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A infância e a escola: devaneios poéticos de crianças sendo, Teses (TCC) de Pedagogia

Tese de doutorado defendida em 2006. Aborda a infância na escola sob a ótica das crianças.

Tipologia: Teses (TCC)

2010

Compartilhado em 09/07/2010

tereza-cristina-oliveira-1
tereza-cristina-oliveira-1 🇧🇷

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Baixe A infância e a escola: devaneios poéticos de crianças sendo e outras Teses (TCC) em PDF para Pedagogia, somente na Docsity! UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE EDUCAÇÃO - FACED PROGRAMA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO TEREZA CRISTINA DE OLIVEIRA A INFÂNCIA E A ESCOLA DEVANEIOS POÉTICOS DE CRIANÇAS SENDO SALVADOR 2006 V IIRTU E ST S UPI TR TEREZA CRISTINA DE OLIVEIRA A INFÂNCIA A ESCOLA DEVANEIOS POÉTICOS DE CRIANÇAS SENDO Tese apresentada ao Programa de Pós−Graduação em Educação da UFBA, na linha de pesquisa Filosofia, Linguagem e Práxis Pedagógica, como critério final para obtenção do título de doutora em educação. Orientador: Prof. Dr. Dante Augusto Galeffi SALVADOR 2006 DEDICATÓRIA A minha mãe que, de forma, belíssima, cuidou sozinha das infâncias de seus nove filhos. As crianças que reconheceram a importância deste trabalho e generosamente participaram da sua construção o subvertendo em espaço de luta por significados.. A meu filho Marcus, companheiro de trilha pelos caminhos misteriosos da infância. A Artur e mariana que me ensinaram a conviver com as crianças. AGRADECIMENTOS Agradecer ao nosso orientador é uma atitude previsível. Mas, agradecer ao Prof. Dr Dante Augusto Galeffi transforma essa atitude em um momento especial. Agradeço a ele a orientação polilógica que foi instaurada ao longo do doutorado e por encorajar-me a criar meu próprio texto. Aprendi com ele a filosofar em português. Sou alegremente agradecida a minhas irmãs: Vera Regina, pelo empenho de localizar material para consultas; e Simone Regina, por me auxiliar na revisão. A Neuza Maria, minha irmã, por sua dedicação luxuosa, no decorrer da construção desta tese. Foi por sua intromissão que pulei a cerca do quintal de Manoel de barros, andei pelas terras de Guimarães Rosa, passando por campo geral até chegar à terceira margem. Ao artista plástico Raimundo Áquila, viajante e amigo de longas caminhadas. Em nossas caminhadas, formulamos belos devaneios a infâncias. A Kátia, funcionária da secretaria da Pós-Graduação que ao longo da minha ritualidade do doutorado ocupou um lugar liminoide. Agradeço por sua dedicação e humanização na forma como nos conduziu na esfera burocrática e buracratizante da academia. A Auxiliadora Fidelis, Maria Clara e José Fernando , pelo apoio de sempre e conversas de conforto e encorajamento. RESUMO Este trabalho de pesquisa não centra o olhar nem na infância, nem na escola, mas no entrecruzamento desses dois acontecimentos da modernidade. Compreender como as crianças, entre seis e doze anos, residentes na região metropolitana de Salvador-Ba percebem a presença da escola em suas infâncias foi sua preocupação central. Residiu em compreender as construções ou reconstruções das crianças sobre a escola e suas formas de agenciamento nas suas infâncias. Como questões provocadoras da investigação destaco: Até que ponto as experiências vividas pelas crianças na escola mediam o discurso elaborado por elas sobre suas infâncias? Como as crianças percebem a si mesmas e as suas infâncias? Quais são as imagens elaboradas, a partir das crianças, que contextualizam suas localizações no mundo da escola? Como as crianças percebem a interpelação dos adultos nestas experiências e como negociam nesse jogo? Que saída as crianças apontam para uma relação com os adultos que as levem a uma alteridade? Os objetivos foram: conhecer a dimensão da mediação das experiências com a escola nos discursos elaborados pelas crianças sobre o ser-criança e suas infâncias; identificar e analisar as imagens construídas pelas crianças que contextualizam suas localizações no mundo das infâncias; conhecer a percepção das crianças, nesses espaços, sobre a forma como são interpeladas pelos adultos nas suas infâncias. Para a metodologia, assumi a abordagem qualitativa proposta pela fenomenologia –hermenêutica. No interior dessa abordagem, trouxe, para a condução desta investigação, o caminho de uma filosofia polilógica na construção do conhecimento proposta por Galeffi(2003).Utilizei entrevistas coletivas e individuais e cadernos de anotação para as crianças. Os resultados do esforço, ao trilhar estes caminhos nos levam a algumas conclusões: a escola é reconhecida, pelas crianças, como importante para transformá-las em um futuro adulto preparado para habitar a sociedade; entretanto, deixa claro que a execução do projeto educativo da escola para a infância não ocorre de forma harmoniosa, tranqüila, a infância não se configura de forma única, ao contrário, é socialmente desigual, perversamente diversa as crianças sabem que precisam de cuidados e dependam dos adultos, mas questionam a forma como são consideradas, denunciam o silêncio a que são submetidas; lutam, ainda que silenciosamente, para viverem uma infância em uma temporalidade própria; as infâncias sendo são fugas para espaços em branco, para o meio a meio, uma tentativa de realizarem-se como crianças, uma existencialidade reivindicada, a infancialidade. PALAVRAS-CHAVE: Crianças, Infância, escola, infancialidade, polilógica do educar 6.1 A BRINCADEIRA: quintal que separa as infâncias da adultez 182 6.2. A BRINCADEIRA NA ESCOLA: uma subversão no calendário da passagem criança-aluno 201 185 ADULTEZ: TEMPO DE RECORDAR A INFÂNCIA 215 7 PRESENÇA DAS INFÂNCIAS NA VIDA ADULTA ou A SEGUNDA INFÂNCIA1: um projeto amoroso e político para a adultez no olhar das crianças 216 POR ENTRE PARTIDAS E CHEGADAS 250 REMEXANDO AS PALAVRAS OU BUSCANDO OUTRA MARGEM: um pouso provisório 251 REFERÊNCIAS 262 1 Aproprio-me da expressão de Manoel de Barros em seu livro “ Memórias Inventadas : A segunda Infância’(2006) . 10 O PONTO DE PARTIDA Um menino nasceu - O mundo tornou a começar .Guimarães Rosa1 Ora, pois! Não acredito que eu gostava De arroz com ovo frito Quando lembro sinto no peito um nó Esse prato temperado pelas mãos mágicas da minha vó. Deitado no sofá, atrás de mim à janela E os sons que entravam dela me faziam acordar. Com toda preguiça e vontade de dormir Maior vontade era de brincar na rua. Sob a luz da lua tantas cantigas de roda E sorrisos cândidos nos rostos miúdos de todos nós: Pique-esconde, chicotinho-queimado, pipa ao vento, fazer cata-vento, apanhar fruta no pé. Quantos dias, quantas noites de alegrias, de sonhos e aventuras! Essa infância que recordo é saudosa, mas faz parte acabar. Por enquanto digo quem dera que eu possa ao menos avistar E espero ansioso novos dias que eu possa ao menos visitar Meus próprios anjinhos a saltitar. E repetir o que minha mãe dizia: -Ei, menino, tá na hora de entrar!2 Vanderson Godoi 1 Citado por Resende(1988, p.245) 2 .Este poema foi cedido generosamente por Vanderson Godoi para compor a textualidade desta tese. Vanderson Godoi é mineiro e baiano. É formado em Marketing, poeta e músico, além de ser, é claro, meu amigo muito querido. 11 1 A ORIGEM DO ESTUDO E A RE-LOCALIZAÇÃO DA INVESTIGAÇÃO Em 1999, conclui o mestrado em educação pela Universidade Federal da Bahia, defendendo a dissertação de mestrado “A Ritualização do Fracasso Escolar”. Examinei o fracasso escolar a partir da representação ritualística. O propósito foi abrir um campo fértil para compreender o caráter dramático e problemático do mundo escolar. A ritualidade é expressão da vida cotidiana, revela a sua “espessura”, sua “densidade” e sua concretude. Sendo assim, o estudo do fracasso escolar, numa perspectiva ritual ou simbólica, permitiu-me compreender a maneira como os sujeitos se apropriam do instituído e o reconstroem cotidianamente, através de processos históricos e simbólicos diferenciados. Nesse horizonte, busquei rastrear o caminho por onde o fracasso escolar se faz ritual ou o ritual pode gerar o fracasso escolar. Este estudo implicou em uma apreensão cuja abordagem simbólica dos processos de aprendizagem foi um caminho possível. Seria ingênuo achar que este trabalho examinou todos os aspectos dos processos rituais no universo da escola ou que se encerrou com certezas e idéias acabadas acerca do que se pretendeu analisar. A pesquisa etnográfica não deu conta de reinterpretar-reconstruir o vivido e percebido na escola pesquisada. O par criança- infância, por exemplo, não foi examinado como elemento estruturante da ritualidade escolar, visto que não era, naquele momento, um delineamento do meu objeto de investigação. Incluir o par crianças/infâncias na discussão da dissertação ampliaria, por demais, um recorte de pesquisa que não atendia à natureza de uma dissertação de Mestrado. Portanto, terminei essa dissertação com a crença de que seria bastante proveitoso e instigante pesquisar o par escola/infância e escutar o as crianças dizem sobre a escola. É bom que se diga que não centralizei o meu interesse de investigação nem na infância, nem na escola, mas no entrecruzamento desses dois acontecimentos da modernidade. A escola foi a instituição, na era moderna, incumbida de executar o projeto social da infância, entretanto, pouco sabemos, a partir da fala e da lógica das 14 importante para a construção do meu imaginário de pesquisadora. Digo isso porque para mim a pesquisa é um processo criativo, uma poética que se constrói no encontro com o outro. O encontro com o outro é o caminho da alteridade, e, nele, reafirmamos nossa condição de ser-no-mundo se pensarmos com Haidegger (2004): uma permanência que nos coloca em um estar no mundo como existência humana. Sendo assim, nesse encontro, fui solicitada a desconstruir o meu olhar, a minha lógica de adulto para compreender as crianças e acolhê-las com suas palavras, com seu jeito de ser-no- mundo e de estar-no-mundo. Isso implicou, muitas vezes, em um retorno às minhas infâncias, foi um delicioso retorno fenomenológico à minha infacialidade, aos meus devaneios poéticos criados solitariamente na minha criancice em Itabuna, interior do estado da Bahia. Portanto, a presença das crianças com suas falas estão visceralmente presentes neste texto. Cada capítulo foi escrito a partir das questões levantadas por elas em suas entrevistas, textos escritos, conversas no pátio, corredores e escadas das escolas ou, algumas vezes, em suas casas. A leitura deste texto implicou em aceitarmos o que o poeta Fernando Pessoa Fernando Pessoa (1992, 210-12.), quis dizer com “[...] a direção do meu olhar é o seu dedo apontando” referindo-se à criança que habita na imaginação do poeta. Implica, também, em aceitarmos, as palavras das crianças repletas de sentidos como é da condição do ser-aí, ser da existência humana(HAIDEGGER, 2004). Entretanto, essas falas são historicamente silenciadas não só pelas Ciências Humanas, mas, também, pelas instituições culturais que interpelam as crianças. Para Priore (2004,.p.14) a historia das nossas infâncias é feita à sombra dos adultos Nesse sentido, a autora localiza um silenciamento da voz das crianças, visto que “Foi a voz dos adultos que registrou, ou calou, sobre a existência dos pequenos, possibilitando ao historiador escutar esse passado utilizando seus registros e anotações”. Esses registros, historicamente, são feitos através de diversas textualidades tais como cartas de jesuítas, correspondência de autoridades coloniais, narrativas de viajantes estrangeiros, textos de sanitaristas e educadores, sistematização dos Códigos de Menores, o censo do IBGE entre outros. Priore (2004, p. 15 14) então pergunta: “O que restou da voz dos pequenos?” Para a autora, muitas vezes, essa história não é diretamente contada pelas crianças. Pereira e Jobim e Souza (2001) localizam este silenciamento a partir do reconhecimento da invenção da infância na modernidade. Segundo as autoras, as crianças foram elevadas a esse status por serem consideradas construtoras de diálogo, todavia, não encontrou no adulto um interlocutor. Por conta disso, elas vêm tecendo um monólogo que se desdobra na formação de um “gueto da infância". Se há a ausência do interlocutor adulto na vida social das crianças, quem são seus interlocutores? Não me refiro aqui ao silenciamento colocado por Bachelard (1988 p.97) quando diz que [...] devaneio da infância pela criança é sempre uma experiência silenciosa. Para o autor, há uma infância no devaneio infantil que povoa a infância real. Assim diz ele, “a criança enxerga grande, a criança enxerga belo” .Refiro-me ao silêncio que foi instaurado historicamente na invenção da infância que desautorizou a fala das crianças e que, a meu ver, é uma expressão perversa das divisões hierárquicas dos papéis sociais. A construção de um sentimento sobre a infância realizada pelas crianças em suas infâncias sendo, muitas vezes, é perversamente deteriorada, arruinada nos distanciamentos entre adultos e crianças, na hierarquização dos papéis, na divisão cerrada dos territórios, na necessidade brutal das instituições em fazer valer sua missão e função social, na burocratização das suas medições. Lembro das palavras inquietantes ditas por Graciliano Ramos em seu livro “Infância”, no capítulo “Nuvens”, em que narra a sua convivência com seus pais: Meu pai e minha mãe conservavam-se grandes, temerosos, incógnitos. Revejo pedaços deles, rugas, olhos raivosos, bocas irritadas e sem lábios, mãos grossas e calosas, finas e leves, transparentes. Ouço pancadas, tiros, pragas, tilintar de esporas, batecum de sapatões no tijolo gasto. Retalhos e sons dispersavam- se. Medo. Foi o medo que me orientou nos primeiros anos, pavor.