo é que a alma é imortal, pela sua simplicidade. Agostinho, pois, distingue, platonicamente, a alma em vegetativa, sensitiva e intelectiva, mas afirma que elas são fundidas em uma substância humana. A inteligência é divina em intelecto intuitivo e razão discursiva; e é atribuída a primazia à vontade. No homem a vontade é amor, no animal é instinto, nos seres inferiores cego apetite. Quanto à cosmologia, pouco temos a dizer. Como já mais acima se salientou, a natureza não entra nos interesses filosóficos de Agostinho, preso pelos problemas éticos, religiosos, Deus e a alma. Mencionaremos a sua famosa doutrina dos germes específicos dos seres - rationes seminales. Deus, a princípio, criou alguns seres já completamente realizados; de outros criou as causas que, mais tarde, desenvolvendo-se, deram origem às existências dos seres específicos. Esta concepção nada tem que ver com o moderno evolucionismo, como alguns erroneamente pensaram, porquanto Agostinho admite a imutabilidade das espécies, negada pelo moderno evolucionismo. 96 A Moral Evidentemente, a moral agostiniana é teísta e cristã e, logo, transcendente e ascética. Nota característica da sua moral é o voluntarismo, a saber, a primazia do prático, da ação - própria do pensamento latino - , contrariamente ao primado do teorético, do conhecimento - próprio do pensamento grego. A vontade não é determinada pelo intelecto, mas precede-o. Não obstante, Agostinho tem também atitudes teoréticas como, por exemplo, quando afirma que Deus, fim último das criaturas, é possuído por um ato de inteligência. A virtude não é uma ordem de razão, hábito conforme à razão, como dizia Aristóteles, mas uma ordem do amor. Entretanto a vontade é livre, e pode querer o mal, pois é um ser limitado, podendo agir desordenadamente, imoralmente, contra a vontade de Deus. E deve-se considerar não causa eficiente, mas deficiente da sua ação viciosa, porquanto o mal não tem realidade metafísica. O pecado, pois, tem em si mesmo imanente a pena da sua desordem, porquanto a criatura, não podendo lesar a Deus, prejudica a si mesma, determinando a dilaceração da sua natureza. A fórmula agostiniana em torno da liberdade em Adão - antes do pecado original - é: poder não pecar; depois do pecado original é: não poder não pecar; nos bem-aventurados será: não poder pecar. A vontade humana, portanto, já é impotente sem a graça. O problema da graça - que tanto preocupa Agostinho - tem, além de um interesse teológico, também um interesse filosófico, porquanto se trata de conciliar a causalidade absoluta de Deus com o livre arbítrio do homem. Como é sabido, Agostinho, para salvar o primeiro elemento, tende a descurar o segundo. Quanto à família, Agostinho, como Paulo apóstolo, considera o celibato superior ao matrimônio; se o mundo terminasse por causa do celibato, ele alegrar-se-ia, como da passagem do tempo para a eternidade. Quanto à política, ele tem uma concepção negativa da função estatal; se não houvesse pecado e os homens fossem todos justos, o Estado seria inútil. Consoante Agostinho, a propriedade seria de direito positivo, e não natural. Nem a escravidão é de direito natural, mas conseqüência do pecado original, que perturbou a natureza humana, individual e social. Ela não pode ser superada naturalmente, racionalmente, porquanto a natureza humana já é corrompida; pode ser superada sobrenaturalmente, asceticamente, mediante a conformação cristã de quem é escravo e a caridade de quem é amo. O Mal Agostinho foi profundamente impressionado pelo problema do mal - de que dá uma vasta e viva fenomenologia. Foi também longamente desviado pela solução dualista dos maniqueus, que lhe impediu o conhecimento do justo conceito de Deus e da possibilidade da vida moral. A solução deste problema por ele achada foi a sua libertação e a sua grande descoberta filosófico-teológica, e marca uma diferença fundamental entre o pensamento grego e o pensamento cristão. Antes de tudo, nega a realidade metafísica do mal. O mal não é ser, mas privação de ser, como a obscuridade é ausência de luz. Tal privação é imprescindível em todo ser que não seja Deus, enquanto criado, limitado. Destarte é explicado o assim chamado mal metafísico, que não é verdadeiro mal, porquanto não tira aos seres o lhes é devido por natureza. Quanto ao mal físico, que atinge também a perfeição natural dos seres, Agostinho procura justificá-lo mediante um velho argumento, digamos assim, estético: o contraste dos seres contribuiria para a harmonia do conjunto. Mas é esta a parte menos afortunada da doutrina agostiniana do mal. Quanto ao mal moral, finalmente existe realmente a má vontade que livremente faz o mal; ela, porém, não é causa eficiente, mas deficiente, sendo o mal não-ser. Este não-ser pode unicamente provir do homem, livre e limitado, e não de Deus, que é puro ser e produz unicamente o ser. O mal moral entrou no mundo humano pelo pecado original e atual; por isso, a humanidade foi