[...] (RAMOS 2003, p.14) Sabemos que muitas coisas mudaram nas relações das crianças com os adultos. Não é minha intenção, neste trabalho, desenhar a caricatura do adulto malvado e de 16 criança vitimada, mas, provocar uma discussão que, proveitosamente, coloque, nesta relação com o outro, o caminho da alteridade nas infâncias, como falam Pereira e Jobim e Souza (2001). Estas autoras nos dizem que há de se reconhecer que o abismo entre os adultos e as crianças denuncia a solidão gerada na “insensibilidade com que facilmente descartamos o ‘ outro’ de dentro de nós": Vivemos a experiência em um mundo divido. Adultos ausentes. Crianças autônomas. Alteridade em ruínas. No entanto, se pensarmos dialeticamente esse arruinamento da relação adulto/criança, encontramos ali presente também a origem de um diálogo que se apresenta em germe na capacidade da criança em torna-se tradutora, para o adulto, da linguagem que ela própria construiu (PEREIRA E JOBIM E SOUZA 2001, p.40) Acrescento que o fato de as crianças se tornarem tradutoras dessa linguagem não lhes dá garantias de uma escuta política de suas significações. Portanto, volto à questão do silenciamento de suas vozes pelos adultos, encarnados nas figuras dos especialistas, dos professores, dos pais, do patrão e de outra pessoas que as interpelam nas suas experiências no mundo. Nesse caso, o sentido de se trazer as falas das crianças para esta pesquisa reside na necessidade de ampliar as discussões acerca da maneira brasileira de pensar as infâncias e as crianças. Da mesma forma, coloco em destaque a necessidade de dignificar o modo como elas re/interpretam a sua condição de ser- no- mundo. Creio que este seja um rasgo que forja um espaço para a visibilidade social de suas falas que sempre foi tutelada pelo mundo acadêmico que autorizou cientificamente seus especialistas para falar no lugar delas. Embora os estudos freqüentes no Brasil apontem as intuições culturais oficiais e as especialidades científicas como as responsáveis pelo projeto de construção social das infâncias, a exemplo da escola, sabe-se que, historicamente, as crianças são interpeladas em outros espaços sociais. Dessa forma, na teia das relações sociais, elas apropriam-se de um complexo universo de conhecimento mediado pelos adultos. Portanto, acrescento, ainda, que ao reconhecer como as crianças representam as suas infâncias nessas experiências cria-se uma via para a ampliação 19 palavras não são apenas produtoras de sentido, mas “criam realidades e às vezes funcionam como potentes mecanismos de subjetivação”. O sentido das palavras e as palavras como produtoras de sentido nos colocam numa atitude radical para a reinterpretação do que dizem as crianças, porque suas palavras são prenhes de sentido, impregnadas de significação que elas atribuem diante do mundo e dos outros e, principalmente, diante delas mesmas. No quarto capítulo, retomo a discussão do terceiro, a infância na escola. Destaco o silenciamento como forma de se exercer o poder sobre as crianças na escola. A intenção em ampliar essa discussão reside na sua importância para compreendermos uma das formas utilizadas pela escola para fazer valer o projeto da infância. Ao executar esse projeto o que está em jogo é o adulto, nesse caso, se instaura uma invisibilidade da criança e a sua mudez na própria ‘presença” das suas infâncias: o silenciamento é a expressão máxima dessa ausência. O que importa é o adulto que ela vai ser e não a criança que ela é. Assim, vou apresentando a forma como as crianças criticamente percebem esse jogo na escola, em casa e outras instâncias sociais. Dessa forma, ao tempo que retomo a discussão anterior sobre a escola e a infância, vou discutindo os modos como, nesse lugar, se constrói sentimentos sobre a infância e o ser-criança e, da mesma forma, como as crianças percebem a interpelação dos adultos nessas experiências e como negociam no jogo dessas relações. No quinto capítulo, retomo, de certa forma, as discussões instauradas no segundo capítulo, quando foi abordado o conceito de infância a partir do que pensam as crianças e os autores escolhidos para esta tarefa. A separação entre o que é ser adulto e criança é demarcada por estas, pelo trabalho e pela brincadeira. Entretanto, percebi, ao reinterpretar essas imagens, que esta fronteira é temporal, uma margem que demarca dois mundos: o da adultez e o da infancilidade.Portanto, não é apenas uma atividade lúdica própria da infância, como é habitualmente pensado. Essa é uma questão bastante instigante e aparentemente compreendida como uma coisa óbvia. Olhando, mais de perto, o que dizem as crianças sobre si mesmas e suas infâncias, a partir das suas formulações sobre o/a brincar/brincadeira, descortina-se a sua natureza enigmática. 20 No sexto capítulo, instauro uma provocação para todos os adultos, ao discutir a saída encontrada pelas crianças para estabelecer uma relação de alteridade no encontro com o outro, o adulto. Apresento e discuto essa saída, qual seja: a presença das infâncias na vida adulta ou a segundo infância3 como um projeto amoroso e político para a adultez no olhar das crianças. Retomo as conclusões do capítulo anterior, quando sinalizo que as crianças têm a intenção de não esquecer da suas infâncias porque, assim o fazendo, se tornariam adultos melhores. A presença da infância na vida adulta, efetivada pelas lembranças, tal qual defendida pelas crianças, não é um mero momento de relaxamento proporcionado pelo devaneio da recordação, mas uma mediação dada através da evocação, no presente, da infância que foi. Ao discutir a memória infantil evocada na vida adulta segundo a maneira de ver das crianças, aprofundo as discussões em torno das suas incursões sobre o universo infantil no qual estão inseridas, no qual estão vivendo em ato. Aqui tocaremos na infância como experiência que se estende para toda vida, como elas nos sugerem pensar. Dessa forma, não esboçam um conjunto de regras a serem seguidas pelos adultos, mas uma malha ética e amorosa de acolhimento de um encontro que pode caminhar para alteridade da infância. Aí está a abertura para um belo projeto da adultez. Finalmente, por entre partidas e chegadas, vou, provisoriamente, arriando as minhas bagagens. Como viajantes inquietos estamos sempre remexendo as palavras ou buscando outras margens, outros pousos. Daí, a incompletude do conhecimento. Foi nessa perspectiva, que concluí este texto, ainda que saibamos que não exaurimos com um olhar uma paisagem. Há sempre algo que nos escapa. Reafirmo a localização dessa pesquisa na fronteira entre o mundo da escola e a infância. Retomo as questões, diluídas nos capítulos, para traçar, em linha gerais, o que foi possível reconstruir como sendo a compreensão das crianças sobre si mesmas, suas infâncias e a escola. Trago as infâncias como tempo, não como temporalidade mensurada, mas, desmensurada, dilatada, trêmula, fragmentada. Situo a infancialidade como tentativas das crianças de plano de fugas para espaços em branco, para o meio a meio, uma tentativa de realizarem-se como crianças, uma existencialidade reivindicada. 3 Aproprio-me da expressão de Manoel de Barros em seu livro “ Memórias Inventadas : A segunda Infância’(2006) . 21 2 OS CAMINHOS QUE TRILHEI PARA O ENCONTRO COM AS CRIANÇAS: entrelaçando memórias passadas e recentes de pesquisa As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis: Elas desejam ser olhadas de azul─ Que nem uma criança que você olha de ave. Manoel de Barros Neste capítulo, a minha intenção é memorar a minha travessia para chegar ao encontro com as crianças. Um encontro imaginado, planejado, muito antes delas saberem. Portanto, o ato de memorar nessa travessia é uma tarefa critica da pesquisa ao trazer para o presente o passado recente que foi. Apresentar a construção metodológica com esse título pode parecer estranho para um olhar tradicional/clássico sobre o processo de pesquisa. Minha intenção com essa visada é forjar uma tarefa própria de investigação, ou seja, evitar cair na tentação de transformar a metodologia da pesquisa em uma camisa de força, e me transformar em uma refém desta armadilha. São imagens-lembrança dos caminhos que me embrenhei, que me perdi e depois me achei para ir ao encontrar das crianças e ouvir o que pensam sobre a escola e suas infâncias. A imagem-lembrança, segundo Bosi(1994), em Halbwachs4, é reconstrução do passado no ato de recordar. Para a referida autora, Halbwachs não vai estudar a memória, como tal, mas os ‘quadros sociais da memória[...] a memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a igreja, com a profissão; enfim, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo[...] se lembramos, é porque os outros, a situação presente, nos fazem lembrar: ” (BOSI, 1994, p,54). Por essa razão, segundo essa autora, Halbwachs atrela a memória do indivíduo a do seu grupo, e esta última, à ao campo da tradição. Entende-se a tradição como a memória coletiva de uma dada sociedade. No caso da memória da pesquisa, são imagens-lembranças dos acontecimentos vividos por pesquisador e pesquisados. 4 Ecléa Bosi(1994) analisa a obra de Maurice Halbwachs em seu livro Memória e sociedade. 24 nossos primeiros encontros, tudo que tinha planejado como metodologia foi colocado em interrogação. As crianças deram um ritmo ao trabalho que exigia as suas presenças dotadas de valores humanos, elas queriam falar do jeito delas. Tomei consciência que, da mesma forma que busquei minha individuação no processo da pesquisa, elas também assim o fizeram. Era uma paisagem que se desenhava no ato mesmo da investigação, ou melhor dizendo, é uma paisagem que emergiu no entrecruzamento de fronteiras não nítidas, como nos diz Galeffi(2003, p.109), por entre a vida e a ciência. A investigação, pensando com o autor, é uma atitude radical em movimento, um caminho- sendo, o que está em curso, “ não falo de uma investigação passada, e sim de um movimento instante que avança pulsivamente no âmbito de sua projeção em um novo tempo dos ser-sendo”. O ser-sendo nos coloca como ser no e do mundo, como ser fenomenológico. Essa tomada de consciência exige uma inserção visceral dos sujeitos da pesquisa, de estar inserido na pesquisa como ser-pesquisador, “como um modo de ser──o ser que existe como modo de compreender” (MASINE, p. 63) Dessa forma, a compreensão de que cada um constrói sentido para a pesquisa e para si mesmo quando envolvido nessa tarefa, redirecionou todo o percurso até então, planejado. Alguém pode conjecturar que esse “vai e vem” ocasiona a perda da objetividade na pesquisa, entretanto, Bachalerd(2004, p. 84) nos fala que A precisão do ponto de partida não influi sobre a segurança da pesquisa. Psicologiacamente, a objetividade está sempre em perigo, ela necessita ser sempre reconquistada[...] se por um lado, a objetividade tem necessidade de ser reconquistada, por outro, tem a necessidade também de ser perdida, pois, só assim, podemos apreender sua dificuldade e seu sentido, pois, só assim, conseguimos experimentá-las a partir de planos diversos, dando fundamentos as suas correlações. Esse autor nos abre uma via para olharmos com atenção o refazer constante de uma investigação. Para um olhar desavisado, perder-se e achar-se nesse movimento seria correlativo a erros cometidos; são enganos inúteis, coisas imprestáveis que não cabem dizer em um texto sobre nossas metodologias. Bachalerd citado por Barbosa e Bulcão (2004, p.55-88) diria, “o ser puro é o ser desenganado” Essa condição do enganar-se como inerente ao sujeito na ótica bachelardiana desenha o processo 25 inacabado do conhecimento. Segundo as autoras, para Bachelard “[...] O conhecimento é, assim, o resultado de um trabalho ativo, no que diz respeito ao objeto, como também no que diz respeito ao sujeito”. Nesse horizonte, a abordagem qualitativa proposta pela fenomenologia acolheu as inquietações não só surgentes no encontro com as crianças, mas nos momentos solitários em que me debruçava sobre leituras, sobre métodos de pesquisa que vinha fazendo. Uso a expressão acolhimento para me referir ao fato de que a fenomenologia apreende não apenas o visível, o aparente, mas o que se esconde por trás da realidade iluminada pela luz da razão clássica. Refere-se também ao fato de que as experiências dos sujeitos são incorporadas à construção da descrição daquilo que é apreendido como objeto construído, é modo de ser, no meu entender, não só do ser-pesquisador, mas do ser-pesquisado. Dessa forma, os sentimentos das crianças sobre a escola e suas infâncias foram considerados como percepções sobre si mesmas, fazendo valer o que nas ciências humanas, nos discursos pedagógicos, lhes fora negado como forma de infantilizá-las para se exercer o poder sobre elas, a fala. Segundo Barbosa e Bulcão (2004, p.55), o método fenomenológico para Bachelard não se limita à descrição do fenômeno, mas traz a força da experiência individual para a descrição. Desse modo, podemos construir novos sentidos para o objeto de estudo como tarefa interrogante que se instaura na experiência vivida no presente, no instante mesmo em que acontece. Para Masin( 1994, p. 62): Não existe “ o” ou “um” método fenomenológico, mas uma atitude[...] de abertura de ser humano para compreender o que se mostra ( abertura no sentido de estar livre para perceber o que se mostra e não preso a conceitos ou predefinições)[...] A atitude fenomenológica para Heidegger é pois de retomar um caminho que nos conduza a ver nosso existir simplesmente como ele se mostra. Para o autor, Heidegger reeduca a nossa maneira de olhar o fenômeno, pois compreender é um modo de ser que é também um modo de compreender. Não há, desse modo, dicotomias no par sujeito–objeto. No meu entender, por essa via, foi possível viver e significar as várias questões que deram textura e densidade ao 26 movimento da pesquisa junto com as crianças, como poderá ser visto mais adiante neste capítulo. A metodologia é “[...] uma definição de uma cartografia de escolhas para abordar uma realidade”.( DESLANDE, 1994: 34): Essa imagem apresenta a pesquisa como sendo uma tarefa criativa no âmbito da ciência. Sendo assim, pensar a pesquisa por esse olhar, talvez, nos livre da tentação de conceituá-la como uma atividade instrumental e mecânica de produzir conhecimento. O objetivo em trazer algumas das tensões instauradas no campo da pesquisa para este texto fica por conta da minha preocupação em não reafirmar a idéia da pesquisa como tarefa mecânica puramente normativizada, como se fosse um receituário. Ao contrário, a considero um acontecimento criativo, aberto e inclusivo, uma poética que nos coloca frente à possibilidade de uma não domesticação dos sujeitos imposta pelo positivismo e reafirmada, ainda hoje, pelos guardiões de uma academia que se utiliza de dispositivos de poder para fazer valer o discurso científico que nos molda como sujeitos apenas da razão. É com esse sentimento que tomei o sentido da memória para narrar os caminhos por onde andei, me perdi e depois me achei na construção desta pesquisa. Escolhi essa via por concordar que a memória, quando vivida, narrada, permite trazer, enquanto narrativa, acontecimentos passados que podem desenhar uma possível consciência, no presente, sobre as experiências na construção da pesquisa. Aproprio- me das palavras de Levine (1997, p. 21) sobre o sentido de narrar, “o vínculo com a história não reside apenas nos efeitos de eventos passados; ele é inerente ao fato de que os compromissos duradouros dependem tanto do respeito pelo passado quanto dos pensamentos sobre o futuro". Assim, o meu percurso, por esses caminhos/margens ao longo do doutoramento, foi construído com uma atitude fenomenologia. As fronteiras, as passagens, as linhas de fugas, as errancias passo agora a descrever como memória. 29 ruptura mais radical enquanto pesquisadora, visto que escutar as vozes das crianças e trazê-las para o texto acadêmico, certamente, me conduziu para a construção de uma metodologia, cujo sentido da participação vai além da questão: Quem participa do quê? Mas, por que participa?E que lugar ocupa nesse processo?. Uma metodologia que não é apenas uma construção teórica, mas experiências vividas dos sujeitos envolvidos. Sabemos que as várias mediações que efetivam a construção das infâncias na sociedade brasileira e a forma como elas são ritualizadas revelam uma pluralidade identitária que não tem uma fronteira fixa. Embrenhei-me por vários caminhos para ir ao encontro das infâncias como práticas sociais sendo vividas, cujos autores/autoras, são as crianças. Os acontecimentos vividos neste trajeto passo a descrever nas seções seguintes. Começo com o encontro com os autores que de forma radical, mudaram os caminhos que tinha como previsíveis para chegar aos pontos de pousos. 2.2 O ENCONTRO COM AUTORES: leituras que me permitiram pensar entre margens Trago as lembranças ainda recentes das leituras das narrativas científicas e literárias sobre as infâncias. Não pretendo aqui traçar um mapa de todos os autores consultados e convocados para este trabalho, mas tão somente dizer como algumas leituras foram capazes de me re/localizar entre as margens que estruturaram o ritual da pesquisa e me levaram a mudar os rumos metológicos da investigação e a forma de abordá-los. O leitor notará que, nesse caminho, tive o encontro insólito com a filosofia e a filosofia da educação e com a literatura dos romancistas e dos poetas. Muito embora, não seja esta uma pesquisa essencialmente centrada na abordagem filosófica, muito menos, na análise literária da infância. No que toca à filosofia, a sua presença é marcante no meu texto, e digo o porquê. Na verdade, foi um encontro que se deu pouco a pouco. Ia conversando com alguns filósofos, notava a forma complexa e radical com que reinterpretavam a vida, os acontecimentos e, nisso, escutei a palavra “infância”, 30 senti uma sonoridade diferente, uma maneira singular de se referir à criança e sua aparição no mundo. Tinha algo na infância que me inquietava: o que era este tempo? Não ficava satisfeita com o que via na aparência iluminada pelas lentes objetivas de alguns estudos da sociologia e da pedagogia. A escuta me tocou, fui acolhida pelas palavras dos filósofos. Tal sentimento foi ampliado ao ler, ouvir, tocar e sentir as palavras de Manoel de Barros( 2003). Ouvir esse poeta me dizer: É preciso amar as palavras, cheirá-las, senti-las, escrevê-las sem desperdiçar um pedaço do papel. Compreendi isso, na leitura das suas palavras em “Escova”, na qual o poeta revela que observando os homens que se dedicavam ao serviço de escovar ossos, arqueólogos em busca de vestígios de antigas civilizações enterradas por séculos, aguçou o seu pensamento e desejo em escovar palavras. O leitor deve estar intrigado e deve querer saber: por que alguém tem tal pensamento e desejo? Como pode escovar palavras? O próprio Barros(2003, p. 1)) responde a essa inquietação, ele diria ao leitor: Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram cochas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores que estariam guardados dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria então escovar para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos. Comecei a fazer isso sentado em minha escrivaninha. Passava horas inteiras, dias inteiros fechado no quarto, trancado, a escovar palavras. Barros se refere à tarefa do pensar como um trabalho minucioso, complexo em que nada é jogado fora, ao contrário, os vestígios são dotados de serventia e sentido, até mesmo aqueles que são tidos como inúteis. Sob essa ótica, repensei a tarefa da leitura, parafraseando esse poeta, ler é escovar as palavras. Essa maneira de ler as palavras impregnou as leituras feitas por mim, sobre filosofia da educação e, a partir delas, fortaleci a posição assumida, inicialmente, de romper com a forma habitual de ver as crianças em nossos trabalhos, como seres mudos e infantilizados. O sentido do ser, a maneira como nós humanos edificamos a nossa humanidade, como conduzimos os nossos querer-ser e outros significados, foram sentimentos aflorados nessas leituras que tornaram visíveis os vestígios do viver como atitude do vivido. Portanto, a compreensão que trago da presença da filosofia neste trabalho é própria, é o que me 31 tocou como experiência de leitura. Dessa forma, também busquei, porque não dizer, escovar as palavras das crianças, dos poetas, escritores e de outros estudiosos da infância. Enveredar pelo caminho da polilógica que vem sendo discutido por Dante Augusto Gallefi6 exige de nós uma atitude para o aberto que sua escrita provoca. Penso que escovar ossos, como diz Barros(2003), não seja apenas serviço de arqueólogos, como também, escovar palavras não seja apenas serviço de poetas. Por essa razão, parafraseio a expressão escovar ossos, cunhada por esse poeta para criar uma imagem da leitura que fiz das falas dos filósofos da educação. Portanto, o aberto que a escrita de Gallefi (2003) provoca, a partir da tarefa de leitura ou o escovar palavras, está na possibilidade das coisas que dão vida ao mundo habitado fazerem parte de um filosofar com/na vida. Destaco que a sua postura polilógica para uma epistemologia do educar foi um caminho bastante frutífero para a minha compreensão da infancialidade como uma terceira margem entre a infância e a vida adulta. A terceira margem é assim, um lugar cunhado pelas crianças que fogem do controle do instituído, é uma reivindicação da infância como tempo presente, é o vivido agora. Fui encorajada por esse autor, durante a interlocução respeitosa que manteve comigo como orientador desta tese a fazer a minha própria travessia como uma atitude própria perante a pesquisa cientifica. Como ele mesmo diz: Com a palavra “ciência”, portanto, não queremos afirmar a possibilidade de verdades únicas a serem explicadas pela razão humana objetivamente disposta. Não usamos a palavra no sentido moderno, não falamos em ciência experimental ou natural, mas em ciência fenomenológica. Portanto, falamos de ciência em sentido propriamente filosófico, o que pressupõe uma absoluta liberdade de vôo.(GALEFFI, 2003, p.26) Fazer pesquisa com absoluta liberdade de vôo é uma provocação, um chamamento para a humanidade na produção de conhecimento como tarefa, no seu dizer aprendente. Esse percurso investigativo, no meu entendimento, tomado pela 6 Recomendo a leitura do livro do Filosofar & educar, deste autor, publicado pela editora Quarteto, 2003. 34 mundo característico à infância e que nos permitia ligar realidade e imaginação. Dessa forma, “todos os sentidos despertam e se harmonizam no devaneio poético”(BACHELARD,1998, p,13). Com essa leitura, compreendi que as palavras ditas pelas crianças sobre elas e suas infancialidades são, nessa perspectiva, uma polifonia dos sentidos escutada pelo devaneio poético e que são registrados pela consciência. As palavras são cheias de sentidos e criam o real, por isso seguir essa perspectiva. Um acontecimento recente pelas veredas da filosofia foi a leitura dos trabalhos do filósofo da educação Jorge Larrosa(2003;2004). Certamente, a radicalidade com que esse autor fala da infância, bem como de outros temas relativos à nossa condição de ser vivente, me fez repensar visceralmente a condução do meu trabalho, a maneira como me propus abordar a compreensão das crianças sobre suas infâncias na escola. Começo trazendo a forma como apresenta a infância. Muito embora ele não se refira a uma indústria da infância, coloca que o seu conceito é algo já capturado por nossos saberes, práticas sociais e instituições. Vejamos um fragmento do seu texto e entremos no devaneio de sua leitura, Podemos, no entanto, abrir um livro de psicologia infantil e saberemos de sua satisfação, de seus medos, de suas necessidades, de seus peculiares modos de sentir e de pensar. Podemos ler um estudo sociológico e saberemos de seu desamparo, da violência que se exerce sobre elas, de seu abandono, de sua miséria. Temos bibliotecas inteiras que contêm tudo o que sabemos das crianças e legiões de especialistas que nos dizem o que são, o que querem e do que necessitam em lugares como a televisão, as revistas , os livros, as salas de conferências ou salas de aula universitárias. Podemos ir a algumas lojas e encontraremos roupas de crianças, brinquedos de crianças, livros para crianças, objetos para os quartos das crianças. Podemos repassar o programa de espetáculos e veremos filmes para crianças, teatros para crianças, músicas para crianças, exposições para crianças, parques infantis, circos, festas infantis, programas de televisão para crianças. Se visitarmos a cidade, veremos escolas de música para crianças, escolas de artes plásticas, de dança, centros de lazer, ludotecas, centros poliesportivos. Se nos metermos em certos escritórios, veremos que há uma política social e educacional para a infância e, portanto, inúmeros planos e projetos para crianças, feitos tal qual se fazem os planos e projetos [...] se nos dedicarmos a conhecer pessoas, encontraremos logo multidões de professores, psicólogos, animadores, pediatras, trabalhadores sociais, pedagogos, monitores, 35 educadores diversos e todo tipo de gente que trabalha com crianças e que, como bons especialistas e bons técnicos, têm também determinado objetivos, aplicam determinadas estratégias de atuação e são capazes de avaliar, segundo certos critérios, a maior ou menor eficácia de seu trabalho.( LARROSA, 2003, p. 183-184 ) Esses são saberes que nos autorizaram e autorizam um exercício de poder sobre as crianças e suas infâncias. Essa perspectiva me fez tomar uma nitidez mais profunda em relação à matriz histórica que tece a surgência das infâncias entre nós. Esta é a infância anunciada que demarca, socialmente, dois mundos: o adulto e o infantil. Esse é o conjunto de saberes que, por sua vez, media a entrada da criança no mundo adulto. Entretanto, o autor nos provoca a pensar a infância para além do instituído, do óbvio, do que já sabemos ao dizer: “a infância é um outro. Entendo, sob essa compreensão, que há uma outra infância, não submetida à gana de poder e saber da ciência e seus territórios, há outra infância que não foi seqüestrada pelo mercado, pela industria cultural, pela lógica dos adultos. Então, o que é a infância como um outro? [...] aquilo que, sempre além de qualquer tentativa de captura, inquieta a segurança de nossos saberes, questiona o poder de nossas práticas e abre um vazio em que se abisma o edifício bem construído de nossas instituições de acolhimento. Pensar a infância como outro é, justamente, pensar essa inquietação, esse questionamento e esse vazio. É inserir uma vez mais: as crianças, esses seres estranhos dos quais nada se sabe, esses seres selvagens que não compreendem a nossa língua(LARROSA, 2003, p.184) Esta é deveras uma leitura instigante, visto que ele nos desconcerta, coloca- nos, o tempo todo, em uma tarefa interrogante, obrigando-nos a não ceder à tentação do óbvio, do aparente e do que já está iluminado pela razão clássica. Confesso que essa possibilidade de ler e sentir as palavras do autor inquietou-me em relação às presenças das crianças na feitura desta pesquisa. Indaguei-me: Como reinterpretar suas falas, expressões corporais, gestos expressados de apreço por mim e a maneira respeitosa com que acolheram meu trabalho e outros sentimentos que iam surgindo nas nossas convivências que formavam, aos meus olhos, suas imagens como pessoas?. 36 Seguindo o pensamento de Larrosa (2003, p. 184), ele nos diz que a “infância, entendida como o outro, não é o que já sabemos, mas tampouco é o que ainda não sabemos. Se há algo que já sabemos e, ao mesmo tempo, algo nos escapa desses saberes, algo que ainda não sabemos, qual a medida destas margens: já/ainda ? Na altura do caminho que já trilhei, perco-me novamente por um momento. Não reconheço as palavras, os sentidos, os desvios, as cores que compõem a trilha já percorrida. A idéia de que o poder está entre o que já se sabe e a possibilidade de saber, sugere uma lacuna, um vazio que não se preenche sobre as infâncias. Sugere, também, que poder não é só a busca desse saber, mas de submeter as infâncias a este conjunto de saberes, novamente perguntei: como eu vinha interpelando as crianças? O que queria saber e para quê? Instaura-se a necessidade de rever trilhas, buscar novas possibilidades de caminhadas e cheganças. O autor insiste em nos provocar, vejam o que diz, Então, onde estão a inquietação, o questionamento e o vazio, se a infância já foi explicada pelos nossos saberes, submetida por nossas práticas e capturada por nossas instituições, e se aquilo que não foi explicado ou submetido já está medido e assinalado segundo os critérios metódicos de nossa vontade de saber e de nossa vontade de poder?(LARROSA, 2003,p. 184-185). Surpreendentemente apresenta a radicalidade da infância como um outro, a alteridade. Aí está o território enigmático da infância, visto que ela não é, para ele, a construção objetiva do saber, ao contrário, ela escapa a qualquer objetivação e objetivos; em relação ao poder, ela não é o seu ponto de fixação, mas o coloca em uma fronteira de declínio, de limite exterior, em sua absoluta impotência. Para o referido autor, a infância como um outro está fora dos limites e do controle das instituições, é sua ausência na presença, porque é “aquilo que permanece ausente e não abrangível, brilhando sempre fora dos seus limites”(2003, p.185). Se a alteridade da infância não significa a resistência das crianças em serem capturadas plenamente por nosso saberes, práticas e instituições, e muito menos, que essa apropriação talvez nunca se concretize completamente, então o que é a alteridade da infância? Onde se localiza sua radicalidade? Para Larrosa(2003, p.185), “A alteridade 39 platônico sobre a infância, educação e crianças; não é por acaso que a escola aparece ora como salvação para as crianças, ora como algo que atormenta os personagens. Não é por acaso que a passagem criança-adulto é poetizada para nos falar sobre a aventura do homem na sua humanidade; não é por acaso que os dramas da infância são sempre narrados, lembrados na literatura. Como diz Lajolo (1997, p.228), “o trabalho com a infância, a literatura o faz na ‘surdina’”. Acrescenta que a literatura Enquanto formadora de imagens, a literatura mergulha no imaginário coletivo e simultaneamente o fecunda, construindo e desconstruindo perfis de crianças que parecem combinar bem com as imagens da infância formuladas e postas em circulação a partir de outras esferas, sejam elas cientificas, políticas, econômicas ou artísticas.Em conjunto, artes e ciência vão favorecendo que a infância seja o que dizem que ela é...e, simultaneamente, vão se tornando o campo a partir do qual se negociam novos conceitos e novos modos de ser da infância( grifo da autora) Foi assim que, ao colocar os óculos para ler a literatura romancista brasileira, enxerguei, nesse horizonte, os temores de Miguilim, personagem do livro de Guimarães Rosa “Manuelzão e Miguilim”, ao saber que seu pai intenciona alfabetizá-lo para que não siga no atraso da ignorância. Como não prestar atenção às formas de opressão e sujeição sofridas pelas crianças do romance “Infância”, de Graciliano Ramos? Como alcançar a grandeza da infância na poesia de Manoel de Barros? O que dizer da infância revisitada e memorada poeticamente por Cora Coralina ? Talvez, não haja fôlego para tantas respostas, todavia, é inegável a riqueza da literatura para conhecermos, na formação da sociedade brasileira, as formas de construção do sentimento infantil. E, nesse caso, pensar o que as crianças disseram, nesta pesquisa, também, com a literatura é tecer a textura, a tessitura da historicidade de suas falas mediadas por outras agências que não são apenas a escola e ciência com suas especializações. 