punida com o sofrimento, físico e moral, além de o ter sido com a perda dos dons gratuitos de Deus. Como se vê, o mal físico tem, deste modo, uma outra explicação mais profunda. Remediou este mal moral a redenção de Cristo, Homem-Deus, que restituiu à humanidade os dons sobrenaturais e a possibilidade do bem moral; mas deixou permanecer o sofrimento, conseqüência do pecado, como meio de purificação e expiação. E a explicação última de tudo isso - do mal moral e de suas conseqüências - estaria no fato de que é mais glorioso para Deus tirar o bem do mal, do que não permitir o mal. Resumindo a doutrina agostiniana a 97 respeito do mal, diremos: o mal é, fundamentalmente, privação de bem (de ser); este bem pode ser não devido (mal metafísico) ou devido (mal físico e moral) a uma determinada natureza; se o bem é devido nasce o verdadeiro problema do mal; a solução deste problema é estética para o mal físico, moral (pecado original e Redenção) para o mal moral (e físico). A História Como é notório, Agostinho trata do problema da história na Cidade de Deus, e resolve-o ainda com os conceitos de criação, de pecado original e de Redenção. A Cidade de Deus representa, talvez, o maior monumento da antigüidade cristã e, certamente, a obra prima de Agostinho. Nesta obra é contida a metafísica original do cristianismo, que é uma visão orgânica e inteligível da história humana. O conceito de criação é indispensável para o conceito de providência, que é o governo divino do mundo; este conceito de providência é, por sua vez, necessário, a fim de que a história seja suscetível de racionalidade. O conceito de providência era impossível no pensamento clássico, por causa do basilar dualismo metafísico. Entretanto, para entender realmente, plenamente, o plano da história, é mister a Redenção, graças aos quais é explicado o enigma da existência do mal no mundo e a sua função. Cristo tornara-se o centro sobrenatural da história: o seu reino, a cidade de Deus, é representada pelo povo de Israel antes da sua vinda sobre a terra, e pela Igreja depois de seu advento. Contra este cidade se ergue a cidade terrena, mundana, satânica, que será absolutamente separada e eternamente punida nos fins dos tempos. Agostinho distingue em três grandes seções a história antes de Cristo. A primeira concerne à história das duas cidades, após o pecado original, até que ficaram confundidas em um único caos humano, e chega até a Abraão, época em que começou a separação. Na Segunda descreve Agostinho a história da cidade de Deus, recolhida e configurada em Israel, de Abraão até Cristo. A terceira retoma, em separado, a narrativa do ponto em que começa a história da Cidade de Deus separada, isto é, desde Abraão, para tratar paralela e separadamente da Cidade do mundo, que culmina no império romano. Esta história, pois, fragmentária e dividida, onde parece que Satanás e o mal têm o seu reino, representa, no fundo, uma unidade e um progresso. É o progresso para Cristo, sempre mais claramente, conscientemente e divinamente esperado e profetizado em Israel; e profetizado também, a seu modo, pelos povos pagãos, que, consciente ou inconscientemente, lhe preparavam diretamente o caminho. Depois de Cristo cessa a divisão política entre as duas cidades; elas se confundem como nos primeiros tempos da humanidade, com a diferença, porém, de que já não é mais união caótica, mas configurada na unidade da Igreja. Esta não é limitada por nenhuma divisão política, mas supera todas as sociedades políticas na universal unidade dos homens e na unidade dos homens com Deus. A Igreja, pois, é acessível, invisivelmente, também às almas de boa vontade que, exteriormente, dela não podem participar. A Igreja transcende, ainda, os confins do mundo terreno, além do qual está a pátria verdadeira. Entretanto, visto que todos, predestinados e ímpios, se encontram empiricamente confundidos na Igreja - ainda que só na unidade dialética das duas cidades, para o triunfo da Cidade de Deus - a divisão definitiva, eterna, absoluta, justíssima, realizar-se-á nos fins dos tempos, depois da morte, depois do juízo universal, no paraíso e no inferno. É uma grande visão unitária da história, não é uma visão filosófica, mas teológica: é uma teologia, não uma filosofia da história. A Escolástica Características Gerais A Escolástica representa o último período do pensamento cristão, que vai do começo do século IX até o fim do século XVI, isto é, da constituição do sacro romano império bárbaro, ao fim da Idade Média, que se assinala geralmente com a descoberta da América (1492). Este período do pensamento cristão se designa com o nome de escolástica, porquanto era a filosofia ensinada nas escolas da época, pelos mestres, chamados, por isso, escolásticos. As matérias ensinadas nas escolas medievais eram representadas pelas chamadas artes liberais, divididas em trívio - gramática, retórica, dialética - e
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