40 2.3. O ENCONTRO COM AS CRIANÇAS Uma das identificações dos sujeitos desta investigação são seus sentimentos diante da pesquisa, os quais consegui captar como marca de auto-valorização por estarem participando de um empreendimento cujas presenças têm visibilidade, têm suas autorias. Diante disso, tomei tais sentimentos como procedimentos metodológicos de apresentação desses sujeitos-crianças. A fenomenologia, de certo, possibilitou buscar uma metodologia que assegure as significações que impregnam a forma como pesquisador e pesquisados se envolvem na construção da pesquisa. Na sofisticada tecnologia científica, o sujeito da pesquisa passa a ocupar o lugar de objeto morto, manipulado pelo rigor dos procedimentos epistemológicos que garantem o fetiche pela objetividade. A cientificidade, então, está posta na oposição entre o nós e o outro. Barthes (apud Costa,1995:18) apropriadamente fala, Estou preso nessa contradição: de um lado, creio conhecer o outro melhor do que ninguém e afirmo isso triunfalmente a ele (Eu te conheço. Só eu te conheço bem!); do outro lado, sou freqüentemente assaltado por essa evidência: o outro é impenetrável, raro, intratável; não posso abri-lo, chegar até a sua origem, desfazer o enigma. De onde ele vem? Quem é ele? Por mais que me esforce não saberei jamais. Essa é uma intencionalidade que não se faz neutra, porque mesmo sabendo ser o “outro impenetrável”, “raro”, “intratável”, mesmo concordando que “não saberei jamais”, esforcei-me em abri-lo, para decifrar o seu enigma e, principalmente, para reinterpretá-lo ( OLIVEIRA, 1999). Tudo isso me faz trazer para este trabalho algumas inquietações sobre a ritualidade da pesquisa. São tensões, conflitos e ações na busca do conhecer o outro. Pensar a infância como objeto da ciência, não seria localizar a criança, o outro exótico? Não seria pertinente a provocação de Larrosa (2003, p.183) quando diz: “As crianças, esses seres estranhos dos quais nada se sabe, esses selvagens que não entendem nossa língua”?. Ao pretendermos investigá-las, desfazer o enigma como tarefa de pesquisa, não podemos prever nem mensurar a força das 41 significações que as crianças imprimem no acontecer da pesquisa. A maneira como se inseriram na pesquisa, como organizaram e agendaram nossos encontros e como impregnaram de valor suas participações é uma expressão desse mistério. Participaram da pesquisa quarenta crianças entre seis e doze anos. Devo ressaltar que: primeiro, a participação na pesquisa era livre, o critério era desejar compartilhar esse trabalho. Decisão que elas tomaram após uma exposição do que era a pesquisa; segundo, embora a maior parte dos encontros tenha acontecido nas escolas, não foi considerado como pretensão investigá-la. Nesse caso ir até a escola, foi um recurso operativo para viabilizar a investigação com um maior números de crianças. Algumas foram entrevistadas fora da escola, em suas casas, por exemplo, por sugestão delas, acharam que assim ficariam mais à vontade, já que o intervalo da escola era muito curto. Dessa forma, foram formados cinco grupos compostos de alunos e alunas das escolas: Miguel Calmon, Ivo Bono, Via Magia, Cupertino Lacerda e Phateon. Foi incluída, ainda, uma criança de nove anos que estuda no Colégio São Paulo. O primeiro grupo foi formado por alunas da escola Miguel Calmon da rede pública de ensino no final de 2004. Cheguei até elas através da vice-diretora que já me conhecia, expliquei-lhe a pesquisa e ela permitiu a minha entrada nesta escola. Doze crianças, dois meninos e dez meninas, inicialmente aceitaram participar da pesquisa, logo depois os dois meninos saíram do grupo. No inicio da pesquisa as crianças tinham entre nove e dez anos. Hoje estão com onze e doze anos. Todas moram em comunidades pobres, são afro-descedentes, os pais exercem profissões mais diversas como pintor de parede, motorista de ônibus. As mães trabalham como diaristas, empregada domésticas e no comércio local. Quatro delas moram com as avós, têm pais separados. No turno oposto à escola, fazem tarefas domésticas. Gostam de brincar, muito embora, digam que, muitas vezes, em casa e na escola são proibidas de brincar. Passaram por diversas escolas públicas, algumas por particulares. Perguntei o que as motivaram a participar na pesquisa e, de modo geral, responderam que ninguém nunca se interessa em saber o que elas têm a dizer. Reconheceram a importância de suas participações porque, segundo elas, é bom que as pessoas saibam o que pensam as crianças sobre a escola. Então, falar e ser 44 serem escutadas. Considerei todos esses acontecimentos como importantes no movimento da pesquisa. O segundo grupo foi composto de oito crianças de seis anos, sendo quatro meninos e quatro meninas. Formavam uma turma de alfabetização da Escola Phanteon. Meu contato com essa escola ocorreu através da mediação de aluna do curso de pedagogia da faculdade em que trabalho. É uma escola privada e fica situada em um dos bairros nobres de Salvador. Meu acesso foi articulado por uma aluna da faculdade em que sou vinculada. Trabalhei com esse grupo nos meses de abril e maio. São crianças, segundo informação da professora, de famílias de classe média. Têm algumas que passam o dia todo na escola, um turno estudam e no outro fazem as tarefas e recebem orientação pedagógica. Fazem atividades como capoeira dança, música e informática. Caio me disse: “Faço capoeira, porque dança é só para as meninas”, Alice de pronto retrucou dizendo: “Nada disso, os meninos também podem dançar e as meninas podem fazer capoeira”. Eduarda disse: “Eu faço capoeira e não sou um menino”. E assim, eles iam falando sobre si mesmos. Disseram-me que gostam de assistir a TV, de fazer passeios com os pais e brincar com seus melhores amigos. Adoram a escola e a professora. Antes de conversar com as crianças, fui apresentada à professora e expliquei sobre a pesquisa. Logo em seguida, ela consulta a turma e todos aceitam participar dos trabalhos. Então, explico para todos o que é a pesquisa. Disse que iria gravar nossas conversas e eles/elas ficaram empolgados, pois me disseram que adoram ouvir a própria voz no gravador. Pergunto de que outra forma gostariam de falar o que pensam, escolheram o desenho. Depois de alguns encontros, no decorrer da semana, fica definido que, para não alterar as atividades planejadas pela professora, passo a encontrá-los sempre às sextas-feiras, Pedro disse, “Na sexta, a gente não tem informática, você pode brincar com agente no recreio, mas você tem de trazer seu lanche”. Concordo com essas recomendações. Esse grupo foi o que mais subverteu a minha tarefa investigativa em momentos de brincadeira. O gravador foi transformando em um brinquedo exótico, todos queriam manuseá-lo. Todos queriam ser entrevistador. Então, resolvemos organizar as entrevistas de modo que cada um fosse entrevistador e 45 entrevistado. Em seguida, cada um ouvia o que tinha falado. Sempre achavam graça ao escutar a própria voz. Com isso, tivemos que aumentar os dias para as gravações. O terceiro grupo foi formado foi com alunos do colégio Cupertino Lacerda da rede pública. O primeiro encontro com estes/estas alunos/alunas ocorreu na sala de aula da 5ª série, do turno vespertino, com uma média de vinte alunos entre nove e quinze anos. Segundo o mapeamento feito por estes estudantes, havia na sala apenas quatro crianças entre nove e doze anos, todavia apenas dois se reconheceram como tal e aceitaram participar da pesquisa. Mesmo as crianças de doze anos se diziam “pré- adolescentes”. Apresento meu trabalho, digo o que estou pesquisando. Os que se diziam “mais velhos” indicavam os que, segundo eles, eram crianças: “. Foi dessa forma que apenas Jonatas e Fabiana passam a fazer parte da pesquisa. São crianças que moram em comunidade pobres de Salva\dor, os pais trabalham o dia todo. Jonatas fala um pouco da sua família, tem dois irmãos que também trabalham e estudam. Gosta da família e diz que é bem cuidado pelos pais. Decidiu fazer as entrevistas. As gravações sempre ocorreram antes do início da aula. Quando a sirene tocava, tinhamos de interromper e marcávamos outro dia pra continuarmos. Levei ao seu conhecimento o roteiro de entrevista elaborado pelo primeiro grupo de alunas do Colégio Miguel Calmon, li o roteiro e ele disse: “Legal” . Perguntei se gostaria de acrescentar mais alguma pergunta e ele disse que as perguntas estavam boas. Por conta do tempo reduzido tivemos seis encontros para as gravações e conversas informais. A outra criança, Fabiana, não quis falar da família, disse apenas que tem uma irmã que estuda no mesmo colégio que ela. Disse que não gostaria de gravar entrevistas porque tem vergonha de falar e me perguntou se podia escrever. Entrego a ela um caderno para que possa fazer suas anotações. As devoluções dos primeiros escritos ocorreram três semanas depois, conforme ela demarcou, tive que esperar o seu tempo. No caderno escreveu poemas, letra de mùsica, mensagem de auto-ajuda. O quarto grupo. Esse grupo foi formada por Roberta, nove anos. O contato com essa criança ocorreu através de sua mãe, aluna da disciplina que eu leciono na faculdade em que trabalho. Roberta sempre acompanhava sua mãe no horário das minhas aulas. Nessas ocasiões conversava comigo, assim, fiz o convite para que 46 participasse da pesquisa. Ela aceitou e imediatamente sugeriu a inclusão de suas amigas e colegas da escola: Clara e Lúcia. Ficou por sua conta agendar o nosso primeiro encontro. Após ter marcado a data, ligou para mim e disponibilizou os telefones de contado das mães de suas colegas. Esse grupo, também, só gravava as entrevistas quando estavam todas juntas, dessa forma trabalhei com entrevista coletiva. Em outros momentos, conversávamos sobre a escola, as coisas que gostavam de fazer. Roberta agendou dois encontros em sua casa. No primeiro, só foi Clara, por conta disso, apenas conversamos. Nesse dia, a conversa foi interrompida para que elas colocassem um CD contendo músicas feitas pelos alunos da sua escola. Roberta me solicita atenção especial para ouvir a música composta por ela, Clara e Lucia. Em seguida, convidaram- me para assistir a um programa infantil “O sítio do Pica-Pau Amarelo”7. Durante as conversa, elas sempre disputavam a vez para falar, nesse caso, chegamos à conclusão que seria melhor organizar as conversas para que todas tivessem a oportunidade de falar. Novamente disputavam quem falava primeiro. Elas sempre, a seus modos, entravam em acordo O quinto grupo foi formado dezoito crianças, sendo dez meninas e oito meninos da escola Ivo Bona, vinculada à rede pública municipal de ensino. A idade era entre seis e onze anos. A escola fica localizada em um condomínio de luxo na região de Vilas de Atlântico, em Salvador. Ela atende aos filhos dos caseiros desse condomínio. A escola tem uma única sala de aula e a professora trabalha com a denominada classe multiseriada, são vários níveis de escolaridade em uma mesma sala. Assim, como nas outras escolas, tive um primeiro encontro para expor a pesquisa para as crianças. Quem me recebeu foi a representante da turma, uma menina de dez anos que me conduziu até à sala de aula. Passo uma manhã com eles. Em seguida todos se apresentaram, disseram seus nomes e o que cargo que ocupavam na escola(os cargos são: representante de sala, encarregado da horta, limpeza, recreio). A professora perguntou quem estaria interessado em participar da pesquisa e cada um ia levantando a mão e dizendo “eu professora”. Nossos encontros foram interessantes, alegres e prazerosos. Participei de algumas aulas, lanchei junto com eles e partilhei o recreio. Nesses momentos, conversamos sobre as brincadeiras preferidas, o que mais 7 Este programa é exibido pela Rede Globo de Televisão de segunda a sexta todas as manhãs 49 [...] E pensar não é somente “raciocinar” ou “calcular” ou “argumentar”, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acontece. E isto, o sentido ou o sem-sentido, é algo que tem a ver com as palavras. E, portanto, também tem a ver com as palavras o modo como nos colocamos diante de nós mesmos,diante dos outros e diante do mundo em que vivem Disse, inicialmente, que acolher as falas das crianças com o valor que elas têm é uma política de significados que está presente neste trabalho. Assim, entendo as palavras de Larrossa ao dizer que pensar “é sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acontece”. A entrevista coletiva permitiu que os sujeitos se colocassem dando sentido ao que são e ao que lhes acontece na relação com o outro. Por essa razão, vozes são elevadas, tonalidades verbais são empregadas, emoções são expressas e cooptadas, poderes são desmontados e refeitos, concordâncias são negociadas. Essa tessitura foi construída por todos os participantes dessa pesquisa que pensam, falam e são tomados pelas palavras. É uma tessitura que se efetiva em uma rica desordem. Para realizar as entrevistas com o grupo de crianças com idade de seis anos, usei o desenho, sugerido por elas, para provocar a fala. Meu procedimento foi solicitar que falassem dos desenhos e ia gravando. Essas gravações ocorreram coletivamente, as crianças gostaram de manusear o gravador digital, depois queriam ouvir suas vozes. Isso ocorreu cada vez que uma delas falava sobre seu desenho. Isso fez com que a entrevista se tornasse longa, também, foi difícil para transcrevê-las, isso porque as crianças falavam ao mesmo tempo e davam palpite no desenho do colega, gerando, muitas vezes, discordâncias. Na verdade foi um clima extremamente lúdico. - Registro escrito das falas. Esses registros foram feitos pelas crianças e por mim. Utilizei o caderno para as crianças com o objetivo de ordenar a escrita; textos avulsos, atendendo àquelas crianças que não aceitaram o caderno; anotações de campo, usadas por mim. No que se refere aos meus registros, busquei intencionalmente captar conversas com suas entonações, dúvidas, intenções, contradições tão comuns em nossas maneiras de ver o mundo e as coisas deste mundo. Quanto aos que foram feitos pelas crianças, orientei que anotassem livremente o que pensavam sobre suas infâncias e a escola, acontecimentos, principalmente 50 ocorridos na escola. Foi um exercício de escrever o que sentem, momento particular com o ato de escrita. Quanto aos cadernos de anotação foram usados sem a pretensão de ser diário no sentido originário da palavra, isso porque tendo feito um teste piloto, anteriormente com seis crianças, o diário não agradou porque elas não queriam ficar presas à obrigação de anotar os acontecimentos numa certa cronologia, algumas acharam chato ficar escrevendo todo dia. Nesse caso, tomei a decisão de trabalhar com o caderno apenas para que elas registrassem algum acontecimento que julgassem importante. Mesmo assim, nem todas aceitaram o caderno. Para minha surpresa, elas deram outro sentido ao caderno e diziam que era um tipo de “ diário”, perguntei qual era a diferença, Cristal respondeu:” Esse [o caderno] a gente pode mostrar pra senhora, o diário não, tem nossa privacidade”. Para ficar parecido com o diário, elas decoraram com figuras, desenhos, pintaram as bordas das páginas. Como não havia direcionamento, as crianças escreviam de tudo no caderno, desde letra de música, oração, dizeres de auto-ajuda, recados foram escritos pelas colegas, declaração de amizade e afeto. O que me valeu para ampliar meu conhecimento sobre elas e suas formas de se apropriar dos artefatos culturais. Vale dizer que três cadernos foram rasgados pelas mães de algumas meninas como forma de punição. Um foi motivado pelo fato de Manoela não ter feito as suas tarefas domésticas; o de Venessa foi porque a mãe leu um recado, escrito por uma amiga, cujo conteúdo insinuava interesse pelos meninos; e a mãe de Luisiane, que ao ler o caderno, localizou palavrões. As crianças ficaram revoltadas, disseram que isso era falta de respeito. Cristal disse que sua mãe deu o caderno dela para o tio ler, e falou: “Não é porque a gente é criança, professora, que não temos a nossa privacidade[pausa].. minha mãe não tinha o direito de fazer isso “. Elas me pediram novos cadernos e disseram que não iam deixar mais as amigas escreverem as mensagens e iam escondê-los em casa. Também foi usado pelas crianças o bilhete como forma de registro. Esse tipo de texto foi sugerido pela professora da escola Ivo Bono. Na verdade, esse tipo de texto é usado cotidianamente pela professora para a produção da escrita. Há um correio na sala, cada criança tem o seu envelope preso em um mural, assim, cada bilhete direcionado a ela é depositado neste envelope. A professora perguntou na sala: “Quem 51 vai escrever bilhete para Tereza? Todos responderam “ Eu vou” . Eu também enviei “bihetes “para eles por e-mail, a professora levou para a sala e fizeram a leitura. O correio é uma troca de falas e afetos que reveste a escrita de positividades na sala de aula. Conclusão dos trabalhos com as crianças. Pra concluir os trabalhos com as crianças, solicitei que avaliassem suas participações nessa pesquisa. Algumas me responderam: “ Foi bom, porque o que eu disse tem importância para você e todo mundo fica sabendo como pensam as crianças”(Jonatas, 12 anos); “ Sim, porque falei o que penso”.(Eva, 12 anos); “Professora, com senhora falei o que acho....e isso é importante, foi cem por cento legal”(Cristal, onze anos); “ Porque com a senhora a gente conversou e a senhora parou para ouvir e não achou besteira o que a gente falou”(Mia, 12 anos); “ Gostei porque foi divertido”( Caio, seis anos); “ Eu falei sobre as coisas que gosto de fazer. Falei da criança” ( Eduarda , seis anos); “ Gostei das brincadeiras” ( Rafeal, seis anos); “ Achei legal” (Alice, seis anos); “ Isso foi muito bom , gravar.porque eu gosto de gravar” (Pedro, seis anos); “Ah...a gente deu opinião,.é isso”( Thiago, nove anos). As meninas do primeiro grupo pediram para ver o texto escrito, o interesse era localizar como foram citadas no texto, Cristal disse: “A gente quer ver como a senhora colocou nossas entrevistas...o que a gente falou”. Retornei dias depois, conforme tínhamos combinado, com um rascunho do texto, todas sentaram à minha volta e à medida que liam os trechos com suas falas diziam: “Olha meu nome, Tereza colocou tudo que a gente falou para ela”(Eva). Nesse movimento, as páginas iam passando de mão em mão, a cada reconhecimento do nome, elas expressavam a alegria de ter sua autoria reconhecida. A troca dos nomes é um procedimento usado para preservar as identidades individuais dos sujeitos que participaram da pesquisa. Levei essa questão para ser discutida com as crianças, muitas não gostaram de ter seus nome trocados. Isso porque gostaram de vê-los citados no texto. Então, sugeri que cada uma escolhesse um nome que gostasse e tivesse algum significado para elas.Essa troca de nome tomou uma dimensão não esperada, algumas crianças pediram um tempo para pensar e decidir, pois para elas tinha que ser um nome com algum significado importante, 54 e em todas elas senão uma realização do mesmo Um.. Como, então, escolher entre os dois ou entre uma delas? Na verdade, não escolho nem um e nem outro, mas escolho a mim mesmo, ou melhor, escolho o que me escolheu nesta aproximação com o sendo-ser. E porque eu mesma não escolhi a mim mesmo mas fui escolhido, atendo ao chamado do que me é possível enquanto ser humano: conhecer –me a mim mesmo e pensar. Nesta possibilidade, nem a fenomenologia de Husserl e nem a hermenêutica fenomenológica de Heidegger são caminhos possíveis para quem quer que seja, porque trazem a marca do acontecimento da plenitude humanamente vivida. Parque pudesse ser caminhos possíveis para quem quer que seja, cada um de nós teria que ser Heidegger ou Husserl sem tirar e nem pôr. Toda leitura filosófica é sempre uma aproximação nunca uma coincidência. (GALEFFI, 2003, p.113) Para o autor, a questão não se coloca entre escolher Heidegger ou Husserl, “ mas o pensar mesmo, em si mesmo, além de si mesmo”. Para um olhar desatento, essa visada parece defender o ecletismo, mas o autor logo nos diz, “Ao ajuntar Heidegger com Husserl, apenas como caso pontual, não corro o risco de cair em nenhum ecletismo filosófico. Isto porque para mim Husserl e Heidegger são incomparáveis, assim como são incomparáveis todas as realizações criadoras.”. Essa compreensão, designada pelo referido autor, como polilógica do pensar filosófico e defendida com tanta radicalidade, me levou a outros caminhos pensantes sobre a subordinação do pesquisador aos ditames de uma prática científica mantida pelas academias. Uma prática que embasa a grandeza da ciência, todavia nos afasta de sua potência e nos renega a condição de ser pensante, querente, desejante como condição da existência humana. Creio que a autonomia do sujeito frente a sua condição de ser–pensante/falante foi fundamental para as leituras que fiz dos autores convocados, nesta tese, para um diálogo não só com eles, mas com as crianças. Portanto, o encontro com a teoria, necessária à tarefa da interpretação, não se deu com o aprisionamento às chamadas tendências teóricas, uma adesão a uma única via. Preferi ir ao encontro dos autores, ser acolhida por aqueles que têm um diálogo possível com o tema em questão. Com eles, teci cumplicidades sabendo que cada um tem sua maneira particular de dizer coisas. Dessa forma, o encontro com os estudiosos sobre as infâncias deu densidade e textura à minha aproximação com o que habitualmente chamamos de realidade. 55 Nesse horizonte metodológico para a construção da reinterpretação, na sua forma escrita, segui uma trilha da descontração hermenêutica sugerida por Bastos(2005, p. 322) que [...] interroga, reinterpreta, reelabora historicamente os sentidos e os significados das coisas, dos fatos e dos acontecimentos”. Para efetivar operativamente essa via, procedi da seguinte forma para as falas gravadas: primeiro, escutei três vezes cada entrevista, essa freqüência para a repetição me possibilitou formar um contexto amplo do que foi falado, muitas vezes quando estamos gravando, perdemos essa dimensão; segundo, selecionei, a partir da escuta, e transcrevi os fragmentos das falas que iria trabalhar; terceiro, fiz a leitura e uma interpretação geral desses fragmentos textuais para buscar os núcleos frasais; quarto, para cada núcleo frasal, uma nova leitura foi feita já direcionada, para encontrar o sentido aparente e oculto e suas significações múltiplas que sustentam o discurso das crianças nesses fragmentos. Para as falas escritas (bilhetes, mensagens escritas nos cadernos e pequenos textos escritos) tracei os seguintes procedimentos: primeiro, fiz a leitura das escritas para uma compreensão contextual; depois, segui o terceiro e quarto procedimentos utilizados para as falas gravadas. Na seqüência, a interpretação foi assumida como uma tarefa analítica no sentido de que é um “trabalho do pensamento que consiste em decifrar o sentido aparente, em desdobrar os sinais de significação implicados na significação literal...há interpretação onde houver sentido múltiplo e é na interpretação que a pluralidade de sentidos torna-se manifesta”(MASINI, 1994, p.63). A intuitividade também foi assumida como via possível para a interpretação por concordar com Bastos e Porto (2005) quando dizem que a intuição é companheira inseparável da razão. Tal afirmativa não se sustenta no vazio, pelo contrário, os autores assim a fazem por considerar que a tarefa da interpretação hermenêutica é antes de tudo ontológica. Nesse caso, a interpretação, segundo Bastos e Porto (2005, p. 317-318), na hermenêutica Heidegger-Gadamer [...] não é um mero componente psicológico ou mental do homem, mas, como assevera Gadamer em Verdade e Método, o modo de ser è compreender tipicamente humano, interpretação que efetua fundamentalmente uma compreensão antropológica ou uma tradução de 56 uma realidade, a nossa realidade, isto é, a nossa maneira de captar o real, do conhecimento do ser pelo homem. Nesse visada, a interpretação, segundo os autores, nos solicita como ser-no- mundo porque só o “homem é no mundo”. Reescrevendo o que dizem os autores, a interpretação é uma tarefa do ser-pesquisador porque estamos no mundo e estar no mundo nos coloca em confronto com outros entes. Essa condição ontológica desenha o campo da pesquisa como existencial, por isso, devemos considerar que a compreensão do nosso estar no mundo não se efetiva apenas com a razão, mas com a nossa própria condição de ser- no- mundo que implica em compreender com , junto a outros entes- .Nesse caso, a reinterpretação não se sobrepôs às interpretações das crianças, mas partilham a escrita tecendo o contexto polilógico polifônico. Por essa razão, ao trazer para o texto suas falas como foram ditas nas entrevistas, conversas e registros escritos, não o faço no sentido da ilustração, exemplos ou comprovação do que digo como é comum nas pesquisas descritivas, mas como uma forma textual de tornar visível o que falam. Ressalto que não se perdeu de vista o contexto amplo da própria fala das crianças, bem como a tessitura das suas incursões na sociedade como sujeitos sociais. As travessias que compõem a geografia dessa tese(o texto) são habitadas pelas crianças, estas nos conduzem a ver a infância de dentro. A partir de suas próprias vozes mostram uma escola ocultada no discurso pedagógico; mostram o lado sombrio de uma infância datada, projetada a partir do olhar narcísico dos adultos; mostram que mesmo com uma certa liberdade concedida pelos adultos, elas continuam subjugadas, silenciadas e invisíveis; e, finalmente, mostram como opera o exercício do poder dos adultos sobre elas. Sendo assim, olhando atentamente o conjunto de citações das falas das crianças e a articulação dialógica entre elas e as falas dos autores convidados (filósofos, poetas e escritores), podemos perceber que esta visada é analítica e intuitivamente uma das formas de dar a voz às crianças e respeitá-las como compreensões das experiências vividas. Ressalto que assumi falar na primeira pessoa porque o pesquisador é um sujeito de carne, osso e sangue, o que amplia a dimensão existencial do fazer da pesquisa. Nesse caso, há um sentido antropológico que localiza o pesquisador investido da sua pessoalidade, como atitude de inserção no seu próprio processo de 59 3 AS INFÂNCIAS SEGUNDO AS CRIANÇAS : devaneios poéticos em construção nas infancialidades A criança não é nem antiga nem moderna, não está antes nem depois, mas agora, atual, presente. Seu tempo não é linear nem evolutivo, nem genético, nem dialético, nem sequer narrativo. A criança é um presente inatual, intempestivo, uma figura do acontecimento. Jorge Larrosa, Neste capitulo, intenciono trazer para a cena aquilo que me foi possível compreender como uma construção das crianças sobre o sentimento das infâncias. Atendo assim a uma das questões que me proponho a responder: como as crianças percebem a si mesmas e as suas infâncias? É um texto que traz uma discussão mais geral sobre a infância e o ser-criança. Ressalvo, entretanto, que não se trata de uma revisão de literatura sobre a temática, tão comum na abertura de textos acadêmicos, mas, desde já, um entrelaçamento entre as falas das crianças participantes desta pesquisa, as falas dos autores convidados e a minha. É um percurso que acredito como possível para tornar efetiva as presenças das crianças, neste texto, através da grandeza dos seus devaneios poéticos da infância ainda em construção. Assumi esta via por entender que já se disse muito sobre as crianças e por elas.Nesse caso, não tenho a pretensão de legitimar nenhuma teoria e muito menos cultuar nenhum autor. Leal (2004) a esse respeito situa em nossas tentativas, ainda que bem intencionadas, um paradoxo, visto que ao mesmo tempo em que buscamos conhecê-las, decifrar seus modos de pensar, de conhecer, de se comportar, de amar, dentre outros, afastam-nos dela. Ainda, segundo Leal (2004, p.22), “não há mais o que dizer sobre a infância. Melhor assim. Se não há mais o que dizer sobre a infância, talvez tenha chegado o momento de aprendermos com as crianças o que a infância tem a nos dizer” Outra questão que move essa escolha é que normalmente, nas pesquisas, os dados não são construções do pesquisador, mas uma amostra da realidade “colhida em campo” sem contaminação. Ora, todo objeto de estudo é uma construção uma 60 construção simbólica do pesquisador. Então, qual o sentido de separar as narrativas dos autores sobre nossos temas das narrativas dos sujeitos envolvidos nas pesquisas? Para não torná-los presentes, não contaminar o território sacrossanto do conhecimento objetivo/racional. Portanto, nessa via não me proponho a fazer um percurso higienizado para falar das infâncias e a escola. Digo mais, os meus sentimentos sobre o par infâncias/crianças, certamente, estão entremeados ao longo deste texto. Escrevo não com a pretensão de uma tradutora autorizada pela ciência para falar do par crianças/infâncias, mas como leitora seduzida pela grandeza e beleza de palavras ditas pelas crianças. Debruçar-me sobre a sua leitura exigiu de mim uma tarefa aberta do pensamento para ir ao encontro das infancialidades. E sobre esse encontro Larrosa (2003 p, 197) diz: [...] a experiência do encontro só pode ser transmutada numa imagem poética, isso é, numa imagem que contenha a verdade inquieta e tremulante de uma aproximação singular ao enigma. Nesse sentido, talvez seja correto o que diz Peter Handke: ... nada daquilo que está, constantemente, citado a infância é verdade; só o é aquilo que, reencontrando-a, a conta Foi assim, contagiada por essa visada belíssima, que efetivei esta pesquisa como uma experiência aberta para o inusitado, para aquilo que o autor prefere denominar como sendo “uma imagem a partir do encontro com a infância”. Nessa leitura, abri minha mente para o entendimento do devaneio voltado e sobre as infâncias, como construções significativas e dignificantes, cujo autores desta obra são meninas e meninos, ainda que sejam boicotadas/ boicotados, interditadas/interditados, silenciadas/silenciados nas fronteiras que demarcam desde sempre o mundo adulto do mundo da infância ou a adultez e a infancialidade. Penso que, a partir daí, seja interessante inicialmente dizer ao leitor em que sentido uso a palavra devaneio poético nos dois títulos deste capítulo e, da mesma forma, a infancialidade. Minha intenção foi anunciar desde já o que as crianças pensam sobre si mesmas e suas infâncias, daí, o uso da expressão, em construção para dar sentido ao instante de suas formulações. Reside, aí, um sentimento político que impregna esta pesquisa com as crianças. Gostaria de dizer, também, que escolhi essa 61 via contagiada pela poética de Gaston Bachelard sobre o devaneio da infância. Portanto, tomei a liberdade de reescrever o título “Os devaneios voltados para a infância” do capíulo três do seu livro “A poética do Devaneio”, para titular este capítulo Os devaneios poéticos das crianças sobre as infâncias” . Então, o que significa dizer os devaneios das, no lugar de voltados? O devaneio voltado para a infância é o retorno do poeta à sua infância, a uma infância que, segundo Bachelard (1988 p. 122), enquanto “[...] soma das insignificâncias do ser humano, tem um significado fenomenológico próprio, um significado fenomenológico puro porque está sob o signo da maravilhamento” O autor vai situar nessa infância uma importância do devaneio típico para o artista, para o imaginário do poeta, há, aí, uma infância eterna como parte da alma humana. O autor diz que temos um núcleo infantil que nos acompanha pelo resto da vida. Ora, esse núcleo infantil só se forma na infância, no acontecimento, como nos diz Gallefi(2003), do aprender a ser no mundo. Nesse sentido, a palavra das designa que são devaneios das crianças, não evocados na adultez, mas, são formulações sobre si mesmas e suas infâncias, agora no presente sendo vivido. Reescrevendo as palavras do autor, penso que a infância presente está na ordem do aprender a ser no mundo, porque as coloca como o ser-aprendente na esfera do comportamento societário, visto que aprendemos a ser, a pensar, a viver—junto, a fazer, a ver, a falar, entre outras coisas. Nesse sentido, para ele, o aprender a ser em si mesmo, em instantes vividos é uma atitude fenomenológica. A leitura que faço dessas palavras me permite pensar que ser em si mesma, também, nos localiza na esfera da solidão, de uma revolução silenciosa, do silêncio poético e criativo como condição para o aprender a ser em tempos diversos. Isso que dizer que cada um de nós tem o seu tempo, como instante de criação. Para o Galeffi, o instante nos coloca entre o já foi e o é como temporalidade germinal que insinua uma incompletude do ser. “Só o que não é não pode nunca tornar-se. O que é, é sempre um ser sendo”(2003, p.112) É nesse sentido que compreendo as infancialidades como a infância sendo. A visão bachelardiana da infância é de uma fonte fenomenológica das primeiras sensações, percepções intuitivas que se singularizam a cada pessoa. Por essa razão, a infancialidade é grafada no plural—infancialidades, porque como nos diz Gallefi(2003), 64 É compartilhando esse pensamento que titulei este capítulo, pois o que leremos a partir de agora são devaneios ditos pelas crianças, e escritos, ainda que por mim, como bem falaram Eva e Lupita depois de folhearem algumas passagens do meu trabalho onde suas falas se fazem presentes, “tudo o que agente falou em pensamento a professora fez em texto”(Eva; “Gostei de participar da sua pesquisa porque com a senhora a gente conversou. A senhora parou para ouvir e não achou besteira o que a gente falou ”( Lupita), Como foi colocado anteriormente por Leal (2204), talvez seja o momento de ouvirmos as crianças e aprender com suas infâncias, diria mais, aprender uma outra forma de falar das infâncias. Creio que, em essência, o que apreendi do encontro com as crianças foi não só a certeza de que elas falam e têm o que dizer, mas que têm um modo próprio de dizer as coisas. A partir do que nos sugere Bachelard (1988), é com gosto e emoção, revivendo-os melhor ao transcrevê-los, que escrevo sobre seus devaneios, com licença aos poetas, cheios de poética sobre as infâncias em construção, vividas agora. 3.1 AS INFANCIALIDADES: é o que dizem as crianças sobre suas infâncias sendo As falas das crianças estão cheias de sentimentos sobre a infância como categoria geral e cheias de sentimentos sobre os modos como a vivem no trânsito entre a casa e a escola. É um ponto de partida para os percursos que me proponho fazer, neste capítulo, para compreender como as crianças constroem sentimentos sobre suas infâncias e sobre si mesmas e como se localizam, a partir deles, na passagem para o mundo adulto. Então, o que é ser criança? O que é a infância? Essas são perguntas que já foram respondidas se considerarmos que antecipadamente lidamos com um conceito cunhado a partir do ser-criança como objeto do domínio do saber científico. Portanto, já temos uma resposta antecipada. Todavia, se fizermos a uma criança essas perguntas, elas, também, de imediato, respondem pautadas no que já sabemos, visto que elas estão inseridas em 65 um mundo socialmente determinado. Elas compartilham, através das relações sociais, dos modos de ver e viver os acontecimentos desse mundo. Mas, se escutarmos sobre suas experiências, nesse mundo, sobre seus trânsitos nos diversos espaços sociais, encontramos em suas narrativas uma maneira de vê-las que se oculta na fala dos adultos, em particular dos especialistas que não só cunharam um conceito sobre elas e suas infâncias, mas os fizeram valer através de práticas discursivas. Qual o interesse em ignorar os seus silêncios, o que pensam, falam, sentem? Busco o entendimento dessa indagação a partir do que Gadamer (2002, p.213- 214) discute, ao situar a função da hermenêutica, para a compreensão do encobrimento da fala. Para ele, é o que “determina a totalidade do comportamento com relação ao mundo “.Destaca que uma das formas de encobrimento é o emprego tácito e silencioso do preconceito. Todavia, para o autor, essa forma não está presente apenas no plano das nossas vidas comuns, mas, também, no plano discursivo da ciência. Um exemplo disso, dado pelo autor, é o conhecimento formulado sobre a sociedade que para ser sistematizado pelas ciências humanas desloca o método das ciências experimental e física para o seu âmbito sem nenhuma modificação. Acrescenta que ocorre, também, pelo fato da ciência ser “aclamada como a mais elevada instância nos processos de decisão social, como ocorre cada vez mais em nossos dias”. Uma aproximação com o pensamento desse autor nos levaria a uma possível resposta, a de que a produção do conhecimento científico sobre o ser-criança e a infância não está fora da esfera de poder e da ideologia, portanto, impregnados de preconceitos sobre sua aparição no mundo. Ora, quando o autor diz que a ciência se aplana naquilo que estabelece como objeto pela via dos seus métodos objetivantes, ela espurga tudo aquilo que foge à apreensão dos seus métodos e procedimentos, e se torna um discurso total. Creio que seja nessa passagem que se faz valer o discurso da ciência como ideologia, porque aí, o objeto das ciências humanas perde sua consciência histórica. Nesse caso, a criança e a infância, como objeto de estudo das ciências humanas, não é construído como parte do vivido, nem por quem pesquisa e nem por quem é pesquisado, no caso a criança. Gadamer(2002, p.214) diz, ainda, que por trás desse pretenso discurso total, encobrem-se preconceitos e interesses sociais, “Basta lembrar por exemplo o papel dos 66 especialistas na sociedade atual, o modo como a economia e a política, a guerra e o direito se definem com maior força pela voz dos especialistas do que pelas associações políticas, essas que representam a vontade da sociedade” . Pensando com esse autor, o interesse de encobrir o que as crianças falam e os arranjos que criam para fazer valer o que falam, é uma forma não só de assegurar a mitificação do método e seus procedimentos burocratizantes, bem como um discurso dominante sobre a sociedade e seus fenômenos. Mais ainda, desautorizar as falas das minorias, nas quais destaco as crianças, como fontes legítimas para falar sobre elas mesmas. Ouvir as crianças foi uma via para chegar ao que, de certa forma, está oculto nas falas dos adultos. As crianças disseram suas posições sobre isso: Cristal disse que “a minha mãe não deixa eu viver a minha infância”; para Luiza: “tem que ir para a escola...mas tem de viver a infância também”; já Lupita disse: “a minha mãe tem de entender que o tempo dela já passou”; para Tânia: “ os professores não ajudam na infância”, entre outras falas. Foi com suas falas que cheguei até às infancialidades como expressão dos seus sentimentos, dos seus modos de viver a infância, de seus valores e localizações sociais. Assim as infancialidades estão na esfera, usando a expressão de Galeffi (2003,p.55) do aprender a ser .Tal qual fala esse autor, o “aprender a ser não é o mesmo que mera transmissão de conhecimento. Só se aprende ser sendo”. Reescrevendo suas palavras, o aprender a ser criança só se aprende sendo. Estamos diante de um paradoxo, como pode a criança aprender a ser sendo se a sua infância já foi dada, antecipadamente, através de uma concepção narcísica do adulto? Querem-se que sejam a nossa imagem e semelhança? Traçam-se o seu rumo, decidimos o que comer, onde estudar, com quem brincar, quais os brinquedos que são mais adequados, que pensar sobre o que é certo e errado, se as julgamos incapazes de opinar, tomar decisões, entre outras coisas? Gallefi(2203, p.56) diria quão verdadeira são as falas dessas crianças. Continua a nos provocar a pensar o aprender a ser criança não como produto de práticas discursivas massificantes, homogeinizantes, mas como “abertura humana para a compreensão de sua condição existencial como ente-espécie[...] A impessoalidade deste aprender a ser é a chave de sua perene singularidade” Nesse caso, pode-se 69 segundo grupo composto por crianças com seis anos, as crianças precisam de cuidado dos pais, depois das professoras. O ser criança é localizado como aquele que só brinca e imperativamente estuda. Para Pedro, “criança brinca”, para Alice, “ brinca e estuda”. Rafael diz que “estudo mais que brinco”. Pergunto se não gosta de brincar, ele responde:“eu fico o dia todo na escola”, Insisto perguntando: E o que você faz quando chega em casa? “Eu tomo banho, depois janto e brinco só um pouquinho, depois vou dormir “.No terceiro grupo, formado por crianças entre cinco e doze anos, suas falas têm a mesma concepção: para Luana, “a criança precisa brincar”, pergunto para ela: E o adulto não brinca? “Não, só trabalha o dia todo”. Laisan diz que “a criança tem que ir para escola porque precisamos aprender muitas coisas..português, matemática, inglês Penso no que me dizem essas crianças e imagino o quão enigmático é o nascimento e que não é fácil ser criança, pois elas passam por dois ritos de iniciação: um é a passagem criança- adulto que começa quando nasce; o outro se dá no interior deste, é a passagem criança-aluno. Nessas dois ritos, elas têm sua condição de ser indefinido, transitante, ambíguo, pois não é adulto, da mesma forma que não é aluno, são transformações que precisam ser efetivadas, ritualizadas pelas instituições da maturidade, entre elas, a escola e a família . A criança, de certo, ameaça a estabilidade do mundo maduro, e, aí, se inclui o adulto como condição de sujeito racional, do logos, porque fora disso só tem a barbárie como coloca Zea (1999, p, 25) em seu livro “Discurso desde la Marginación y la barbarie” [ ...] De acordo com Aristóteles, existem três tipos de indivíduos que, não tendo nascido para mandar, só podem aprender a obedecer o mando; indivíduos com uma razão limitada a obediência, e por isso balbuciante e imprecisa; porém indivíduos capazes de fazer o que se ordena: se trata dos escravos, das mulheres e das crianças. Os escravos por natureza, os que provinham dos povos bárbaros; as mulheres, que estão nesta situação pela natural limitação de sua razão e as crianças, cuja razão tende a desenvolver-se( ZEA, 1999, p, 25.)11 Essa idéia da criança como ser desmedido, sem razão ou des-razão é, também, visto por Gagnabin( 1997) como um paradoxo, porque, ao mesmo tempo, em que esta 11 Tradução livre feita por mim 70 é tomada aos cuidados da educação moderna para ser transformado em sujeito pedagógico da razão, é ameaçador dessa própria razão. Tomamos posse da infância, a transformemos em objeto de atenção, fazemos dela a nossa semelhança, assim não poderemos deixar que escape, assim não podemos perder de vista que não é perfeita, é essa incompletude da infância que assusta e ameaça as nossas certezas. Nesse momento encontro com Agamben ( 2005) que mostra o sentido ritual dessa ameaça. O autor, analisando os jogos e brinquedos e os ritos de passagem, em especial os fúnebres, destaca a subversão do calendário e do tempo entre eles. Coloca que há uma hipótese de relação, ao mesmo tempo de correspondência e oposição entre jogo e rito. Para ele, essa “oposição significante entre sincronia e diacronia, entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos, não é rompida apenas pela morte. Um outro momento crítico, não menos temível, ameaça-a: o nascimento”(p, 102-103)). Para o autor, o nascimento sugere também o jogo dos significantes estáveis e instáveis. [...] assim como a morte não produz diretamente antepassados, mas larvas, o nascimento não produz diretamente homens, mas crianças, que em todas as sociedades têm um particular estatuto diferencial Se a larva é um morto-vivo ou um meio morto, a criança é um vivo-morto ou um meio vivo. Deste modo, também ela, como prova tangível de descontinuidade entre mundo dos vivos e o mundo dos mortos, entre a diacronia e sincronia e ainda como significante instável que pode transformar-se a todo momento em seu propósito oposto, representa simultaneamente uma ameaça que se trata de neutralizar e um expediente que torna possível a passagem de uma esfera a outra sem abolir sua diferença significante. E assim como à função das larvas corresponde a das crianças, igualmente ritos fúnebres correspondem aos ritos de iniciação, destinados a transformar estes significantes instáveis em significantes estáveis. A morte é a passagem do defunto para o mundo dos vivos. A sua ritualidade indica uma separação nítida entre dois mundos: o dos “vivos─ na qual coexistem significantes diacrônicos e sincrônicos - e dos mortos─.na qual não há mais que sincronia” (AGAMBEN, 2005, p.104)No rito fúnebre, o morto é o significante estável, sincrônico, logo que morre precisa alcançar este estado passando para o seu mundo. Assim, enquanto não se efetiva esta passagem, ele ainda não é o morto, mas também não mais pertence ao mundo dos vivos, todavia, por essa razão, ele tem um trânsito 71 ambíguo: é morto, mas fica vagando no mundo dos vivos, retornando aos lugares que já freqüentou, essa é a condição da larva. Essa primeira transformação é significante instável, sincrônico e traz ao mesmo, resíduos da diacronia quando o morto se separa do seu corpo e torna-se livre. Nessa direção, o fantasma ou larva é uma ameaça para o mundo dos vivos. Segundo o autor, o objetivo do rito fúnebre, enquanto rito de passagem, é fazer a passagem da larva, ou seja, “assegurar a transformação desse ser incômodo e incerto em um antepassado amigo e potente que vive em um mundo separado e com o qual são mantidas relações ritualmente definidas”. A relação de correspondência e oposição neste ritual, sugerida por Agamben (2005, p. 101), reside no fato de que a larva é “significante instável entre sincronia e diacronia”, mas que pode transformar-se em antepassado amigo e potente, em um significante estável ou “ assumir uma impossibilidade de fixar-se em um estado definido”. ,A superação da morte vai se efetivar, nestes rituais, segundo o autor, “ graças a um daqueles significantes instáveis cuja função aprendemos já estimar no churing12 e no brinquedo” . Nesse caso: A larva,significante instável entre sincronia e diacronia, transforma-se em lar, máscara e imagem esculpida do antepassado, que, como significante estável, garante a continuidade do sistema. Como diz um provérbio chinês: “ a alma-sopro dos defuntos é errante : por isso são feitas máscaras para fixá-las “ (AGEMBEN, 2005, p. 101-102) No que diz respeito à nascença-- rito de iniciação--- a sua correspondência com os ritos fúnebres reside na função de ambos. Para o autor, há correspondência entre a função da larva e a criança, ou seja, “ assim como a morte não produz diretamente antepassados, mas larvas, o nascimento não produz diretamente homens, mas crianças, que em todas as sociedades têm um particular estatuto diferencial’. Da mesma forma, os ritos fúnebres correspondem aos ritos de iniciação, cuja função é o da transformação.No caso, significantes instáveis em significantes estáveis, larvas em 12 Objeto de pedra e madeira “ com os quais os Aranda, uma população da Austrália Central, representa o corpo de um antepassado e que são, por esta razão, solenemente atribuídos, geração após geração , ao individuo que acreditam ser a reencarnação do antepassado naquela circunstância” ( AGEMBEN, 2005, 96) 74 entanto, depositária em potencial de algo que irá se revelar no futuro, ou seja, o modo como nos tornamos homens dotados de razão. Caberia, então, a educação realizar essa tarefa e transformar esses pequenos seres " imperfeitos" em homens dotados de linguagem e de logos- futuros cidadãos responsáveis, independentes e autônomos. Colocada sob a ótica dessas autoras, a infância evoca sentimentos ambivalentes que configuraram tensões, a exemplo, do que nos diz Tânia [...] A gente tem que ter obrigações..mas tem a parte boa que é brincar[...]. Esses sentimentos postos por ela revelam o que já sabemos sobre a matriz que situa a relação conflitante entre paparicação dos adultos e a condição de incompletude instaurado pelo Iluminismo, quando se preocupa com a criança. Nesse caso, como bem colocam Pereira e Jobim e Souza(2001), ela é instaurada na tarefa incumbida aos adultos para sua formação moralizadora, aí se destaca o papel da escola e da família. Talvez, possamos retornar à historia e localizar a origem da invenção moderna da infância, quando a ciência vai justamente tomar para si a “infância” como preocupação. Em outras palavras, a relação dos modernos com a infância foi alterada radicalmente quando a ciência a transforma em objeto de investigação. Quem vai garantir a viabilidade desse projeto social/científico/político é a escola. A inserção das crianças no mundo da escola não significou o seu reconhecimento como sujeito históricosocial, muito menos que elas tinham/tenham uma maneira particular de interpretar o mundo. Antes de tudo, demarcou o poder da ciência ao elegê-la como objeto de estudo exclusivo do seu domínio, ditando valores hegemônicos sobre o seu desenvolvimento social e cognitivo. Incluindo Kohan (2003) nessa discussão, ele nos traz uma miragem filosófica desta matriz moderna da infância que pode ser encontrada no modo platônico de conceber a educação para as crianças. Diz-nos o autor que, na visão Platônica, era preciso cuidar cedo da educação das crianças, posto que as marcas que recebem na mais tenra idade são “imodificáveis e incorrigíveis “. Por isso, “deve-se cuidar especificamente desses primeiros traços, por sua importância extraordinária para conduzir alguém até à virtude”(p.39.). Algo distante de nós? Vejamos o que diz o autor. Para ele, há no pensamento educacional, vestígios desta imagem da infância, o 75 que está posto aí, não é uma preocupação com a criança, mas com um adulto adequado para viver na polis. Mais adiante fala que nesse pensamento, [...] a infância é um degrau fundador na vida humana, a base sobre a qual se constituíra o resto “( idem). Pensando dessa forma, convido Jonatas, doze anos, estudante da escola pública, para falar o que pensa. Todavia, peço licença a ele para descrever, aqui, o que seria uma suposta conversa com Kohan, Quando Tereza me perguntou se eu achava que escola era importante para a infância, eu respondi, e o Sr. verá15 : “é muito importante, porque ninguém sabe o amanhã e depois, o que pode acontecer com a gente, né? O pais podem morrer, a gente pode ficar desempregado, não tem como sobreviver “ (2006)16. Kohan voltaria a dizer que há vestígios dessa imagem da infância e, não só a escola, mas todos nós estamos contaminados por ela. Lendo tantas falas das crianças sobre a escola, podemos apreender desta leitura que a escola, para elas, tem um peso nas suas formações. Para Jonatas, a infância é, também, preparação para um tempo incerto, [...]é muito importante, porque ninguém sabe o amanhã” A infância aparece também como o caminho que prepara o sujeito para uma vida adulta, como uma projeção política. Kohan diria, não só a Jonatas, mas a Juliana, Eva e a todas às crianças participantes desta pesquisa que nos traços platônico “Está retratada uma imagem de infância que ainda acompanha o pensamento educacional[...] uma boa educação garante um cidadão prudente” (Kohan, 2003,p.39) Diria a esse autor o quanto ele está certo, pois as crianças elaboram um sentimento sobre as infâncias e o ser criança e, como coloquei anteriormente, comecei esta investigação com o sentimento antecipado de que há vestígios da idéia dominante sobre as infâncias e a escola nas falas das crianças, todavia isso não implica dizer que elas não formulem idéias próprias sobre suas infâncias e que não sejam capazes de se rebelarem contra a lógica da adultez e instaurem as suas infancialidades como lugares apropriados por sentidos. 15 Esse trecho do diálogo, em itálico, foi elaborado por mim, o que segue como resposta são palavras de Joantas retirados da sua entrevistas. 16 Fragmento da entrevista concedida por Jonatas em março de 2006 76 Vale ressaltar que a idéia formulada sobre a infância esteve atrelada à natureza política da educação, tal qual proclamada por Platão. Essa projeção política que impregnou a educação para as crianças, estava imbricada na ambição de instaurar uma fronteira nítida entre mito e razão. Nesse caso, para essa maneira de pensar, seria tirar o homem do seu estado de ignorância e colocá-lo sob a luz da razão esclarecida. Andando pelos caminhos da literatura romancista, me deparo com Seo Nhô Berno e Seo Deográcias, personagens do romance “Manuelzão e Migulim” de Guimares Rosa, e os escuto falar sobre a escola com este sentimento, em um diálogo bastante saboroso entre eles. Seo Deográcias é amigo da família e Seo Nhô Berno é o pai de Miguilim, eles falavam sobre a inserção dessas crianças na escola, conversa essa escutada por Miguilim e seu irmão Dito. Mas pai tinha tirado por tino, conversava: ” Seo Deográcias, o senhor que sabe escola, podia ensinar o Miguilim e o Dito algum começo, assim, vez por vez, domingo ou outro, para eles não seguirem atraso de ignorância? Mal de Miguilim, que de todo temor se ameaçava. O arújo daquilo. Então, o que Seo Deográcias ensinasse  ele e Dito iam crescer ficando parecido com seu Deográcias?... Cruzou os olhos com o Dito. O Dito, que era seu irmãozinho corajosozinho destemido, ele iria arrenegar? Essa passagem do romance revela que a preocupação de Seo Nhô Berno era de que seus filhos não seguissem no “atraso da ignorância”, queria o suficiente para colocá-los sob a luz da razão esclarecida. Há, aí, um temor de que se tornem adultos sem saber ler e escrever, era preciso escolarizá-los, nem que fosse “algum começo”. Era preciso preocupar-se com a criança e sua formação, em outros termos, era preciso recuperar o adulto muito antes da sua maturidade. Essa idéia fica mais clara com a reação de Seo Deográcias ao pedido de Seo Nhô Berno, Mas seo Deográcias coçava a cara pela barba, ajuizava sério.”Bom, seo Nhô Berno, o que o senhor está é adivinhado uma tenção que já está residida aqui nesta minha cabeça há muito, mas mesmo muito tempo...Mas o que não pode é ser assim de horas pra hora. Careço de mandar vir papéis, cartilha, régua, os aviamentos...Ter um lugarim, reunir certa quantidade de meninos de por aqui em volta, tão 79 Um outro ethos: o cuidar do outro como a si mesmo, isto é, o respeito incondicional ao ser-livre. Isso diz tudo. Nossa pedagogia não se ocupa da vida humana em seu processo aprendente instante, mas encontra-se a serviço da tecnociência planetária dominante, no sentido do descuidado com a vida-instante: a alienação planetária(GALLEFI, 2003, p.57, grifo do autor). Apropriadamente esse autor nos provoca a pensar que Paulo Freire nos convocaria para uma saída revolucionária, todavia indaga: “E como é possível ser revolucionário, no sentido freiriano, se apenas poucos são os senhores e muitos os escravos? O autor, em homenagem a Freire, afirma a necessidade da pedagogia da vida como linha de fuga da pedagogia de bancos escolares, na qual a escola pode transformá-la no ad-mirar a vida. Ele sabe que esse é um desafio, visto que essa possibilidade ainda não é algo efetivado, mas pode tornar-se.. Trazendo essa perspectiva para o plano geral das infâncias, creio ser pertinente pensarmos quão é difícil para as crianças, como foi para nós, adultos, em nosso tempo, nos tornamos aprendentes do ser livre, se, segundo o autor, o “tornar-se é um ser- sendo, e não só projeto, mas é processo: acontecimento próprio e apropriado da vida”. Miguilim, uma criança que cria um mundo próprio e se refugia nele pra sobreviver no mundo hostil dos adultos, é um exemplo do que nos fala Gallefi sobre o desafio de nos tornamos aprendentes do ser-livre. Podemos perceber isso, na sua visível preocupação de não se perder o que havia construído solitariamente na sua inserção, na cultura famíliar e na paisagem de Mutum. No meu entender, ele é como as crianças que aqui falam, também um combatente na luta política pela sua infancialidade. Vocês, leitores, podem não concordar, o que é justo, mas olhemos com atenção suas preocupações: [...]ficaria ele e Dito igual a Seo Decrácias? Dito perderia sua coragem frente aos adultos? O Dito, que era seu irmãozinho corajosozinho destemido, ele iria arrenegar?”(ROSA, 2001, p.56). Então, o temor de Miguilim não faz sentido se pensarmos como Gallefi(2003) que a escola não ad-mira a vida? Que ela adota, nos termos foucultianos, dispositivos de controle, vigilância e punição para que a infância seja apenas um projeto executado cotidianamente,? 80 É bela a forma como Miguilim tenta reagir a este temor. Ele tem muito medo do pai, ele não tinha a coragem de Dito, seu irmão mais novo, mas tinha cismado que ia morrer logo de uma doença, assim, não importava enfrentar seu pai, diz o narrador: “ Miguilim ia mesmo morrer de uma doença, então ele agora não somava com ralho nenhum: Quero tudo não, meu Pai. Mãe sabe, ela me ensina...”(ROSA, p 56/57) . Olho para a infancialidade, nesse horizonte, e vejo o quanto a literatura tem a contribuir para essa discussão, porque, no dizer de Resende (1988 p.30), através da infância, tenta-se filtrar a realidade. Assim, ela nos apresenta Miguilim [...] é uma criança de excepcional sensibilidade e imaginação ingênua em termos de conhecimento do mundo e de si mesma que vai descobrindo, com alegria e tristeza, a vida, até chegar a uma relativa maturidade, quando está pronta a passar a outro estágio do aprendizado Imagino um possível diálogo entre Miguilim e Luiza que participou desta pesquisa. Ela tem nove anos e estuda em uma escola da rede privada em Salvador, Miguilim: Luiza, você que já tem um começo de escola, me diga, por que eu, Dito, tem que ir para a escola?. Luiza olha para Miguilim e diz:  A escola é importante.....porque você tem que aprender as coisas. Porque se não, sem matemática você não sabe contar, sem a língua portuguesa você não sabe ler, sem a historia, geografia e ciência você não sabe como é sua terra, a coisa da vida, a poluição que está tendo, você não sabe de nada. Então, mas você também tem que ir para escola para aprender, mas você também tem que viver sua infância”(, 2006)19 . Certamente Luiza tranqüilizaria um pouco Muguilim e seus temores em relação à escola e à sua infância. Imerso, neste mundo, Migulim teme a escola sugerida por seo Deográcias, ele não quer se perder da sua aventura. Luiza, então, nos coloca uma questão bastante interessante ao dizer, [...] Então, mas você também tem que ir para 19 A resposta de Luiza foi colocada em itálico para se diferenciar da pergunta de Miguilin escrita por mim. Essa resposta foi retirada literalmente da entrevista gravada em março de 2006 81 escola para aprender, mas você, também, tem que viver sua infância(, 2006)20. A infância é agora, neste momento ela está acontecendo, é a infancialidade. Esse é um dos resultados que chego ao final desta investigação. As crianças reconhecem o valor da infância, elas querem vivê-la agora, a vida adulta é outro momento. Ela é reivindicada pelas crianças como emergência do agora, porque elas estão abertas para pensaram sobre si mesmas. A infancialidade é lugar das experiências, não no sentido da ação, daquilo que as crianças fazem, mas, pesando com Gallefi ( 2003 ), é a historia em curso, é o trânsito entre passado-presente-futuro, é uma fenomenolgia da recusa da ausência da infância na própria infância sendo. A infancialidade reinvindica as infâncias não como projeto social para a vida adulta, mas como acontecimento. Nesse caso, talvez, possamos pensar que as crianças reivindicam vivê-la como experiências. Se tomarmos a colocação feita por Larrosa (2003), a experiência é o que nos toca, nos passa. Nesse caso, creio que a infancialidade é uma instauração da presença concreta das crianças e suas infâncias no projeto da adultez, não a sua previsibilidade como etapa da vida, mas o inusitado, o imprevisto, a descontinuidade, uma ritualidade clandestina em que se trafica significados entre o mundo próprio que elas criam e o que já estava posto e interpretado para elas. O ideário moderno de infância não é um invenção do campo científico circulada nas áreas da pedagogia, psicologia, medicina, direito e outras, mas, também, na mídia, na artes e literatura. Resende (1987) e Tonozi-Reis (2002) nos oferecem um panorama da presença das crianças na escrita romancista. Esta, no seu trabalho, lança seu olhar sobre a infância pobre e a inserção das crianças no mundo da escola como questões colocadas pelos romancistas. Segundo Tonozi-Reis (2002 p.104) “A literatura brasileira contribuiu para a reflexão da história dessas crianças na família, na escola e no trabalho” É interessante notar que, nos vários escritores apresentados por ela, em seu trabalho, as crianças são apresentadas como ser sem discernimento, vulneráveis às intempéries da vida. É por essa razão que a escola aparece como a possibilidade de civilidade e para as crianças pobres era a possibilidade de ascensão social. 20 Idem 84 sobrevivente de uma sina previsível aos pobres do lugar, o da miséria, abandono dos filhos, marginalidade. O autor Relata os sentimentos em relação a este menino, [...] Apanhado na malandragem, mentia, inocente e sem vergonha. Juntava os indicadores em cruz beijavo-os: Por Deus do céu , pelas cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo, por esta Luz que nos alumia”. Franzino , magrinho , achatava-se . Uma insignificante mancha trêmula. Nunca vi chorar. Gemia , guinchava, pedia, soluçava infinitas promessas, e os olhos permaneciam enxutos e duros. Enchia- me de inveja, desejava conter as minhas lágrimas faciais. Tomava-o por modelo. E, sendo-me difícil copiar-lhe as ações, imitava-lhe a pronúncia, o que me rendia desgostos(p,86) O “moleque José” é uma criança que entra para escola sem estar domesticado pelos adultos. Para sobreviver, nesse mundo, aciona uma série de arranjos que aprendeu na “malandragem”, fora do adestramento imputado às crianças nas instituições sociais. Por essa razão, causa inveja ao narrador, não é muito distante do que fala Tiago: “Eu acho que os meninos que vivem nas ruas são mais sabidos do que eu”. Já Eva traz diferentes representações “ Têm crianças que trabalham nas ruas, batalham para dar dinheiro à mãe” São crianças que têm família e não fazem da rua a sua morada, mas local de trabalho, são trabalhadoras que, por necessidade, complementam a sobrevivência da família. E continua a sua classificação “Mas, mas têm crianças que já têm tudo isso desde que nasceu, mas não dão valor, acham que não têm nada, acham que o melhor é ir para ruas, têm o que outras crianças queriam ter”. Aqui há outra condição, a decisão deliberada de ir para rua, para o local incerto, visto que tinham tudo em suas casas. A rua é lugar de liberdade A partir da leitura do livro de Kohan( 2003), intitulado “Infância: entre a educação e filosofia”, escuto o que crianças me dizem sobre a infância. Reinterpreto- as percebo vestígio que me levam a concluir que a visão platônica sobre a infância e a pólis não está tão distante de nós. Fico pensando no que me diz Eva, suas palavras são lidas e relidas por mim e, certamente, não é minha intenção avaliar/julgar o que diz, mas compreender a grandeza do seu pensamento. Ela nos conduz a pensar na questão moral que acompanha o crescimento das crianças, muito embora, não diga isso dessa forma, pois a criança toma a decisão de ir para rua tendo tudo em casa; 85 há, aí, dois espaços demarcando a questão moral, a casa e a rua. Esses espaços povoam o imaginário social e demarcam certa mentalidade sobre o público e o privado, já bastante discutido por Roberto Damatta(1997). Assim, casa é o porto seguro, lugar de regras e códigos sociais, de acolhimento, de formação da criança. A rua parece como lugar de convivência desbragada, sem controle, com regras e códigos sociais antagônicos à família: quem habita as ruas está entregue a todo tipo de sorte. Luiza, por exemplo, concebe o espaço da rua para que as crianças vivam suas infâncias bem parecidos com o da casa. Pergunto se na rua as crianças brincam ou fazem coisas que toda criança que está em casa faz, ou seja, se, vivem as infâncias, Luiza. Depende do tipo do lugar da rua que fazem, se tiverem numa pracinha, tiverem assim um banco, com brinquedos, é um com bebedouro coisinhas para vender comida, vão se sentir na própria casa deles, porque vai ter onde dormirem, vai ter um sanitário químico, vai ter um onde brincarem dormirem (2006) Cristal Acho que elas não vivem a infância dela, não têm tempo de estudar, de brincar, o único tempo que têm vai trabalhar para comprar alimentos para ela. Para Luiza, é preciso um lugar seguro como a casa, é preciso que a rua tenha o mínimo que possa deixar as crianças confortáveis para viverem suas infâncias. Creio que, aí, entra outra espacialidade que é antagônica à casa: a rua sem os muros, paredes, portas, fechaduras, compartimentos.. Para Luiza, a rua é cheia de perigo “ [...], eles estão na rua, eles vêm ao assalto mesmo, qualquer pessoa que oferece a droga para eles. Tudo que vocês vêem que é novo é bom, você vai lá para experimentar[...] . A rua é assim, um território incerto, cheia de tentações, tensões, geradora de medos, é um lugar onde tudo pode acontecer, tudo pode ser experimentado. Cristal diz “ acho que elas não vivem a infância delas”. Mais adiante nos esclarece esta afirmação com seu conceito de infância “não tem tempo de estudar, de brincar”, visto que vão em busca da sua própria sobrevivência. Nesse caso, o trabalho rouba das crianças a brincadeira e o estudo que são duas dimensões demarcadas, por 86 todas as crianças que estão nesta pesquisa, como fundantes das infanciliades, Luiza diz que “a criança gosta de brincar”. Assim infância é tempo de brincadeira e não de trabalho, entretanto, diz Brenda “têm crianças que trabalham, trabalham nas ruas, batalham para dar dinheiro à mãe. Ainda lendo as palavras de Eva, Cristal e Luiza, elas me sugerem outro aspecto bastante instigante, uma outra possibilidade das infâncias interditas. Está bem claro, nas falas destas crianças, que a idéia de infância tem dois territórios bem distintos, o estudar e o brincar. A infância é assim tempos das brincadeiras e da educação, há, aí, uma mística da infância, como coloca Luiza em outro momento da entrevista[...] criança gosta de brincar”. Pereira, Jobim e Souza (2001, p. 28), lendo essas palavras das crianças diriam que , [...] produção e o consumo de conceitos sobre a infância pelo conjunto da sociedade interferem diretamente no comportamento de crianças, adolescentes e adultos, e modelam formas de ser e agir de acordo com as expectativas criadas nos discursos que passam a circular entre as pessoas, expectativas essas que, por sua vez, correspondem aos interesses culturais, políticos e econômicos do contexto social mais amplo. Sob esse aspecto, é pertinente compreender as falas dessas meninas com/na história do Brasil para trazer as matrizes que modelaram a construção do sentimento sobre as infâncias. Sendo assim, podemos localizar o que interessava à sociedade brasileira: uma produção e consumo do conceito de infância que sustentasse um projeto social e político no período da República. Não era um projeto para todos, a inserção das crianças pobres na escola, neste período, não ocorria de forma tranqüila, visto que contraditoriamente, segundo Priore (2004, p. 13) “a Rebúplica seguiu empurrando as crianças para fora da escola, na direção do trabalho na lavoura, alegando que ela era ‘o melhor imigrante’ “.Ainda, segundo a autora, a cidade de São Paulo, após o período da escravidão, passa por uma explosão urbana e, com o crescimento, essa população de crianças e jovens, originados do escravismo, enche a rua com suas presenças. 89 quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais, econômicos e campos simbólicos porque transitamos. Narodowski (2005,p.6) situa a crise conceitual de infância na nossa época em dois pontos de fuga: a infância hiperrealizada e a desrealizada. São formas atuais de caracterizar a identidade infantil em ressignificação. Segundo o autor, quando o conceito de criança hiperrealizadas foi construído há mais de dez anos, pensava-se em crianças pertencentes aos setores sociais de poder aquisitivo alto no âmbito urbano, especificamente, a classe media alta. Acrescenta que, “Uma década mais tarde nos damos conta que pela via do barateamento de certas ferramentas computacionias e pela divulgação ou popularizacão de certas tecnologias, a hiperrealização da infância se faz cada vez mais massiva[...]. Nesse caso, os hiper-realizados são crianças que vivem em uma realidade virtual, porque têm acesso a bens culturais como Internet, vídeo-game e computador. Quanto à infância desrealizada, estão as crianças que conseguem sua autonomia [...] pela capacidade própria de operar sobre o mundo desde um lugar de violência.. Quem são? São os meninos e meninas da rua[...] são meninas e meninos que trabalham, vendem drogas, os meninos e meninas da noite, do sexo, do abuso. Meninos e meninas sicários que assassinam[...].Para o autor, eles se constroem na violência não porque são fortes, ao contrário, sabe-se que são vulneráveis socialmente, culturalmente, mas, porque constroem uma força a partir da própria delimitação que faz a sociedade deles. O autor destaca, nesse tipo de infância, o fato de que as crianças são desrealizadas através da exclusão social, no entanto, essa condição social vai lhes dar certa autonomia cultural e, por meio dela, buscam realizar-se ou des-realizar-se, como infância. Thiago, já citado, confirma o que fala o autor, quando diz que os meninos que vivem nas ruas são mais sabidos que ele. É uma esperteza apreendida na luta diária pela sobrevivência nas ruas das cidades urbanas. Esse aprendizado sugere, conforme o autor, “um sujeito em um corpo infantil que acolhe uma capacidade de operacionalização social semelhante à de um adulto” (NARODOWSKI, 2005,p, 7). 90 Essa construção das infâncias sugerida pelo autor, de alguma forma, guardando as devidas temporalidades e seus acontecimentos, era cunhada no período da República. Moura, (2004, p.279) referindo-se ao trabalho de crianças e adolescentes, diz que A criança sobretudo era inspiradora de um certo sentimento de proteção, provavelmente em função da aparência frágil , vulnerável, indefesa. O mundo do trabalho permitia identificar um certo tipo de infância e de adolescência que estava longe de reproduzir o cotidiano de crianças e de adolescentes das camadas economicamente dominantes, assim como a infância e a adolescência de milhares de escravos os distinguira em passado muito próximo dos filhos de seus senhores. Ainda, segundo ao autor, na passagem do século XX, o movimento operário já denunciava, na imprensa, as condições da infância e da adolescência no processo de industrialização. Vale lembrar que, neste período, a ciência já conferia status científico à pedagogia. A ela foi designada a missão de instrumento para a construção de uma sociedade urbanizada e industrial, "produto e produtora de ethos de civilidade pautada numa nova disciplina social, remodeladora e, em todos os aspectos, saudáveis. O ponto de partida era a criança” (Freitas, 2002, 351). Ressalta-se que a escola, neste período, não era para todas as crianças e adolescentes, todavia, Moura (2004, p.279) nos mostra que patrões se encarregavam de educá-las na lógica do mundo do trabalho, em que imperava a aprendizagem pelo castigo. Era uma forma de “mantê- los ‘na linha’ , ou melhor, transformá-los em trabalhadores dóceis e domesticados. Vale aqui transcrever o caso de um menino citado pelo referido autor, [...] Esse é o caso do menino Vitto Lindolpho, de dez anos de idade, empregado em uma sapataria, brutalmente espancado pelo patrão em outubro de 1904. O patrão dera pela falta de cinqüenta mil reis na gaveta, pedira satisfação ao menino e este alegara não haver furtado, de nada saber , e a conversa evoluíra para a surra. Pensando as infâncias com a história, podemos aí, creio, retomar o pensamento de Kohan (2003) quando diz “A visão platônica da infância se enquadra, 91 então, em uma análise educativa como intencionalidades políticas”. Nesse sentido, para o autor, filosoficamente, a infância não se constituía uma problemática para Platão, mas o fato de que era preciso educá-la. Seguindo o rastro da história, a educação, no período da surgência da industrialização no Brasil, estava não só no plano da política, cuja centralidade era a garantia de uma sociedade saudável, mas de garantir em potência a sua esfera cognitiva. Abre-se, por conseqüência, um campo fértil para a atuação de médicos, psicólogos e psiquiatras no campo da educação no Brasil. Assim é fortalecida a criança como objeto de estudo da ciência. Destacam-se, nesse cenário, os laboratórios de antropologia educacional e psicologia experimental que passaram a ser as instâncias autorizadas para produzir uma ciência da educação infantil. Freitas (2002, p, 353), analisando a obra de Oscar Clarka,22 destaca os seguintes aspectos: A escola pública passou a ser identificada com um campo de ação da organização sanitária moderna[...] A escola primária, em especial, foi representada como instrumento necessário para cuidar do corpo e da alma da criança, através do que a aferição das potencialidades cognitivas, somando ao diagnóstico das deficiências orgânicas, resultou na conversão da infância em metáfora da nação a ser reexaminada e tratada conforme os ditames da nova "ciência mãe. Dessa forma, a sociedade brasileira tecia um imaginário sobre o ser criança e as infâncias a partir de uma abordagem da saúde. Como foi colocado, as crianças não eram consideradas na sua trajetória histórica e social, portanto, não eram vistas na sua humanidade, com isso não tinham autonomia, particularidades e discursividade próprias. A grande tarefa social do ajustamento das crianças a essa nova ordem cabia, em primeira instância, à escola e à família orientadas pela ciência. Assim, a ciência torna as crianças reféns dos seus campos especializados, e, ao tomar para si a tarefa de "explicar" a infância, constrói um discurso sobre a criança/infância, em que as próprias crianças são desautorizadas a falar de si mesmas. 22 Freitas cita a obra de Oscar ClarK publicada em 1927 " batizada de O século da crença , que se tornou, nesse sentido, um ícone do quanto a população de zero a quartoze anos estava submetida às multifaces de um processo de " cura" do país" (p, 352). 94 3.2 A PRESENÇA E AUSÊNCIA DA INFÂNCIA: uma contradição percebida e sentida pelas crianças nas suas infancialidades Creio que, no nosso tempo, como já foi dito aqui, a construção das infâncias é mediada pelo adulto e ocorre por razões sociais diversas:a divisão social do trabalho no interior da família como arranjo de sobrevivência, bem como a inserção precoce da criança no mundo do trabalho em algumas classes sociais, o abandono, a relação narcísica estabelecida pelos pais, o apelo da mídia, entre outros motivos instaurados socialmente. Se olharmos com mais atenção, notaremos que essa construção vai tomar uma dimensão dramática, visto que vai além da sua ressonância nas práticas sociais que as crianças estão inseridas. Creio que vai tocar a condição de ser-criança. Cristal sente e questiona, trava sua luta particular para viver sua infância. [...] não, ela não fala que sou criança. Fala que eu já sou moça. Que eu tenho que procurar fazer coisas em casa, procurar fazer alguma coisa, que eu não sou mais criança, entendeu?. Tudo que faço ela joga na cara “você não é criança, você já é uma moça”. Tem que procurar fazer as coisa em casa”, .então às vezes fico assim, fico um pouco machucada( Postman(1999) se refere ao desaparecimento da infância como um fenômeno medieval que ressurge na atualidade, na vida contemporânea. A linha divisória entre a infância e a vida adulta, segundo ele, vem dando sinais efetivos/concretos de apagamento através de vários processos sociais. Nesse caso, o referido autor analisa o desaparecimento da idéia de infância. Pergunto a Tânia se ela também já ouviu isso e o que ela pensa quando alguém fala para ela “já é uma mocinha”. Ela então responde: Tânia: Eu paro para pensar professora, porque nem todas as coisas temos o direito de fazer. Claro, que a gente não pode ficar no sofá assistindo tv, temos as nossas obrigações, a de estudar, de fazer o que é certo[...] mas, tem o lado dela[ a mãe] de que devo ser comportada. Mas ela tem que pensar...como ela mesmo fala.. “eu não tive, adolescência, infância,” porque ela fala que hoje em dia não existe mais adolescência.... infância.....[ ele é interrompida pelas outras crianças] . 95 Tânia é interrompida pelas outras colegas e a discussão é estabelecida em torno da questão: não é porque as mães e avós não tiveram infância e adolescência que elas também não vão viver esta experiência. Elas reivindicam suas infâncias. Estas falas são interessantes porque nos dão pistas para o posicionamento das crianças diante destes ditos, [...]não, ela não fala que sou criança. Fala que eu já sou moça então[...] às vezes fico assim, fico um pouco machucada” (Juliana, 2005). Elas se consideram crianças ainda e não concordam com a pressa dos adultos em torná-las mocinhas. Neste momento, Cristal e Tãnia estão pensando juntamente com Postman(1999, p. 9), quando diz apropriadamente: As próprias crianças são uma força na preservação da infância. Não uma força política, certamente. Mas uma espécie de força moral{...} as crianças, parece, não somente sabem que há valor em serem diferentes dos adultos, mas querem que se faça uma distinção; sabem, talvez melhor que os adultos, que se perde algo terrivelmente importante quando se borra essa distinção Elas demarcam a fronteira entre o mundo do adulto e o da criança e sabem que socialmente são cobradas, pressionadas a atravessá-la aligeiradamente. É nítida a idéia que se tem de infância como período de vida que não cabe numa lógica burocrática da organização da vida social, há uma atmosfera de ludicidade, de maravilhamento nesta idéia. Mia fala: “eu ainda brinco” e Luiza fala “a criança tem de brincar”. Nesse sentimento sobre o brincar, as crianças falam de outro tipo de roubo da infância, a negação da brincadeira. Isso é muito interessante porque uma das formas de castigar uma criança é privá-la da brincadeira, é um dispositivo tanto usado pela família, quanto pela escola. É por isso que a privação do recreio é um castigo medonho para as alunas e alunos. Outro dispositivo utilizado pela escola é o controle das brincadeiras na sala de aula. Na lente da etnografia, pude perceber que as crianças, ao iniciarem as suas passagens criança-aluno, ou seja, passarem para o mundo da escola, são enquadradas em uma normatividade que ordena a relação de ensino e aprendizagem. Nessa ordem, a forma de enquadramento, no papel do aluno, obriga as crianças a 96 abandonarem as suas experiências anteriores, suas relações afetivas, seus pertences, ou seja, elementos que contornam uma certa maneira de ser criança. Há, neste caso, uma morte simbólica da condição do ser criança. Transcrevo, a título de exemplificação, uma cena observada, por mim, na sala de aula de uma escola pública de Salvador. Beto é um aluno da alfabetização e tem seis anos de idade, Cena do dia 26.5.97 Beto e mais dois colegas estão brincando com os carrinhos que ele trouxe. A professora Gilda levanta-se e vai até eles, manda cada um para os seus lugares e toma o brinquedo. Fala para Beto: “É para isso que você vem para a escola?” Toma os carrinhos do aluno. Beto fica resmungando e diz baixinho: “Isto aqui para mim é um lixo..” A professora não escuta o que ele diz ( eu creio! ) Quando a professora estabelece um corte na brincadeira de Beto com os colegas e toma o brinquedo, ela não está só disciplinando-os, mas assegurando-lhes que não saiam do trânsito criança/aluno, para que possam se tornar o aluno padronizado. A escola não é lugar de brincar, essa condição fica clara na fala da professora, “É para isso que você vem para a escola?”. A escola é coisa séria, portanto não cabe brincar na aula. Quando a professora Gilda toma o carrinho de Beto, ela o afasta do seu mundo, assim, vive-se a primeira parte do ritual de iniciação, o de rito de separação 23. Nesse primeiro rito, a criança/aluno, enquanto neófito, se solta da mão da mãe e/ou do pai, abandona os seus brinquedos, brincadeiras, sonhos. Luiza fala deste sentimento, embora reconheça que são formas de cuidar das crianças 23 Van Gennep, estudioso dos ritos de passagem, designa uma estrutura tríplice para esse ritual: a separação onde o neófito separa-se do seu mundo profano; margens ou limiar o iniciante transita entre características do passado e do futuro (no caso, criança e aluno) e a reagregação ou incorporação quando se consume a passagem.(citado por Turner, 1974).
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